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2ª Edição
PORTO ALEGRE
2013
2
SUMÁRIO
Sumário ......................................................................................................................... XX
PREFÁCIO ....................................................................................................... XX
INTRODUÇÃO ................................................................................................ XX
CONCLUSÃO .............................................................................................................. XX
BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................... XX
6
PREFÁCIO
Escrever, neste momento, uma Eclesiologia é, de certo modo, uma tarefa temerária,
pois o tema Igreja está, hoje, em permanente discussão, suscitando, por isso mesmo, muitos
debates, que, infelizmente, nem sempre se assinalam pela profundidade. Quantas vezes se ou-
ve dizer que o problema desta ou daquela pessoa é a sua “visão de Igreja”. A mesma crítica
atinge as instituições eclesiásticas. Acrescentem-se a essa dificuldade1 as muitas possibilidades
de ser refletida e abordada a Eclesiologia. Inclusive, a análise sobre a situação da Igreja é vari-
ada e dependente daquele que a faz, como retratam algumas publicações recentes.2
Entretanto, é preciso fazer uma outra consideração: a reflexão sobre a Igreja não avan-
çou no período pós-conciliar, assim como aconteceu com outros tratados teológicos, permane-
cendo, até hoje, como uma tarefa inacabada, embora tenham sido publicados alguns livros
analisando a Igreja no alvorecer do novo milênio.3 Observe-se que a renovação do pensamento
teológico se iniciou com a Cristologia, seguida da Eclesiologia. Contudo, a reflexão sobre a
1
E esta considero a maior dificuldade.
2
A título de ilustração, cito alguns artigos que versam sobre a análise da situação atual da Igreja e tentam fazer
uma radiografia de sua situação atual: BEOZZO, J. O. A Igreja do Brasil. De João XXIII a João Paulo II. De
Medellín a Santo Domingo. Petrópolis: Vozes, 1994; BOFF, C.. Para onde irá a Igreja da América Latina? In:
Revista Eclesiástica Brasileira 1990/2 (junho), p. 275-286; Id. Uma análise de conjuntura da Igreja Católica no
final do milênio. In: Revista Eclesiástica Brasileira, v. 56, fasc. 221 (março de 1996), p. 125-149; COMBLIN, J.
O ressurgimento do tradicionalismo na teologia latino-americana. In: Revista Eclesiástica Brasileira 1990/1 (mar-
ço), p. 44-75; GONZÁLEZ VALLÉS, C. Querida Igreja. São Paulo: Paulus, 1998; JAMES, C. Análise de con-
juntura religioso-eclesial. Por onde andam as forças. In: Perspectiva Teológica, ano 28, n. 75 (1996), p. 157-182;
LIBANIO, J. B. A volta à grande disciplina. Reflexão teológico-pastoral sobre a atual conjuntura da Igreja. São
Paulo: Loyola, 1983; Concilium 1981/1 (O neoconservadorismo) e 1981/6 (Radiografia da Igreja). Recentemente,
surgiu o seguinte livro, com uma apreciação muito pessoal sobre a situação atual da Igreja no início deste novo
milênio: COMBLIN, J. Um novo amanhecer da Igreja? Petrópolis: Vozes, 2002. Sugiro algumas perguntas, com
a finalidade de o leitor aprofundar a questão: 1) Qual é a realidade da Igreja Universal hoje? 2) Qual é a realidade
da Igreja no Brasil? 3) Qual é a realidade de sua Igreja Particular? 4) Quais são as linhas eclesiológicas que hoje
vigoram? 5) Quais são as críticas mais contundentes feitas à Igreja hoje, seja pelos próprios católicos, seja por
aqueles que não pertencem à Igreja Católica?
3
Como exemplos, podem-se citar: COMBLIN, J. O povo de Deus. São Paulo: Paulus, 2002. 410 p.; TEPE,
DOM V. Pequeno rebanho, grande sinal. Igreja hoje. São Paulo: Paulus, 2000.
7
Igreja não foi até o fim, porquanto outros temas emergiram e se revelaram como mais urgen-
tes4, relegando a reflexão eclesiológica para um segundo plano.
Por essas razões, titubeei muito antes de publicar esta obra. No entanto, a leitura do
livro de Ghislene Lafont5 deu-me o alento necessário, pois, ao encontrar algo que procurava há
bastante tempo, isso me possibilitou dar uma feição ao que estava refletindo nos últimos anos,
inspirando-me, desta feita, para encontrar um caminho que desse sentido, direção e unidade
para a Eclesiologia em elaboração. Outro livro, o de Salvador Pié-Ninot6, confirmou a desco-
berta do caminho encontrado.
Este livro, assim como o anterior7, nasceu na sala de aula. Após vários anos lecio-
nando a disciplina de Eclesiologia, pesquisando e expondo conteúdos, respondendo a dúvi-
das e ouvindo a reação dos alunos e de outros públicos em ambientes diversificados, che-
gou o momento de oferecer estas páginas a quem deseja aprofundar a sua compreensão de
Igreja. Não que pretenda ser uma obra completa ou perfeita. De forma alguma! Apenas
quer ser expressão do intuito de colaborar com os estudiosos da Teologia e com a formação
daquelas pessoas ávidas pela verdade, compartilhando, embora de forma modesta, o mesmo
amor à Igreja de Jesus Cristo.
O autor
4
A título de ilustração, podem-se referir os temas da Trindade e do Espírito Santo, que foram objeto de inú-
meras publicações.
5
LAFONT, G. Imaginer l’Église catholique. Paris: Du Cerf, 1995.
6
PIÉ-NINOT, S. Introdução à eclesiologia. São Paulo: Loyola, 2000 (original: Introduzione alla
ecclesiologia. Casale Monferrato: PIEMME, 1994).
7
HACKMANN, G. L. B. Jesus Cristo, nosso Redentor. Iniciação à Cristologia como Soteriologia. 2. ed.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.
8
9
INTRODUÇÃO
A intuição básica das linhas deste livro é a unidade indissolúvel entre a ideia da co-
munhão (koinonía) e a dimensão sacramental da Igreja, em analogia com o mistério da en-
carnação, que faz com que a Igreja exista em comunhão orgânica. Ou, em outras palavras,
na Igreja acontece a unidade orgânica entre as suas duas dimensões, que lhe são, por natu-
reza, inerentes: o divino e o humano. Essa perspectiva é denominada por G. Ghirlanda co-
mo a dimensão “carismático-institucional” da Igreja, além de afirmá-la como a sua estrutu-
ra fundamental.8
Por outro lado, não é outra coisa do que a afirmação daquilo que expressa a Lumen
Gentium no título do número 8, ao final do primeiro capítulo: “A Igreja simultaneamente
8
Cf. GHIRLANDA, G. Chiesa universale, particolare e locale nel Vaticano II e nel Nuovo Codice di Diritto
Canonico. In: LATOURELLE, R. Vaticano II: Bilancio e prospettive venticinque anni dopo (1962-1987).
Roma e Assisi: Pontificia Università Gregoriana e Cittadella, 1987, p. 843.
10
visível e espiritual”. O problema é que se perdeu a consciência da unidade dessas duas di-
mensões no período pós-conciliar, acarretando Eclesiologias unilaterais e, por isso mesmo,
prejudiciais. R. Coffy faz uma análise pertinente dessa questão, comentando que a Lumen
Gentium não quis substituir uma visão piramidal da Igreja, a hierárquica, por outra de cará-
ter democrático, como se simplesmente pretendesse inverter a pirâmide (conforme muitas
vezes é retratada a Igreja), mas apresentar uma nova visão de Igreja, mais unitária e orgâni-
ca, que, esquecida no pós-Concílio, foi recuperada pelo Sínodo de 1985.9 Portanto, a afir-
mação da Igreja como comunhão orgânica faz com que seja superada uma visão fragmentá-
ria entre o essencial e o pastoral e entre o espiritual e o social, além da oposição entre o ad
intra e o ad extra, como se não fossem dois aspectos complementares da mesma Igreja. Por
isso, ela é sacramento universal de salvação (cf. Lumen Gentium 1).
O leitor não encontrará, nestas páginas, questões discutidas, embora possam ser fei-
tas referências a temas controvertidos pertinentes aos assuntos apresentados. O objetivo é
apresentar a doutrina teológica básica sobre a Igreja de Jesus Cristo, que amamos e servi-
mos. Não é, portanto, um livro temático, enquanto objetiva ser um manual de Eclesiologia,
para preencher uma lacuna existente, hoje, na literatura teológica brasileira. Também neste
livro sigo as orientações do Magistério sobre o ensino da Teologia, que não é demais repe-
tir:
A finalidade pastoral da formação dos futuros presbíteros exige que ela tenha por
base o estudo da Teologia, entendida pelo Concílio Vaticano II como estudo da
doutrina católica, à luz da fé e sob a direção do Magistério da Igreja, de modo que
os estudantes possam “nela penetrar profundamente, torná-la alimento da própria
vida espiritual, anunciá-la, expô-la, defendê-la no ministério” (OT 16).10
9
COFFY, R. L’Église, vingt ans après Vatican II. In: Nouvelle Revue Théologique 107/2 (1985), p. 161-173.
10
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Formação dos presbíteros na Igreja do Brasil
– diretrizes básicas (Documentos da CNBB – 55). São Paulo: Paulinas, 1995, n. 147, p. 83. Conferir, a propó-
sito, Pastores dabo Vobis, nº 52.
11
damental para compreender todo o processo de autocompreensão da Igreja que ela reflete,
pois a Igreja necessita pensar a si mesma para poder partir em missão.
O segundo capítulo busca mostrar a fonte trinitária da Igreja. Deus Pai, Deus Filho e
Deus Espírito Santo concorrem para a fundação da Igreja, cada um a seu modo. O capítulo
seguinte, o terceiro, aborda as notas da Igreja, entendendo-as como decorrência da sua es-
sência. Assim, a unidade, santidade, catolicidade e apostolicidade tornam-se maneiras de
reconhecer onde se encontra a verdadeira Igreja, porquanto elas devem realizar o que é
próprio da essência da Igreja, ou da realidade chamada Igreja.
Palavra de Deus, que deve ser proclamada a todos os povos e em todos os tempos. Por essa
razão, os ministérios são serviços desempenhados na e para a Igreja, comunidade de fé, a
partir de um chamado de Deus, tendo em vista a Palavra de Deus, que deve ser preservada e
anunciada de forma autêntica por aqueles que receberam o encargo ministerial de procla-
má-la. Daí a infalibilidade da Igreja, do sucessor de Pedro e do Magistério. Enfim, a Igreja
encontra sua razão de ser em sua vocação missionária, isto é, no anúncio do Evangelho de
Jesus Cristo.
Por fim, cabe a pergunta: qual é a Eclesiologia deste manual? A resposta é fornecida
pela síntese apresentada pelo Relatório Final do Sínodo de 1985, que considera os seguintes
aspectos como imprescindíveis para a renovação da Igreja, para a consciência de sua missão e
para uma releitura dos sinais dos tempos.
Dimensão cristológica: pela qual se torna presente o mistério da Igreja, porque “toda
a importância da Igreja deriva de sua conexão com Cristo” (Relatio Finalis II, A, 3), além de
apontar para a unidade entre a teologia da cruz e o mistério pascal, pois é “nessa perspectiva
pascal que se afirma a unidade da cruz e da ressurreição” (Relatio Finalis II, D, 3), que, por
sua vez, abre perspectiva para a teologia da criação e da encarnação e fundamenta falar da
missão no mundo.
familiaridade com Deus por Jesus Cristo no Espírito Santo” (ibid.). Este é o princípio teológi-
co para o problema da inculturação:
Porque a Igreja é comunhão, que une a diversidade e unidade, ela assume tudo o que
de positivo se encontra em todas as culturas. Todavia, a inculturação é diferente da
mera adaptação externa, porque significa uma íntima transformação dos autênticos
valores culturais mediante a integração no cristianismo e a encarnação do cristianis-
mo nas várias culturas humanas (Relatio Finalis II, D, 4).
Dimensão dialogal: o diálogo com as religiões cristãs e não cristãs, além dos não
crentes, é um dos pontos centrais da missão da Igreja nos dias de hoje. Isso porque o
diálogo não pode ser oposto à missão. O diálogo autêntico tende a que a pessoa hu-
mana abra e comunique sua interioridade ao seu interlocutor. Além disso, todos os
cristãos receberam de Cristo a missão de fazer todos os povos discípulos de Cristo
(Mt 28,20). Neste sentido Deus pode servir-se do diálogo entre cristãos e não cristãos
e os não crentes como caminho para comunicar a plenitude da graça (Relatio Finalis
II, D, 5).
Dimensão diaconal: a Igreja toma consciência de que há uma unidade intrínseca en-
tre a fé e a promoção humana, como tão bem retratam os documentos Sollicitudo Rei Socialis,
de João Paulo II, e Santo Domingo, do Episcopado da América Latina. Já em 1985, o Sínodo
dos Bispos concluía:
Uma Eclesiologia que, priorizando a unidade dos elementos divino e humano, en-
quadra-se na perspectiva da sacramentalidade da Igreja, considerando-a sacramento universal
de salvação. Uma Eclesiologia que busca a unidade orgânica entre esses dois elementos, mos-
trando que a separação ou a ruptura deles ou a priorização desarmônica, tanto de um quanto de
outro, implica uma fragmentação que esfacela e desvirtua a verdade da Igreja na sua essência.
Uma Eclesiologia que não quer deixar de considerar a situação do povo latino-
americano, mas que quer a unidade de todos os elementos inerentes à autocompreensão da
Igreja ligada a sua aplicabilidade pastoral, o que incide, natural e necessariamente, em uma
14
visão unitária entre o essencial e o pastoral. Não que este livro vá se converter em um receituá-
rio pastoral, mas o que se intenta é que ele dê os elementos suficientes para que a pessoa con-
siga concretizar, na realidade em que está trabalhando, o que a Igreja é em si mesma, ou seja,
em sua essência, em uma fidelidade permanente a Jesus Cristo.
II
a) Origem da Eclesiologia11
As primeiras obras teológicas sobre a Igreja são do final da Idade Média, fruto mais de
juristas do que de teólogos, pois se atêm mais aos aspectos jurídicos e institucionais do que
propriamente ao mistério em si. A causa dessa perspectiva foi a situação que a Igreja enfrenta-
va naquele momento histórico.12 Antes, a Igreja vivia sem uma reflexão explícita sobre si
mesma. Mas não quer dizer que ela não se conhecia. Havia, sim, uma Eclesiologia implícita,
que passou a ser explicitada por exigência das circunstâncias históricas.
A doutrina oficial recente sobre a Igreja vem formulada nos documentos do Vaticano
II, particularmente Lumen Gentium, Gaudium et Spes, Nostra Aetate e Ad Gentes, que ofere-
cem uma síntese atualizada, mais os documentos Pastor Aeternus (1870), do Vaticano I (DS
3050-3075), a Encíclica Satis cognitum (1896), de Leão XIII (DS 3300-3310), e a Encíclica
Mystici Corporis (1943), de Pio XII (DS 3800-3822). Ainda se acrescentam a Encíclica Eccle-
siam Suam (06 de agosto de 1964) e a Exortação Pós-Sinodal Evangelii Nuntiandi (08 de de-
11
LE GUILLOU, M-J. Iglesia: III. Teologia dogmática. In: Sacramentum Mundi. Barcelona: Herder, 1976, 3:601-
622; MONDIN, G. B. La Chiesa primizia del regno. Trattato di ecclesiologia. In: C. ROCCHETTA (Org.). Corso
di Teologia Sistematica, v. 7. Bologna: Dehoniane, 1986, p. 7-25.
15
zembro de 1975), ambas de Paulo VI. De João Paulo II, destacam-se a Christifideles Laici (30
de dezembro de 1988) e a Redemptoris Missio (07 de dezembro de 1990). O Relatio Finalis
do Sínodo extraordinário de 1985 também não pode deixar de ser citado, devido a sua impor-
tância para a avaliação da época pós-conciliar e atualização do último Concílio Ecumênico.
Também a Carta Apostólica Tertio Millennio Adveniente, de 10 de novembro de 1994, alcan-
çou destaque, devido à motivação e ao planejamento para a preparação ao novo milênio, por
parte de toda a Igreja. Igualmente a Carta Encíclica Ut Unum Sint, de 25 de maio de 1995,
sobre o empenho ecumênico, destacou-se por ter reassumido o ideal da união de todos os cris-
tãos. Recentemente, a Carta Novo Millennio Ineunte, de 06 de janeiro de 2001, pretende traçar
algumas coordenadas pastorais para a Igreja no novo milênio.
12
Cf. MONDIN, op. cit., p. 7. A questão será abordada no capítulo primeiro de forma mais detalhada.
16
13
Cf. LE GUILLOU, 1976, 3:602s.
14
A distinção entre Credo in Deum e Credo ecclesiam será abordada posteriormente.
15
A procura por uma definição de Igreja nos coloca diante de uma via sem saída. Isso porque a Igreja, por ser
sobrenatural e, consequentemente, uma realidade que escapa à compreensão humana, não pode ser definida em
sentido estrito, mas, apenas, ser descrita. A história da Igreja nos apresenta alguns conceitos que tiveram uma
grande abrangência ao longo dos séculos, extraídos dos chamados modelos ou cenários de Igreja. Estes podem ser
resumidos em três, devido à incidência maior que tiveram para a autocompreensão da Igreja ao longo do tempo,
particularmente no segundo milênio. O primeiro modelo é o da instituição ou tradicional, pelo qual a Igreja é vista
a partir de sua instituição e de sua hierarquia, acentuando seus elementos internos, em detrimento das suas rela-
ções com o mundo. O segundo modelo é o da Igreja servidora ou moderna, pelo qual a Igreja é vista a partir da
aplicação do Concílio Vaticano II, em sua tentativa de atualização, entrando em diálogo com o mundo. O terceiro
modelo é o libertador. Nesse modelo, a tônica recai sobre a situação da América Latina e o comprometimento da
Igreja no processo de transformação. João Batista Libanio, em seu livro Cenários da Igreja, descreve, além do
primeiro e do terceiro, outros dois, que são denominados de Igreja Carismática e Igreja da Pregação. No primeiro
recai o acento sobre o movimento carismático, que incentiva a experiência de Deus e tem forte poder de criar
clima espiritual. O segundo está centrado no conhecimento e na pregação da Palavra de Deus (cf. LIBANIO, J.
Cenários da Igreja. São Paulo: Loyola, 1999, p. 48-89). Contudo, podem apresentar-se algumas tentativas de
descrever a Igreja. Entre elas, está a de M. Schmaus: “A Igreja, como Corpo de Cristo, é o povo de Deus do
Novo Testamento, que vive, age e está a serviço do reino de Deus e da salvação humana. Esta é condicionada
por este reino, que caminha rumo ao absoluto futuro dos homens servindo ao mundo” (cf. SCHMAUS, M. Fé
da Igreja, v. IV. Petrópolis: Vozes, 1978, p. 22). Outra é a de A. Beni, que, ao refletir sobre esse mesmo pro-
blema, afirma uma definição, não real e própria, mas em gênero próximo, o qual ressalta os aspectos comuns
que a Igreja tem com as outras sociedades, e em diferença específica, isto é, aquilo que distingue a Igreja de
17
comunidade relacionada com a fé cristã, mas, por essa mesma razão, não deixa de ser histó-
rica, enquanto grupo dado e concretamente existente, e socialmente constituída. Dessarte, a
Igreja pode ser abordada do ponto de vista histórico, sociológico e dogmático.
Do ponto de vista histórico, a Igreja pode ser considerada a partir da sua origem,
enquanto continuidade do movimento iniciado por Jesus, de seus discípulos, da comunida-
de primitiva ou de seu crescimento ao longo de sua vida histórica. Essa perspectiva é estu-
dada pela disciplina de História da Igreja.
Do ponto de vista da Sociologia, a Igreja pode ser considerada como um grupo or-
ganizado da comunidade de uma religião, pois a Igreja Católica é uma comunidade visível
e institucionalizada, que assume, como consequência, uma determinada figura. E, assim,
torna-se objeto do estudo da Sociologia da Religião, com possibilidade de crítica tanto in-
terna quanto externa.
outras sociedades, pois ela é uma realidade completamente diferente, específica e com gênero próprio (cf.
BENI, A. La nostra Chiesa. Firenze: Fiorentina, 1981, p. 38-41).
18
de Cristo em sua vida. E o julgamento para tal será feito na perspectiva da fé cristã, e, por-
tanto, eclesial, o que torna a Eclesiologia uma disciplina estritamente teológica e a distin-
gue da Filosofia ou da Sociologia da Religião, evitando que seja confundida com um estudo
meramente científico16 da Igreja.17
Por isso, não se pode dissociar Cristologia de Eclesiologia. No centro da Igreja encon-
tram-se o mistério de Cristo e a sua missão. Diante disso, pode-se afirmar a necessidade de
uma sistematização cristo-eclesiocêntrica da Teologia, a partir da dimensão da história da sal-
vação. Assim, em uma Teologia centrada na história da salvação, a Eclesiologia se torna a
16
A expressão “meramente científico” quer indicar a atitude que considera a ciência capaz de resolver todos
os problemas da humanidade e suficiente para satisfazer todas as necessidades da razão humana, sem levar em
conta a fé religiosa.
17
As ideias dos últimos parágrafos deste ponto encontram-se em HÄRING, H. Iglesia – Eclesiología. B. Teo-
logía sistemática. I. Concepto y problema. In: EICHER, P. (Org.) Diccionario de conceptos teológicos. Barce-
lona: Herder, 1989, p. 505-507.
18
Aqui se pode fazer referência ao problema da vinculação entre evangelização e cultura, pois a Igreja sempre
usou dos recursos próprios das diversas culturas, com a finalidade de que a sua pregação da mensagem de Cristo
atingisse a humanidade e se difundisse por todas as regiões do universo (cf. Gaudium et Spes 58). Daí a grande
preocupação pela evangelização da cultura, hoje tão presente na América Latina, conforme demonstra Puebla e,
especialmente, Santo Domingo.
19
Enfim, estas linhas são escritas sem nenhuma pretensão de esgotar o tema ou de apre-
sentar algo perfeito, mas para meditar sobre a Igreja como aprendiz de Deus. Com respeito
reverencial, escrevo sobre a Igreja de Jesus Cristo com a consciência de estas linhas serem
uma pálida ideia daquilo que ela representa no projeto salvífico do Pai. Em se falando da Igre-
ja, vale a ordem dada por Deus a Moisés quando o chamou: “Não te aproximes daqui; tira as
sandálias dos pés porque o lugar em que estás é uma terra santa” (Gn 3,5). Contudo, vale a
pena olhar para ela, a fim de contemplá-la no desígnio amoroso de Deus, ouvindo o que ele
nos tem a dizer, assim como também a Tradição e o Magistério, que desde o início da cami-
nhada histórica da Igreja vem refletindo e afirmando sobre ela.
20
CAPÍTULO PRIMEIRO
Este capítulo visa traçar algumas coordenadas sobre a história do tratado sistemático
de Eclesiologia, que apenas surge como tal na ciência teológica a partir do segundo milênio. A
causa desse fato deve-se não à ausência de uma reflexão explícita sobre a identidade e a mis-
são da Igreja, que, aliás, existiu desde os primórdios de sua história, mas a uma exigência tar-
dia, quando a Igreja, enquanto comunidade organizada, começava a enfrentar vicissitudes no-
vas na sua relação com o Estado, até então nunca vividas. Esse é o momento em que os pri-
meiros eclesiólogos iniciam uma reflexão sistemática escrita, dando origem, assim, aos pri-
meiros tratados de Eclesiologia propriamente ditos.
A Igreja vai surgindo sem refletir sobre si mesma, com uma Eclesiologia dentro de
si, interna, ou seja, com uma Eclesiologia implícita. A falta de um tratado especial de Eclesio-
logia pode ser atribuída a dois fatores: o primeiro, a situação histórica não o exigiu, mesmo
diante da paz de Constantino, quando a religião se confrontava com a política; o segundo, a
Igreja é o fundamento do edifício dogmático e, por isso, se dilui no pensamento teológico de
então. O que existe nesse período é a reflexão sobre determinados aspectos, mas ainda inci-
piente, que parte do Evangelho e leva a um aprofundamento da realidade da Igreja. Por esses
motivos, nem os Padres, nem os teólogos da Idade Média elaboraram um tratado de Ecle-
siologia.
Esta breve exposição, que não pretende ser exaustiva, inicia com a análise da reali-
dade “Igreja” na Escritura, continuando, a seguir, com a abordagem do período patrístico-
escolástico e dos primeiros tratados De Ecclesia, para finalizar com alguns traços da Eclesio-
logia de Trento e do Concílio Ecumênico Vaticano II. Assim, espera-se dar uma ideia, embora
sucinta, da dinâmica que esteve presente na elaboração do tratado de Eclesiologia, com a fina-
lidade de lançar algumas luzes para a situação atual da Eclesiologia.
A palavra usual das línguas latinas Ecclesia é originária do grego Ekklêsía, denomi-
nação mais importante e frequente no Novo Testamento. A Igreja primitiva quer indicar, com
esse nome, que é o Povo de Deus, o verdadeiro Israel. Paulo usa a expressão Ekklêsía toû
Theoû (At 20,28), que significa a comunidade convocada por Deus (1Ts 2,14; 2Ts 1,4; 1Cor
1,1; 10,32). Essa terminologia não é criada pela comunidade primitiva, mas herdada do juda-
ísmo.
No Antigo Testamento, são duas palavras utilizadas para indicar o conceito que hoje
denominamos “Igreja”, pois a palavra, assim como é empregada mais tarde nos escritos neo-
testamentários, não existe antes de Jesus Cristo. As duas palavras são qahal e eda. Ambas
significam comunidade ou assembleia do povo de Israel, principalmente como comunidade
religiosa e cultual, mas com nuança diferente. Qahal, de origem deuteronomista, indica o
momento ativo da comunidade ou da assembleia convocada por Deus. Eda, dos escritos sa-
cerdotais e na literatura pós-exílica, indica o momento passivo da comunidade reunida, ou
seja, como congregação.19 A Septuaginta traduziu o primeiro termo por Ekklêsía, extraído do
grego profano20, que era o termo técnico para indicar a assembleia política dos cidadãos das
cidades-estados gregas, reunida para tomar decisões políticas ou jurídicas, mas com uma evo-
lução do ponto de vista de seu conteúdo, porque passou a significar a reunião, não só dos ho-
mens, mas também das mulheres e crianças, para aceitar a decisão de Deus na sua Palavra, e
não para tomar uma decisão política, como indicava o significado profano. Eda foi traduzida
por sinagoghê (sinagoga), que se tornou o nome fixo para indicar tanto a comunidade religiosa
judaica quanto o seu lugar de reunião.
As línguas germânicas apresentam uma etimologia um pouco diferente, pois as
palavras Kirche, Church, Kerk etc. são provenientes do grego tardio kiriakón, que significa
casa do Senhor.21
19
Segundo S. Pié-Ninot, a primeira indica a Ecclesia convocans et congregans e a segunda, a Ecclesia convo-
cata et congregata (cf. PIÉ-NINOT, op. cit., p. 27s).
20
Os dois termos são usados, aproximadamente, cem vezes (cf. FRANKEMÖLLE, H. Iglesia-Eclesiología.
In: EICHER, op. cit., 1989, p. 499).
21
Cf. DE FRAINE, J. Igreja. In: VAN DEN BORN, A. (Org.). Dicionário Enciclopédico da Bíblia. Petrópo-
lis: Vozes, 1971, col. 709.
22
No Novo Testamento, a palavra ekklêsía tem três significados usuais: a) indica a co-
munidade local (At 2,47; 8,1.3; 9,31; Rm 1,7; Cl 1,2; Fl 1,1; 1Cor 1,2; 16,1); b) a Igreja uni-
versal (2Cor 8,1; 11,2; 1Ts 2,14; 1Cor 4,17; 11,16; 15,9; 16,1; Gl 1,13; At 20,28); c) a assem-
bleia litúrgica (1Cor 11,18; 14,19).22 Esses acentos diversos no significado de Igreja, nos es-
critos do Novo Testamento, estão no nível da consideração, e não no nível objetivo. A Igreja é
“universal” e “particular”, e essa dialética pertence a sua essência.23 Fora de São Paulo e de
alguns lugares dos Atos, indica sempre as Igrejas locais.
22
Cf. SCHMAUS, op. cit., p. 19-21.
23
Cf. FRANKEMÖLLE, Iglesia-Eclesiología. In: EICHER, op. cit., p. 494s.
23
Igreja – é comum, embora errada e funesta, unilateral e prejudicial, tanto para a hierarquia
quanto para o laicato, porque coloca toda a responsabilidade nos primeiros.24
O Antigo Testamento não possui a palavra Igreja no sentido idêntico ao que encon-
tramos no Novo Testamento, mas há diversas formas de manifestação, por meio de nomes e
conceitos, pelos quais se exprime a entidade teológica denominada “Igreja”. O conjunto des-
ses nomes e conceitos exprime o que ela é, quer ser e deverá tornar-se.
Eis algumas dessas manifestações:
24
MONDIN, op. cit., p. 29s.
24
transmitir uma revelação mais completa através do próprio Verbo de Deus feito carne” (Lu-
men Gentium 9).
c) No Novo Testamento
O Novo Testamento oferece uma figura bem definida de Igreja: o novo Povo de
Deus, a nova qahal, a aliança definitiva, uma comunidade que se constitui em grupo social,
distinto de qualquer outro existente no mundo, fundado pelo Filho encarnado de Deus Pai,
Jesus Cristo. Como se vê, desde o início, a Igreja possui tudo aquilo de que necessita para ser
sacramento de salvação para toda a humanidade. Chama a atenção, desde o começo, o rápido
crescimento numérico de seus membros, o que faz com que sejam fundadas comunidades cris-
tãs em todas as cidades do Império Romano.25
A consciência eclesiológica da primeira comunidade está expressa em At 2,42-47 e
4,32-35. Ela tem consciência de ser a comunidade de Jesus, o Messias, que realizou o plano
salvífico do Pai (At 10,38 e 39-43), e o novo Povo de Deus, o edifício espiritual (1Pd 2,3-5).
Fiel à vontade de seu fundador, a comunidade primitiva conserva as estruturas recebidas de
Jesus: edifica-se sobre os fundamentos dos apóstolos e profetas. Os chefes (os Doze, diáconos
e presbíteros) são responsáveis pela ordem e crescimento da comunidade. Pedro exerce uma
missão e importância insubstituíveis. A fé nas verdades ensinadas por Jesus encontra-se no
“símbolo apostólico”, cujo núcleo é Jesus Cristo. Os ritos do Batismo (Mt 28,19-29) e da Eu-
caristia (Lc 22,19) demonstram a consciência da presença dinâmica do Espírito Santo na vida
cotidiana pelos carismas e em toda a ação apostólica. A lei fundamental que regula as relações
entre as pessoas do novo Povo de Deus é o mandamentum novum, a lei da caridade fraterna e
do serviço recíproco, não importando a função.
São Paulo emprega muitas imagens para referir-se à Igreja: novo Israel (Gl 3,28; 4,26
e 6,16; Rm 11,32); templo e plantação (1Cor 3,16 e 3, 6-8); comunidade sacramental (Gl 3,27;
1Cor 12,13; Rm 6,3-5; 1Cor 10,17 e 11, 20-34; Ef 5,22-23.25s.32). Mas a sua imagem central
é a de corpo de Cristo (1Cor 12,12-30), por apresentar características muito significativas: os
membros são muitos, mas um só é o corpo, indicando, assim, a união dos fiéis em Cristo; os
membros da Igreja são, ao mesmo tempo, membros de Cristo; Jesus Cristo é a cabeça de seu
25
Ibid., p. 65.
25
Corpo, que é a Igreja, acontecendo, desse modo, a presença interior de Cristo na Igreja e da
Igreja em Cristo, mediante a palavra, o sacramento e os dons do Espírito, e, especialmente, por
meio da Eucaristia, da qual a Igreja vive.26
a) Ireneu
Entre os diversos autores desse primeiro período, destaca-se Ireneu. Ele nasceu entre
140 e 160 na Ásia Menor, talvez em Esmirna. Nas obras Adversus haereses e Demonstratio
apostolica praedicationis, elabora uma síntese global do cristianismo e, como consequência,
um modelo coerente de Igreja, motivado pelo combate ao gnosticismo e ao neoplatonismo,
que apresentava muita afinidade com o cristianismo. Seu trabalho teológico visa responder aos
26
SCHMAUS, op. cit., p. 58-62.
26
seguidores desses dois erros. Daí segue uma Eclesiologia atenta à situação própria do tempo,
sem nunca desviar-se das verdades reveladas e contidas no depositum fidei. Por definir a Igreja
em termos platônicos, distingue a realidade em dois planos: um ideal, divino, eterno, invisível,
perfeito, incorruptível; outro, a imagem e cópia do primeiro. Assim, Ireneu considera toda a
providência salvífica terrena como correspondente ao modelo celeste e derivante do próprio
Deus.
Graças à assistência do Espírito Santo, a Igreja é um lugar seguro de indefectibilida-
de da verdade, pois o seu ensinamento é o mesmo em toda parte, no tempo e no espaço.27 O
conceito de Tradição é fundamental para Ireneu. Por isso, a garantia tangível da verdade se
encontra na sucessão apostólica, concedida por Jesus Cristo aos seguidores da sua nova alian-
ça. Com esses critérios de verdade e de pertença à Igreja, Ireneu busca evitar erros doutrinais
que possam desviá-la da missão de sacramento de salvação para todos os povos, frente a sua
rápida expansão.28
b) Orígenes
Orígenes, que nasceu por volta de 185, em uma família cristã de Alexandria, e mor-
reu em 253, traçou sulcos indeléveis na história do pensamento cristão e para a própria Igreja.
Ele contribuiu para a legítima helenização do cristianismo, frente ao problema da relação entre
Igreja e cultura. Ao afrontar tal problema, conclui que o cristianismo não veio destruir a filoso-
fia grega, mas nobilizá-la e aperfeiçoá-la. Assim como Ireneu e Clemente, recorre ao princípio
da exemplaridade para explicar a revelação da verdade, pois este estabelece entre as coisas um
laço de unidade e ordena-as conforme uma hierarquia, de acordo com o grau de semelhança
entre a imagem e o modelo. Assim, ele dá ordem e unidade ao grande universo das verdades
reveladas.29 Para ele, portanto, a realidade visível e estruturada da Igreja, contemplada aqui, é
uma imagem de sua realidade invisível. A Tradição é fundamental na Igreja, que é o Corpo de
Cristo.30
27
Cf. IRENEU DE LIÃO, Adversus Haereses III, 38,2.
28
Ibid., 33,8. In: PG VII, 1077-1078.
29
Cf. MONDIN, op. cit., p. 72-77.
30
Contra Celsum 6,48. In: PG 11,1373.
27
c) Tertuliano
Tertuliano, nascido em Cartago, por volta de 155, e morto após 220, deixa o estoi-
cismo e o integrismo dominarem seu pensamento teológico e eclesiológico, o que o leva a um
rigorismo ético e a aceitar somente o que vem diretamente de Cristo e da sua Igreja. Usa a
imagem do corpo para falar da Igreja. Dá importância, como consequência, aos sacramentos
do Batismo e da Eucaristia. Para distinguir a verdadeira Igreja das seitas, propõe o critério,
assim como Ireneu, da apostolicidade. Considera que a sucessão ininterrupta dos Bispos, des-
de a época apostólica, é sinal da Tradição autêntica.31
d) Cipriano
Cipriano, que nasceu entre 200 e 210 e morreu em 258, foi Bispo de Cartago. Marti-
rizado durante a perseguição de Valeriano, no ano 258, ocupa um lugar de capital importância
na Eclesiologia, sobretudo devido à doutrina da validade dos sacramentos e da unidade da
Igreja. A sua obra principal intitula-se De catholicae ecclesiae unitate. Sua Eclesiologia adqui-
re uma perspectiva notadamente pneumática e hierárquica, ao entender que a Igreja é constitu-
ída por dois grupos, o dos pastores, formado pelos Bispos, que são os chefes, e o do povo.
Para evitar a tendência de fragmentar a Igreja em pequenas seitas, identifica-a com a hierar-
quia. Diante do sectarismo nascente, ele se torna o defensor de sua unidade, entendendo-a
realizada na Eucaristia e no Bispo. Segundo P. Faynel, pode-se dizer que Cipriano fala de uma
espécie de encarnação da Igreja no Bispo.32 Mas a unidade é o fermento, o sinal e o vínculo da
verdadeira Igreja. Também combate qualquer tentativa de mundanização da Igreja.33 Nesse
sentido, ele escreve: “Esta unidade devemos guardar e exigir com firmeza, especialmente nós,
Bispos, que na Igreja presidimos, para dar prova de que o episcopado também é um e indiviso.
Ninguém engane os irmãos com mentiras, ninguém corrompa a pureza da fé com pérfidos
desvios”.34
31
De praescriptione 32,3.
32
FAYNEL, P. La Iglesia (tomo I). Barcelona: Herder, 1982, p. 159.
33
Ibid., p. 83-85.
28
e) Santo Agostinho
Santo Agostinho (354-430) exerce uma influência decisiva em toda a tradição latina.
Elabora a sua Eclesiologia com a finalidade de explicá-la aos fiéis e para responder aos donati-
stas35, assumindo na Eclesiologia as exigências de sua posição sobre a graça.36 Ele delineia um
modelo eclesiológico nessa mesma compreensão, isto é, na figura da civitas, mesmo a vendo
ainda mais rica, como corpo místico, esposa de Cristo, casa de Deus, por exemplo. Natural-
mente, o modelo da civitas se aplica à Igreja de modo análogo: exprime a Igreja enquanto re-
ferida a uma comunidade humana, que recebe a denominação de civitas, ou seja, Estado, na-
ção ou povo.
Esse período abrange os meados do século XI, que se caracteriza por uma situação
de degradação eclesial. Os historiadores consideram que, nesse lapso de tempo, a Igreja estava
nas mãos dos leigos.37 O poder civil nomeava padres, Bispos e o próprio Papa. O papado foi
objeto de disputas políticas e familiares. Ainda mais, é um período em que acontecem a simo-
nia38 e o nicolaísmo.39 A decadência da Igreja era tal que o pensamento dominante então é
“reforma”, com o intuito de mudar sua vida interior, através da busca da coerência entre a vida
religiosa e o Evangelho, da afirmação de seu direito e do término da dominação dos príncipes
34
Cf. CIPRIANO. A unidade da Igreja Católica (Introdução, tradução e notas por C. BERALDO). Petrópolis:
Vozes, 1973, n. 5, p. 34.
35
Donatismo é um cisma nascido em 311, após a ordenação episcopal de Ceciliano de Cartago, ordenado
pelas mãos de um Bispo acusado de traição durante a perseguição de Diocleciano. Os Bispos dissidentes
escolheram Magiorino, que foi sucedido por Donato, do qual derivou o nome de tal cisma. Parece que os
donatistas negaram a validade dos sacramentos administrados por ministros indignos e ensinavam a necessi-
dade de um novo Batismo para os cristãos que caíam em pecado (cf. DS 123, 705 e 913). Santo Agostinho
batalhou fortemente contra eles.
36
CONGAR, Y. L’Église de Saint Augustin à l’époque moderne. Paris: Du Cerf, 1970, p. 11.
37
Sobre este período, ver FLICHE, A. Reforma gregoriana y reconquista. In: FLICHE, A.; MARTIN, V.
Historia de la Iglesia. v. VIII. Valencia: EDICEP, 1976, p. 94-112.
38
A simonia consiste em tratar os bens espirituais como se fossem objeto de compra e venda. O nome vem do
mago Simão, que intentava comprar de Pedro e de João o poder de dar o Espírito Santo (cf. At 8,9-25). Ocor-
reu, algumas vezes, ao longo da vida da Igreja e, por isso, foi condenada (DS 304, 473, 586, 691-694, 707,
751 e 820; CIC 149, 188 e 1380).
39
O nicolaísmo é proveniente de Nicolau, fundador de uma seita do século II com tendências gnósticas e
libertinas. Ele tolerava a participação nos banquetes sagrados, próprios dos cultos pagãos (cf. Ap 2,6.15).
29
leigos. Assim, a reforma da Igreja se constituía em uma tarefa espiritual, moral, canônica e, de
certo modo, também política. Segundo J. Rigal, essa imensa empreitada significará, tanto na
doutrina quanto na vida do povo cristão, uma verdadeira mudança eclesiológica.40
Os Papas Gregório VI, Leão IX, Vítor II, Estêvão IX, Nicolau II e Alexandre II fo-
ram os protagonistas da reforma gregoriana. A virada decisiva aconteceu com Nicolau II,
quando, em 1059, apoiado por Hildebrando, reforma os estatutos da eleição do Papa, confian-
do-a estritamente aos cardeais.
Cluny teve uma influência considerável. O nome principal é Pedro Damião (1007-
1072), que repousa seu pensamento eclesiológico em fundamento tradicional: a Igreja é o
Corpo de Cristo e a comunhão acontece no Espírito. Todos os batizados são a Igreja (nos uti-
que sumus ecclesia41) e todos os membros da Igreja são consagrados e possuem a dignidade
sacerdotal. Os sacerdotes atualizam a ação de Cristo para a humanidade. Ele considera válidas
as ordenações simoníacas, desde que feitas de acordo com a fé da Igreja. A Igreja de Roma
deve ser venerada por todos, pois ela é o “fundamento e a base” de toda a Igreja, além de ter
autoridade divina, enquanto o Papa é o Bispo universal de todas as Igrejas. Para ele, os dois
poderes, o político e o religioso, procedem de Deus e devem ser exercidos conjuntamente, pois
compreendem uma mesma missão.
No Sínodo de 1074, ele combate a simonia e depõe os sacerdotes que denigrem sua
dignidade. Seguem decretos, mantendo a mesma posição. No Sínodo de Roma, de fevereiro de
1075, ele condena as investiduras leigas. Entre os meios eficazes que ele se utiliza para estabe-
lecer a reforma da Igreja, está o Dictatus Papae, o qual estabelece a origem divina do poder da
40
RIGAL, J. Le mystère de l’Église. Fondements théologiques et perspectives pastorales. Paris: Du Cerf,
1996, p. 18.
41
Sermo 72: PL 144, 909 C.
30
Igreja de Roma, que tem, como consequência, a autoridade suprema do Papa sobre toda a
Igreja e sobre todos os cristãos leigos. Com isso, o Papa pode depor e transferir os Bispos,
ordenar a quem ele quiser, comandar, por meio de seu legado, os Bispos de um Concílio, além
de, com o seu poder universal, poder depor os imperadores.
42
RIGAL, op. cit., p. 23-27.
43
Sobre o conceito de congregatio fidelium, ver ANTÓN, A. El misterio de la Iglesia. Evolución histórica de
las ideas eclesiológicas. I – En busca de una eclesiología y de la reforma de la Iglesia. Madrid: BAC, 1976, p.
11-14; 196-199. O autor entende a expressão a partir de três características que designam, em sua totalidade,
a Igreja enquanto comunidade de fé: a Igreja é uma realidade de cima; uma comunidade de fiéis, chamados a
realizar radical e irrevogavelmente a fé em sua dimensão sacramental, que é a índole comunitária da fé;
enquanto sujeito da fé, a Igreja deve buscar o fundamento último da igualdade de todos os fiéis, que os une
na comunidade eclesial.
31
caridade.44 Dessarte, a Igreja é uma sociedade espiritual, mas com uma existência também
visível e institucional. Eis aí a sua dimensão sacramental, que é inerente à sua missão no mun-
do.
Todavia, é interessante observar a ausência da Eclesiologia nas sumas desse período,
seja na Escola franciscana, seja na dominicana. A razão provável desse fato é a presença mar-
cante que a Igreja tinha na vida e na mensagem cristã, de tal forma que parecia desnecessária
uma reflexão específica sobre ela, dada a sua penetração em toda a Teologia. A título de
exemplo, vêm citados apenas dois autores significativos dessa época:
a) Bernardo de Claraval
Viveu de 1090 a 1153. Foi um dos grandes autores desse período. Com ele, inicia-se
a idade de ouro da Escolástica. Ele entende a Igreja a partir de três modelos: o somático, com a
imagem do Corpo de Cristo; o político (civitas Dei ou a Jerusalém celeste); e o das núpcias,
entendendo-a como esposa de Cristo. Recorre mais a este último, porque ilustra as relações da
Igreja e dos cristãos com o esposo, Jesus Cristo. A Igreja é a “Igreja militante”, pois está em
luta contra os seus inimigos internos e externos. Todos os cristãos devem perseguir uma vida
ascética muito severa, apresentando a todos um ideal de santidade. O Papa possui um poder
universal sobre toda a Igreja, mas deve exercê-lo em uma atitude de serviço, conforme expres-
sa na obra De consideratione libri quinque ad Eugenium III. A característica de serviço vale
também para os bispos, os quais ele não deve substituir em suas funções, dando a entender o
que hoje se chama de princípio de subsidiariedade.45
b) Santo Tomás
44
RAHNER, K. Handbuch der Pastoraltheologie. Praktische Theologie der Kirche in ihrer Gegenwart. vol. I.
Freiburg-Basel – Wien: Herder, 1964, p. 119.
45
Cf. MONDIN, op. cit., p. 99-104.
32
aconteceu o divórcio entre a Igreja e a sociedade, foi sentida a necessidade, ainda acrescida
pelos erros que foram surgindo nesse período. Além disso, a ciência jurídica (canônica) mo-
nopolizava o pensamento teológico de então, e, como Pedro Lombardo havia omitido o trata-
do de Eclesiologia em suas Sentenças, os teólogos de então não despertaram para um tratado
específico sobre a Igreja.
Santo Tomás entende a Igreja como congregatio (coetus, collectio, universitas, so-
cietas, collegium) fidelium, mas com uma referência teológica, e não sociopolítica. Essa en-
globa todos aqueles que creem em Cristo, conforme o tema da ecclesia ab Abbel46 ou da ec-
clesia universalis, vivificada pela graça de Deus. A ideia do Corpo místico de Cristo passa a
ser a societas sanctorum, que inclui a visibilidade e a estrutura hierárquica da Igreja. Do con-
texto do Corpo de Cristo, ele explica as notas da Igreja. O Espírito Santo é o princípio último
da unidade da Igreja. Santo Tomás dá lugar central para a Eucaristia, pois entende que ela con-
tém Cristo e todo o bem da Igreja.47
a) a crise da fusão entre o Império e a Igreja: surge a crise irreversível das relações
entre Ecclesia e o imperium. Inicialmente, há fusão entre o império e a Igreja; depois, o impé-
rio prevalece e, finalmente, a Igreja. Mais do que oposição concreta entre duas entidades, está
em jogo uma civilização, pois surge um novo tipo de Estado, agora independente da Igreja,
deixando para trás a respublica christiana49;
46
O Vaticano II, na Lumen Gentium 2, usa essa expressão no contexto do plano salvífico de Deus Pai, o qual
convoca a Igreja, que foi prefigurada desde a origem do mundo, preparada, fundada e manifestada pelo Espí-
rito Santo e, no final dos tempos, será consumada. A expressão é patrística e usada por Gregório Magno,
Ireneu, Orígenes, Agostinho, Leão Magno e João Damasceno. Tomás de Aquino usa ecclesia ab Abbel em
Summa Theologiae III, q. 8, a. 3, ad 3 (cf. PIÉ-NINOT, op. cit., p. 47).
47
CONGAR, op. cit., p. 232-241; MONDIN, op. cit., p. 104-109.
48
Daqui em diante, sigo ANTÓN, El misterio de la Iglesia I, p. 97-118.
49
FAYNEL, op. cit., p. 203.
33
b) a luta entre o Papa e o rei: a teoria das duas espadas50 expressa pela bula Unam
sanctam (18 de novembro de 1302 - DS 870-875) e o confronto entre Bonifácio VIII e Filipe,
o Belo;
c) o laicato defende seus direitos: acontece uma crise da ordem eclesiástica nesse
período. O monopólio crescente do clero foi sacudido por uma série de movimentos antiecle-
siásticos de base espiritualista, integrados, na sua maioria, por leigos, entre os quais, legistas,
humanistas, poetas, médicos e filósofos, que são os responsáveis pelas novas ideias;
d) o individualismo e o subjetivismo contra a autoridade no conhecimento: assim, os
primeiros tratados defendem a autoridade papal. Situam-se entre o pontificado de Bonifácio
VIII e o desterro dos papas em Avinhão. Esse período é sacudido pelo conflito entre o Papa e
o Império, particularmente nos reinos nacionais. Bonifácio VIII entra em conflito com Filipe,
o Belo. Surgida nas universidades e entre alguns teólogos isolados, passa a vigorar uma via
conciliadora entre a autoridade papal e o Império, defendendo os direitos do laicato e demais
pessoas da congregatio fidelium.
A Unam sanctam reivindica um poder ilimitado e direto sobre os reis por parte do
Papa e a subordinação do poder temporal ao espiritual, recorrendo ao símbolo das duas espa-
das. A última frase da bula – “Porro subesse Romano Pontifici omni humanae creaturae de-
claramus, dicimus, diffinimus (sic) omnino esse de necessitate salutis” –, de difícil interpreta-
ção, por parecer, à primeira vista, uma afirmação dogmática, deve ser entendida no sentido de
restringi-la ao âmbito espiritual, por dois motivos: a) a bula situa-se no campo espiritual ao
abordar o tema da necessidade da Igreja para a salvação; b) o mesmo sentido espiritual encon-
tra-se na obra Contra errores Graecorum, de Santo Tomás, fonte da citada bula papal.51
Nesse contexto histórico e eclesiológico, aparecem as duas primeiras obras de Ecle-
siologia propriamente dita, defendendo o poder pleno e universal do Papa, que são as seguin-
tes:
50
Sobre a origem da expressão duas espadas, ver ANTÓN, El misterio de la Iglesia I, p. 121-123.
51
Ibid., p. 109.
52
A biografia encontra-se em LANG, F. Aegidius von Rom. In: Lexikon für Theologie und Kirche. Freiburg:
Herder, 1986, 1:193.
34
feita, ele, de formação tomista, é o primeiro a traçar, formular e defender uma teoria completa
sobre o absolutismo papal. A Igreja é santa, católica, universal e mãe de todos. O poder e a
autoridade temporais têm sua origem unicamente nessa Igreja. O Papa tem a plenitudo potes-
tatis, concebida como poder diretamente derivado de Deus e reflexo de sua própria onipotên-
cia. Como consequência, surge a mais radical secularização da Igreja por atribuir ao Papa um
poder ilimitado, tanto no temporal quanto no espiritual.
b) De regimine christiano (1301-1302), escrita por Jacó de Viterbo († 1307/1308)53,
é a primeira obra sistemática de Eclesiologia. Precisamente, por isso, ele é chamado de pai da
Eclesiologia, pois com ela se dá o nascimento do tratado De Ecclesia, cuja espinha dorsal é o
Reino de Cristo, realizado em sua obra mais perfeita, no terceiro tempo, o da graça, na Igreja,
dotada das quatro propriedades do Symbolum fidei. O reino (regnum) da Igreja representa a
forma mais perfeita do Estado ou da res publica, cujo monarca supremo é o Papa. Com isso, o
conceito teológico-ético de Igreja é absorvido por um conceito de reino deste mundo, com
supervalorização de seu poder, no qual a convocatio multorum fidelium se transforma na co-
munidade secularizada, constituída por uma realidade temporal e com índole terrena. Na terra,
a Igreja é a Ecclesia militans; no céu, é a Ecclesia triumphans.
Essas duas obras estão marcadas pela ciência canônica, que aparece como disciplina
própria no século XII, com Graciano. Esse fator, acrescido dos anteriormente citados, propicia
a elaboração, no dizer de S. Pié-Ninot, de “uma eclesiologia dos poderes, das prerrogativas e
dos direitos da Igreja”, resultando uma Eclesiologia jurídica – cuja fonte foram as Decretais de
Graciano –, na qual os teólogos buscavam se documentar. Com isso, separou-se o poder de
ordem do de jurisdição, que trouxe certa autonomia do jurisdicional sobre o sacramental e ao
pastoral e uma visão da Igreja como corporação, compreendendo-a como cabeça e membros,
no sentido corporativo-sociológico.54
53
A biografia encontra-se em TRAPP, D. Jakob v. Viterbo. In: Lexikon für Theologie und Kirche, 5:849.
54
Cf. PIÉ-NINOT, op. cit., p. 15.
35
procede, por exemplo, Belarmino, que entende a Igreja como uma sociedade com finalidade
sobrenatural, mas que tem uma estrutura marcadamente visível, sobre a qual insistem os ecle-
siólogos da época moderna.
A. Acerbi assim escreve:
A tendência jurídica apresentava fundamentalmente a Igreja como uma pessoa moral
corporativa, um sujeito de direitos e de privilégios representados pela hierarquia, e
como uma instituição mediadora da verdade e da graça, contraposta aos homens, be-
neficiários de tais mediações. A atenção era, por isso, quase voltada exclusivamente
às estruturas objetivas da Igreja e aos seus puros elementos constitucionais. Como
consequência, ela era levada a desenvolver a abordagem da autoridade de tal modo
que, da constituição social, aparecia como o elemento de base.55
Uma série de fatores históricos novos está na origem desses escritos, dando-lhes uma
tendência característica:
55
ACERBI, A. Due ecclesiologie. Bologna: Dehoniane, 1975, p. 71.
56
ANTÓN, op. cit., p. 112.
36
ponto de vista sociológico, isto é, passa de uma Igreja exclusivamente clerical para uma visão
corporativa de todos os seus membros;
c) uma nova situação histórica marcada pela secularização influencia os novos escri-
tos De Ecclesia, acabando por invadir o ambiente cristão e teológico. Trata-se de uma reação
provocada pelo exagero do absolutismo eclesiástico, mas coadjuvada por uma onda de laicis-
mo, que vai penetrando gradualmente a cristandade do século XIV e acaba dominando a soci-
edade no tempo do humanismo.57
Congar afirma que as consequências para a Eclesiologia são uma epistemologia de
tipo empírico-científico e crítica a uma de tipo sacral e simbólica; o conhecimento real, que
toma o lugar da argumentação dedutiva e parte dos paradigmas celestes; e a substituição da
interpretação simbólica e alegórica pelo sentido literal e histórico. Não pode ser esquecido que
a autonomia do poder temporal e o caráter humano e ético do poder de alguns reis trouxeram
um conceito não clerical para a Igreja.58
57
Cf. ANTÓN, op. cit., p. 112-114.
58
Cf. CONGAR, op. cit., p. 281s.
59
MÜLLER, J. P. Joahnnes v. Paris. In: Lexikon für Theologie und Kirche, 5:1068.
37
ar a Igreja na categoria de fim, a qual serve o Papa, não dominando, mas como o membro mais
privilegiado e quasi caput Ecclesiae propter unitatem Ecclesiae conservandam.
Aqui surge uma ideia corporativa de Igreja, que tem como consequência a negação
de toda a autoridade de fato e de direito do Papa nos assuntos temporais dos soberanos e de
seus súditos.
b) Pedro de Palude O.P. (1280 - 31.01.1342)60, com a obra intitulada De potestate
Papae, que representa um caminho intermediário. Caracterizam seu pensamento os seguintes
aspectos: a) não aceita que a autoridade dos apóstolos derive de Pedro e a origem do poder
episcopal esteja no Papa, pois quer que Roma se restrinja a sua competência; b) distingue o
poder papal do temporal, por considerar a realidade interna e meta-histórica da Igreja de seus
outros aspectos sociais. Vê o âmbito da competência da jurisdição do Papa no espiritual da
Ecclesia e no temporal enquanto quantum ad terras Ecclesiae subiectas; c) nega que o poder
de jurisdição do Papa, recebido de Cristo, possa ser exercido sobre os soberanos temporais de
Cristo e que estes possuam uma jurisdição temporal recebida do Papa, mas estão indiretamen-
te sujeitos a ele quando as questões se dão no campo espiritual. Com essas ideias, ele traçou
novos rumos para o pensamento eclesiológico de então.
c) Marsílio de Pádua (1275/80-1342/43)61, com a obra Defensor pacis. Ele exagerou
a tendência democratizadora da Igreja e de suas estruturas. Procura aplicar o modelo democrá-
tico (de Aristóteles) à Igreja. Aproxima-se dos valdenses62, dando um conceito naturalista para
a Igreja. O modelo ideal para a Igreja é a pólis grega, entendendo-a como soma dos fiéis, e não
como uma comunidade sobrenatural com estrutura jurídica própria. Sua crítica atinge a hierar-
quia, que colocou no esquecimento o povo, ou seja, a congregatio fidelium. A fé tem priorida-
de, que é o critério de verdade (mais no sentido epistemológico). O Concílio representa a Igre-
ja e é o único organismo competente e apto para dirimir as questões de fé. O primado papal é
criação da história e não possui fundamento bíblico. Opõe-se à doutrina da plenitudo potestatis
papae, assim como está exposta na Unam sanctam. A unidade da Igreja é garantida pelo Con-
cílio geral e por Cristo, caput da Igreja, seu corpo.
60
ECKERT, W. Petrus de Palude. In: Lexikon für Theologie und Kirche, 8:374.
61
MIKAT, P. Marsilius v. Padua. In: Lexikon für Theologie und Kirche, 7:108-110.
62
Os valdenses também são conhecidos como “pobres de Lião”, grupo fundado pelo mercador Pedro Valdo por
volta de 1170. Insistiam na pobreza evangélica radical e repudiavam a riqueza da Igreja católica.
38
63
Daqui em diante, sigo ANTÓN, El misterio de la Iglesia I, p. 437-462.
39
da Idade Média e consequente debilitação real de sua autoridade, desejo de reforma da Igreja
de acordo com ideais de pureza evangélica, já vivo mesmo antes da Reforma, a partir de mo-
vimentos do final do século XII (reformatio in capite et in membris) e o retorno às fontes do
cristianismo contra o formalismo e legalismo.
Lutero tem um conceito eclesiológico característico. Do ponto de vista hermenêuti-
co-bíblico, opõe letra e espírito, ao dar importância ao sentido interno do texto na exegese das
cartas de Paulo, e aplica a alegoria do corpo à Igreja, resultando na oposição entre visível-
invisível, social-espiritual, graça-sinagoga, céu-Igreja da terra. Os elementos fundamentais de
sua Eclesiologia são a autossuficiência da Escritura (sola scriptura) no conhecimento teológi-
co, de tal forma que a origem e a natureza da Igreja são atribuídas à palavra; a consideração de
que a Igreja Católica é apostasia da Igreja primeva e a Igreja Reformada é sua continuidade; a
defesa de que a Igreja é a communio sanctorum, ressaltando a incorporação pela fé (sola fi-
des); a existência de dois reinos, a Igreja e o mundo; a valorização do sacerdócio dos fiéis em
detrimento da hierarquia eclesiástica, que é negada. Ele ainda é contra o primado, visto que o
Concílio é superior ao Papa.64
O Concílio de Trento (1545-1564) é a resposta da Igreja Católica ao movimento ini-
ciado com Lutero.65 Entretanto, o Tridentino teve dificuldade em dar uma resposta a Lutero.
Entre alguns fatores que dificultaram essa resposta, pode-se citar:
64
Ibid., p. 521-583.
65
Cf. CONGAR, op. cit., p. 226-229; ANTÓN, op. cit., p. 709-754.
40
66
CONGAR, op. cit., p. 230-233; MONDIN, op. cit., p. 117-119.
41
67
O ultramontanismo significa “além da montanha” e é o nome depreciativo usado pelos montanistas para
indicar aqueles que acentuavam a autoridade do Papa e buscavam todas as soluções “além dos Alpes”, isto é,
em Roma. Os ultramontanos reagiram contra o febronianismo, galicanismo e jansenismo, que defendiam a
jurisdição das Igrejas Particulares contra a autoridade central de Roma. O movimento ultramontano culminou
com a definição da infalibilidade papal pelo Vaticano I, em 1870 (DS 3065-3075) (cf. Ultramontanismo. In:
O’COLLINS, G.; FARRIGIA, E. G. Dizionario Sintetico di Teologia. Roma: Libreria Editrice Vaticana,
1995, p. 404).
68
ANTÓN, A. El misterio de la Iglesia. Evolución histórica de las ideas eclesiológicas. II. De la apologética
de la Iglesia-sociedad a la teología de la Iglesia-misterio en el Vaticano II y en el posconcilio. Madrid: BAC,
1986, p. 222s.
42
Da Escola de Tubinga, o principal promotor da nova direção foi João Adão Möhler
(1796-1838).69 O douto professor, também chamado “o pai do despertar da Eclesiologia mo-
derna”, atingindo largamente as fontes reveladas e patrísticas, vê no mistério da Igreja o pro-
longamento do mistério da encarnação redentora. Em sua obra de Eclesiologia, Die Einheit
(1825), mostra o princípio divino da Igreja, onde acontece uma verdadeira relação entre o ser
humano e Deus. Ele afirma que a Igreja é a comunidade dos fiéis, realizada pelo Espírito de
amor após Pentecostes, e que a sua constituição externa é a manifestação de sua essência, ou o
“amor corporificado”. Assim, ele ressalta a unidade entre o invisível e o visível na Igreja, no
sentido de que as formas exteriores ressaltam sua dimensão espiritual interior. Outro ponto
fundamental de sua Eclesiologia, expresso na obra Symbolik (1832), é a perspectiva cristológi-
ca com a qual ele aborda a realidade eclesial. Ele vê a união do humano e do divino na Igreja
como uma continuação do mistério da encarnação, em uma clara alusão ao Verbo encarnado.
Dessarte, ele abre a Igreja a uma abordagem verdadeiramente teológica e espiritual.70
Essa intuição fundamental encontrou acolhida junto aos professores do Colégio Ro-
mano, cujos representantes mais significativos são apontados a seguir.
69
Cf. MONDIN, op. cit., p. 119-123.
70
CONGAR, op. cit., p. 419-423; ANTÓN, El misterio de la Iglesia II, p. 237-257.
71
ANTÓN, El misterio de la Iglesia II, p. 290.
43
Tubinga e de seus colegas Passaglia e Schrader, e também porque a sua Eclesiologia responde
às exigências do ideal de restauração católica do século XIX, ou seja, o restabelecimento da
unidade nos níveis interno e externo, que, para ele, se constitui na lei fundamental da Igreja.72
A novidade introduzida por Perrone teve mais amplo relevo nos escritos de Carlos
Passaglia (1812-1887), o mais genial teólogo da Escola romana. Depois de ter analisado, a
exemplo de Möhler, as imagens bíblicas e patrísticas relativas à Igreja, estuda a analogia que
decorre entre a união hipostática em Cristo e a união de Cristo com a sua Igreja, harmonizando
numa feliz síntese esses componentes e concluindo que se aplica à Igreja o título de Corpo
místico de Cristo. Seu pensamento eclesiológico, apesar das três fases evolutivas, está expres-
so em sua principal obra, De Ecclesia Christi (1853 e 1856), onde estuda as imagens bíblicas
de Povo de Deus e da Antiga e Nova Alianças, destacando o aspecto da communio na Igreja.
Ela é a continuação da obra de Cristo por meio da ação do Espírito, aludindo ao princípio da
analogia entre o mysterium Christi e o mysterium Ecclesiae e fugindo de qualquer monofisis-
mo eclesiológico. A união de Cristo com a natureza humana é de ordem de reciprocidade. Em
seus últimos escritos, ele enfoca o primado e o episcopado de maneira mais teológica do que
jurídica, sem, contudo, desvalorizá-los, apesar de não interpretar o primado petrino de forma
maximalista.73
Clemente Schrader (1820-1875), aluno de Passaglia, teve sua vida e atividade aca-
dêmica ligadas à trajetória de seu mestre. Seu pensamento eclesiológico está formulado nas
suas Theses de Ecclesia e na obra De Unitate Romana Commentarius (2 v., 1862-1866), com
a qual polemiza com as ideias do mestre, expressas em seus últimos escritos. Ele defende um
montanismo74 do Papa ao aplicá-lo ao esquema da Teologia de Christo capite, mostrando-o
como o princípio supremo da unidade dos bispos e, por meio deles, de toda a Igreja, tornando-
o garantia da estabilidade e da firmeza da Igreja. Ele ensina a infalibilidade papal, definida
pelo Vaticano I em 1870, pois o Papa, como mestre supremo da verdade e garantia da ordem
social, deve estar imune de erro e possuir uma autoridade soberana no exercício de sua missão
72
Ibid., p. 289-297.
73
Ibid., p. 297-308.
74
O montanismo é um movimento entusiasta originado com Montano, sacerdote pagão convertido ao cristia-
nismo, no século II, na Frígia. Ele anunciava o fim próximo do mundo e via na atividade das profetisas e
profetas estáticos um sinal do fim iminente. O movimento pregava uma ascese rigorosa, proibia novas núpcias
após a morte de um dos cônjuges, exigia jejum rigoroso e nutria aversão a qualquer forma de instituição,
administrando os sacramentos de forma independente. Terminou por ser condenado pela Igreja (DS 211; 478)
(cf. Montanismo. In: O’COLLINS e FARRIGIA, op. cit., p. 233).
44
na Igreja e no mundo. Suas ideias tornaram-no um dos teólogos mais influentes na preparação
e nas discussões do Vaticano I, além de contribuir para o dogma da Imaculada Conceição
(1854) e da promulgação do Syllabus.75
Essas ideias foram retomadas e sistematizadas numa construção ponderada e livre de
qualquer exagero por João Batista Franzelin (1816-1886) nas suas Theses de Ecclesia Christi,
publicação póstuma de 1887. Com maior precisão e lógica, ele avançou muito mais do que
seus mestres, através de uma análise mais crítica dos textos. Descreve a Igreja como uma en-
carnação continuada, qual esposa de Cristo e seu Corpo místico, guiada por uma hierarquia de
instituição divina. Isso não significa que exista uma Igreja visível sobreposta a uma Igreja in-
visível, pois única é a Igreja que, analogamente ao Verbo encarnado, apresenta dois aspectos:
o humano e o divino, intimamente coligados. Ele dá um enfoque histórico-salvífico à Igreja.
Considera sua fundação pelo Jesus histórico e explica sua relação com Cristo por meio das
imagens bíblicas de Esposa e Corpo de Cristo. Defende o princípio de que as decisões da auto-
ridade docente da Igreja são um verdadeiro ato de jurisdição, vinculando a fé de todos os bati-
zados. O poder de ensinar é uma forma derivada da jurisdição eclesiástica em geral, mas dis-
tinta da jurisdição exercida pela hierarquia em ordem disciplinar. Mantém, portanto, a divisão
entre potestas docendi e potestas iurisdictionis, mas insiste no elemento específico da função
do Magistério eclesiástico. A doutrina sobre a Tradição e sua relação com a Escritura e a Igre-
ja parte da Revelação como a palavra formal e dos acontecimentos da história da salvação
como comunicação de Deus aos homens.76
Mathias José Scheeben (1835-1888) é considerado o maior teólogo do século XIX,
devido ao seu genial talento especulativo, ao investigar os Santos Padres e os teólogos medie-
vais, especialmente Santo Tomás e São Boaventura. Seu pensamento eclesiológico está espa-
lhado em toda a sua obra teológica. Ele situa a Igreja no conjunto dos mistérios cristãos (Trin-
dade e Encarnação), entendendo-a como mistério sacramental do Corpo de Cristo, realizado
nele próprio e na Eucaristia. Considera a Igreja como o Corpo místico de Cristo, nas suas di-
mensões visível e invisível, por meio do sacramentum et res, que é o caráter, da graça santifi-
cante, que confere a adoção divina, e da Eucaristia. Entende que ordem e jurisdição se comple-
tam por meio do Espírito Santo, que vivifica o organismo da Igreja mediante seus carismas.
75
Apud ANTÓN, El misterio de la Iglesia II, p. 308-313.
76
Ibid., p. 308-317.
45
Ao fazer uma certa ontologia dos mistérios, mostra a maternidade da Igreja por intermédio do
sacerdócio e da autoridade do sucessor de Pedro. Assim, a Igreja é um organismo ao mesmo
tempo social e individual.77
Esse surto renovador chegou ao Vaticano I, convocado pelo Papa Pio IX, no dia 29
de junho de 1869, iniciando a 08 de dezembro e terminando no ano de 1870. No entanto, não
conseguiu trazer os frutos esperados, porque foi um Concílio inacabado, devido à guerra fran-
co-prussiana, que culminou com a invasão dos Estados pontifícios em Roma, o que exigiu a
retirada imediata dos bispos. Por esse motivo, seu objetivo foi unificar o mundo católico, de-
monstrar a verdade, combater os erros do tempo e adaptar a disciplina da Igreja à época. Dois
foram os documentos do Concílio: a Dei Filius (DS 3000-3045), contra os múltiplos erros
derivados do racionalismo, e a Pastor Aeternus (DS 3050-3075), sobre a instituição do prima-
do de verdadeira e própria jurisdição em Pedro, da parte de Cristo, a perpetuação do mesmo
nos Pontífices Romanos, a natureza e o valor do primado do Romano Pontífice e a sua infali-
bilidade pessoal em matéria de fé e de moral.
O esquema do Concílio era bem amplo, no qual estavam presentes as novas perspec-
tivas eclesiológicas, amadurecidas no Colégio Romano. O esquema De Ecclesia Christi teve
como redator principal Clemente Schrader, além de Franzelin e Perrone, e foi examinado pe-
los Padres conciliares no dia 21 de janeiro de 1870. Compreendia quinze capítulos e vinte câ-
nones, acompanhados de abundantes notas explicativas. A ordem dos capítulos era a seguinte:
1- a Igreja é o Corpo místico de Cristo; 2- a verdadeira religião pode ser praticada só e pela
Igreja fundada por Cristo; 3- a Igreja é uma sociedade verdadeira, perfeita, espiritual e sobre-
natural; 4- a Igreja é uma sociedade visível; 5- unicidade da Igreja visível; 6- necessidade da
Igreja para a salvação; 7- impossibilidade da salvação fora da Igreja; 8- indefectibilidade da
Igreja; 9- infalibilidade da Igreja; 10- poder da Igreja; 11- primado do Romano Pontífice; 12-
domínio temporal da Santa Sé; 13- concórdia entre a Igreja e a sociedade civil; 14- direito e
uso do poder segundo a doutrina católica da Igreja; 15- especiais direitos da Igreja em ordem à
77
CONGAR, op. cit., p. 433-435. Maiores detalhes sobre este autor em ANTÓN, El misterio de la Iglesia II,
p. 428-447.
46
sociedade civil. Com aprovação de Pio IX, no dia 27 de abril de 1870, foi separado o capítulo
11 para a discussão.
A Eclesiologia do Vaticano I está na Pastor Aeternus, mas já antecipada na Dei Fi-
lius, ao apresentar a Igreja como sinal entre as nações e mestra da palavra revelada. Ela é o
Corpo místico de Cristo e a sociedade perfeita, mas destacando sua comunhão, com uma ori-
gem trinitária, que também é visível. Nesse contexto está situada a doutrina do episcopado, do
primado do Papa e de sua infalibilidade em questões de fé e moral.78
78
ANTÓN, op. cit., p. 333-400.
79
PIÉ-NINOT, Introdução à eclesiologia, p. 19s.
80
CONGAR, op. cit., p. 446.
81
Ibid., p. 461s.
82
Maiores detalhes sobre a Ação Católica no tempo de Pio X encontram-se em ANTÓN, El misterio de la
Iglesia II, p. 499s.
47
Pio XII continua a obra de Pio X e convida os leigos a tomarem a sua parte na mis-
são da Igreja. O apostolado laico se funda na ontologia sobrenatural dos leigos, por isso convi-
da estes a participarem do apostolado hierárquico. Sua encíclica Mystici corporis, de 29 de
junho de 1943, colocou a ideia do Corpo místico de Cristo no seio da Igreja. A Encíclica se
situa na linha da visão espiritual da Escola romana e da Encíclica Satis cognitum, de Leão
XIII, publicada a 26 de junho de 1896, que ensinava que a Igreja é o Corpo de Cristo, na qual
se unem os elementos da visibilidade e da invisibilidade. Pio XII exalta a responsabilidade
missionária universal e assume o conceito paulino de Corpo de Cristo como realidade socio-
corporativa orgânica, afirmação da identidade entre o Corpo místico de Cristo e a Igreja Cató-
lica romana (n. 13), e a pertença à Igreja, por meio do conceito de reapse. Essa Encíclica cons-
titui uma etapa decisiva na Eclesiologia pela profundidade de sua doutrina e de sua autorida-
de.83
Uma virada decisiva na história da Eclesiologia aconteceu logo depois do primeiro
quarto do século XX. Trata-se de uma dupla virada: de valor e de impostação. A Eclesiologia
deixa de ser dependente e reflexo de vários tratados teológicos e começa a assumir o papel de
rainha. Por isso, Dibelius, nos anos 30, de certa forma profetiza, ao afirmar que o século XX
seria o século da Igreja, o que realmente aconteceu. Diversos autores reconhecem o século XX
como o século da Eclesiologia. A partir do Vaticano I, os teólogos, mesmo protestantes, dedi-
cam muita atenção à Igreja, que ocupa o centro da reflexão teológica. No final do século pas-
sado, o interesse em torno do mistério da Igreja propiciou trazê-la para o centro da reflexão
teológica, ainda mais com o Vaticano II, considerado por K. Rahner o “Concílio da Igreja so-
bre a Igreja”.
83
CONGAR, op. cit., p. 469-472. Também ANTÓN, El misterio de la Iglesia II, p. 563-653 (especialmente
612-640) e FAYNEL, op. cit., p. 215s.
48
soa mística e arca da aliança. Todas essas ideias novas encontraram guarida na época imedia-
tamente anterior ao Vaticano II, começando a produzir os frutos tão desejados. A imagem de
Corpo de Cristo e a analogia da encarnação do Verbo aplicadas à Igreja vêm completar a
compreensão da Igreja dos primeiros tratados de Eclesiologia, que acentuavam muito mais o
lado institucional.
Entre os movimentos precursores do Vaticano II, podem-se citar o movimento ecu-
mênico e a consciência social e comunitária das novas gerações como fatores externos e a
renovação dos estudos bíblicos e patrísticos, que revelam a verdadeira natureza da Igreja, o
movimento litúrgico, a espiritualidade cristocêntrica, a promoção do laicato, especialmente a
Ação Católica, e o despertar do apostolado missionário como fatores internos.84
O Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965) foi convocado pelo Papa João XXIII
no dia 05 de junho de 1960, com o Motu Proprio Superno Dei Nutu, que também instituía 14
organismos pré-conciliares, encarregados de estudar os temas a serem debatidos durante o
Concílio. No dia 14 de novembro de 1960, iniciaram-se os trabalhos dessas comissões. O
Concílio começou a ocupar-se do tema eclesiológico na primeira semana de dezembro de
1962, para, finalmente, aprovar o documento Lumen Gentium a 19 de novembro de 1964, sen-
do promulgado dois dias após por Paulo VI.85 A discussão em torno do esquema De Ecclesia,
o esquema 13, não foi simples, pois este implicava uma nova visão eclesiológica.
Desse modo, a renovação da Eclesiologia, iniciada no princípio do século passado,
propicia uma nova visão de Igreja, agora unitária: o visível e o invisível numa simultaneidade,
conforme expressa claramente o número 8 da Lumen Gentium, demonstrando a importância da
84
Ver, a propósito, comentário sobre o desembocar dos movimentos renovadores, especialmente dos estudos
bíblicos e patrísticos, na Lumen Gentium, em ROUSSEAU, O. A constituição no quadro dos movimentos
renovadores de teologia e de pastoral nas últimas décadas. In: BARAÚNA, G. (Org.). A Igreja do Vaticano II.
Petrópolis: Vozes, 1965, p. 116-134.
85
Entre os pontos relevantes da Lumen Gentium, podem-se citar os seguintes: do Capítulo I (O mistério da
Igreja): n. 1 (O que é a Igreja), n. 6 (Imagens da Igreja), n. 8 (“subsistit in”); do Capítulo II (O Povo de Deus):
n. 10 (sacerdócio comum dos fiéis e diferença), n. 12 (sensus fidei), n. 13 (quem constitui o Povo de Deus), n.
14 (fiéis católicos), n. 15 (cristãos não católicos), n. 16 (não cristãos), n. 17 (Igreja missionária); do Capítulo
III (Hierarquia): n. 18 (missão dos Bispos), n. 20 (princípio da sucessão apostólica), n. 21 (Episcopado como
sacramento), n. 22 e 23 (colegialidade), n. 24 a 27 (tríplice múnus), n. 28 (presbitério), n. 29 (diaconato per-
manente); do Capítulo IV (Leigos): n. 31 (quem são e características), n. 32 (igualdade fundamental), n. 33
(apostolado), n. 34 (múnus sacerdotal – sacerdócio comum), n. 35 (múnus profético), n. 36 (múnus régio), n.
37 (relação com a hierarquia); do Capítulo V (A vocação à santidade): n. 39 e 40 (o que é), n. 41 (exercício),
n. 42 (caminhos e meios); do Capítulo VI (Os Religiosos): n. 43 e 44 (natureza e importância), n. 45 (em
dependência da autoridade), n. 46 (estima), n. 47 (perseverança e cultivo); do Capítulo VII (Índole escatológi-
ca): n. 48 (o que é), n. 49 (comunhão entre Igreja terrestre e celeste), n. 50 (relações), n. 51 (disposições pas-
torais).
49
redescoberta do mistério da Igreja para a sua autocompreensão.86 Dessarte, ela inicia com o
capítulo sobre o mistério da Igreja, não o definindo, mas compreendendo-o como um aconte-
cimento da história salvífica.87 Esse título indica que a Igreja é muito mais do que se pode ver
e perceber empiricamente, muito mais do que o visível e historicamente manifestado pela sua
organização estrutural. Ele indica uma dimensão espiritual, interior, sobrenatural e divina. E
esses dois aspectos – o visível e o invisível, ou o exterior e o interior – formam uma única rea-
lidade.88
A propósito, C. Möller, procurando ressaltar a unidade dinâmica presente na Lumen
Gentium, vê uma divisão binária dupla ou por pares de capítulos no documento: o mistério da
Igreja (I e II); a estrutura da Igreja: hierarquia e laicato (III e IV); a finalidade da Igreja, no
campo da santidade, à qual todos são chamados, com ou sem a profissão pública dos conse-
lhos evangélicos (V e VI); a consumação da Igreja na escatologia (VII e VIII).89 Por isso, G.
B. Mondin avalia, de forma perspicaz, a importância do Vaticano II para a autoconsciência da
Igreja:
Evento de importância capital no que concerne à evolução da autoconsciência da
Igreja foi o concílio Vaticano II, concílio eminentemente eclesiológico. Graças à
ação poderosa e vivificadora de um novo Pentecostes, ele fez com que a autoconsci-
ência da Igreja desse um salto qualitativo, que pode muito bem ser comparado à pas-
sagem da juventude à maturidade. Os textos do concílio traçam um panorama mais
vasto, completo e profundo da autoconsciência da Igreja: eles documentam uma
compreensão mais plena do ser da Igreja, misterioso e sacramental, da sua missão
salvífica e da sua vocação missionária, dos papéis e tarefas dos próprios membros
(leigos e hierarquia), de suas relações com os fiéis de outras religiões e com o mun-
do90.
86
“A discussão conciliar em torno desse primeiro capítulo foi relativamente (comparada com os estilos dos
debates da I Sessão) rápida, em três Congregações Gerais (parte da 38a., 39a., 40a. e parte da 41a., nos dias 1 a 4
de outubro de 1963). O novo texto já era uma reação positiva contra um conceito excessivamente jurídico, social,
externo, institucional, clerical e triunfalista da Igreja” (cf. KLOPPENBURG, B. As vicissitudes da “Lumen
Gentium”. In: BARAÚNA, op. cit., p. 202).
87
Cf. PHILIPS, G. La Chiesa e il suo mistero. Storia, testo e commento della Lumen Gentium. Milano: Jaca
Book, 1989, p. 76.
88
PHILIPS, loc. cit.
89
Cf. MOELLER, C. O fermento das idéias na elaboração da Constituição. In: BARAÚNA, op. cit., p. 190.
90
Cf. MONDIN, op. cit., p. 192.
50
seu caráter dinâmico, expresso na imagem do Povo de Deus em marcha e em busca da escato-
logia.91
R. Coffy, num magnífico artigo, por ocasião dos vinte anos do término do Vaticano
II, observa que a leitura pós-conciliar da Lumen Gentium esqueceu o capítulo primeiro e inici-
ou apenas no segundo, acarretando uma compreensão parcial e sociológica da Igreja. Por isso,
muitas tentativas de dar à Igreja uma nova maneira de ser simplesmente inverteram a pirâmi-
de, transferindo os ocupantes da base para o vértice e vice-versa, desnaturando, desta feita, a
natureza da Igreja. Não era esse o sentido, lembra o mesmo autor, da Constituição Dogmática
sobre a Igreja do Vaticano II, que visava a uma mudança de perspectiva, numa nova relação
entre o mistério e a instituição, e não entre o vértice e a base.92 E essa visão falseada nega toda
a evolução da Eclesiologia, instaurando uma unilateralidade prejudicial para a Igreja.
A partir da dupla estrutura da Igreja, a divina e a humana, simultaneamente, a Eclesi-
ologia pode partir ou do divino ou do humano, adquirindo, assim, diferente enfoque. O Vati-
cano II, ao partir do mistério, parte de dentro para fora. Anteriormente, a Eclesiologia partia da
sociedade perfeita. Como a Igreja não está em estado de salvação definitiva, pode haver difi-
culdade em harmonizar adequadamente essas duas dimensões. Preocupados com essa possibi-
lidade, por vezes ocorrida no período pós-conciliar, os participantes do Sínodo de 1985 assim
se expressam:
Toda a importância da Igreja deriva da sua conexão com Cristo. O Concílio descre-
veu de diversos modos a Igreja como Povo de Deus, Corpo de Cristo, Esposa de
Cristo, templo do Espírito Santo, família de Deus. Estas descrições da Igreja comple-
tam-se mutuamente e devem ser compreendidas à luz do mistério de Cristo ou da
Igreja em Cristo. Não podemos substituir uma falsa visão unilateral da Igreja como
puramente hierárquica com uma nova concepção sociológica também ela unilateral.
Jesus Cristo está sempre presente na sua Igreja e nela vive como ressuscitado (Rela-
tio Finalis II, A, 3).
91
ROUSSEAU, op. cit., p. 119s.
92
Cf. COFFY, op. cit., p. 162-164.
51
mo. Em todos esses documentos observa-se uma mudança de visão de Igreja: do acento da
perspectiva de sociedade passam a valer seus aspectos de mistério e bíblicos, atendendo a sua
missionariedade, enquanto sacramento de salvação.
tando sua definição a partir de sua sacramentalidade. Porém, outras ideias conciliares sobre a
Igreja aparecem: comunhão, comunidade, serviço e serva do mundo. O Sínodo de 1985 e o
Papa João Paulo II, em diversos escritos (cf. Christifideles Laici), sublinham a Eclesiologia de
comunhão como a ideia eclesiológica chave do Concílio. O mesmo transparece na Carta aos
Bispos sobre alguns aspectos da Igreja entendida como comunhão, da Congregação para a
Doutrina da Fé, publicada em 28 de maio de 1992, com a aprovação do Papa.
Apesar de já se terem passado mais de 45 anos do término do Vaticano II, ainda res-
tam questões abertas como, por exemplo:
93
HACKMANN, G.L.B. O presbítero diocesano no limiar de um novo milênio. In: Teocomunicação, v. 27
(Setembro de 1997), p. 317-324.
94
Ver, por exemplo, GRESHAKE, G. Essere preti. Teologia e spiritualità del ministero sacerdotale. Brescia:
Queriniana, 1984.
95
Ver, como exemplo, a Exortação Apostólica Pós-Sinodal sobre a formação dos sacerdotes, Pastores dabo
Vobis, de João Paulo II, publicada em 29 de março de 1992, e o Diretório para o Ministério e a Vida do Pres-
bítero, da Congregação para o Clero, de 31 de janeiro de 1994.
53
A primeira possibilidade é a que parte da dimensão interna da Igreja (ad intra), que
acentua a Igreja como sacramento. Em abril de 1980, em Bologna (Itália), realizou-se um se-
minário em que foi acentuada a estruturação interna da Igreja após o Vaticano II.
A segunda define a Igreja a partir de fora (ad extra), isto é, de sua missão. Em feve-
reiro de 1980, foi celebrado um encontro de Igrejas do Terceiro Mundo, em São Paulo. As
conferências foram publicadas no livro A Igreja que surge da base (São Paulo: Paulinas,
1982). Essa visão eclesiológica reproduz as experiências eclesiais do Terceiro Mundo.
A problemática atual está em buscar um equilíbrio entre essas duas perspectivas
eclesiológicas. O caminho para tal passa pela recuperação da dimensão pneumatológica da
Igreja. Essa dimensão tem condições de enriquecer e articular com dinamicidade a estrutura
interna eclesiástica e de firmar o acontecimento cristológico como central na Igreja. Além
disso, dá condições para compreender com maior profundidade a natureza da Igreja e sua mis-
são na história. Só a partir da história trinitária de Deus no mundo e com o mundo pode emer-
gir na Igreja a consciência de estar crucificada junto com os excluídos da terra e ser, ao mesmo
tempo, a força de sua ressurreição e fermento futuro do mundo.96
G. Battista Mondin97 elabora a seguinte classificação das Eclesiologias pós-
conciliares:
96
Sobre a conjuntura eclesial, no momento, ver LORSCHEIDER, A. A atual conjuntura eclesial neste início
de Novo Milênio. In: Teologia em questão, ano I (2002/1), p. 71-87.
54
Para finalizar o estudo da história da Eclesiologia feito até aqui, convém apresentar
um breve panorama da situação da Eclesiologia na América latina, por dizer respeito direto ao
lugar onde se efetua este estudo. Daqui em diante, passa-se a expor as três Conferências do
Episcopado da América latina, por caracterizarem a situação da Igreja em cada um desses três
momentos.
a) Histórico
97
Cf. MONDIN, G.B. Le nuove ecclesiologie. Un’immagine attuale della Chiesa. Roma: Paoline, 1980.
55
Outro fator marcante foi o “movimento cristão”, surgido das comunidades cristãs de
base da América Latina. Esse movimento foi gerado por dois processos históricos, a partir da
década de 1960: de um lado, a crise econômica, política e ideológica do sistema capitalista
dependente e subdesenvolvido da América latina, e, de outro, a ascensão do movimento popu-
lar latino-americano, fruto da mobilização de intelectuais revolucionários e das revoltas estu-
dantis, de setores urbanos marginalizados, do proletariado e dos camponeses. A mobilização
desses diversos setores da sociedade gerou a “questão política”, na qual atuaram minorias pro-
féticas, como Dom Hélder Câmara e Mons. Manuel Larraín, do Chile, que souberam interpre-
tar o momento histórico e reinterpretar os documentos da Igreja.98
A difusão e a interpretação de Medellín aconteceram no interior do “movimento cris-
tão”, que, após 1968, não é mais minoria profética, mas amplo e profundo movimento de Igre-
ja, na qual surge a chamada “Igreja popular”99, que se destaca pela consciência do compromis-
so político dos cristãos e pela Teologia da Libertação. No Brasil, os movimentos populares
começaram na década de 1970, culminando com a realização do primeiro encontro de Comu-
nidades Eclesiais de Base, nos dias 6 a 8 de janeiro de 1975, em Vitória (ES), com o tema
“Uma Igreja que nasce do povo”.100
b) O documento
98
Essas ideias encontram-se em RICHARD, P. A Igreja latino-americana entre o temor e a esperança. Apon-
tamentos teológicos para a década de 80. São Paulo: Paulinas, 1982, p. 52-58.
99
Crítica à Igreja popular encontra-se em KLOPPENBURG, B. Iglesia Popular. Edição do autor.
100
O relatório do encontro acha-se em SEDOC, v. 7, maio de 1975.
56
- conversão e serviço;
- verdadeira pobreza bíblica;
- nova ordem de justiça;
- família;
- educação;
- trabalhadores;
- nova evangelização e catequese;
- renovação e criação de novas estruturas na Igreja;
- ecumenismo (cf. Mensagem aos povos da América Latina).
a) O documento
Puebla é a aplicação da Evangelii Nuntiandi para a América Latina. Por essa razão, o
documento chama-se “A evangelização no presente e no futuro da América Latina”. Aborda o
tema da evangelização, acrescido do da libertação, relacionado com o tema da cultura e da
religiosidade popular. Nota-se que a identidade latino-americana recebe um enfoque histórico,
cultural e antropológico.
O documento pode ser compreendido a partir do método ver, julgar e agir. A parte I
apresenta a visão pastoral da realidade latino-americana, como desafio inicial. A parte II é a
seção doutrinária, onde está afirmada a identidade da Igreja, também da Igreja latino-
americana, destacando-se o tema da evangelização da cultura, que é o ponto de contato com o
que a segue. As partes seguintes, a III, intitulada “A evangelização da Igreja da América lati-
na: comunhão e participação”, acentuando os centros de comunhão e participação, a IV, “Igre-
ja missionária a serviço da evangelização da América Latina”, onde se encontram as opções
101
ALESSANDRI, H. O futuro de Puebla. Repercussão social e eclesial. São Paulo: Paulinas, 1982, p. 37-39.
102
GALILEA, S. A mensagem de Puebla. São Paulo: Paulinas, 1979, p. 21.
58
b) A Eclesiologia de Puebla
103
ALESSANDRI, op. cit., p. 30-33.
104
GALILEA, op. cit., p. 30-33.
59
afirma que houve confronto dialético entre essas duas mentalidades nos últimos dez anos, mas,
em Puebla, elas conviveram pacificamente, pois são duas realidades eclesiais complementares
e, por isso, não se pode escolher entre uma delas.105
O segundo afirma que a identidade da Igreja foi o centro da síntese que ocorreu em
Puebla, pois o tempo entre Medellín e Puebla foi marcado pela busca da identidade eclesial.
Contribuíram para tal a Evangelii Nuntiandi, de Paulo VI, e, principalmente, o discurso inau-
gural da Conferência, proferido pelo Papa João Paulo II. Nesse discurso, o Papa mostra que a
evangelização é a vocação própria da Igreja, a sua mais profunda identidade, de acordo com
Evangelii Nuntiandi 14. E assim a Igreja recupera o seu centro e se abre para o mundo, unindo
o histórico ao ontológico, ou a essência da Igreja com a sua existência. É uma visão integrada,
especialmente conseguida pela influência de João Paulo II. A identidade e a vocação da Igreja
são a evangelização. Essa situação segue a abertura e busca de identidade da Igreja, que carac-
terizaram o período após Medellín.106
A identidade cristã acontece em torno de três verdades: a verdade sobre Jesus Cristo,
a verdade sobre a Igreja e a verdade sobre o homem. Daí brota a identidade da Igreja, que se
apresenta como sacramento da unidade, pois ela está a serviço da defesa e promoção da digni-
dade humana e libertação dos pobres. Isso está no discurso inaugural do Papa e será assumido
pela Conferência.
Entretanto, podem-se perceber algumas características da Eclesiologia de Puebla: a)
apesar de constituir a segunda verdade, é uma Eclesiologia não formulada sistematicamente,
pois não houve preocupação de fazer uma exposição doutrinal sistemática sobre a Igreja, en-
contrando-se ao longo de todo o documento, especialmente no ponto dedicado a expor a ver-
dade sobre a Igreja e nas opções pastorais; b) cristocêntrica, apesar de não separar a pessoa
humana de Jesus Cristo, o que é percebido mais claramente na opção preferencial pelos po-
bres, que é, em última análise, uma opção cristocêntrica e antropocêntrica, pois ambas com-
põem o cristianismo; c) antropocêntrica, especialmente nas opções pastorais; d) o núcleo da
exposição sobre a Igreja está centrado na ideia de Povo de Deus (números 238-269); e) a Igre-
ja é povo a serviço da comunhão (nº 270s), pois todos estão a serviço do Evangelho na Igreja
(nº 271).107
105
HORTAL, J. As eclesiologias de Puebla. In: Teocomunicação 1978, p. 194-200.
106
ALESSANDRI, op. cit., p. 26-30.
107
HORTAL, op. cit., p. 197-200.
60
O documento, nas opções pastorais, assim caracteriza a opção eclesiológica dos bis-
pos: a) uma Igreja sacramento de comunhão; b) uma Igreja servidora; c) uma Igreja missioná-
ria (cf. 1302-1304).
a) O documento
108
Sobre esse tema, ver TABORDA, F. Puebla e as Ideologias. In: Teocomunicação, n. 44, ano IX, (1979/2),
p. 233-235.
61
109
Por exemplo: IRMÃO NERY. Como vi e vivi Santo Domingo. Um diário. Petrópolis: Vozes, 1993.
110
BOFF, C. O “Evangelho” de Santo Domingo. Os dez temas-eixos do Documento da IV CELAM. Petrópo-
lis: Vozes, 1994, p. 27 e 38.
111
ANTONIAZZI, A. A missão da Igreja no documento. In: AAVV. Santo Domingo. Ensaios Teológico-
Pastorais. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 191.
62
lado “A Nova Evangelização”, em que a Igreja vem abordada e, por isso mesmo, encontram-
se os elementos para estabelecer o perfil da Eclesiologia da quarta Conferência. A Eclesiologia
não é sistemática, por faltar uma parte específica em que fosse abordada.
A frase programática, extraída de Hb 13,8, retrata perfeitamente a intenção de toda a
Conferência: centralidade da pessoa, obra e mensagem de Jesus Cristo. Os elementos dessa
centralidade de Cristo transparecem nos aspectos seguintes: a) uma Igreja santa, que haure de
Jesus Cristo a santidade de vida indispensável para poder alimentar e orientar “uma verdadeira
promoção humana e cultura cristã” (Santo Domingo 31); b) a Palavra de Deus convoca essa
comunidade santa, que tem a evangelização como uma das suas principais tarefas; c) a liturgia
como a celebração da Igreja santa e convocada pela Palavra. Por isso, o culto cristão expressa
a vertente da obediência ao Pai (glorificação) e da caridade para com os irmãos (redenção),
adquirindo valor evangelizador, pois convoca, celebra e envia (Santo Domingo 34 e 35).
A Eclesiologia de comunhão transparece com maior evidência na unidade teológico-
pastoral, entendida como unidade da Igreja entre comunhão e missão. A partir dessa compre-
ensão, vê-se a unidade entre os três capítulos da segunda parte do documento: a nova evange-
lização, a promoção humana e a cultura cristã. Só uma comunidade evangelizada pode evan-
gelizar, sendo que a promoção humana é a sua dimensão privilegiada, o que levará à criação
de uma cultura cristã, pois fará com que a fé, adesão radical a Cristo pelo Batismo, se torne
cultura, isto é, quando o “sentir comum de um povo tiver sido penetrado interiormente” pela fé
anunciada, pensada e vivida (Santo Domingo 229).
Segundo João Batista Libanio, ao escrever sobre os vinte anos de Teologia na Amé-
rica Latina, em 1992, a Eclesiologia da Teologia da Libertação é o terceiro principal eixo-tese
fundamental da Teologia da Libertação.113 Ele assim a anuncia: “De uma Eclesiologia de ex-
112
HACKMANN, G.L.B. A eclesiologia de comunhão em Santo Domingo. In: Teocomunicação, v. 23, n. 100
(1993/2), p. 167-180.
113
Os outros dois eixos-teses fundamentais da Teologia da Libertação são os seguintes: “De uma Cristologia
do Jesus histórico na perspectiva do seguimento e da identificação com o pobre passando por uma Trindade
libertadora até uma pneumatologia incipiente” e “da salvação como libertação passando por mediações na
história até à criação de utopias em referência ao Reino sobretudo na luta pela vida” (LIBANIO, J. B.; AN-
TONIAZZI, A. 20 anos de Teologia na América Latina e no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 39 e 45).
63
114
Ibid., p. 49.
115
Ibid., p. 49-54.
116
É possível resumir da seguinte forma as principais críticas à Igreja tradicional: a) é uma Igreja piramidal e
monárquica: o poder decisório está no vértice da pirâmide e a base não tem condições de participação. O
mundo clerical (Papa, bispos e padres) está separado da esfera secular (leigos), não havendo por isso mesmo
comunidade. Não há diálogo entre as duas esferas, e os ministérios são apenas exercidos pelo clero; b) é uma
Igreja triunfalista: isso aparece na forma externa, nas construções imensas e bens em abundância, que dão a
impressão de riqueza, e no próprio pensamento, onde a Igreja deve ter a última palavra; c) é uma Igreja com-
prometida com a classe dominante e com a situação vigente, porque ligada ao poder e comprometida na ma-
nutenção do status quo. Foi uma Igreja que se ocupou, em grande parte, com a evangelização das elites e com
uma assistência paternalista aos pobres, dando um acento fatalista diante das injustiças e da pobreza; d) o
linguajar essencialista, desligado da vida. A teologia se ocupa com o “em si” do mistério salvífico, não atin-
gindo o significado “para nós”, por isso é teórica e abstrata (cf. BOFF, L. Eclesiogênese. Petrópolis: Vozes,
1977, p. 47s; Id., Igreja, carisma e poder. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 205-212).
64
117
SOBRINO, J. A ressurreição da verdadeira Igreja. Os pobres, lugar teológico da Eclesiologia. São Paulo:
Loyola, 1982, p. 102.
118
Cf. CODINA, V. Eclesiologia latino-americana da libertação. In: Revista Eclesiástica Brasileira v. 42
(março de 1982), p. 66-67.
65
f) Igreja e Reino: o Reino assume uma especial relevância, enquanto realidade que
“antecede e precede à Igreja”, pois esta “existe em vista dele”.
66
CAPÍTULO SEGUNDO
Este capítulo visa abordar a dimensão trinitária da Igreja, pois ela é, enquanto termo
ad extra, uma ação de Deus, necessariamente trinitária.119 O projeto salvífico da Igreja implica
a participação das três Pessoas divinas. A sabedoria do Pai, do Filho e do Espírito Santo a con-
cebeu; a bondade do Pai, do Filho e do Espírito Santo a quis; a força do Pai, do Filho e do Es-
pírito Santo a criou.
O Vaticano II, quando se refere à origem da Igreja, sempre o faz como ação das três
Pessoas divinas, revelando sua natureza trinitária. Essa perspectiva encontra, no Concílio Va-
ticano II, sua forma mais elaborada em Ad Gentes 2-4, Lumen Gentium 2-4 e Unitatis Redin-
tegratio 2.
Este primeiro ponto abordará a relação existente entre Deus Pai e a Igreja, procu-
rando mostrar que a primeira Pessoa da Santíssima Trindade também é responsável pela
constituição, atuação e continuação da Igreja no tempo, ao longo do percurso da história
humana, visto que ele é o Pai de Jesus Cristo, fundador por excelência da Igreja. Normal-
mente, se mostra, não sem razão, a relação entre a Igreja e Jesus Cristo e o Espírito Santo.
Realmente, a Igreja é obra do Filho e aparece na história por meio da ação do Espírito San-
to, que é o seu cofundador. Assim tem refletido a tradição teológica da Igreja, conforme já
era apontado pela herança patrística120 e, mais recentemente, por diversos teólogos.121
119
Cf. BENI, op. cit., p. 35-38; PHILIPON, M. A Santíssima Trindade e a Igreja. In: BARAÚNA, op. cit., p.
361-383.
120
Por exemplo: AGOSTINHO, De baptismo 6. In: Sources Chrétiennes 35 (1952), p. 75; CIPRIANO, Ora-
tio dominicalis, 23. In: PL 4,553; IRÉNÉE DE LYON, Contre les hérésies. Livre V, 6,1 (Édition critique
67
Entretanto, o itinerário, seguido daqui em diante, quer demonstrar que Deus Pai tem
uma atuação muito particular para com a Igreja. Apesar de ela ser obra de seu Filho, por
meio do Espírito Santo, a Igreja não deixa de refletir a ação do Pai em toda a sua existência.
Mas, para tornar compreensível tal perspectiva, é necessário ter presente a dimensão da
história da salvação. Por essa razão, quando se alude a Deus, não se faz isso apenas pen-
sando no “Deus em si mesmo”, mas também no “Deus para nós”, pois não é suficiente refe-
rir-se a Deus a partir de categorias ônticas e metafísicas; é necessário incluir a categoria
histórico-salvífica.122
E, fundamentado nessa visão, se pode afirmar que a Igreja faz parte do plano de
Deus, e, consequentemente, sem dúvida, a Igreja se constitui em um evento da história da
salvação. Basta lembrar as palavras de Jesus aos discípulos no momento em que se despe-
dia: “Ide, pois, fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do
Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a observar tudo quanto vos mandei. Eis que eu es-
tou convosco, todos os dias, até ao fim do mundo” (Mt 28,19-20). Basta lembrar também o
chamado de Pedro, quando Jesus Cristo lhe deu a missão de apascentar o seu rebanho, co-
mo pedra, sobre a qual ele edifica a Igreja (Mt 16,18-20; Jo 21,15-17).
O Papa Paulo VI expressa essa mesma convicção, ao escrever, recordando as Encí-
clicas Satis Cognitum, de Leão XIII, de 1896 (cf. DS 3301), e Mystici Corporis, de Pio XII,
de 29 de junho de 1943 (cf. DS 3800-3815), na Ecclesiam Suam: “Ambos os documentos
nos oferecem doutrina abundante e luminosa sobre a instituição divina, pela qual Cristo
prolonga no mundo a sua obra de salvação, e sobre a qual recai o nosso discurso” (Ecclesi-
am Suam I).
a) A Igreja nasce de Deus Pai em Jesus Cristo por meio do Espírito Santo
d’après les versions arménienne et latine par A. ROUSSEAU). Paris: Cerf, 1969 (Sources Chrétiennes 153),
p. 73; DÍDIMO DE ALEXANDRIA, Enarratio in Epistolam Secundam S. Petri 3,5. In: PG 39,1774.
121
Entre os teólogos recentes, podem citar-se, por exemplo, CONGAR, Y.M-J. El Espíritu Santo. Barcelona:
Herder, 1991; MOLTMANN, J. O Espírito da vida. Uma pneumatologia integral. Petrópolis: Vozes, 1999.
122
Cf. SCHEFFCZYK, L. Dios. In: RAHNER, K. (Org.). Sacramentum Mundi. Barcelona: Herder, 2:309s.
Aqui está implicitamente presente o problema entre a Trindade imanente e a Trindade econômica, enquanto a
ordem da salvação está estruturada trinitariamente, o que revela Deus em si, de forma imanente. Essa visão da
Santíssima Trindade é resultante de K. Rahner, o qual soube trazer à luz essa perspectiva, que faltava à refle-
xão trinitária precedente, ao criar o axioma “a Trindade econômica é a Trindade imanente e vice-versa” (cf.
RAHNER, K. Escritos de Teología IV. Madrid: Taurus, 1964, p. 117s).
68
Sempre esteve clara, ao longo da tradição oral e teológica da Igreja, conforme ates-
tam os primeiros Símbolos da fé e os Santos Padres, a relação de unidade existente entre o
Espírito Santo e a obra de Jesus Cristo, o que torna a Igreja uma obra do Redentor, levando
a considerar o Espírito Santo como cofundador da Igreja.123 A experiência da Páscoa, cul-
minada no acontecimento de Pentecostes, fez com que os discípulos se entendessem como
uma comunidade messiânica de salvação, continuadora da obra de Jesus Cristo e portadora
da salvação do Filho de Deus ao mundo (cf. At 2,42-47). O Pai envia o Filho, e tudo o que
este faz é feito em nome do Pai, além de ele sempre se comportar como enviado (cf. Mt
10,40; Mc 9,37; Lc 4,43; Jo 4,34). Assim, em todo o acontecimento Jesus Cristo, está pre-
sente o Pai, desde a encarnação até a ressurreição, sendo tudo descrito a partir do Pai como
o agente principal (cf. Gl 4,4; Jo 7,16; 10,18; At 2,23; Rm 10,9; Fl 2,9 e Mc 1,11).124 Nesse
sentido entende-se a afirmação seguinte:
A missão de Cristo e do Espírito Santo realiza-se na Igreja, Corpo de Cristo e
Templo do Espírito Santo. Esta missão conjunta associa a partir de agora os fiéis
de Cristo à sua Comunhão com o Pai no Espírito Santo: o Espírito prepara os
homens, antecipa-se a eles pela sua graça, para atraí-los a Cristo (Catecismo da
Igreja Católica 737).
Entretanto, o intuito, agora, é demonstrar a relação entre a Igreja e Deus Pai, tema
não muito presente na reflexão teológica atual, por isso, verdadeira novidade. A etimologia
da palavra Igreja serve como ponto de partida para tal, ao oportunizar uma reflexão signifi-
cativa. Como já foi aludido no capítulo anterior, a palavra empregada pelos Setenta para
designar a realidade teológica conhecida por Igreja é ekklêsía, que significa a reunião dos
homens convocados por Deus, por isso, a assembleia ou a comunidade convocada pelo Pai.
No uso neotestamentário, a palavra indica a comunidade de salvação, seja a comunidade
universal (2Cor 8,1; 1Ts 2,14), seja a comunidade local (At 2,47; Rm 1,7). O apóstolo Paulo
e o livro dos Atos dos Apóstolos entendem que a assembleia convocada por Deus Pai só
pode subsistir enquanto tem o seu fundamento em Jesus Cristo, pois a Igreja, a assembleia
de homens, é convocada e reunida pelo Pai em Cristo Jesus. Isso porque a Igreja é o grupo
123
É o que será mostrado mais adiante, no terceiro ponto deste capítulo.
124
Para aprofundar essa perspectiva, na qual transparece que a missão salvífica do Filho revela quem é o Pai,
ver SCHULTE, R. L’opera salvifica del Padre in Cristo. In: FEINER, J.; LÖHRER, M. Mysterium Salutis.
Nuovo corso di dogmatica come teologia della storia della salvezza, v. 5. Brescia: Queriniana, 1971, p. 69-
114.
69
de pessoas que Deus chamou para fora do mundo, daí ser a comunidade dos santos enquan-
to Povo de Deus.125
Nesse sentido, pode-se concordar com H. Frankemöle, quando ele afirma que “uma
Igreja cristã pressupõe uma fé na ação de Deus” – daí se constitui a Teologia – “em Jesus
como base e fundamento” – daí se inicia a Cristologia – “do movimento iniciado por Jesus”
– no qual se enraíza a Eclesiologia.126
A pregação de Jesus aponta para a paternidade de Deus, anunciada por ocasião da
chegada da plenitude dos tempos messiânicos, realizada pela encarnação do Verbo (cf. Jo
1,14; Hb 1,1-4), quando ele chama Deus de Pai, seu Abbá (cf. Mt 7,21; 18,10; Mc 14,36; Lc
23,46; Jo 10,29s; Gl 4,6). Porém, o Pai de Jesus não é Pai apenas dele, mas o é, igualmente,
de todas as pessoas (cf. Mt 6,26.32; Jo 14,23). Essa verdade ele demonstra ao ensinar aos
discípulos a oração do Pai-Nosso (Mt 11,1-4), prova de que as pessoas, nele, tornaram-se
verdadeiramente seus filhos: “A nossa filiação não é uma realidade puramente ontológica; o
Espírito Santo, que nos é dado pelo Pai por meio do Verbo feito carne, transforma, inter-
namente, o nosso coração, infundindo-nos confiança e amor filial, para que possamos cha-
mar Deus de ‘Pai’”.127
Como Jesus Cristo é o mediador da graça filial, ele é a porta através da qual o Pai
convida todas as pessoas a entrar para tomarem lugar no banquete trinitário (Jo 14,23),
imagem que expressa a realidade da presença de Deus Pai nos cristãos, tornados seus filhos
mediante o sacramento do Batismo.128
A parábola do banquete nupcial, na qual o pai comemora a festa de casamento do
seu filho (Mt 22,1-14), mostra o banquete faustoso preparado para os da estirpe, mas eles
recusam. Então são convidados os desprezados, e estes enchem a sala do festim. A parábola
mostra que os fariseus e chefes do povo não acreditam no anúncio do Reino de Deus e se
recusam a mudar de vida, enquanto os excluídos e marginalizados acolhem a pregação de
125
Cf. SCHMIDT, K.L. Ekklesía. In: KITTEL, G. Grande Lessico del Nuovo Testamento. Brescia: Paideia,
1968, 4:1490-1580.
126
FRANKEMÖLLE. Iglesia-Eclesiología. In: EICHER, op. cit., p. 500.
127
ALFARO, J. Deus. In: FRIES, H. (Org.). Dicionário de Teologia. Conceitos fundamentais da teologia
atual. São Paulo: Loyola, 1970, p. 411.
128
Cf. DURRWELL, F.X. Il Padre. Dio nel suo mistero. Roma: Città Nuova, 1995, p. 81.
70
Jesus. Quer dizer que o destino das pessoas se decide na tomada de posição diante do con-
vite último e, por isso, definitivo, que Deus Pai – o rei da parábola – lhes dirige.129
A Escritura recorre frequentemente a imagens espaciais, para explicar e descrever a
comunhão que o Pai realiza com os homens e as mulheres em Jesus Cristo. Por exemplo, a
sala do banquete, preparada para os servos fiéis, é a casa do Pai (Mt 22,1; Lc 14,15); a ima-
gem do Templo também indica a casa do Pai (1Cor 3,16), e a compreensão da Igreja como
a reunião “em Deus Pai e no Senhor Jesus Cristo” (1Ts 1,1). Mas a presença de Deus não é
local simplesmente, enquanto circunscrita por um espaço, o que torna a Igreja não uma
simples coletividade, mas uma verdadeira comunidade, com origem no Pai, reunida, por-
tanto, em sua paternidade, e no Filho por ele gerado (Rm 1,7; 1Ts 1,1).
E essa presença é pessoal em cada um dos fiéis (1Cor 6,19) e, como tal, é recíproca
enquanto pessoal. De um lado, a Igreja está em Deus Pai e em Nosso Senhor Jesus Cristo;
de outro lado, o Pai e o Cristo habitam os fiéis: “Mas vem a hora, e já chegou, em que os
verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade; estes são os adoradores
que o Pai deseja” (Jo 14,23). O Espírito Santo está no coração dos fiéis (cf. Rm 5,5), e os
fiéis vivem e se santificam por meio do Espírito Santo (Rm 8,9; 15,16). A inabitação é recí-
proca. Por essa razão, São Paulo transformou a expressão “estais em Cristo Jesus” (cf. 1Cor
1,30) em “o próprio Cristo em vosso meio” (cf. Cl 1,27).
Essa presença é uma comunhão de pessoas. A presença do Pai e do Filho nos fiéis é
em base de amor. É por isso que esta pressupõe nele a presença do Espírito Santo, que é
amor. O Pai, o Filho e o Espírito Santo estão presentes, cada um a seu modo, no fiel, por-
que cada um é uma Pessoa de modo diverso.
b) O amor do Pai santo nos torna filhos e nos chama à santidade na Igreja santa
Deus é amor e santidade: dois atributos que fazem parte de sua essência, mas que,
ao mesmo tempo, atingem profundamente todo ser humano. E esse Deus, amoroso e santo,
tornou-se, em Cristo, verdadeiramente Pai para Jesus e para os homens e mulheres renasci-
dos pela água e pelo Espírito (cf. Jo 3,1-21).130
129
BARBAGLIO, G.; FABRIS, R.; MAGGIONI, B. Os Evangelhos (I). São Paulo: Loyola, 1990, p. 325-328.
130
GRINGS, D. Nosso Deus: Pai, Filho e Espírito Santo. Porto Alegre: [s.n.], 1974, p. 62.
71
Com a expressão “Deus é amor” (1Jo 4,8), o evangelista João explica a fonte da
caridade. Essa é a realidade que salta aos olhos, quando alguém, seja quem for, reflete com
profundidade a história da salvação e tenta penetrar no mistério do Deus que a planeja e a
executa. Necessariamente, o evento da nova aliança coloca a pessoa humana perante o mis-
tério, ao mesmo tempo maravilhoso e insondável, do amor de Deus e de seus caminhos (cf.
Gl 2,2; Rm 11,33).
O amor de Deus chama, gratuitamente, a pessoa a entrar em comunhão com ele. E
esse plano de salvação foi revelado com paciência após longa preparação, até que, ao che-
gar a plenitude dos tempos, foi dado a conhecer em Jesus Cristo (Ef 1,1-10). Desde a cria-
ção, passando pela encarnação, até chegar à redenção, Deus se revela como amor. É por
isso que Jesus estabelece, no amor a Deus e ao próximo, o primeiro dos mandamentos (cf.
Lc 10,25-28). E amar o próximo se torna sinal do amor a Deus (Mt 5,20-26; 1Jo 3,17), por-
que ele “nos amou primeiro e deu sua vida por nós” (1Jo 3,14). E a prova do amor do Pai
pela humanidade é o envio de seu Filho, para realizar a obra da salvação (1Jo 4,9).
A Sagrada Escritura apresenta, em diversos textos, a santidade de Deus como uma
das suas características: “E clamavam uns para os outros: ‘Santo, santo, santo é o Senhor
todo-poderoso, e toda terra está cheia de sua glória’” (Is 6,3). Com efeito, as pessoas, esco-
lhidas por ele, devem manter um novo relacionamento com Deus: “Porque eu sou o Senhor
vosso Deus. Santificai-vos e sede santos, porque eu sou santo. Não vos mancheis, pois, com
nenhum réptil que se arrasta pelo chão” (Lv 11,44; 19,2). E continua: “Sede santos para
mim, porque eu, o Senhor, sou santo. Eu vos separei dos outros povos para serdes meus”
(Lv 20,6). E esse relacionamento novo implica o abandono de qualquer prática estranha,
alheia à confiança radical em Deus: “Serão santos para Deus e não lhe profanarão o nome,
pois são eles que oferecem os sacrifícios pelo fogo ao Senhor, o alimento de Deus. Deverão
ser santos” (Lv 21,6). E ainda mais: “Se alguém recorrer aos médiuns e adivinhos, prosti-
tuindo-se com eles, eu voltarei minha face contra ele e o eliminarei do meio do povo” (Lv
20,6). E Cristo conclui, no sermão da montanha, ao mostrar a nova justiça como superior à
antiga: “Portanto, deveis ser perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48).
Com fundamento nesses textos, pode-se perguntar o que significa a santidade de
Deus. Vislumbra-se uma resposta a partir da seguinte explanação:
72
A santidade de Deus aparece como um chamado de sua parte. O Pai chama as pes-
soas para se tornarem seus filhos (cf. Ef 1,5). O verbo chamar, do grego kaleîn, assume uma
relevância particular, pois vem compreendido como vocação. Ao chamar os homens em
Jesus Cristo, Deus Pai convida para todos participarem da história da salvação, aceitando
seu convite amoroso. Daí esse verbo converte-se em palavra técnica, para indicar o chama-
do de Deus para a salvação.132
Nesse sentido, com F.X. Durrwell, pode-se entender que chamado e graça são sinô-
nimos.133 O chamado e a graça têm a origem no Pai (cf. Gl 1,3.6), enquanto o efeito é filial
(cf. Ef 1,5). A graça de Deus quer o intercâmbio e a comunhão 134; por isso, toda a criação
foi feita em vista do Filho, centro e fim do mundo (cf. Cl 1,15-20). Assim, o Pai é a fonte
de todo dom, ou seja, de toda graça, e também o efeito naquele que a recebe.
Por essa razão, as pessoas são chamadas, isto é, vocacionadas para a santidade, que
acontece ao aceitarem participar na obra da salvação. As exigências da lei antiga aparecem
exclusivamente a partir deste princípio: sereis para mim um povo consagrado (cf. Ex 19,4).
A única coisa que se exige é que a pessoa não se agarre desesperadamente à terra. Donde a
exigência de Deus: vós vos santificareis e sereis santos, porque eu sou santo (cf. Lv 11,44).
No Novo Testamento, na narração do episódio da anunciação, Maria canta a santi-
dade de Deus: santo é seu nome (cf. Lc 1,49). O nome de Deus é santificado, e o “santo”
que nascer dela será chamado “Filho de Deus” (cf. Lc 1,35). Nele se realiza a santidade de
Deus e inicia a irradiação da santidade entre os seres humanos, pois ele veio para santificar
o mundo e apontar o caminho da santidade. É como responde o apóstolo Pedro a Jesus:
“Simão Pedro respondeu: ‘Senhor, para quem iríamos? Tu tens palavras de vida eterna. Nós
acreditamos e sabemos que tu és o Santo de Deus’” (Jo 6,68-69).
131
BOISMARD, M.E. Grandes temas bíblicos. Madrid, 1968, p. 79-80. Apud GRINGS, op. cit., p. 53.
132
SCHMIDT, K. L. kaléô. In: KITTEL, op. cit., 4:1453-1464.
133
Cf. DURRWELL, op. cit., p. 75.
134
Cf. GUILLET, J. Graça. In: LÉON-DUFOUR, X. Vocabulário de Teologia Bíblica. Petrópolis: Vozes,
1972, col. 387s.
73
Paulo repete, seguidamente, que os cristãos são santos. Aliás, antes de os seguidores
de Jesus serem conhecidos como cristãos, foram chamados de santos. Com efeito, Deus os
chamou para tal, como escreve Paulo aos romanos: “A vós todos que estais em Roma,
amados de Deus, e chamados à santidade, graça e paz da parte de Deus nosso Pai e do Se-
nhor Jesus Cristo” (Rm 1,7). Convém ressaltar que não se trata de uma atitude meramente
moral, embora a santidade desemboque em uma vida ética correta, segundo os princípios
morais estabelecidos por Deus. Contudo, santidade, para o cristão, significa, antes de tudo,
pertença a Deus. Quem é de Deus é santo, pois Deus chamou para tal (cf. 1Cor 6,11).
Da santidade de Deus brota, portanto, a filiação divina:
Vede que prova de amor nos deu o Pai: sermos chamados filhos de Deus. E nós o
somos! Se o mundo não nos conhece, é porque não o conheceu. Caríssimos, des-
de já somos filhos de Deus, mas o que nós seremos ainda não se manifestou. Sa-
bemos que, por ocasião desta manifestação, seremos semelhantes a ele, porque o
veremos tal como ele é (1Jo 3,1-2).
De modo amplo, pode-se dizer que a filiação divina exprime que o ser humano deve
a vida e a existência a Deus, que reconhece a sua absoluta dependência e submissão total a
ele. Contudo, a pessoa tem direito de dirigir-se a Deus com confiança absoluta.135
Gregório Nazianzeno assim expressa essa realidade:
E Agostinho acrescenta: “Na verdade, que graça maior Deus poderia nos conceder
do que, tendo um Filho único, fazê-lo Filho do homem e reciprocamente fazer os filhos dos
homens serem filhos de Deus?”137
A expressão “filho de Deus” é tipicamente neotestamentária, pois ela é estranha ao
Antigo Testamento, que não conhece a ideia de uma filiação divina natural do homem. A
expressão é encontrada no Antigo Testamento, mas com significados diversos e nunca para
135
BLINZLER, J. Filho(s) de Deus. In: BAUER, J. Dicionário de Teologia Bíblica. São Paulo: Loyola, 1984,
p. 428.
136
GREGÓRIO NAZIANZENO, Sermões 45,9. In: PG 36,634.
137
AGOSTINHO, Sermo 185. In: PL 38,997-999.
74
indicar o indivíduo como tal.138 A relação pai-filho serve de analogia para indicar a filiação
divina por parte do ser humano. E assim é usada por Cristo, para mostrar a relação do ser
humano com o seu Pai. Isso acontece, quando ele ensina, por exemplo, os discípulos a re-
zar, pois os leva a se dirigirem a Deus como Pai (cf. Mt 6,9; Lc 11,2). Por essa razão, a fili-
ação divina dos cristãos se baseia em que estes foram adotados por Deus como filhos (cf.
Rm 8,15.23; Gl 4,5; Ef 1,5), indicando a nova relação do ser humano para com Deus, surgi-
da através da ação salvífica deste.139
Tornar todos os seres humanos filhos de Deus foi o objetivo do envio de Jesus Cris-
to ao mundo: “Quando, porém, chegou a plenitude do tempo, enviou Deus o seu Filho, nas-
cido de uma mulher, nascido sob a Lei, para remir os que estavam sob a Lei, a fim de que
recebêssemos a adoção filial” (Gl 4,4). Paulo exprime essa verdade com as seguintes ex-
pressões: “Somos filhos de Deus” (Rm 8,16); “vós todos sois filhos de Deus pela fé em
Cristo Jesus” (Gl 3,26); “e porque sois filhos” (Gl 4,6). A pessoa adquire essa qualidade de
filho de Deus através do Batismo, recebido com fé (Gl 3,26s). Mais exatamente: o Espírito
é recebido pelos crentes em Cristo no Batismo e produz a filiação divina: “Todos os que
são conduzidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus” (Rm 8,14s).
Ninguém pode pôr em dúvida a condição de filhos de Deus de todos os batizados,
que acontece por meio da fé na Igreja (Gl 3,26). Ela prossegue a missão de Jesus Cristo, e,
nesse sentido, todos os que recebem o sacramento do Batismo, administrado pela Igreja, em
obediência ao mandato de Jesus Cristo, conforme se encontra em Mt 28,18-20, tornam-se,
verdadeiramente, filhos de Deus, e este, na realidade, Pai de todos os batizados. Por esse
motivo, a paternidade de Deus para com os batizados realiza-se, hoje, na fé e pela Igreja,
formando um só Corpo em Jesus Cristo (cf. 1Cor 12,13.27).
A partir dessa compreensão, pode-se entender que o ministério apostólico da prega-
ção do Evangelho é participação na atividade trinitária, pois tal pregação está enraizada na
apostolicidade da Igreja, visto que proclama a fé recebida de Jesus Cristo por meio dos Do-
ze, como testemunha Paulo, escolhido como apóstolo pelo próprio Cristo, após a ressurrei-
ção: “Paulo, apóstolo – não da parte dos homens nem por intermédio de um homem, mas
por Jesus Cristo e Deus Pai que o ressuscitou dentre os mortos” (Gl 1,1).140
138
BLINZLER, op. cit., p. 429.
139
Ibid., p. 431.
140
Cf. DURRWELL, op. cit., p. 89.
75
141
PHILIPS, op. cit., p. 391.
76
A Eucaristia, instituída na última Ceia, na noite em que Jesus foi entregue (Mt
26,26-29; Mc 14,22-25; Lc 22,19-20; 1Cor 11,23-27), como memorial de sua morte e res-
surreição, tem também uma dimensão futura, enquanto alimento que prepara e conduz o
cristão para a glória futura:
Na última Ceia, na noite em que foi entregue, nosso Salvador instituiu o Sacrifí-
cio Eucarístico de seu Corpo e Sangue. Por ele, perpetua pelos séculos, até que
volte, o Sacrifício da Cruz, confiando dessarte à Igreja, sua dileta Esposa, o me-
morial de sua Morte e Ressurreição: sacramento de piedade, sinal de unidade,
vínculo de caridade, banquete pascal, em que Cristo nos é comunicado em ali-
mento, o espírito é repleto de graça e nos é dado o penhor da futura glória (Sacro-
sanctum Concilium 47).
142
Cf. ZILLES, U. Os sacramentos da Igreja Católica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995, p. 179.
77
143
Cf. STOEGER, A. Ação de graças. In: BAUER, op. cit., p. 4-10.
144
CONSELHO MUNDIAL DE IGREJAS. Batismo, Eucaristia e Ministério. Rio de Janeiro: CONIC/CEDI,
1983, p. 26.
145
A partir dessa perspectiva, acontece uma ruptura com uma concepção restrita da Eucaristia à transubstan-
ciação, referida apenas ao pão e ao vinho, que, na verdade, não deixa de sê-lo, mas que não pode conter todo
o sentido profundo da celebração eucarística – o mistério da presença de Deus na Eucaristia (cf. HILBE-
RATH, B. J.; SCHNEIDER, T. Eucaristía. In: EICHER, op. cit., p. 382).
146
GEORGE, A. A leitura do evangelho segundo Lucas (Cadernos Bíblicos – 13). São Paulo: Paulinas, 1982,
p. 81.
78
bola, esclarecedora da exortação de Jesus: “Sede misericordiosos como o vosso Pai é mise-
ricordioso” (Lc 6,36).147
Por essa razão, pode-se afirmar que a Igreja adquire, hoje, uma face misericordiosa,
uma vez que ela deve manifestar ao mundo a misericórdia do Pai, testemunhando seu amor
misericordioso para com os homens e as mulheres, de modo particular para aqueles que
vivem em uma situação de desamparo, sofrimento, dor, doença, solidão, violência, explora-
ção, enfim, de exclusão. São lapidares as palavras de João Paulo II:
A Igreja deve professar e proclamar a misericórdia divina em toda a verdade, tal
como nos é transmitida pela Revelação. [...] A Igreja vive uma vida autêntica
quando professa e proclama a misericórdia, o mais admirável atributo do Criador
e Redentor, e quando aproxima os homens das fontes da misericórdia do Salva-
dor, das quais ela é a depositária e dispensadora (Dives in Misericordia 13, grifos
do autor).
Ecoam ainda as palavras proferidas pelo Papa João Paulo II em sua Mensagem para
a celebração do Dia Mundial da Paz, de 1º de janeiro de 1999, quando ele une a paz com o
respeito aos direitos da pessoa humana:
A fé ensina-nos que toda a pessoa foi criada à imagem e semelhança de Deus. Pe-
rante a recusa do homem, o amor do Pai celeste permanece fiel; o seu amor não
tem fronteiras. Ele enviou o Filho Jesus para redimir toda a pessoa, restituindo-
lhe plenamente a sua dignidade. Diante de tal atitude, como poderemos excluir
alguém de nossos cuidados? Pelo contrário, devemos reconhecer nos mais pobres
e marginalizados que a Eucaristia, comunhão do Corpo e Sangue de Cristo ofere-
cido por nós, nos compromete a servir.148
É nesse sentido que o Papa João Paulo II, ao convocar a Igreja ao triênio preparató-
rio ao ano 2000, alude ao sacramento da Penitência como meio privilegiado de conversão
na sociedade atual, exigência do amor cristão:
Neste terceiro ano, o sentido do “caminho para o Pai” deverá impelir todos a em-
preenderem, na adesão a Cristo Redentor do homem, um caminho de autêntica
conversão, que compreende seja um aspecto “negativo” com a libertação do pe-
cado, seja um aspecto “positivo” com a escolha do bem, expresso pelos valores
éticos contidos na lei natural, confirmada e aprofundada pelo Evangelho. É este o
contexto adequado para a descoberta e a intensa celebração do sacramento da
Penitência, no seu significado mais profundo. O anúncio da conversão, qual exi-
gência imprescindível do amor cristão, é particularmente importante na sociedade
atual, onde tantas vezes parecem perdidos os próprios fundamentos de uma visão
ética da existência humana (Tertio Millennio Adveniente 50, grifos do autor).
147
O Papa João Paulo II desenvolve esse tema em sua Audiência Geral sobre “O Pai”, de 16 de outubro de
1985 (cf. JOÃO PAULO II. Creo en Dios Padre. Catequesis sobre el Credo (I). Madrid: Ediciones Palabra,
1996, p. 148s).
148
PAPA JOÃO PAULO II, “No respeito dos direitos humanos o segredo da verdadeira paz” (Mensagem de
Sua Santidade João Paulo II para a celebração do Dia Mundial da Paz – 1º de janeiro de 1999). L’Osservatore
Romano (Edição Semanal em Português) n. 51, ano XXIX (19 de dezembro de 1998), p. 20.
79
149
MICHEL, O. Oîkos. In: KITTEL, op. cit., 8:357-358.
150
Ibid., 8:366. E. Schillebeeckx destaca a importância das reuniões domiciliares das comunidades cristãs
primitivas como a base pastoral de todo o movimento cristão (cf. SCHILLEBEECKX, E. Plaidoyer pour le
peuple de Dieu. Paris: Du Cerf, 1987, p. 55-58).
80
151
MICHEL, O. Oikía. In: KITTEL, op. cit., 8: 368-377.
152
SCHLOSSER, J. Le Dieu de Jésus. Étude exégétique. Paris: Du Cerf, 1987, p. 262.
153
BARBAGLIO; FABRIS; MAGGIONI, op. cit., p. 466-467.
81
154
Sigo aqui SCHLOSSER, op. cit., p. 213-233.
155
DUPONT, J. Pourquoi des paraboles? Paris, 1977, p. 36 apud SCHLOSSER, op. cit., p. 233.
156
BARBAGLIO; FABRIS; MAGGIONI, op. cit., p. 305-307.
82
3,29). Mas é o livro do Apocalipse que mostra a Igreja como a esposa e Cristo como o es-
poso (cf. Ef 5,27): “As núpcias do Cordeiro se realizarão no fim escatológico, quando ele
aceitará a Igreja, perfeita e purificada” (Ap 19,7-9; 21,2; 22,17).157 Então, todos os que fo-
rem dignos estarão sendo recebidos na casa do Pai. E o tema da possibilidade de admissão
será o amor – conforme Jesus revela no final do discurso escatológico (cf. Mt 25,31-46) –,
que, muito mais do que o juízo, é o mundo em sua realização última, como ação divina ple-
nificadora.158
O Papa João Paulo II expressa muito bem o zelo de Deus Pai ao preparar a Igreja,
em Jesus Cristo e no Espírito Santo, desde toda a eternidade:
Toda a vida cristã é como uma grande peregrinação para a casa do Pai, de quem
se descobre todos os dias o amor incondicional por cada criatura humana e, em
particular, pelo “filho pródigo” (cf. Lc 15,11-32). Tal peregrinação parte do ínti-
mo da pessoa, alargando-se depois à comunidade crente até alcançar a humanida-
de inteira (Tertio Millennio Adveniente 49, grifos do autor).
A afirmação de que a Igreja deriva, ao menos de algum modo, de Cristo é aceita por
todos hoje, mesmo no meio protestante, embora permaneça aberta a questão sobre o sentido
em que deriva de Cristo.
Alguns escritores defendem a tese de que os apóstolos, após a morte, ressurreição e
ascensão de Cristo, ter-se-iam reunido novamente e ele teria esperado por isso. A Teologia
protestante da atualidade afirma que não corresponderia à sua intenção a constituição, pelos
discípulos, de uma nova comunidade escatológica de salvação, independente da judaica, em
contraposição ao povo de Israel.159 Os argumentos evocados para justificar tal tese são a espe-
rança de Jesus no próximo aparecimento do Reino de Deus, sua consciência de ter sido envia-
do somente aos filhos perdidos da casa de Israel (Mt 10,8) e a negação, por parte de teólogos
evangélicos, da sucessão da primazia do apóstolo Pedro, em quem veem apenas um modelo
157
MCKENZIE, J.L. “Matrimônio”. In: MCKENZIE, J.L. Dicionário Bíblico. São Paulo: Paulinas, 1984, p.
595.
158
Como exemplo, cf. DURRWELL, op. cit., p. 96.
159
Cf. KÜMMEL, W. G. Síntese Teológica do Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1974, p. 142-155.
83
para os dirigentes futuros, diante do texto de Mt 16,18, aduzido como prova da pretensão de
Jesus de fundar uma Igreja.160
O modernismo também nega a intenção de Jesus de fundar a Igreja. A. Loisy, faleci-
do em 1940, afirma que Jesus anunciou o Reino de Deus e o que apareceu foi a Igreja, dando a
entender que a Igreja não é a continuação do Reino de Deus nem querida por Jesus.161
Hoje se pode afirmar, indubitavelmente, que Jesus Cristo é o fundador da Igreja,
sendo ela fruto de sua intenção clara e opção segura. O texto de Mt 16,18-20 não pode ser
apresentado como única prova a favor da fundação da Igreja por parte dele. Decisiva foi a pre-
paração da Igreja durante toda a sua vida terrena, através de sua existência, palavras e ações,
mas ele não a constituiu. Isso foi obra do Espírito Santo no dia de Pentecostes. Essa prepara-
ção significa ter Jesus colocado os elementos que constituíram os alicerces da Igreja.
M. Schmaus afirma que, se o povo de Israel tivesse correspondido à mensagem de
Jesus, ele não teria fundado uma comunidade messiânica de salvação diferente daquela do
Antigo Testamento. Mas isso aconteceu pela dureza dos corações do povo da antiga aliança,
que impediu a renovação da mesma aliança, visto que o povo de Israel não aceitava a sua
mensagem de renovação da antiga aliança.162 Por isso, diante dessa negativa, Jesus foi colo-
cando elementos que prepararam a Igreja. E esses elementos são os seguintes:
160
Como exemplo: CULLMANN, O. Pedro. Discípulo – apóstolo – mártir. São Paulo: ASTE, 1964, p. 254-269.
Uma resposta, por parte de um teólogo católico, encontra-se em RATZINGER, J. Compreender a Igreja hoje.
Vocação para a comunhão. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 13-17.
161
LOISY, A. L’Évangile et l’Église. Paris: Du Cerf, 1902, p. 111. H. Frankemölle é de opinião de que essa frase
é normalmente mal interpretada, pois A. Loisy pretendia expressar a impossibilidade de pensar o Reino de Deus
sem estruturas sociais e desenvolvimentos históricos (cf. FRANKEMÖLLE, op. cit., p. 501).
84
3- a última Ceia: foi o ato de maior alcance para a fundação da Igreja, pois sua pre-
sença não é recordação vazia, mas palavra plena de realidade (“Fazei isto em memória de
mim”). O culto antigo é abolido e o novo distingue os cristãos dos não seguidores de Jesus;
4- o chamado dos discípulos e a escolha dos Doze: foi um dos acontecimentos mais
importantes da vida pública de Jesus, preparado por uma noite de oração, como iniciativa ex-
clusiva de Deus. Recorda o chamado dos homens do Antigo Testamento aos quais Deus confi-
ou tarefas especiais (Abraão, Moisés e os profetas). Ele mesmo os chamou e os vinculou a sua
Pessoa, e não a uma tradição rabínica. Os “Doze” aparecem como a prefiguração simbólica do
novo Povo de Deus, como os novos patriarcas da nova comunidade messiânica de salvação;
5- Paulo como apóstolo: os elementos constitutivos do ser apóstolo são o encontro
com o ressuscitado (1), o encargo pessoal dele recebido (2) e a convivência com o Senhor
durante a sua vida terrena (3). A vocação e autorização provenientes da parte de Cristo são
indispensáveis. Paulo não conheceu o Jesus histórico, mas ele tem consciência de estar preso e
atado às palavras de Jesus pela experiência às portas de Damasco. Os outros não contestam o
título de apóstolo que ele se atribui, mas não o introduzem no círculo dos Doze. Ele é designa-
do apóstolo dos gentios no Concílio de Jerusalém;
6- plenitude do poder apostólico: Mt 18,18 é dirigido ao grupo dos Doze, significan-
do o tríplice poder: a) declarar algo como sendo permitido ou proibido; b) impor uma obriga-
ção ou suspendê-la; c) excluir alguém da comunidade e readmiti-lo. Aqui está pressuposta a
unidade entre o poder disciplinar e o poder doutrinal. As decisões dos apóstolos têm alcance
externo e jurídico e interno e espiritual, obrigando no âmbito da consciência;
7- a missão de Pedro, conforme expressam Mt 16,13-19; Lc 22,27-32; Jo 21,15s.
8- a missão do Espírito: é o ponto culminante da ação de Jesus para formar a Igreja.
Em Pentecostes, foi determinada e concretizada a estrutura da Igreja, o Povo de Deus do Novo
Testamento, não apenas pela vontade de Jesus Cristo, mas também pela decisão dos homens
por ele chamados e determinados. O que o Espírito Santo deu aos discípulos foi a compreen-
são correta, que estava faltando, de Jesus Cristo e da sua obra.163
162
Sobre esse argumento ver SCHMAUS, op. cit., p. 26.
163
Cf. SCHMAUS, op. cit., p. 28-49.
85
Portanto, a Igreja é obra de Deus, uno e trino. Não há duas Igrejas: uma, querida e
fundada por ele; outra, a que está aqui e vemos. Única e una é a Igreja, assim como Deus é um
e uno. Não levaríamos a sério a obra de Deus, se não procurássemos compreender por que ele
fundou sua Igreja. A busca da resposta não pode esquecer que a solução encontrada por nós é
sempre fragmentada, pois os planos salvíficos de Deus ultrapassam nossa compreensão. Não
se pode separar o sentido da Igreja de seu ser. Assim explica a Lumen Gentium:
Esta Igreja, constituída e organizada neste mundo como uma sociedade, subsiste na
Igreja Católica governada pelo sucessor de Pedro e pelos Bispos em comunhão com
ele, embora fora da sua visível estrutura se encontrem vários elementos de santifi-
cação e verdade. Estes elementos, como dons próprios à Igreja de Cristo, impelem à
unidade católica. Mas assim como Cristo consumou a obra da redenção na pobreza e
na perseguição, assim a Igreja é chamada a seguir o mesmo caminho a fim de comu-
nicar aos homens os frutos da salvação (n. 8).
O objetivo deste terceiro ponto é explicitar a relação entre o Espírito Santo e a Igre-
ja, pois, desde o início, deve-se reconhecer a estreita relação entre ambos. Através dos es-
critos do Novo Testamento, se chega à convicção de que, por meio do Espírito Santo, se
constitui a comunidade de salvação, a Igreja, que nasceu, no tempo, mediante a ação do
Espírito Santo, que o Redentor enviou após a sua ascensão (cf. Lc 24,44-53; At 2,1-13).
A partir dessa afirmação, é necessário, desde logo, apontar para a unidade entre o
Espírito Santo e a obra de Jesus Cristo, o que torna a Igreja uma obra do Redentor, levando
a considerar o Espírito Santo como cofundador da Igreja. Durante a sua vida pública, Jesus
Cristo foi tomando diversas providências para fundar a Igreja, estabelecendo uma nova
comunidade messiânica de salvação e fundando uma nova aliança e um novo Povo de
Deus. Mas é o Espírito Santo quem faz a Igreja acontecer na história, por ocasião da efusão
de seus dons em Pentecostes, quando os apóstolos se reúnem e se entendem como a comu-
nidade de Jesus Cristo, o Messias Redentor, diferente daquela do velho Israel, em virtude
da experiência da Páscoa e da vinda do Espírito Santo (cf. At 2,42-47). É por isso que, para
o evangelista Lucas, o tempo da Igreja é o tempo da manifestação e da ação do Espírito
Santo (At 1,2.5.8.16; 2,4.18).
86
É o que transparece nos Símbolos da fé, desde o início, que sempre apresentam o
Espírito Santo unido à Igreja de Jesus Cristo. O Símbolo de 381 acrescenta ao Símbolo de
Niceia, de 325, “creio no Espírito Santo, Senhor que dá a vida, e procede do Pai e do Filho;
e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado: ele que falou pelos profetas” (DS 150). De-
pois, segue o artigo sobre a “Igreja una, santa, católica e apostólica”.
Os Santos Padres também têm a mesma visão. Santo Agostinho une sempre a santa
Igreja com o Espírito Santo, do qual ela é o Templo.164 Esse era o sentido da confissão de fé
apostólica e batismal, com sua estrutura trinitária. Cipriano usa a expressão “um povo reu-
nido pela unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo” para falar sobre a Igreja165, o que
vem citado pelo Vaticano II, na Lumen Gentium 4, a fim de mostrar a realidade secreta,
reafirmada na fé, de que Deus reúne um povo de todos os povos, que é Povo de Deus. San-
to Ireneu expressa poeticamente, na imagem das duas mãos de Deus, a ideia de que a Igreja
procede de duas missões, a do Verbo e a do Espírito.166 Ele apresenta os apóstolos insti-
tuindo e fundando a Igreja, ao comunicar aos crentes o Espírito que eles tinham recebido do
Senhor.167
Isso significa que o Espírito Santo não vem apenas dar vigor à estrutura da Igreja,
mas é, verdadeiramente, seu cofundador, animando-a por dentro. Portanto, a relação não é
de mera “assistência” à Igreja, mas é essencial a ponto de constituí-la. Dídimo de Alexan-
dria escreve que o Espírito Santo, divino e magnífico, é autor, guia e promotor da Igreja.168
Como exemplo, pode-se recorrer aos sete sacramentos, que foram instituídos por Cristo,
mas a determinação do número e dos sinais sacramentais foi estabelecida pela Igreja, sob a
guia do Espírito Santo.169 Enfim, pode-se dizer que a Igreja é obra do Espírito Santo.
164
AGOSTINHO, De baptismo 6. In: Sources Chrétiennes 35 (1952), p. 75.
165
CIPRIANO, Oratio dominicalis, 23. In: PL 4,553.
166
“Deus será glorificado na sua criatura, conformada e modelada ao seu próprio Filho, pois, pelas mãos do
Pai, isto é, por meio do Filho e do Espírito, o homem, e não uma sua parte, torna-se semelhante a Deus”
(IRENEU DE LIÃO. São Paulo: Paulus, 1995, p. 530). Também em IRÉNÉE DE LYON, Contre les hérésies.
Livre V, 6,1 (Édition critique d’après les versions arménienne et latine par A. ROUSSEAU. Paris: Du Cerf,
1969 (Sources Chrétiennes 153), p. 73.
167
IRÉNÉE DE LYON, Démonstration de la prédication Apostolique 41. Nouvelle traduction de l’Arménien
avec introduction et notes par L. M. FROIDEVAUX. Paris: Du Cerf, 1971 (Sources Chrétiennes 62), p. 96 e
nota 4.
168
DÍDIMO DE ALEXANDRIA, Enarratio in Epistolam Secundam S. Petri 3,5 (PG 39,1774).
169
Sobre esse argumento, acrescido da resposta dada à crítica de Lutero, que só via fundamento escriturístico
para o Batismo, Eucaristia e Penitência, e que, em se falando dos sacramentos, é o Espírito Santo quem guia e
inspira a Igreja na determinação dos sete sacramentos e dos sinais sacramentais, ver Y. CONGAR, El Espíritu
Santo, p. 212s.
87
Nele, ela adquire o seu “eu”, a sua identidade. Assim, ela passa a ser pessoal, uma
verdadeira comunhão na comunidade. Ele foi dado à Igreja e nela permanece pela presença
plenificadora, instruindo-a e guiando-a, dando-lhe vida e movimento. Não se pode esquecer
que o que acontece na Igreja é, ao mesmo tempo, ação das pessoas. Assim, o Espírito Santo
chega a identificar-se com a comunidade. Visto que ele é compreendido como o amor intratri-
nitário divino, a Igreja se torna uma comunidade de amor, não só como associação de pessoas,
mas como uma aliança selada pelo amor de Deus, a exemplo das alianças do Antigo Testamen-
to.
A Lumen Gentium, no capítulo primeiro, dedicado ao mistério da Igreja, expõe a
obra do Espírito Santo. O terceiro parágrafo, todo inteiro, manifesta a sua ação santificado-
ra:
Consumada, pois, a obra que o Pai confiara ao Filho realizar na terra (cf. Jo 17,4),
foi enviado o Espírito Santo no dia de Pentecostes, a fim de santificar perenemen-
te a Igreja, para que assim os crentes pudessem aproximar-se do Pai por Cristo
num mesmo Espírito (cf. Ef 2,18) (Lumen Gentium 4).
Essa frase sintetiza toda a economia da salvação de forma densa. O Concílio, em-
pregando diversos textos de João e Paulo, manifesta o papel do Espírito Santo na vida da
Igreja: ele santifica-a continuamente, com uma ação ao mesmo tempo purificadora e reno-
vadora.170 Ele, pois, santifica, habita, guia na verdade, unifica e rejuvenesce a Igreja. E o
Concílio finaliza a exposição com o emprego da já conhecida expressão de Cipriano: “Des-
ta maneira aparece a Igreja como ‘o povo reunido na unidade do Pai e do Filho e do Espíri-
to Santo” (Lumen Gentium 4).
Por essa razão, também se pode considerar a Igreja como objeto da fé, conforme
retratam os Catecismos de Trento e do Vaticano II. Cremos na Igreja una, santa, católica e
apostólica, relacionando esses atributos com sua causa divina e a ordem da graça. Diz o
Catecismo de Trento:
Quanto à Igreja, porém, usamos outra maneira de exprimir nossa fé, pois que pro-
fessamos crer a santa Igreja, e não na santa [Igreja]. Pela diferença de fórmula,
damos a entender a distinção entre Deus Criador e as coisas criadas, e nos admi-
ráveis dons conferidos à Igreja não vemos senão benefícios da bondade divina.171
170
PHILIPON, M. A Santíssima Trindade e a Igreja. In: BARAÚNA, op. cit., p. 366s.
171
CATECISMO ROMANO, Parte Primeira, artigo 9, n. 20 (ed. Frei LEOPOLDO PIRES MARTINS, Petró-
polis: Vozes, 1951, p. 176s).
88
Crer que a Igreja é “santa’ e “católica”, e que ela é “una” e “apostólica” (como
acrescenta o Símbolo niceno-constantinopolitano), é inseparável da fé em Deus
Pai, Filho e Espírito Santo. No Símbolo dos Apóstolos, fazemos profissão de crer
uma Igreja Santa (“Credo... Ecclesiam”), e não na Igreja, para não confundir
Deus e as suas obras, e para atribuir claramente à bondade de Deus todos os dons
que ele colocou na sua Igreja (Catecismo da Igreja Católica 750).
O Espírito Santo realiza na Igreja a função que a alma exerce no corpo, ao estar pre-
sente no Corpo de Cristo, que é a Igreja. O mesmo Espírito está presente, ao mesmo tempo,
na cabeça, que é Jesus Cristo, e em seus membros, que são os batizados, os fiéis. Santo
Tomás se pergunta o que une os fiéis entre eles e com Deus. E a resposta aponta para uma
unidade específica: os dons da graça têm uma raiz comum, a caridade – por mais diversos
172
CIRILO DE ALEXANDRIA, Commentarium in Joannis Evangelium XI, 11 (PG 74,561); AGOSTINHO,
Sermo 71,12,18 (PL 38,454); Sermo 267,4,4 (PL 38,1231); Sermo 268,2 (PL 38,1232); IRENEU, Adversus
Haereses III, 24,1 (Sources Chrétiennes 221, p. 470-474); AGOSTINHO, Sermo 267, 4,4 (PL 38,1231); Ser-
mo 268,2 (PL 38,1232); GREGÓRIO MAGNO. In: In septem Psalmos Poenitentiales Expositio, Psal V,1 (PL
79,602).
173
KÜNG, H. A Igreja, v. 1. Lisboa: Moraes Editores, 1969, p. 234, grifos do autor.
89
que sejam –, que tem por base o mesmo Espírito Santo, pessoalmente idêntico em todos e
princípio transcendente de unidade.174
A Lumen Gentium explica muito bem essa função do Espírito Santo em relação à
Igreja:
O Espírito Santo habita na Igreja e nos corações dos fiéis como num templo (cf.
1Cor 3,16; 6,19). Por ele o Pai vivifica os homens mortos pelo pecado, até que
em Cristo ressuscite seus corpos mortais (cf. Rm 8,10-11). Neles ora e dá teste-
munho de que são filhos adotivos (cf. Gl 4,6; Rm 8,15-16 e 26). Leva a Igreja ao
conhecimento da verdade total (cf. Jo 16,13). Unifica-a na comunhão e no minis-
tério. Dota-a e dirige-a mediante os diversos dons hierárquicos e carismáticos. E
adorna-a com seus frutos (cf. Ef 4,11-12; 1Cor 12,4; Gl 5,22). Pela força do
Evangelho, ele rejuvenesce a Igreja, renova-a perpetuamente e leva-a à perfeita
união com seu Esposo. Pois o Espírito e a Esposa dizem ao Senhor Jesus: “Vem”
(cf. Ap 22,17) (Lumen Gentium 4).
A moral cristã é motivada e regida pelo próprio Filho de Deus: “A Lei do Espírito
da vida em Cristo Jesus te libertou da lei do pecado e da morte” (Rm 8,2). Mas o Espírito
Santo, fonte da vida cristã, é a norma que regula essa mesma vida. São Paulo exorta: “Se
vivemos pelo Espírito, pelo Espírito pautemos também a nossa conduta” (Gl 5,25). Pois ser
cristão é levar uma vida totalmente dominada por Cristo (cf. Cl 1,27). Portanto, ele realiza,
personaliza e interioriza a vida em Cristo.175
Por essa razão, o apóstolo Paulo contrapõe o velho ao novo homem, convidando-o a
manter a pureza do corpo e das ações, porque todo batizado é templo do Espírito Santo (cf.
1Cor 6,19-20; Cl 3,1-5). É o Espírito Santo quem faz maturar a vida cristã até produzir fru-
to: “Mas o fruto do Espírito é amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade,
fidelidade, mansidão, autodomínio. Contra estas coisas não existe lei. Pois os que são de
Cristo Jesus crucificaram a carne com suas paixões e seus desejos” (Gl 5,22-24).
A moral cristã, no Espírito, torna o cristão livre. É o que recorda o apóstolo Paulo na
carta aos Romanos, em todo o capítulo sétimo, quando fala da nova Lei, iniciada por meio
da morte e da ressurreição de Jesus Cristo (cf. Rm 7,7-13), acentuando que o cristão vive no
Espírito: “A Lei do Espírito da vida em Cristo Jesus te libertou da lei do pecado e da morte.
174
Cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO, Sententiae III, d. 13, q. 12, a. 1 ad 2; q. 2, a. 1 ad 2; q. 2, a.2; De Veri-
tate, q. 29, a. 4; Coração e alma da Igreja: Summa Theologiae III, q. 8, a.1 ad 3; PIO XII, Mystici Corporis 54
e 77; Lumen Gentium 7 (parágrafo 7).
175
Expressões usadas por CONGAR, El Espíritu Santo, p. 305.
90
[...] Pois, se viverdes segundo a carne, morrereis, mas, se pelo Espírito fizerdes morrer as
obras do corpo, vivereis” (Rm 8,2.13).
Toda a moral cristã é aberta para uma verdadeira humanização, construindo comu-
nhão, no Espírito, da qual decorrem as três virtudes teologais:
176
DURRWELL, op. cit., p. 139.
177
Cf. ibid., p. 141.
178
Cf. ibid., p. 136.
91
Enfim, a vida em Cristo, sob a ação do Espírito Santo na Igreja, é uma vida filial,
que levará à obediência e busca constante, segundo Y. Congar, da conformidade amante e
fiel da vontade de Deus, sem negar a inteligência e a dignidade próprias do ser humano.179
Portanto, o núcleo da vida filial consiste na união com Cristo por meio da oração (cf. Lc
10,21; 11,2; Jo 17,1; Mt 6,9) no Espírito Santo.
Jesus Cristo está presente na Igreja por seu Espírito. O que o Espírito Santo fez para
a constituição da Igreja continua fazendo no decorrer da história. Isso está em Jo 14,15-26;
16,5-15. Testemunho dado pelos Atos: 4,1-22; 6,3.5s; 7,51; 16,7. O Espírito dá testemunho de
Jesus Cristo (Lc 24,44-49; At 1,4-8). Hoje adquire a forma humana, por meio da vida da co-
munidade, ao inspirar os carismas, os efeitos extraordinários e ministérios (cf. 1Cor 12).
179
Ibid., p. 312.
180
Sobre a dimensão ecumênica da comunhão, ver CERETI, G. Per un’Ecclesiologia Ecumenica. Dehoniane:
Bologna, 1996, p. 67-96.
92
dom, proveniente do alto, à sua Igreja.181 Depois, segue o esforço operoso do trabalho huma-
no, que leva a corresponder à graça divina.
Esse conceito tem um significado básico de comunhão com Deus da qual se participa
mediante a palavra e os sacramentos, tendo como consequência a comunhão dos cristãos entre
si, que se realiza na communio das Igrejas Locais fundadas mediante a Eucaristia. S. Pié-Ninot
é de opinião de que, desse modo, se chega ao sentido técnico de communio, de acordo com o
conceito e a realidade vivida na Igreja antiga e apreciada pelas Igrejas orientais.182
O esforço de fazer acontecer uma sempre maior comunhão vem acompanhado da
necessária consciência da dimensão escatológica da Igreja. Enquanto ajuda a manter viva a
consciência de sua finalidade supra-histórica e, consequentemente, de cada cristão, auxilia a
manter a Igreja com os pés no chão, no sentido de aceitar as dificuldades inerentes à sua con-
dição humana, que são fruto da tensão entre a graça e o pecado, repudiando qualquer ideali-
zação da Igreja ou a tentação de não reconhecer na Igreja atual aquela fundada por seu Mestre
e Senhor.
Aos poucos se destacou que a visão eclesiológica do Vaticano II implica a ideia de
comunhão, embora a Igreja nunca se tenha definido, até então, desse modo, como provam os
textos de Lumen Gentium 4, 8, 13-15, 18, 21, 24; Dei Verbum 10; Gaudium et Spes 32; Unita-
tis Redintegratio 2-4, 14s, 17-19, 22.
O nível estrutural dessa comunhão encontra-se na fórmula eclesiológica da Lumen
Gentium: “E os Bispos, individualmente, são o princípio visível e o fundamento da unidade
em suas Igrejas Particulares, formadas à imagem da Igreja universal, nas quais e pelas quais
existe a Igreja Católica una e única” (Lumen Gentium 23). S. Pié-Ninot interpreta que, nesse
texto, há uma conjugação entre a Eclesiologia de comunhão do primeiro milênio e a Eclesio-
logia jurídica da unidade do segundo milênio que está bem explicitada na expressão communio
181
Essa Eclesiologia caracteriza-se por fundamentar a comunhão humana a partir da comunhão trinitária.
Assim explica o Sínodo de 1985: “A Eclesiologia de comunhão é a ideia central e fundamental dos documen-
tos do Concílio. Koinonía- comunhão, fundada na Sagrada Escritura, é tida em grande honra na Igreja antiga e
nas Igrejas orientais até nossos dias. Por isso, muito se tem feito desde o Concílio Vaticano II para que a Igre-
ja como comunhão seja entendida de maneira mais clara e traduzida de modo mais concreto na vida” (SÍNO-
DO EXTRAORDINÁRIO DOS BISPOS, Relatio Finalis, ponto II, letra C, n.1).
182
Cf. PIÉ-NINOT, op. cit., p. 30. Ele ainda afirma que esse conceito teve grande influência nos Decretos
sobre as Igrejas orientais (Orientalium Ecclesiarum) e sobre o Ecumenismo (Unitatis Redintegratio).
93
hierarchica, de acordo com Lumen Gentium 22, “com a qual se liga o ministério episcopal à
Igreja universal, concretamente com o Papa e o colégio episcopal”.183
A partir do Sínodo Extraordinário de 1985, foi priorizada a Eclesiologia de comu-
nhão como a mais característica e fundamental do Vaticano II, embora existam outras Ecle-
siologias possíveis. Ao afirmar a centralidade desse conceito nos documentos do último Con-
cílio ecumênico, explica-o da seguinte forma:
Que significa a complexa palavra “comunhão”? Trata-se fundamentalmente de
comunhão com Deus por Jesus Cristo no Espírito Santo. Tem-se essa comunhão
na Palavra de Deus e nos sacramentos. O Batismo é a porta e o fundamento da
comunhão na Igreja. A Eucaristia é a fonte e o ápice de toda a vida cristã (cf. LG
11). A comunhão do corpo de Cristo eucarístico significa e produz, isto é, edifica
a íntima comunhão de todos os fiéis no Corpo de Cristo que é a Igreja (cf. 1Cor
10,16) (Relatio Finalis II, C, n.1).
183
PIÉ-NINOT, op. cit., p. 31.
94
Inúmeros teólogos têm se dedicado a refletir sobre esse tema. Dentre eles, podem-se
citar Yves Congar184, Jean Zizioulas185, Jean Rigal186, Severino Dianich187 e Jean-Marie
Roger Tillard.188
A Eclesiologia de comunhão revela-se como adequada para unir dois aspectos que,
de per si, tendem a ser entendidos separadamente: o teológico e o pastoral, a comunhão e a
missão, ou seja, a essência e a práxis. O “em si” e o “para nós” da Igreja.189
Assim a Igreja poderá viver a comunhão internamente (ad intra) e promovê-la ex-
ternamente (ad extra), a partir do modelo da unidade trinitária, conforme pede Jesus Cristo
à sua Igreja. O Vaticano II recorda que o amor de Deus não se pode separar do amor ao
próximo e que há certa semelhança entre a unidade das Pessoas divinas e a união dos filhos
de Deus na verdade e caridade (cf. Gaudium et Spes 24).
184
Entre as diversas obras de Y. Congar, podem-se citar Esquisses du mystère de l’Église (Paris: Du Cerf,
1941), Ministères et communion ecclésiale (1971), Diversités et communion (1982) e Parole et le Souffle
(1984).
185
Além de diversos artigos, o referido autor escreveu a obra L’Eucharistie, quelques aspects bibliques dans
l’eucharistie (Tours: Mame, 1970).
186
RIGAL, J. L’ecclésiologie de communion. Son évolution historique et ses fondements. Paris: Du Cerf,
1997, 392p.
187
DIANICH, S. La Chiesa mistero di comunione. Genova: Marietti, 1987, 190p.
188
TILLARD, J-M. R. Église d’Églises. L’ecclésiologie de communion. Paris: Du Cerf, 1987; Chair de
l’Église, chair du Christ. Aux sources de l’ecclésiologie de communion. Paris: Du Cerf, 1992; L’Église
locale. Ecclésiologie de communion et catholicité. Paris: Du Cerf, 1995.
189
Ver comentário a respeito da integração desses dois aspectos em KLOPPENBURG, B. A Igreja entendida
como comunhão. In: Revista do Clero da Arquidiocese do Rio de Janeiro, XXIX (agosto de 1992), p. 17-19.
95
CAPÍTULO TERCEIRO
AS NOTAS DA IGREJA
190
Como bibliografia básica: AUER, J. La Iglesia. In: AUER, J.; RATZINGER, J. Curso de Teología
Dogmática, t. VIII. Barcelona: Herder, 1986, p. 342-351; BENI, op. cit., p. 341-378; BOFF, L. Igreja, carisma e
poder. Perópolis: Vozes, 1981, p. 172-195; CONGAR, Y.; ROSSANO, P. Proprietà essenziali della Chiesa. In:
FEINER; LÖHRER. Mysterium Salutis, v. 7, p. 439-707; DIANICH, S. La Chiesa, mistero di communione.
Genova: Marietti, 1987; KÜNG, v. 2, op. cit., p. 9-151; MONDIN, op. cit., p, 271-294; SOBRINO, J. A
ressurreição da verdadeira Igreja. São Paulo: Loyola, 1982, p. 107-129.
191
Cf. AUER, op. cit., p. 342.
192
Ver comentário a respeito desse aspecto em FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 445s.
96
bém, propriedade.193 A distinção entre ambas é tênue, segundo alguns autores: as notas apre-
sentam mais o caráter visível, ao passo que propriedade mais o misterioso.194 H. Küng prefere
a palavra dimensão, por motivos teológicos e ecumênicos.195
O recurso às quatro notas começou a adquirir organicidade na época da controvérsia
com os reformadores, passando a ter, no entanto, uma característica apologética, porque co-
meçaram a ser usadas contra eles, com o intuito de provar a Igreja Católica como a única ver-
dadeira, ao passo que a de Lutero era a falsa. Assim, inicialmente, as quatro notas eram mos-
tradas como sinais escolhidos por Cristo para indicar a verdadeira Igreja, e, em seguida, foi
demonstrado que a Igreja Católica era a única a possuí-las em plenitude, mesmo que estas se
verificassem parcialmente em outras Igrejas. Esse caráter apologético já existia nos tratados
eclesiológicos que refutavam Huss e Wyclef.
No entanto, isso nem sempre se verificou. As primeiras explicações do Símbolo co-
mentavam-nas sem qualquer sentido apologético. Quando começaram a surgir as primeiras
heresias, seus erros eram refutados diretamente. É o caso, por exemplo, de Inácio, que apela
para a comunhão com o bispo, ou de Agostinho, que argumenta com a catolicidade da Igreja
para refutar os donatistas. Assim aconteceu até ao fim da Idade Média.196
Diversos teólogos, na época das controvérsias eclesiológicas dos hussitas e reforma-
dores, apresentam muitas outras, desenvolvendo o chamado “via notarum”: Belarmino enume-
ra 15 notas, o canonista e historiador Tomás Bozio (1548-09.12.1610), 100. No século XVIII,
os catecismos ainda enumeravam 14 ou 19 notas, embora Honoré de Tournély (28.08.1658-
26.12.1729), professor na Universidade de Douai (1692-1716) e, após, na Sorbonne, em 1726,
havia fixado o esquema das quatro notas já por mais de um século. No século XIX, os teólo-
gos foram tomando consciência da dificuldade de argumentar por esse caminho. Por isso, al-
guns passaram a preferir a “via empírica”, isto é, a Igreja como milagre moral devido aos valo-
res cristãos por ela enunciados. Outros, no entanto, consolidaram o uso das notas e acrescenta-
ram a romanidade. É o caso de Perrone, em 1842, e seus seguidores, como também do profes-
193
Cf. ibid., p. 440s.
194
Cf. MONDIN, op. cit., p. 271s, notas 1 e 2.
195
KÜNG, op. cit., p. 18.
196
Cf. ibid., p. 13s., onde se encontram maiores detalhes. Também FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 439-442.
97
197
Cf. ibid., p. 442s.
198
Cf. BENI, op. cit., p. 342.
199
Cf. KÜNG, op. cit., p. 16.
200
Ibid., p. 14 e 18.
98
a) Teologia da unidade
Para bem compreender, é preciso partir da escatologia, ou seja, daquilo que ela deve-
rá ser, quando for, ao fim, perfeitamente ela mesma.
Esse fim perfeito ao qual a Igreja aspira chegar é dado conhecer através da Bíblia:
Vi também descer do céu, de junto de Deus, a Cidade santa, uma Jerusalém nova,
pronta como uma esposa que se enfeitou para seu marido. Nisto ouvi uma voz forte
que, do trono, dizia: “Eis a tenda de Deus com os homens. Ele habitará com eles;
eles serão o seu povo, e ele, Deus-com-eles, será o seu Deus” (Ap 21,2-3).
201
DURRWELL, F-X. Lo Spirito Santo alla luce del mistero pasquale. Roma: Paoline, 1985, p. 87.
202
COMISSÃO TEOLÓGICO-HISTÓRICA DO GRANDE JUBILEU DO ANO 2000. Senhor, a terra está
repleta do teu Espírito. São Paulo: Paulinas, 1997, p. 58.
203
CONGAR, El Espíritu Santo, p. 209.
99
Nesse texto estão reunidas, na maior parte, as imagens pelas quais a Revelação apre-
senta a Igreja: habitação, cidade, Jerusalém, esposa, Povo de Deus. Ainda existem outras ima-
gens além dessas: vinha, plantação de Deus, família de Deus, rebanho e, sobretudo, Corpo de
Cristo. A Lumen Gentium desenvolve essas mesmas imagens, acrescentando a do Reino de
Deus, nos números 5 a 7.
Essas diversas imagens ou noções revelam que o acento principal de todas elas está
em Deus: ele é o fim supremo do referimento, cuja unidade e unicidade se comunicam à Igre-
ja, casa ou templo em que ele habita. Assim, a Igreja é una e única, porque Deus é uno e único
em si mesmo (cf. Ef 4,4-6). Nesse sentido, os Santos Padres apresentam a Igreja como “povo
reunido na unidade do Pai e de Filho e do Espírito Santo”.204 Portanto, o primeiro princípio de
unidade da Igreja e a razão fundamental de sua unicidade encontram-se na unidade e na unici-
dade de Deus.
E esta se reflete na unidade da natureza humana, que deve ser vista já a partir da uni-
dade do mundo. Deus criou o mundo e a humanidade para a comunhão, de tal forma que o
Corpo místico da Igreja é considerado a elevação ao estado sobrenatural da união já existente
entre os seres finitos em relação a seu Criador, devido à encarnação do Filho de Deus.205
Apesar de sua origem transcendente, a unidade, enquanto tarefa dos cristãos na Igre-
ja, deve crescer até a perfeição escatológica. Nesse sentido, Paulo expressa, com a afirmação
de que “Deus será tudo em todos” (cf. 1Cor 15,28), de um lado, a intimidade dessa união e, de
outro, a tarefa dos cristãos. Quando assim se realizar, ela se tornará a unidade perfeita de sujei-
tos que continuam pessoas, isto é, será a comunhão íntima estabelecida de forma pessoal e
comunitária. A cidade de Deus começa e se aperfeiçoa no Povo de Deus ainda em estado itine-
rante na terra, rumo à consumação escatológica.
Essa condição humana se caracteriza por um já e um ainda-não simultâneos. O Povo
de Deus já é aquilo que é chamado a ser (já é filho de Deus) e, no entanto, ainda espera a li-
berdade gloriosa dos filhos de Deus e a libertação plena e total em Deus (cf. Rm 8,21-23). É a
situação paradoxal da Igreja no seu estado de peregrinação: dualidade do já e do ainda-não.
Ela já é, mas ainda deverá realizar plenamente em sua vida o que já está contido nela pela gra-
ça de Deus. Por isso, a Igreja terá sempre de usar os meios instituídos por Cristo para conse-
204
CIPRIANO, De Orat. Dom. 23. In: PL 4,553; JOÃO DAMASCENO, Adv. Iconocl. 12. In: PG 96;
AGOSTINHO, Serm. 71,20.33. In: PL 83,463 ss. Citado em Lumen Gentium 4.
205
Cf. FEIENER e LÖHRER, op. cit., p. 452.
100
guir realizá-la. Não sem motivo, a Eucaristia é considerada o grande sacramento da unidade,
pelo qual ela é significada e realizada (cf. Unitatis Redintegratio 2).
O Espírito Santo é a causa eficiente da unidade da Igreja, pois, como sua alma, faz
acontecer em sua vida e na vida de cada cristão a graça salvífica de Cristo, gerando-a e tor-
nando-a, assim, “sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero
humano” (cf. Lumen Gentium 1), além de distribuir os dons e carismas a cada pessoa (cf. 1Cor
12,7-11).206
Por isso, unidade não é uniformidade. Frequentemente, se encontra a tendência de
confundi-las, pois a uniformidade é bem mais fácil de construir. Mas nem Deus nem a consti-
tuição concreta da Igreja, com a diversidade de culturas, raças, pensamentos e posições, justifi-
cam-na. Mas a superação dessa tentação não está na dispersão ou na ruptura, o que seria con-
figurar a vitória do egoísmo. A Igreja tem necessidade de organização, que deverá ser sempre
sinal de sua unidade. Dessarte, sempre e sem cessar deve-se buscar construir uma Igreja uni-
versal, que viva em comunhão no seu estado peregrinante (cf. Lumen Gentium 13). Daí que a
unidade da Igreja, enquanto unidade na pluralidade, é uma tarefa sempre por ser feita: deve
haver respeito à diversidade dos carismas e à livre iniciativa das pessoas, à variedade cultural e
antropológica. Aí está a dinamicidade do novo Povo de Deus presente na história humana e a
vocação da Igreja para a comunhão.207
Por isso, o Concílio Vaticano II, ao iniciar o capítulo segundo da Lumen Gentium,
dedicado ao Povo de Deus, abordando a nova aliança e o novo povo, reconhece que esse povo
tem uma missão a exercer em relação à humanidade inteira:
Assim este povo messiânico, embora não abranja atualmente todos os povos e por
vezes apareça como um pequeno rebanho, é contudo para todo o gênero humano
germe firmíssimo de unidade, esperança e salvação. Constituído por Cristo para a
comunhão de vida, caridade e verdade, é por ele ainda assumido como instrumento
de redenção de todos, e é enviado ao mundo inteiro como luz do mundo e sal da ter-
ra (cf. Mt 5,13-16) (Lumen Gentium 9).
b) As formas de unidade
As três formas de unidade da Igreja são inspiradas em At 2,42 e 4,32, que a mostram
existindo não apenas no plano sentimental, mas também traduzindo uma estrutura da qual
206
MONDIN, op. cit., p. 275-278.
207
Ibid., p. 275s.
101
Lucas enumera três elementos, segundo certa ordem, que adquiriu em si mesma um valor de
doutrina:
Os teólogos e o Magistério sempre enunciam essas três formas, embora com certa
diversidade em reagrupá-las.208 Pio XII, na Encíclica Orientalis Ecclesiae, a 09 de abril de
1944, emprega o esquema dos três vínculos: vinculum symbolicum, liturgicum e sociale ou
hierarchicum. Estes já eram encontrados entre os teólogos, como São Bernardo, Tomás de
Aquino e Roberto Belarmino, e, de modo geral, pelos autores até o século XIX.209 São os ele-
mentos de At 2,42. Porém, os documentos do Magistério frequentemente insistem na unidade
externa, mediante a profissão da mesma fé e a submissão ao mesmo regime eclesiástico, con-
forme se encontra na Satis cognitum, de Leão XIII, de 29 de junho de 1896 (cf. DS 3300-
3306).
O Vaticano II segue essa mesma tradição, como se encontra, por exemplo, na Unita-
tis Redintegratio 2. Contudo, ele insiste na necessidade de vivê-las também na dimensão inte-
rior, ou seja, os atos externos devem corresponder às intenções internas. Quer dizer, a Igreja
não pode ser considerada apenas do ponto de vista fenomênico, enquanto realidade objetiva e
organização visível, mas também em sua condição de mistério, visto que os elementos exter-
nos correspondem à sua natureza e origem transcendente. Essa é a posição do Vaticano II,
208
Cf. FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 456-459.
209
Ibid., p. 458.
102
quando a Lumen Gentium, no número 14, afirma claramente: “Não se salva, contudo, embora
incorporado à Igreja, aquele que, não perseverando na caridade, permanece no seio da Igreja
‘com o corpo’, mas não ‘com o coração’”.210
O documento 25 da CNBB, citando literalmente Puebla 641, sobre as Comunidades
Eclesiais de Base, apresenta essas três formas como critérios de eclesialidade, sem os quais
não se pode afirmar que uma Comunidade de Base seja Eclesial.211 O Catecismo da Igreja
Católica, n. 815, apresenta esses três vínculos como sinais visíveis que asseguram a comunhão
da Igreja.
Pode-se afirmar, concluindo este ponto, que as condições de pertença à plena comu-
nhão visível da Igreja, ou a pertença plena à Igreja, acontecem mediante esses três vínculos. O
cânon 205 do Código de Direito Canônico, de 1983, afirma que estão em plena comunhão
com a Igreja Católica aqueles batizados que estão unidos com Cristo por meio visível, através
do tríplice vínculo da profissão de fé, dos sacramentos e do governo eclesiástico. Essa norma
fixa expõe os critérios juridicamente relevantes da pertença visível à Igreja Católica e constitui
o ponto de referência para toda uma série de outras disposições presentes ao longo do Código.
De acordo com o já citado Código, a plena comunhão deve ser verificável visivel-
mente, para que ela possa realizar a sua função de sinal e instrumento de união dos fiéis com
Cristo e deles entre si, como sacramento de salvação que a Igreja é. O sentido da plena perten-
ça à Igreja, como já foi referido, encontra-se na Lumen Gentium 14, na qual há uma distinção
entre os fiéis católicos e os batizados que não pertencem mais a ela ou que nunca fizeram parte
dela e que, por isso, não gozam dos direitos e deveres inerentes a todo batizado.
c) A ruptura da unidade
210
O Código de Direito Canônico diz o seguinte sobre esse tema: “Neste mundo, estão plenamente na comu-
nhão da Igreja Católica os batizados que se unem a Cristo na estrutura visível, ou seja, pelos vínculos da pro-
fissão de fé, dos sacramentos e do regime eclesiástico” (cânon 205). João Paulo II, na sua Encíclica sobre o
empenho ecumênico, é fiel a essa Tradição: “De fato, essa unidade dada pelo Espírito Santo não consiste
simplesmente na confluência unitária de pessoas que se aglomeram umas às outras. Mas trata-se de uma uni-
dade constituída pelos vínculos da profissão de fé, dos sacramentos e da comunhão hierárquica” (Ut Unum
Sint 9).
103
1 - Através do cisma
2 - Através da heresia
211
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. As Comunidades Eclesiais de Base na Igreja do
Brasil. São Paulo: Paulinas, 1982, p. 13s (número 30).
212
Por exemplo: Cartas de Santo Inácio de Antioquia, op. cit., Carta aos Filadélfios 4 (p. 72) e Carta aos
Magnésios 7,2 (p. 53); CIPRIANO, A unidade da Igreja Católica n. 17, Introdução, tradução e notas por C.
BERALDO, Petrópolis: Vozes, 1973, p. 48.
213
Ver o desenvolvimento desse tema em torno da missão do bispo em RATZINGER, Compreender a Igreja
hoje. Vocação para a comunhão, p. 43-58.
214
SANTO TOMÁS, Summa Theologiae, II-II q. 39, a. I e q. 14, a. 2 ad 4.
104
Também esse conceito passou por um processo evolutivo. Durante o primeiro milê-
nio, heresia era tudo o que contrariava a unidade e a salvação oferecida pela Igreja, portanto,
não restrita ao campo doutrinal. Assim, era considerada mais do ponto de vista eclesiológico
ou dogmático. Com os inquisidores, passa a ser considerada algo contrário à fé. Por isso, de-
pois de G. Occam, sobretudo após a Reforma, a questão é abordada mais de um ponto de vista
noético, quase epistemológico. Para Bañes, por exemplo, é herética somente a negação daqui-
lo que é formalmente de fé. Santo Tomás define heresia como “uma doutrina que se opõe
imediata, direta e contraditoriamente à verdade revelada por Deus e proposta autenticamente
como tal pela Igreja”.216
A definição caracteriza a heresia objetivamente em si, enquanto uma doutrina falsa.
Considerando-a do ponto de vista subjetivo, isto é, da pessoa que se obstina em professá-la,
surge a questão do pecado. Para tal acontecer, é preciso considerar o ato, não só em seu objeto,
mas também em sua motivação: fixação à própria opinião por orgulho. Não basta errar em
matéria de fé para cometer pecado de heresia: é preciso acrescentar o erro da obstinação ou
pertinácia (pertinacitas).217 Dependerá, no caso de pecado ou não, daquele que professa um
erro em matéria doutrinal, na medida em que se recusa a deixar-se instruir e corrigir pela Igre-
ja e se obstina em manter contra ela a sua própria opinião. Também, pelo fato de uma proposi-
ção ser em si falsa ou contrária à fé, não necessariamente será herética em si mesma.218
O Código de Direito Canônico, no cânon 751, define a heresia como “a negação
pertinaz, após a recepção do Batismo, de qualquer verdade que se deva crer com fé divina e
católica, ou a dúvida pertinaz a respeito dela”.
A heresia difere de apostasia, que é “o repúdio total da fé cristã”, segundo o mesmo
cânon 751 do Código de Direito Canônico. Comete-a quem abandona a fé católica. No entan-
to, quem nasceu numa das Igrejas separadas, não pode ser arguido do pecado da separação (cf.
Unitatis Redintegratio 3).
Diante disso, conservar a unidade se apresenta como uma tarefa, pois germe de divi-
são sempre existiu e existe na Igreja. Os apóstolos já a detectaram e previram que o perigo da
215
Cf. FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 509.
216
SANTO TOMÁS, Summa Theologiae II-II, q. II, a. 1.
217
A nota explicativa esclarece que na heresia é fundamental o elemento de pertinácia, que é “a consciência clara
e continuada da culpabilidade na negação ou dúvida de uma verdade de fé”. Cf. CÓDIGO DE DIREITO
CANÔNICO, Tradução oficial da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e Notas e Comentários por J.
Hortal, São Paulo: Loyola, 1983, p. 347.
105
divisão seria ainda maior depois deles. Apesar de sempre ter havido tensões, divisões e diver-
gências na história da vida da Igreja, nunca houve outra concepção interna além daquela que
corresponde a sua unidade de fé, de vida sacramental e de comunhão social sob os mesmos
pastores.
A partir do princípio divino, a unidade não é monolítica, mas é unidade de comunhão
que engloba e assume a livre iniciativa das pessoas. Mas é iniciativa ou projeto de pessoas
finitas, e, com isso, com concepção limitada e fragmentária, e, consequentemente, progressiva.
Por isso, o projeto pessoal sempre é menor do que a Igreja e deve estar sujeito a ela, passando
pela obediência e acatamento humilde das determinações da vontade dela, mesmo que pareça
difícil, e até intransigente, no momento. Os grandes reformadores sempre agiram assim, pro-
vando, desse modo, a presença e a ação do Espírito na Igreja.
Diante disso, a unidade da Igreja se revela dinâmica na sua vida, enquanto dom de
Deus a ser trabalhado cotidianamente: é dom de Deus e tarefa humana, pois cabe aos cristãos
trabalhar para manter a Igreja em comunhão, superando as tensões e possibilidades de divisão.
É preciso aproveitar as tensões para fazer a Igreja crescer. Isso exige conversão cons-
tante, humildade e atitude global de se pôr à escuta da verdade plena, que é Jesus Cristo e que
está no seu Evangelho, a Boa-Nova da paz. E essa atitude deve ser permanente, pois a “Igreja
peregrina é chamada por Cristo a essa reforma perene” (Unitatis Redintegratio 6); por isso
“busca sem cessar a penitência e a renovação” (Lumen Gentium 8).
A unicidade é questão não abordada aqui, pois merece uma análise específica, pró-
pria da dimensão ecumênica e do diálogo inter-religioso, devido à importância do tema na
atualidade. No entanto, convém citar os seguintes meios para reencontrar a unidade de todos
os cristãos conforme o Catecismo da Igreja Católica: renovação permanente da Igreja em uma
fidelidade maior à sua vocação; conversão do coração; oração em comum; conhecimento fra-
terno recíproco; formação ecumênica dos fiéis; diálogo entre teólogos e encontro entre cris-
tãos; e, por último, a colaboração entre os cristãos nos diversos campos de serviço das pessoas
(Catecismo da Igreja Católica 821). Isso até que todos sejam um, a exemplo da Trindade (Jo
17,21).
218
Cf. ibid., p. 518-523.
106
O Espírito Santo, princípio de unidade, supõe uma primeira unidade, suscitada por
ele, que é a unidade do sentimento de estar juntos e do caminho percorrido. Santo Agosti-
nho denomina esse estado de fraterna caritas, ou caritas unitatis ou pacifica mens, que é o
amor da paz, a concórdia mútua, a unidade. O oposto é o espírito sectário, particularista e
cismático. É preciso estar no Corpo de Cristo para poder ter o espírito de Cristo e para po-
der viver verdadeiramente dele.219
A Igreja, como sacramento de salvação (cf. Lumen Gentium 1), é mistério de comu-
nhão. Por isso, Cipriano usa sua conhecida expressão, já aludida anteriormente e citada em
Lumen Gentium 4, na qual afirma a Igreja como “um povo reunido pela unidade do Pai e do
Filho e do Espírito Santo”. E Tertuliano, por volta do ano 200, escrevia: “Onde estão os
Três, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, aí se encontra a Igreja, a qual é o Corpo dos Três”.220
O Espírito Santo é o princípio de comunhão: “E a esperança não decepciona, porque
o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado”
(Rm 5,5). E o Catecismo da Igreja Católica acrescenta:
219
AGOSTINHO, In Joan tr. XXVII, 6,6 (PL 35, 1618); Epist 185, 9, 42 e 11,50 (PL 33, 811 e 815). In Joan
tr. XXVI 6,13 (PL 345,1612-1613). ORÍGENES, Commentaria in Evangelium secundum Mathaeum XIV, 1
(PG 13,1188).
220
TERTULIANO, De baptismo 6. J. Quasten situa essa obra no primeiro período da vida de Tertuliano,
sendo composta, talvez, entre 198 e 200 (QUASTEN, J. Patrologia. I primi due secoli (II-III), v. 1. Casale
Monferrato: Marietti, 1980, p. 522).
107
a) o princípio pessoal: diz a riqueza da variedade de pessoas, que desejam ser sujei-
tos das ações na Igreja. Conduz à unidade, e não à uniformidade, ou à multiplicidade na
unidade;
b) o princípio da unidade: o Espírito Santo leva à unidade, respeitando a diversida-
de.223 A unidade promovida pelo Espírito Santo não violenta ninguém, mas penetra delica-
damente o coração de cada pessoa (Gl 4,4-6), pois a comunhão do Espírito Santo com o
espírito humano é imediata e direta (1Cor 2,10s), fazendo com que o corpo de cada fiel
batizado se converta em seu tabernáculo (1Cor 6,19; cf. 3,16).
O Espírito Santo consegue fazer com que todos sejam um e a unidade seja diversi-
dade. A Igreja está em cada um e em todos os cristãos, que a formam por meio da comu-
nhão operada pelo Espírito Santo, que não produz uma confusão de pessoas ou a elimina-
ção da individualidade de cada pessoa, mas respeita cada uma, fazendo com que permaneça
como é. Daí surgem os carismas, que agem na vida concreta e cotidiana dos fiéis e são dis-
tribuídos para o benefício e a edificação de todo o Corpo de Cristo, que é a Igreja (cf. 1Cor
14,12).
221
Cf. CONGAR, El Espíritu Santo, p. 219.
222
Sobre os dois princípios: ibid., p. 219s.
223
IRENEU DE LIÃO, op. cit., p. 61-64 (Adversus Haereses I,10,1-3).
108
Como consequência, deve-se apontar a abertura para o diálogo com o mundo e para
o pluralismo. E isso acontece em cada uma das Igrejas Particulares, em relação com a única
Igreja universal. Daí a importância do caráter colegial da Igreja, conforme ensina o Vatica-
no II, na Lumen Gentium 22 e Nota Prévia. A colegialidade brotou dos Doze, que Jesus
Cristo constituiu “sob a forma de colégio, isto é, de grupo estável, cuja presidência entre-
gou a Pedro, escolhido dentre eles” (Lumen Gentium 19). E é nesse sentido que a Comissão
Teológico-Histórica do Jubileu do ano 2000 escreve:
a) História
b) Origem
As origens dessa expressão são bíblicas, como também seu sentido e conteúdo fun-
damental. Do uso da palavra “santo” na Bíblia resulta o seguinte:
– o conceito e o uso no Novo Testamento estão apoiados no Antigo Testamento e
devem ser compreendidos através deste;
224
COMISSÃO TEOLÓGICO-HISTÓRICA DO GRANDE JUBILEU DO ANO 2000, p. 60.
225
INÁCIO DE ANTIOQUIA, Carta aos Tralianos. In: Cartas de Santo Inácio de Antioquia, op. cit., p. 57.
109
c) Sentido
Seu sentido vem da imagem da casa de Deus, compreendida como elevação, voca-
ção, aliança, consagração, habitação, pois a Igreja é o lugar onde se rende culto a Deus. Vista
como consagração ao culto a Deus, a santidade exige fundamentalmente o exercício de uma
vida santa (Lv 11,44-45). Toda a vida do cristão é vista como um culto cuja lei é a pureza
(1Cor 5,5).
A Igreja é também a Igreja dos santos, isto é, dos homens que se esforçam por viver
fiel e generosamente a sua consagração batismal e a sua qualidade de membros do Corpo de
Cristo. Contudo, ela é a Igreja dos pecadores e reconhece definitivamente tal realidade, apesar
de ter havido muitas tentativas de conservá-la somente como Igreja dos santos.227
226
Cf. essas ideias em FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 553-556.
227
Por exemplo: na Antiguidade, os novacianos, donatistas e montanistas; na Idade Média, os cátaros; na Idade
Moderna, certas seitas de iluminados: ver, a propósito desse tema, KÜNG, op. cit., p. 96s.
110
Para superar a tensão entre essas duas realidades, é preciso torná-la cada vez mais de
Deus, pois ela necessita de conversão e reforma constantes. Isso porque há a livre resposta que
os “santos por vocação” dão ao chamado de Deus e à oferta da sua graça, o que faz surgir uma
certa dialética entre aquilo que é dado por Deus e aquilo que é recebido e realizado pelas pes-
soas. Em outras palavras, é a aplicação do já e do ainda-não, que constitui o estatuto da exis-
tência da Igreja no seu estado itinerante. Isso é o que introduz a tensão da Igreja, em virtude da
qual ela deve buscar sem trégua ser adequada ao dom de Deus e impede de distinguir ou sepa-
rar o que pertence ao santo ou ao pecador, pois são inseparáveis, devido à dimensão teândri-
ca.228
A Igreja é santa naquilo que recebeu e recebe de Deus para se constituir em princípio
universal de salvação (cf. Lumen Gentium 1), que forma seus princípios formais. Tais são o
depósito da fé, os sacramentos, a fé, o Evangelho e os ministérios correspondentes. Essas rea-
lidades são santas em si mesmas, pois são provenientes de Deus em vista da santidade. É a
santidade objetiva, que não está baseada nas pessoas, mas nos instrumentos pelos quais Deus
santifica a comunidade eclesial.229
A causa transcendente da santidade é o Espírito Santo. Ele é a alma da Igreja, por
isso nela habita e a torna seu templo santo. Por ele, o Cristo opera nela a santidade e os meios
de santificação. Por isso, escreve H. Küng: “A Igreja, é, portanto, santa, na medida em que foi
chamada por Deus em Cristo, como comunidade dos crentes, e se pôs ao seu serviço, separada
do mundo e ao mesmo tempo amparada e transportada pela sua graça”.230
A santidade é serviço e meio de santificação num corpo em que todos são solidários
e são chamados a crescer juntos até constituir aquele homem perfeito e maduro que realiza o
pleroma de Cristo (Ef 4,13). Assim, atinge, também, toda a criação, não as pessoas enquanto
indivíduos.
A Igreja real é santa e pecadora, enquanto a Igreja só de santos é a idealizada. O Car-
deal Charles Journet reconhece essa realidade, ao afirmar que a Igreja é santa, mas ela não
existe sem os pecadores.231 A Igreja, como tal, é sem pecado; os pecados pertencem aos mem-
228
Cf. FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 558s.
229
Ibid., p. 361; KÜNG, op. cit., p. 97.
230
Cf. ibid., p. 101.
231
É como ele intitula sua obra seguinte: JOURNET, C. L’Église sainte mais non sans pécheurs. Com-
pléments inédits de l’Église du Verbe Incarné. La cause finale et la sainteté de l’Église. Saint Maur: Parole et
111
bros da Igreja e enquanto conservam em si algo que não é Igreja. Estamos, assim, como que
divididos em dois, verticalmente, segundo aquilo que em nós é Igreja e aquilo que ainda é
mundo. A existência cristã na comunidade eclesial é que constitui os cristãos na communio
sanctorum, isto é, numa santidade absolutamente pessoal.232
Em virtude de seus membros, a Igreja é levada a realizações históricas e concretas
imperfeitas daquilo mesmo que ela é fundamentalmente e aspira a ser. Por isso, a Igreja “reu-
nindo em seu próprio seio os pecadores, ao mesmo tempo santa e sempre necessitando de pu-
rificar-se, busca sem cessar a penitência e a renovação” (Lumen Gentium 8). Assim, a vida da
Igreja está marcada pelos movimentos de reforma, que entram na penitência da Igreja, pois as
vicissitudes e misérias que os provocam estão conexas aos pecados de seus membros. Por isso,
a sua renovação consiste numa fidelidade maior à própria vocação (cf. Unitatis Redintegratio
6). Portanto, a Igreja é feita por homens que se convertem diariamente ao Evangelho (cf. Lu-
men Gentium 9). A renovação é obra difícil, exige paciência e caridade perseverantes. A Igreja
real, nesse sentido, vive a santidade em situação de pecado e em estado permanente de perdão
e de renovação.
Silence, 1999. A mesma ideia encontra-se em JOURNET, C. O caráter teândrico da Igreja, fonte de tensão
permanente. In: BARÚNA, op. cit., p. 393.
232
MONDIN, op. cit., p. 280.
233
BASÍLIO, O Espírito Santo XVI, 38 apud COMISSÃO TEOLÓGICO-HISTÓRICA DO GRANDE JU-
BILEU DO ANO 2000, p. 61.
112
natural da vida de quem é de Deus, pois todos os batizados são por vocação “chamados à
santidade” (Rm 1,7).234
Cirilo de Alexandria afirma: “Como o Espírito santificou a humanidade de Cristo,
assim continua santificando o seu Corpo místico, isto é, a Igreja”.235 E o mesmo autor con-
tinua, ao escrever que ao Espírito Santo, sendo “santo por natureza, cabe santificar”.236 Essa
realidade é expressa, significativamente, pelas imagens bíblicas de esposa de Cristo e tem-
plo. A Igreja é templo santo de Deus: “Não sabeis que sois um templo de Deus e que o Es-
pírito de Deus habita em vós?” (1Cor 3,16). Os fiéis são “edifício espiritual e sacerdócio
santo” (cf. 1Pd 2,5). E Paulo mostra que o Espírito Santo habita na pessoa batizada como
em um templo, transformando-a por dentro e consagrando-a. Se alguém destrói o templo de
Deus, Deus o destruirá. Pois o templo de Deus é santo e esse templo sois vós” (1Cor 3,16-
17; cf. Jo 14,15-17; 1Jo 4,12-13). A imagem da Igreja como esposa revela que ela ainda
não alcançou a plenitude da pureza inaugurada pelo Batismo: “Não sabeis que vossos cor-
pos são membros de Cristo? [...] aquele que se une ao Senhor constitui com ele um só espí-
rito” (1Cor 6, 15-17; cf. Ap 19,6-8; 21,2; 22,17).
E essa santidade se realiza nos fiéis, por meio da participação nos sacramentos, na
leitura e meditação da Palavra de Deus, na recepção dos carismas, enfim, através de todos
os meios de salvação e santificação que Cristo colocou à disposição na sua Igreja quando a
constituiu. Contudo, a Igreja santa é formada por pecadores, uma vez que seus membros
realizam de forma imperfeita a essência da Igreja, apesar do esforço permanente de conver-
são. É como escreve H. Küng: “O pecado não nasce da santidade da Igreja; introduz-se
nela”.237 Nesse sentido, o Concílio Ecumênico Vaticano II afirma, com muita lucidez, a
necessidade de conversão permanente por parte da Igreja:
Mas enquanto Cristo, ‘santo, inocente, imaculado’ (Hb 7,26), não conheceu o pe-
cado (2Cor 5,21), porém veio para expiar apenas os pecados do povo (cf. Hb
2,17), a Igreja, reunindo em seu próprio seio os pecadores, ao mesmo tempo santa
e sempre na necessidade de purificar-se, busca sem cessar a penitência e a reno-
vação (Lumen Gentium 8).
234
Para a compreensão bíblica de santidade, ver FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 554-558.
235
CIRILO DE ALEXANDRIA, Comentário ao Evangelho de João XI, 11 apud COMISSÃO TEOLÓGICO-
HISTÓRICA DO GRANDE JUBILEU DO ANO 2000, p. 61.
236
Id., A Trindade VI apud COMISSÃO TEOLÓGICO-HISTÓRICA DO GRANDE JUBILEU DO ANO
2000, p. 61.
237
KÜNG, v. 1, op. cit., p. 105.
113
238
Cf. CONGAR, op. cit., p. 267.
239
AGOSTINHO, De Trinitate 4,9.
114
O Vaticano II avança mais, ao afirmar: “Em vista disso, a união dos que estão na
terra com os irmãos que descansam na paz de Cristo de maneira nenhuma se interrompe, ao
contrário, conforme a fé perene da Igreja, vê-se fortalecida pela comunicação dos bens es-
pirituais” (Lumen Gentium 49). Portanto, essa comunhão espiritual se estende ao ponto de
existir entre os vivos e falecidos, pois ela transcende o tempo e o espaço. Deriva de sua
condição de dom escatológico, prometido como extrema comunicação de Deus mesmo,
visto que é graça.
A palavra “católico” não se encontra nem nos LXX nem no Novo Testamento. Em At
4,18 tem sentido de “inteiramente”, “absolutamente”. No seu sentido etimológico, em geral, é
aplicada a “proposições universais”, conforme Aristóteles e Zenão, em oposição a particulares.
Portanto, são “católicos” os princípios universais.240
Aplicada à Igreja, pela primeira vez, aparece em Inácio de Antioquia, por volta de
110: “Onde quer que se apresente o bispo, ali também esteja a comunidade, assim como a
presença de Cristo Jesus também nos assegura a presença da Igreja Católica”.241 Há divergên-
cias de interpretação do sentido dessa frase: a) uns consideram-na como paralelismo entre a
Igreja Local, presidida pelo bispo, e a Igreja Católica, cujo chefe é Cristo, entendendo-a no
sentido de universal, de totalidade da Igreja (H. De Lubac, P. Th. Camelot, W. Beinert); b)
outros a interpretam no sentido de que o autor quer afirmar que sem o bispo não há verdadeira
Igreja, não há legitimidade, num sentido de continuidade entre a Igreja terrestre e a celeste;
aqui, “católica” adquire um sentido de verdade e autenticidade, isto é, de Igreja verdadeira.
Contudo, os autores, hoje, pensam que a frase de Inácio de Antioquia deva ser entendida no
sentido de Igreja total, perfeita; enquanto permanece na verdade e na união com Cristo, é, de
240
KÜNG, op. cit., p. 60.
241
Cf. INÁCIO DE ANTIOQUIA, Carta aos Esmirnenses 8,2. In: Cartas de Santo Inácio de Antioquia.
Comunidades Eclesiais em Formação. Introdução, tradução do original grego e notas por Dom Paulo Evaristo
Arns. Petrópolis: Vozes, 1970, p. 81
115
fato, única verdadeira.242 A partir do século II, encontra-se frequentemente no sentido de Igre-
ja verdadeira. A dualidade de interpretações persistiu, o que demonstra que uma não pode ser
excluída da outra.
Depois de Inácio, a palavra “católica” encontra-se quatro vezes em Martyrium
Polycarpi (após 156): na fórmula de despedida (XIX,2) pode significar “universal”, mas em
XVI,2 significa “verdadeira”, em oposição a outros grupos que se dizem Igreja mas não o são.
Em Clemente de Alexandria tem o sentido de “verdadeira” Igreja, oposta às igrejas heréticas.
O mesmo em Tertuliano. A partir do século III, o sentido se estabelece: “católica” designa a
Igreja verdadeira no mundo, ou uma comunidade local que se encontra em comunhão com
ela.243
A expressão não foi assumida imediatamente nos Símbolos: no Oriente, não se en-
contra ainda em Niceia, mas no Símbolo batismal das constituições egípcias (Baptismum
unum in sancta Ecclesia catholica et apostolica). No decorrer do século IV, aparece clara-
mente no Símbolo comentado por Cirilo de Jerusalém, por volta de 343 (DS 41), e no Símbolo
de Epifânio, de 374, (DS 42 e 44), texto próximo ao Niceno-Constantinopolitano (DS 150). No
Ocidente, aparece no século V com Niceta, Bispo de Ramesiana, em 374 (DS 19).244
242
Cf. FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 578. H. Küng é de opinião de que o sentido seja de Igreja inteira,
universal (KÜNG, op. cit., p. 61).
243
H. Küng afirma que isso aconteceu por causa de várias correntes e grupos heréticos, condicionado pelo caráter
polêmico inevitável das controvérsias: cf. KÜNG, op. cit., p. 62.
244
Cf. FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 577-580; AUER, op. cit., p. 416s.
116
b) Sentido teológico249
245
Por exemplo: DIDAQUÉ IX,4 e X,5 (Didaqué. Catecismo dos primeiros cristãos. Introdução, tradução do
original grego e comentário de U. Zilles. Petrópolis: Vozes, 1970, p. 20 e 21).
246
Cf. FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 580s.
247
Ibid., p. 584s.
248
Ibid., op. cit., p. 586s; KÜNG, op. cit., p. 63-65; MONDIN, op. cit., p. 285s.
249
Ideias extraídas de FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 587-593.
117
1- Deus Pai, em seu projeto salvífico universal, quer que todos permaneçam em sua
vida e sejam redimidos (2Pd 3,9);
2- Jesus Cristo como princípio universal de salvação, ao resgatar do pecado a nature-
za humana pela graça (Rm 8,19-23). A Igreja se constitui na comunhão das pessoas que estão
unidas ao Corpo de Cristo, oferecido e glorificado pela morte e ressurreição, mediante o Ba-
tismo e, sobretudo, a Eucaristia. Em e por Jesus Cristo, Deus se empenha definitivamente em
procurar a totalidade das criaturas e do mundo, apesar do pecado, e apresentar a graça da sal-
vação (Cl 1,19-20; Ef 1,9 e 10);
3- O Espírito Santo, enviado à Igreja como sua alma, faz a obra de Cristo no interior
de cada pessoa, de tal modo que os dons e as iniciativas de cada um concorram à unidade e à
construção de todo o corpo, por meio da comunicação da riqueza de Cristo. Assim, por ele, a
catolicidade inclui as particularidades sem destruí-las, pois assume os frutos da pluralidade dos
sujeitos pessoais, pela via da comunhão.
A plenitude de Cristo se comunica a toda natureza humana. Os indivíduos, com seus
sentimentos e valores, os grupos étnicos, linguísticos e culturais são criadores e sujeitos de
valores, constituindo uma totalidade pela comunhão (koinonía).250 A humanidade é cósmica,
isto é, ligada ao universo total, e histórica, enquanto perpétuo dinamismo de busca e realiza-
ção. Assim, Cristo plenifica o cosmo e a história, por meio da Igreja Católica (cf. Ef 4,8; 3,8-
12). Por isso, o novo Povo de Deus é necessariamente um povo católico.251
H. Küng afirma que a catolicidade consiste na “identidade totalizante”, cuja conse-
quência é a universalidade:
A Igreja não é católica, senão em virtude duma identidade totalizante: não obstante
todas as mudanças de tempos e de formas - mudanças perpétuas e necessárias -, não
obstante a sua imperfeição e fragilidade, a Igreja é, deve ser e quer ser, sempre, em
toda a parte e em todos os tempos, essencialmente idêntica a si mesma; deste modo,
a única e mesma essência da Igreja é conservada, confirmada e manifestada com
credibilidade “por todos, sempre e em toda a parte”.252
250
Lembrar o que se refletiu sobre a Igreja como comunhão, no ponto 2.4.
251
MONDIN, op. cit., p. 286; FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 587-595.
118
E ele continua, dizendo o que não é catolicidade: a extensão espacial, que seria mero
conceito geográfico; a quantidade numérica não é suficiente para tornar a Igreja católica, pois
seria um conceito estático; a variedade sociocultural seria um conceito sociológico; a conti-
nuidade temporal, mero conceito histórico. Por isso, a catolicidade consiste numa totalidade,
cujo fundamento é a identidade e cuja consequência é a universalidade.
c) Realização da catolicidade
252
Cf. KÜNG, op. cit., p. 67, grifos do autor. O que segue encontra-se nas p. 68 a 71.
253
Cf. FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 595-597.
254
“A Igreja total é constituída por todas as Igrejas Locais, não enquanto adicionadas e associadas exteriormente,
mas enquanto unidas interiormente no mesmo Deus, no mesmo Senhor e no mesmo Espírito, pelo mesmo
Evangelho e mesmo Batismo, mesma Eucaristia e mesma fé. O conjunto da Igreja é a Igreja manifestada,
representada e realizada nas Igrejas Locais. Na medida em que a Igreja, como Igreja universal, é a Igreja total,
pode, no sentido original do termo, chamar-se católica, isto é, Igreja total, universal, totalizante. A catolicidade
consiste essencialmente na integridade. Mas na medida em que a Igreja Local torna presente esta Igreja total, tem
também o direito de ser chamada católica” (KÜNG, op. cit., p. 65, grifos do autor). O mesmo espírito encontra-se
na Christus Dominus 11 e no Código de Direito Canônico cânon 369.
119
Como consequência da unidade, a Igreja é católica, pois a salvação trazida pelo Se-
nhor Jesus se destina e deve atingir todos os povos, pois ele é Luz e Senhor para todos e
para todo o tempo (cf. Jo 8,12; 12,32). E nesse sentido de catolicidade encontra-se o Espíri-
to Santo, que a estende a todos os fiéis e a cada uma das Igrejas Particulares (cf. Lumen
Gentium 23). Assim, o Espírito Santo assegura tanto a catolicidade interna, quanto a exter-
na da Igreja:
255
KÜNG, op. cit., p. 67s; MONDIN, op. cit., p. 286.
120
Ela é católica porque nela Cristo está presente. “Onde está Cristo Jesus, está a
Igreja Católica”. Nela subsiste a plenitude do Corpo de Cristo unido a sua cabeça,
o que implica que ela recebe dele “a plenitude dos meios de salvação” que ele
quis: confissão de fé correta e completa, vida sacramental integral e ministério
ordenado na sucessão apostólica. Neste sentido fundamental, a Igreja era católica
no dia de Pentecostes, e o será sempre, até à Parusia (Catecismo da Igreja Católi-
ca 830).
E a Igreja reúne em um só corpo homens e mulheres das mais diversas raças e lín-
guas. Diz Máximo, o Confessor:
O envio missionário dos apóstolos, feito por Jesus após a Páscoa (cf. Mt 28,18-20;
Mc 6,15-18; Gl 1,16), é corroborado pela ação do Espírito Santo, cuja vinda é princípio de
missão e testemunho apostólicos (Lc 24,46-49; At 1,6-11; Jo 20,21). Tudo isso comporta o
encontro de povos, línguas, culturas e, até, religiões diversas, tendo iniciado com o mundo
greco-romano e se expandido por todos os povos do mundo, até os dias de hoje.257 E atual-
mente o tema da evangelização da cultura está tão em voga, devido à valorização das parti-
cularidades, que estas não podem ser esquecidas em detrimento da maioria. Nesse sentido,
afirma Y. Congar que Pentecostes lançou a Igreja e a colocou no mundo com uma vocação
de universalidade.258 Portanto, a Igreja não pode ficar fechada sobre si mesma, aprisionan-
do o Espírito.
E o Espírito Santo distribui seus carismas, que também contribuem para realizar a
catolicidade, pois, como são dons dados a cada pessoa em particular, são dados para o pro-
256
MÁXIMO, O CONFESSOR, Mystagogia I apud COMISSÃO TEOLÓGICO-HISTÓRICA DO GRANDE
JUBILEU DO ANO 2000, p. 64.
257
J. Auer faz uma apresentação interessante do encontro do Evangelho com as diversas culturas, ao esboçar
o desenvolvimento da concepção da catolicidade: AUER, op. cit., p. 67-81.
121
veito e utilidade comum (cf. 1Cor 12,7). E o apóstolo Paulo usa, logo a seguir, a simbolo-
gia do Corpo de Cristo, para expressar a necessidade de cada um contribuir para o bem de
todos (1Cor 12,12-30). Assim, não existe problema de relação entre a Igreja Local e a Igre-
ja universal, pois o Espírito Santo faz com que as Igrejas Locais sejam, verdadeiramente,
Igreja universal.
O Espírito Santo torna católica a Igreja no decorrer do tempo, pois a catolicidade
vai-se fazendo no decurso da história, enquanto a Igreja vai realizando a tarefa de evangeli-
zar, visto que o Espírito Santo é o “agente principal da nova evangelização” (cf. Tertio Mil-
lennio Adveniente 45) e “nunca será possível haver evangelização sem a ação do Espírito
Santo” (Evangelii Nuntiandi 75). Somente no fim, quando Cristo “for tudo em todos” (cf.
1Cor 15,28), é que a Igreja será, realmente, católica. Para tal, concorrem todos os movi-
mentos, pastorais e iniciativas diversas, que visam propagar o Evangelho a todos os lugares
e povos. Por isso, mais do que nunca, hoje, é preciso superar o medo e o respeito humanos,
pois o cristão, guiado e motivado pelo Espírito Santo, torna-se o baluarte da esperança e da
coragem por excelência. É o que o próprio Mestre recomenda aos seus apóstolos, depois da
Páscoa: “Não tenhais medo” (cf. Lc 24,36).
É pela força do Espírito Santo que os cristãos serão, hoje, a alma do mundo, como
sal e luz (cf. Mt 5,13-16). E o Papa João Paulo II afirma:
a) História
O conceito “apóstolo” vem sendo estudado muito nos últimos anos, com diversidade
de opiniões. A constatação mais aceita é que não se pode simplesmente identificar “apóstolos”
258
CONGAR, op. cit., p. 230.
122
com os “Doze”.259 Por isso, a Igreja não é una, santa e católica de qualquer modo, mas relaci-
onada com os “Doze” e, nesse sentido, apostólica. O adjetivo “apostólico” surge com o uso
cristão, sempre relacionado com os “Doze”.
A ideia encontra-se no Novo Testamento, bem antes de Ireneu e Tertuliano, com a
noção fundamental de continuidade da missão, surgida do Pai e chegando à Igreja, através de
Cristo e dos apóstolos (cf. Jo 17,7ss; Mt 28,18-20; Rm 10,13-17; 2Tm 2,2 e Tt 1,5). Mais tarde,
encontra-se em Clemente Romano e, implicitamente, em Inácio de Antioquia, antes de apare-
cer em Tertuliano.260 Eles testemunham que as Igrejas apostólicas tinham consciência de que a
garantia da continuidade com os apóstolos acontecia por meio dos bispos, que os sucederam,
desde a sua fundação, na chefia destas. Isso é comprovado pela redação das listas episco-
pais.261
Assim, o princípio da apostolicidade existia, desde a origem, na concepção de uma
Igreja como comunidade iniciada com os apóstolos e destinada a uma extensão e uma duração
indefinidas, de modo que não era outra senão a dilatação ou prolongamento, se assim pode ser
dito, do primeiro núcleo apostólico.262 Essa concepção está clara nos Atos dos Apóstolos, que
mostram novos crentes se associando à primeira comunidade (cf. At 2,41.47; 5,14; 11,24;
17,4).
A palavra foi, primeiramente, usada no sentido moral: à maneira dos apóstolos.263
Ireneu, contra os gnósticos, expressou sistematicamente a ideia já esboçada por Clemente
Romano, segundo a qual a verdadeira doutrina deveria ser procurada na tradição recebida dos
apóstolos, através dos bispos e presbíteros instituídos por eles, que a transmitiram aos seus
259
Cf. FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 639-642; VIDAL, M. Sucession apostolique et apostolicité de l’Église.
In: AAVV. Le ministère et les ministères selon le Nouveau Testament. Paris: Seuil, 1974, p. 464-469. Também H.
Küng apresenta longa argumentação em torno dessa questão em KÜNG, op. cit., p. 131-144.
260
CLEMENTE ROMANO, Carta aos Coríntios XLII,1-2 (In: Carta de São Clemente Romano aos Coríntios.
Introdução, tradução do original grego e notas por Dom Paulo Evaristo Arns. Petrópolis: Vozes, 1973); INÁCIO
DE ANTIOQUIA, Carta aos Magnésios 6 e Carta aos Efésios 3 e 4 (In: Cartas de Santo Inácio de Antioquia.
Petrópolis: Vozes, 1970); TERTULIANO, De praescriptione haereticorum 22,4.
261
Cf. FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 643.
262
Cipriano expressa bem essa concepção: “Uma só ordem episcopal e cada um de nós participa dela
completamente. Mas a Igreja também é uma, embora, em seu fecundo crescimento, se vá dilatando numa
multidão sempre maior” (CIPRIANO, A unidade da Igreja Católica 5,2. Introdução, tradução e notas por Carlos
Beraldo. Petrópolis: Vozes, 1973, p. 34).
263
INÁCIO DE ANTIOQUIA, Carta aos Tralianos, Introdução.
123
sucessores até a época presente. A ideia foi retomada por Tertuliano, Cipriano e, finalmente,
pelos Padres dos séculos IV e V.264
Somente então a palavra “apostólico” aparece nos Símbolos como uma das quatro
propriedades da Igreja. Está em Epifânio e no Símbolo que Calcedônia (451) atribui ao Concí-
lio de Constantinopla (381). O fato de o Símbolo dos apóstolos não fazer menção da apostoli-
cidade permite, provavelmente, explicar por que, primeiro na Idade Média e depois nos refor-
madores do século XVI, assim como nos apologetas e nos catecismos dessa mesma época,
fala-se relativamente pouco dessa propriedade.
A Idade Média tem ideia daquilo que é chamado apostolicidade: Tomás expressa-a
com o nome firmitas, que é a permanência e a solidez da Igreja constituída, mediante a fé, pelo
fato de que ela ensina a mesma doutrina dos apóstolos. Também há insistência sobre a aposto-
licidade de ministério, apresentada como a continuação na Igreja do ministério.
No século XII, firma-se um argumento em favor da Igreja católica, apoiado sobre a
nota da apostolicidade contra as seitas antieclesiásticas: é a argumentação apologética da vera
Ecclesia. Os apologetas católicos, inicialmente com timidez e depois de modo decisivo e sis-
temático, encontraram na apostolicidade um argumento fortíssimo contra as Igrejas oriundas
da Reforma. Distinguiam-se três aspectos: apostolicidade de origem, de doutrina e de sucessão
hierárquica. Deixa-se, com o tempo, a primeira; a de doutrina continua, mas de forma negati-
va; na última insiste-se na sucessão romana.265
b) Conceito
264
Cf. MONDIN, op. cit., p. 290.
265
Para a história do conceito, além das ideias aqui desenvolvidas, procurar, com mais detalhes: FEINER e
LÖHRER, op. cit., p. 642-648; KÜNG, op. cit., p. 130-144.
266
Cf. FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 639. H. Küng considera importante unir o testemunho apostólico e a
adesão ao serviço apostólico para compreender bem a apostolicidade enquanto sucessão (Nachfolge) dos
apóstolos (cf. KÜNG, op. cit., p. 147).
124
Católica explica que a Igreja é apostólica, porque está fundada sobre os apóstolos, em três
sentidos: a) ela foi e continua sendo construída sobre o fundamento dos apóstolos (Ef 2,20 e At
21,14); b) ela conserva e transmite, com a ajuda do Espírito, o depósito e as palavras ouvidas
dos apóstolos; c) ela continua a ser ensinada, santificada e dirigida pelos apóstolos até a volta
de Cristo (cf. Catecismo da Igreja Católica 857).
c) Sentido teológico
Trata-se de conservar através do espaço (que uma mesma presença corpórea não
pode preencher) e do tempo (que a caducidade humana não domina) a identidade da missão
apostólica, isto é, da missão acompanhada pelos poderes e carismas necessários para exercê-la
que foram dados, por isso, aos apóstolos (Mt 28,18-20; At 1,8). Aqueles que foram enviados
podem e devem enviar outros após eles, porque a missão deve permanecer, embora os apósto-
los morram. Se a missão estivesse limitada à pessoa dos apóstolos, não se poderia nem mesmo
batizar. Aqui está presente, portanto, o princípio da sucessão apostólica.267
Aquilo que foi confiado aos apóstolos deve ser exercido, mediante um ministério
recebido ou derivado deles. Constitui-se, assim, um só corpo, uma só realidade, uma só pessoa
moral de missão e de poderes sacros, uma hierarquia. A ideia de um único sujeito de direito,
que dura através das séries de anos, muitas vezes é expressa em termos de herança. De fato,
dizemos uma “sucessão” para designar uma herança, um legado. É o princípio de identidade e
de missão, cuja autoridade passa daquele que envia àquele que é enviado. Assim, a sucessão é
ao mesmo tempo histórica e real.
A economia salvífica quer que os fatos acontecidos uma vez, num ponto definido da
Terra e da história, sejam comunicados a todas as pessoas humanas, pelas quais eles são graça
e verdade em vista da salvação, que consiste na comunhão com Deus. A comunhão com Deus
acontece, mediante Jesus Cristo, e com Jesus Cristo, mediante os apóstolos (1Jo 1,1-3): aqui
acontece a comunicação da missão, por meio do anúncio da palavra, pois o Evangelho anunci-
ado é aquele recebido dos apóstolos. A missão dos sucessores é idêntica à dos apóstolos.
267
As ideias até aqui desenvolvidas encontram-se em FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 672-679; KÜNG, op. cit.,
p. 144-151; MONDIN, op. cit., p. 289-292.
125
268
Cf. MONDIN, op. cit., p. 346.
126
lação. E essa tarefa de atualização da palavra por meio do Espírito Santo é exercida no de-
curso da história.
A missão, dada uma vez, é total, pois todo cristão é enviado para evangelizar, a
exemplo de Jesus Cristo, que foi consagrado e enviado ao mundo em missão (cf. Jo
17,3.18). Assim, ele enviou os Doze (cf. Mt 28,18-20), e estes, por sua vez, enviam a todos,
com a finalidade exclusiva de evangelizar todos os povos e nações. Assim, ao mesmo tem-
po que enviados, o Filho e o Espírito Santo foram dados a todos os evangelizadores, não
havendo uma separação entre a obra do Filho e a obra do Espírito Santo269, a tal ponto que
os enviados pregam o querigma sob a “ação do Espírito Santo” (1Pd 1,12) e sua palavra é
poderosa “por ação do Espírito Santo” (1Ts 1,5; At 4,31.33; Hb 2,3-4). Mas eles mesmos
foram fortalecidos por ele na verdade (Jo 16,8-13; 1Jo 5,6). A Igreja nasce e se fortalece
graças à ação e ao apoio do Espírito Santo (At 6,7; 4,33; 9,31). O ministério apostólico é
um “ministério” do Espírito (2Cor 3,4-18): o Espírito Santo faz acontecer no coração de
cada batizado a palavra e os sacramentos celebrados externamente. Todavia, não se pode
esquecer que a “tradição-transmissão”, que assegura a Igreja na fidelidade e na unidade de
sua fé, está ligada aos bispos, como sucessores dos Doze.270
3.5 A romanidade
269
Joaquim De Fiore ensinava uma separação entre a “era de Jesus Cristo” e a “era do Paráclito”, ao distinguir
três eras na história, cada uma correspondendo a uma das três Pessoas da Trindade, instituindo, com isso,
forte acento escatológico ao antecipar a escatologia no horizonte da história, resultando no milenarismo (cf.
LAMBIASI, F. Lo Spirito Santo: mistero e presenza. Per una sintesi di pneumatologia. In: ROCHETTA, C.
(Org.). Corso di Teologia Sistematica. v. 5. Bologna: Dehoniane, 1987, p. 130-132).
270
SANTO IRENEU, Adversus Haereses IV, 26,2 (Sources Chrétiennes 100, p. 719). “Eis por que se devem
escutar os presbíteros que estão na Igreja, que são os sucessores dos apóstolos, como o demonstramos, e que
com a sucessão no episcopado receberam o carisma seguro da verdade segundo o beneplácito do Pai” (IRE-
NEU DE LIÃO. São Paulo: Paulus, 1995, p. 450). Ver comentário sobre a palavra carisma, deste texto de
Ireneu, em CONGAR, op. cit., p. 250, nota 22.
127
Após essa análise, conclui-se que a palavra “romana” é de uso tradicional na Igreja,
acentuado na época das controvérsias eclesiológicas e da Reforma. Nesse sentido, Y. Congar
divide o seu uso em três grupos: a) contra os Valdenses (DS 792); b) no contexto da união
com os gregos no Concílio de Florença; c) durante a Contrarreforma.
Era usada antes do Vaticano II, para dizer que a verdadeira Igreja, a Igreja Católica,
se encontra em Roma. Após, o seu uso foi abandonado por motivos ecumênicos, também pela
valorização das Igrejas Particulares e, enfim, por se entender que o sucessor de Pedro é Bispo
de uma Igreja Particular, que possui um carisma especial, e, por essa razão, Pastor da Igreja
universal. Contudo, não pode ser entendido que a Igreja Particular de Roma constitua a totali-
dade da Igreja, isto é, que ela abranja todas as Igrejas Particulares na Igreja universal.
Isso significa que pode ser entendido com um sentido positivo, ou seja, como uma
precisão da apostolicidade, pois indica o lugar onde Pedro deu testemunho de Cristo e onde
está seu túmulo, e, além disso, que Cristo estruturou a Igreja a partir da missão pastoral deri-
vada de Pedro, constituindo-se em uma referência à cátedra de Pedro.
129
CAPÍTULO QUARTO
271
Ver, a propósito, comentário sobre o desembocar dos movimentos renovadores, especialmente dos estudos
bíblicos e patrísticos, na Lumen Gentium, em O. ROUSSEAU, A Constituição no quadro dos movimentos
renovadores de teologia e de pastoral nas últimas décadas. In: BARAÚNA, op. cit., p. 116-134.
272
“A discussão conciliar em torno deste primeiro capítulo foi relativamente (comparada com os estilos dos
debates da I Sessão) rápida, em três Congregações Gerais (parte da 38ª, 39ª, 40ª e parte da 41ª, nos dias 1º a 4 de
outubro de 1963). O novo texto já era uma reação positiva contra um conceito excessivamente jurídico, social,
externo, institucional, clerical e triunfalista da Igreja” (cf. KLOPPENBURG, As vicissitudes da ‘Lumen
Gentium’. In: BARAÚNA, op. cit., p. 202).
130
na” (Lumen Gentium 2). Por isso, a Igreja se vê e se compreende dentro do maravilhoso e pro-
digioso desígnio que a Santíssima Trindade concebeu para tornar a humanidade participante
da intimidade de sua vida divina.
Daí decorre, também, a já referida necessária unidade entre os dois primeiros capítu-
los da Lumen Gentium, o mistério da Igreja (primeiro capítulo) e o Povo de Deus (segundo
capítulo), que supera uma visão fechada e estática da Igreja-entidade, fazendo aparecer seu
caráter dinâmico, como Povo de Deus em marcha, buscando sua realização definitiva e plena
na escatologia.273
A palavra “mistério” provém do grego mystêrion, que significa coisa arcana, secreta,
especialmente sacra. Fílon de Alexandria divide os mistérios em dois tipos: os grandes e os
pequenos. Os grandes dizem respeito a Deus e a seus atributos; os pequenos, aos sinais e às
potências.
No entanto, no Novo Testamento não há referência nenhuma aos mistérios da Anti-
guidade, tanto do ponto de vista de sua definição quanto do conteúdo. Na maioria das vezes,
significa o desígnio salvífico divino, concebido e escondido desde todos os séculos, mas reve-
lado agora, na plenitude dos tempos, por Jesus Cristo, o Salvador de todos os homens. O mis-
tério constitui-se, portanto, no mistério de Cristo: Mc 4,11; 1Cor 2,6-10; Rm 15,25-27; Ef
1,27; 2,2; 4,3; Cl 1,27.
Quando a Lumen Gentium intitula seu primeiro capítulo “O mistério da Igreja” (n. 1-
8), quer indicar não simplesmente algo irracional ou absurdo, incognoscível ou obstrutor, di-
ante do qual a pessoa deve renunciar a todo esforço intelectual, mas, como já reconhecem
muitos, atualmente, designar uma realidade divina, transcendente e salvífica, que se revela e se
manifesta de alguma maneira visível. Daí o vocábulo, absolutamente bíblico, mostrar-se muito
apto para qualificar a Igreja.
Segundo o Concílio, a expressão “A Igreja é um mistério” significa que a Igreja é
uma realidade divina transcendente e salvífica visivelmente presente entre os homens. Na par-
te externa e visível da Igreja, ao mesmo tempo, se esconde e se revela sua realidade divina e
invisível. G. Philips define assim:
273
ROUSSEAU, op. cit., p. 119s.
131
274
Cf. PHILIPS, op. cit., p. 71.
132
c) a Igreja não é somente uma comunidade de pessoas que creem em Deus e em sua
ação salvífica na história. Ela mesma é uma parte dessa atividade salvífica; portanto, ela mes-
ma é objeto e mistério da fé. Nos antigos Símbolos de fé encontra-se o artigo Credo Ecclesi-
am, que quer expressar a aceitação da Igreja como sujeito da fé do cristão.
Clodovis Boff afirma não se dizer Credo in Ecclesiam da mesma forma como Credo
in Deum, porque a Igreja não é Deus. Contudo, se crê em Deus e que a sua Igreja existe. É por
essa razão que os escolásticos diziam: “Creio a santa Igreja Católica”. Como a fé se refere
essencial e diretamente a Deus, a Igreja é o espaço onde essa se processa. Mais do que objeto,
ela é sujeito da fé: é a Igreja que crê. Por isso, ele conclui: “Enfim, se se pode crer na Igreja (in
Ecclesiam) é somente porque referida a Deus, isto é, como sua graça, como sacramento de sua
salvação”.275 Portanto, afirma-se creio a Igreja, porque ela se forma através da fé, que vem da
graça de Deus, através da Igreja, e porque ela é sujeito da fé.
O Sínodo Extraordinário dos Bispos de 1985, em Roma, lembra esse argumento.
Não se pode esquecer o mistério da Igreja sem correr o risco de adotar uma visão unilateral da
Igreja, seja uma puramente hierárquica, seja uma nova concepção sociológica. A falta de visão
dessa unidade acarreta uma má compreensão da natureza da Igreja. Preocupados com essa
possibilidade, por vezes ocorrida no período pós-conciliar, os participantes do Sínodo de 1985
lembram que toda a importância da Igreja deriva da sua conexão com Cristo (Relatio Finalis
II, A, 3).
275
Cf. BOFF, C. Comunidade eclesial - comunidade política. Ensaios de Eclesiologia política. Petrópolis: Vozes,
1978, p. 21.
276
Bibliografia básica: AUER, op. cit., p. 101-115; BENI, op. cit., p. 161-167; MONDIN, op. cit., p. 295-317.
277
MONDIN, op. cit., p. 295.
133
instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano” (cf. Lumen
Gentium 1).
A palavra sacramento, desde o final do século XI, sofreu um isolamento conceitual e
uma restrição às sete ações sacramentais. Esse sentido foi consagrado pelo Magistério, sobre-
tudo pela definição de Trento, que declara, em primeiro lugar, que Cristo instituiu os sete sa-
cramentos e, em segundo lugar, que o número dos sacramentos é “sete nem mais nem menos”
(DS 1601). Mas essa fixação não torna ilegítima a aplicação, embora análoga, do conceito de
sacramento à Igreja. A definição de Trento não impede de afirmar a Igreja como verdadeiro
sacramento, porque, ao entender por sacramento aquelas ações que garantem e exprimem a
presença eficaz de Cristo, no momento em que se efetuam (cf. DS 1606), é possível reconhe-
cê-la como o sacramento primordial desse agir, cuja validade consiste no fato de que é um agir
sacramental da Igreja, e percorre toda a história, atualizando-a nas sete ações sacramentais.
a) Histórico278
Quando o Novo Testamento se refere ao “antigo Povo de Deus como um éon novo”,
sempre o faz harmonizando uma visão histórico-salvífica e mística, como é o caso da carta aos
Efésios, com uma visão cósmica, conforme a carta aos Colossenses. Assim, os elementos ter-
reno-histórico e místico ficam claros. Por isso, a Igreja é considerada como Ecclesia ab Adam
ou ab initio mundi, levando em conta suas dimensões histórica, cósmica e cristocêntrica. Es-
pecialmente São Paulo, com a imagem do Corpo de Cristo, favorece uma visão de conjunto
das dimensões mística e histórica, da Igreja universal e das Igrejas Particulares, do institucio-
nal e do carismático, tornando o mistério da encarnação a imagem primordial da compreensão
da Igreja, como, aliás, retoma a renovação da Eclesiologia propiciada pelas Escolas teológicas
de Roma e de Tubinga. Com isso, está clara a possibilidade de entender a Igreja como sacra-
mento, muito embora a Escritura não empregue explicitamente essa palavra para a Igreja.
Orígenes († 254) foi o primeiro a desenvolver o conceito da sacramentalidade da
Igreja como modelo teológico em seu pensamento simbólico, ao afirmar que o Lógos oculto
de Deus se revela na Igreja, por meio dos sacramentos e dos ministérios, além da encarnação e
da Palavra.
278
O que segue nesse ponto é um resumo de AUER, op. cit., p. 102-107.
134
279
CIPRIANO, A unidade da Igreja católica 5-7.
280
Sermo 23,4; 307; PL 54,206; 230ss (apud AUER, op. cit., p. 103).
135
que Louis de Thomassin († 1695) voltasse a designar a Igreja como sacramento de Cristo, ao
afirmar que Jesus Cristo “levava e revelava em si toda a Igreja como sacramento”.281
O Concílio Vaticano I ignorou o conceito de sacramento aplicado à Igreja, apesar de
afirmá-la como signum levatum in nationibus (DS 3014). Faltou a visão histórica para esse
Concílio, o que só virá mais tarde. O movimento litúrgico, surgido na França após esse Concí-
lio, e o movimento juvenil, surgido na Alemanha, em torno da primeira guerra mundial, fo-
mentaram a retomada da noção da Igreja como sacramento, claramente presente nas obras
teológicas, sobretudo, de Karl Adam, Romano Guardini e Odo Casel.
A encíclica Mystici Corporis (1943) expressa adequadamente a noção da Igreja co-
mo sacramento de Cristo. A exposição direta e explícita da Igreja, segundo a categoria sacra-
mental, foi afirmada de modo sempre mais decisivo no período seguinte à Segunda Guerra
Mundial, no âmbito da reflexão da Teologia alemã. Diversos teólogos continuaram nessa linha
de pensamento. Entre eles estão Mathias Scheeben, J. Fellermeier, Otto Semmelroth, Karl
Rahner, Edward Schillebeeckx, Yves Congar e Henri de Lubac. Esse último teólogo foi quem
abriu caminho para o Vaticano II apresentar de forma clara e precisa esse ensinamento. Esses
autores ilustram a diferença entre a Igreja e as ações sacramentais com os seguintes termos,
entre outros:
– sacramento primordial (Ur-Sakrament);
– sacramento radical (Wurzelsakrament);
– sacramento fundamental (Grundsakrament);
– sacramento da humanidade (Sakrament der Menschlichkeit).
b) Reflexão sistemática
281
“Sacramentum universale ecclesiae circumgestabat Christus et in ipso demonstrabat”: Dogm. Theol II, Paris,
1684, p. 243, 250 (apud AUER, op. cit., p. 104).
136
A definição de Agostinho – “forma visível da graça invisível” (DS 1629) – vale tam-
bém para o mysterium da Igreja. Ela é o sacramento, não só porque contém a graça do Espírito
do Senhor glorificado na sua forma social e visível, mas também porque a comunica, enquanto
a torna possível, por meio das ações particulares de cada uma das sete ações específicas e,
portanto, sacramentais, aqui e agora, às pessoas dispostas a aceitá-las pela fé. Mas somente
agora, com o Magistério do Vaticano II (cf. Lumen Gentium 1), foi começado o emprego da
qualificação da Igreja como sacramento, indicando uma realidade terrena na qual, ao mesmo
tempo, se esconde e se manifesta a realidade divina e a sua eficácia. A realidade divina encon-
tra, portanto, nela um reflexo, que em cada caso só pode ser percebido pela fé.
O conceito de sacramento já está presente nos primeiros séculos, se bem que precisa-
do só no primeiro milênio. O elemento mais importante na aplicação da sacramentalidade à
Igreja é a dimensão de mistério. A palavra grega mystêrion foi traduzida pela palavra latina
sacramentum. No plano religioso, mistério é o plano de salvação estabelecido por Deus e re-
velado em Jesus Cristo. A realidade, que, em certo sentido, vem oferecida ao conhecimento da
experiência humana no mystêrion – que é acontecimento da história da salvação e assim reali-
dade endereçada às pessoas e pelas pessoas –, está subtraída na sua mais profunda interiorida-
de ao conhecimento humano.
O mystêrion oferece, portanto, à pessoa o mistério de Deus sob o véu da realidade
humana perceptível, mas não em termos tais que os conteúdos humanos de experiência pos-
sam vir a ser utilizados como uma espécie de semelhança ou de ajuda prestada ao conheci-
mento. A experiência humana canaliza o pressentimento de que a criatura encontra Deus no
mistério divino da salvação. A pessoa, em Jesus Cristo, pode encontrar a Deus, porque nele
Deus está visível entre os seres humanos sob a forma corpórea, tornando possível um encontro
humano com ele.
Na Igreja está presente e atuando o mistério salvífico de Deus, que é designado com
o conceito de sacramento. Aí está presente um reconhecimento e uma afirmação do caráter
“encarnacional” da graça, que é autocomunicação de Deus para a santificação e a salvação do
ser humano. A sacramentalidade é, pois, a forma que Deus assume para aproximar-se da pes-
soa como graça, e é a forma pela qual ele pode ser encontrado. Essa qualidade é inerente à
Igreja, porque ela é sacramento primordial e global, que inclui toda a forma sacramental. As-
137
sim, não é a Igreja que produz a salvação, mas ela transmite e proclama a salvação recebida de
Jesus Cristo e presente nela como prolongamento da sacramentalidade dele próprio.282
A sacramentalidade da Igreja é o lugar onde se afronta o problema da relação entre
Igreja visível e a salvação invisível e escatológica. Por isso, afirmar a Igreja como sacramento
de salvação significa ultrapassar o seu puro e simples “em si”, além de afirmar a unidade entre
o seu ser e a sua missão. E isso é mostrar o que a Igreja é para o mundo, ou seja, o significado
que ela assume para a salvação humana, indicando, igualmente, o seu aspecto funcional. Nela
se opera a unidade entre o mundo visível e o invísível, o humano e o divino. Portanto, ela é
sinal de salvação.
Diante do que foi exposto até aqui, convém frisar o que segue:
282
MONDIN, op. cit., p. 303.
283
Cf. AUER, op. cit., p. 111-115.
138
A imagem de Corpo de Cristo passou por diversas fases ao longo da história da Igre-
ja, independentemente de sua importância nos escritos paulinos e para os Santos Padres. Dei-
xada na sombra durante uma parte do segundo milênio e redescoberta no século XIX, com
Moehler e os teólogos da Escola romana, J. B. Franzelin, M. J. Scheeben, J. Perrone, C. Pas-
saglia e C. Schrader, conheceu um grande reflorescimento durante a primeira metade do sécu-
lo XX. A síntese dessa imagem, encontrada na Encíclica Mystici Corporis, significou o coro-
amento e a consagração do imenso trabalho eclesiológico feito nos últimos tempos.284
A expressão Corpo de Cristo é tipicamente paulina. Ao inspirar-se na cultura grega,
Paulo, com essa imagem, põe a questão teológica da relação de Cristo com o seu corpo, para a
qual o corpo designava não somente o corpo humano, mas também o organismo social, no
qual os membros são solidários. Assim, a imagem mostra a relação indissolúvel entre o corpo
ressuscitado de Jesus Cristo e o Corpo eclesial, pois o corpo glorioso de Cristo tem sua exten-
são no Corpo eclesial, devido a uma identidade, ao mesmo tempo misteriosa e real, na qual
acontece o mistério salvífico de Deus. É como mostram os dois textos seguintes: “Não sabeis
que os vossos corpos são membros de Cristo? Tomarei então os membros de Cristo para fazê-
los membros de uma prostituta? Por certo, não!” (1Cor 6, 15); “Pois fomos batizados num só
Espírito para ser um só corpo, judeus e gregos, escravos e livres, e todos bebemos de um só
espírito!” (1Cor 12,13).
Nas cartas aos Colossenses e aos Efésios a reflexão sobre essa relação se aprofunda.
Os textos precisam a distinção entre Cristo e a Igreja e mostram o seu papel para com a comu-
nidade de fé, como Cabeça da Igreja (cf. Cl 1,18; Ef 1,22; 4,15; 5,23). É como expressa Paulo
aos cristãos de Éfeso:
284
Ver o significado dessa imagem para a renovação da Eclesiologia, no primeiro capítulo.
139
suscitado do Senhor, como extensão dele próprio. Desse modo, essa imagem é adequada para
expressar o mistério da Igreja, porquanto afirma, principalmente, conforme A. Aranda, que
nela se torna realidade histórica e operativa o mistério da salvação, estabelecido por Deus Pai
e realizado por Jesus Cristo, Cabeça do corpo, que é a Igreja.285 Por isso, escreve Paulo: “Tudo
ele pôs debaixo de seus pés, e o pôs, acima de tudo, como Cabeça da Igreja” (Ef 1,22).
Os Padres da era apostólica empregam a doutrina paulina do Corpo de Cristo, mas a
exprimem, frequentemente, através do tema da unidade da Igreja, que preocupou muito toda a
Patrística por causa do contexto das heresias e das divisões internas. Tanto os Padres gregos
quanto os latinos insistem sobre essa temática, os primeiros mais sobre a unidade invisível da
Igreja, e os outros sobre sua unidade visível, mas ambos acentuam a relação intrínseca entre
essas duas dimensões da unidade da Igreja. Como exemplo, podem-se citar a Didaqué286, Iná-
cio de Antioquia287, Ireneu de Lião, com o tema da recapitulação288, e Cipriano.289
Para Agostinho, Cristo e a Igreja formam “uma só coisa, uma só alma, um só ho-
mem, uma só pessoa, um só justo, um só Cristo, um só Filho de Deus”. Contra os donatistas,
usa este mesmo argumento: “Nosso Senhor Jesus Cristo, como um homem completo e perfei-
to, tem cabeça e corpo. Seu corpo, que é a Igreja; não a Igreja que está aqui somente, mas
aquela que está aqui e aquela que está por toda a Terra [...]. É o Cristo, aquele, total e univer-
sal, unido à Igreja”.290
Assim, a unidade eclesial é absolutamente original, pois é espiritual e visível simul-
taneamente, porque inclui o corpo mesmo, e dá um claro testemunho da união entre Eucaristia
e Igreja. Por isso, a realidade escatológica da Igreja se torna apreensível na incorporação a
285
Cf. ARANDA, A. Cristo y la Iglesia. El significado trinitario del misterio de la Iglesia como Cuerpo de
Cristo. In: RODRÍGUEZ, P. (Org.). Eclesiología 30 años después de “Lumen Gentium”. Madrid: RIALP,
1994, p. 92.
286
“Da mesma maneira como este pão quebrado primeiro fora semeado sobre as colinas e depois recolhido
para tornar-se um, assim das extremidades da Terra seja unida a ti tua Igreja (assembleia) em teu reino; pois
tua é a glória e o poder pelos séculos! Amém” (DIDAQUÉ, IX,4).
287
“[...] em benefício de seus santos fiéis, tanto judeus, como gentios, no único corpo de sua Igreja” (INÁCIO
DE ANTIOQUIA, Carta aos Esmirnenses 1,2); “Não pode uma cabeça nascer sem membros, uma vez que
Deus nos promete a unidade que é ele próprio” (Id., Carta aos Tralianos 11,2).
288
“Com efeito, demonstramos que a existência do Filho de Deus não teve início naquele momento, existindo
desde sempre junto do Pai; mas, quando se encarnou e se fez homem, recapitulou em si toda a longa série dos
homens, dando-nos em resumo a salvação, de forma que o que tínhamos perdido em Adão, isto é, a imagem e
a semelhança de Deus, o recuperássemos em Jesus Cristo” (IRENEU DE LIÃO, Adversus Haereses III,18,1.
São Paulo: Paulus, 1995, p. 328s).
289
“Deus é um, Cristo é um, uma é a sua Igreja, uma a fé, e o povo (cristão) é também um, aglutinado pela
concórdia como na compacta unidade de um corpo” (CIPRIANO, A unidade da Igreja Católica 23,4).
290
Ps 90, Sermo 2 (In: PL 37, 1159).
140
Cristo, que é o Senhor de seu corpo, e no Espírito Santo, o princípio vital da união orgânica do
todo. É também corpo visível, que no Espírito Santo está formado de pessoas (Lumen Gentium
7 e 48; Orientalium Ecclesiarum 2). Por força dos ofícios e carismas instituídos por Cristo, a
Igreja, em sua peregrinação (Ef 4,11-16), aspira à perfeita unidade espiritual no Cristo escato-
lógico, pois ela tem os meios para completar a edificação em si mesma.
O fundamento da Igreja, tanto como comunidade quanto como instituição, é o Espíri-
to Santo. O segundo parágrafo do número 7 da Lumen Gentium expõe essa doutrina, em que
sobressai a unidade interna, invisível, sacramental e sobrenatural. Sem esta, nada vale a unida-
de externa, visível, social e ritual, jurídica ou canônica. Essa unidade interna significa, em
primeiro lugar, a união com Cristo, a conformação ou configuração com Cristo: “Pelo Batismo
configuramo-nos com Cristo”.
E a união com Jesus Cristo é iniciada no Batismo. A unidade interna e sobrenatural,
iniciada pelo Batismo, é mantida, alimentada, aumentada e maravilhosamente realizada pela
Eucaristia. É a comunhão, a communio, a koinonía, acontecendo na Igreja e realizada pela
Igreja como realidade e sinal ao mesmo tempo. Por isso, a Eucaristia faz a Igreja. Ela é “sinal
de unidade” (Sacrosanctum Concilium 47), que “significa e realiza a unidade” (Lumen Gen-
tium 3; Unitatis Redintegratio 3), fonte e ápice de toda a vida cristã (Lumen Gentium 11), que
“continuamente vive e cresce” (primeiro parágrafo de Lumen Gentium 26). Essa união vital e
sobrenatural se faz com Cristo, em Cristo e por Cristo com todos os batizados, de modo a se-
rem todos “um só em Jesus Cristo”. Esse é, propriamente, o cerne de todo o “mistério da Igre-
ja”,291 pois, “participando realmente do Corpo do Senhor, na fração do pão eucarístico, somos
elevados à comunhão com ele e entre nós” (segundo parágrafo de Lumen Gentium 26).
Portanto, a imagem bíblica de Corpo de Cristo apresenta o seguinte significado:
291
Cf. BENI, op. cit., p. 147-158.
141
292
RIGAL, op. cit., p. 162.
142
dois elementos é comparada com a da Eucaristia, que é constituída de duas coisas, uma
terrena e a outra celeste, segundo Ireneu.293 Como já foi visto, a renovação da Eclesiologia,
iniciada no final do século XIX, partiu da relação do mistério da Igreja com o da encarna-
ção de Jesus Cristo e da redescoberta da imagem bíblica de Corpo de Cristo.
Esse texto expressa o caráter teândrico da Igreja294, que se constitui em fonte perma-
nente de tensão, assim como o foi a união pessoal, em Cristo, da natureza divina e da natureza
humana. Mas essa situação é intrínseca à Igreja e não apenas fruto de circunstâncias históri-
cas.295 Hoje, continua havendo tensões, pois, como ela não está em estado de salvação defini-
tiva, sempre haverá certa dificuldade em harmonizar adequadamente essas duas dimensões.
Os problemas históricos que aconteceram, no que tange à compreensão da pessoa e das natu-
rezas de Cristo, analogamente, acontecem com a Igreja. Assim, o docetismo ensinava a pre-
dominância da divindade em detrimento da humanidade, e o adocionismo, o contrário. Contu-
do, ambos destroem a verdadeira compreensão da Pessoa de Jesus Cristo, de acordo com o
ensinamento feito pelo Concílio de Calcedônia, em 451 (DS 302). Por essas tentações passa
também a compreensão da Igreja. Com efeito, podem-se citar as seguintes:
a) primeira tentação: a Igreja é só de Deus, e as pessoas são meros pecadores. Por
isso, ela é espiritual e invisível e pertence aos predestinados, escolhidos por Deus e desconhe-
cidos por nós;
b) segunda tentação: a Igreja é só dos homens, constituindo-se em uma realidade
meramente sociológica. É a sociedade mais perfeita que existe há dois mil anos, sem nada
mudar essencialmente;
c) terceira tentação: suprimir a união. Esta aparece depois do Vaticano II, quando
surgem binômios do tipo essencialismo-pastoralismo e sacramento-missão.
293
IRENEU DE LIÃO, Adversus Haereses IV, 18,4: “Pois lhe oferecemos o que já é seu, proclamando, como
é justo, a comunhão e a unidade da carne e do Espírito. Assim como o pão que vem da terra, ao receber a
invocação de Deus, já não é pão comum, mas a Eucaristia, feita de dois elementos, o terreno e o celeste, do
mesmo modo os nossos corpos, por receberem a Eucaristia, já não são corruptíveis por terem a esperança da
ressurreição” (in: IRENEU DE LIÃO, op. cit., p. 424).
294
JOURNET, C. O caráter teândrico da Igreja, fonte de tensão permanente. In: BARAÚNA, op. cit., p. 384-395.
295
A partir da dupla estrutura da Igreja, a divina e a humana, simultaneamente, a Eclesiologia pode partir ou do
divino ou do humano, dando, assim, diferente enfoque. O Vaticano II parte de dentro para fora, ou seja, do misté-
rio. Antigamente, a Eclesiologia tinha como ponto de partida a sociedade perfeita.
143
A analogia com o Verbo encarnado permite afirmar que este “instrumento de salva-
ção” que é a Igreja deve ser entendido de modo tal que se evitem dois excessos típi-
cos das heresias cristológicas da Antiguidade. Assim, deve-se descartar, de um lado,
uma espécie de “nestorianismo” eclesial, de acordo com o qual não haveria nenhuma
relação substancial entre o elemento divino e o elemento humano. Inversamente, se-
ria possível guardar-se, também, de um “monofisismo” eclesial, de acordo com o
qual tudo na Igreja seria “divinizado” e, portanto, sem os limites, as deficiências e os
erros da organização, fruto dos pecados e da ignorância das pessoas.296
Toda a importância da Igreja deriva de sua conexão com Cristo. O Concílio des-
creveu de diversos modos a Igreja como Povo de Deus, Corpo de Cristo, Esposa
de Cristo, templo do Espírito Santo, família de Deus. Estas descrições da Igreja
completam-se mutuamente e devem ser compreendidas à luz do mistério de Cris-
296
COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, Temas seletos de Eclesiologia (1984), n. 6,1.
297
Cf. JOURNET, op. cit., p. 385.
144
A abordagem deste tema leva, em primeiro lugar, à constatação básica de que a Igre-
ja é sinal eficaz e universal de salvação para o mundo, o que significa que ninguém poderá
salvar-se sem a eficácia desse sinal. Como sacramento universal de salvação, a Igreja transmi-
te efetivamente, de forma invisível, o que ela representa visivelmente: a salvação de todos, sob
todos os aspectos.
O ponto de partida é o axioma de Cipriano – “Extra Ecclesiam nulla salus”298 –,
proferido no contexto do perigo que o cisma representava para a unidade da Igreja. Ao longo
da história, o Magistério fez duas séries de declarações, aparentemente opostas: uma, sobre a
necessidade de pertencer à Igreja para salvar-se; outra, em que afasta a doutrina de quem
afirma que a graça reduz sua operação salvífica aos limites visíveis da Igreja.
Como exemplo da primeira série de afirmações, pode-se citar Inocêncio II, na profis-
são de fé imposta aos Valdenses: “[...] extra quam neminem salvari credimus” (DS 792), que
assume o axioma de Cipriano. O Papa Bonifácio VIII (18/11/1302) a repete na bula Unam
Sanctam: “Unam sanctam Ecclesiam catholicam [...] extra quam nec salus est [...]” (DS 870).
A segunda série de afirmações mostra que a operação da graça não se reduz aos limi-
tes visíveis da Igreja. Essa ideia vem afirmada pelo Concílio de Florença (DS 1305) e na cen-
sura aos erros de Paschasius Quesnel, de 08/09/1713, que ensinava: “Extra Ecclesiam nulla
conceditur gratia” (DS 2429). Também está presente no combate aos erros de Jansênio, que
afirmava a graça de Cristo ser concedida somente aos fiéis (cf. DS 2304 e 2305).
A principal afirmação é proveniente da Carta do Santo Ofício ao Cardeal de Boston,
de 08/08/1949 (DS 3866-3873), que ressalta: “A incorporação pelo Batismo ao Corpo de Cris-
to, que é a Igreja, constitui um estrito mandamento de Jesus Cristo” (DS 3867). Mas distingue
entre a necessidade de preceito e a necessidade de meio. A afirmação básica é a seguinte: “O
Salvador não só mandou que todos os homens e povos se façam membros da Igreja, mas tam-
145
bém dispôs que a Igreja é o meio de salvação sem o qual ninguém poderá entrar no reino da
glória” (DS 3868).
Daí se deduz que a Igreja é uma necessidade de preceito, baseada numa disposição
positiva. Mas ela não é necessidade de meio, resultante da natureza interna da Igreja, ou seja,
não é necessário o estrito uso real da Igreja. Assim, o fim para o qual está mandado o meio se
pode alcançar, também, quando não é possível usá-lo efetivamente. Não é necessário, portan-
to, pertencer efetivamente (reapse) à Igreja, mas basta o desejo ou o voto: “Para alcançar a
salvação eterna nem sempre se requer a pertença efetiva (reapse) à Igreja como membro seu;
mas a pessoa há de estar unida com a Igreja, pelo menos, mediante o desejo ou o voto” (DS
3870).
O Vaticano II
Significado
298
CIPRIANO DE CARTAGO, De unitate Ecclesiae 6.
146
to fora do meio posto por ele. Por essa razão, a Igreja conserva a palavra e as estruturas fun-
damentais recebidas por Cristo: ela é sinal manifesto desse encontro, disposto por Deus;
3 - por isso, a Igreja é povo organizado, pois, no tempo e no espaço, ela vai realizar a
salvação. No entanto, nela está presente também o carisma, necessário para a Igreja (cf. Lumen
Gentium 12).
Portanto,
há possibilidade de salvação para quem não pertence à Igreja. Em virtude de seu pa-
pel universal na história e na criação, Cristo é para todos o mediador da salvação. Ele
é o centro de onde a dinâmica da salvação se irradia em todas as direções. E já que
vive como Cabeça da Igreja, é evidente que também esta é mediadora, com relação
aos que não lhe pertencem, ainda que, externamente, não lhes chegue com algum si-
nal ou palavra. De acordo com esse raciocínio, os homens que vivem em conformi-
dade com sua consciência e procuram a Deus, com esforço sincero, aspiram a Deus
implicitamente (votum implicitum), tendo, por conseguinte, uma fé salvadora ativa,
uma fides qua, mesmo sem realizarem a fides quae; desta maneira, apesar de ligados
a religiões não cristãs, chegam à salvação.299
299
Cf. SCHMAUS, v. 1, op. cit., p. 110.
148
CAPÍTULO QUINTO
Como já foi explicado no primeiro capítulo, a realidade “Igreja” não aparece como
tal no Antigo Testamento, mas apenas se encontram manifestações diversas indicativas daque-
la realidade, posteriormente chamada “Igreja”, assim como é conhecida da época neotesta-
300
Cf. SEMMELROTH, O. A Igreja, o novo Povo de Deus. In: BARAÚNA, op. cit., p. 472.
301
Cf. RODRÍGUEZ, P. El pueblo de Dios. Bases para su consideración cristológica y pneumatológica. In:
Id., Eclesiología 30 años después de “Lumen Gentium”, p. 177.
149
mentária em diante. A categoria Povo de Deus constitui-se em uma dessas manifestações, pela
qual se pode descobrir o seu significado profundo.
Na realidade, a expressão literal Povo de Deus é rara no Antigo Testamento, onde é
encontrada em Nm 11,29; 17,6; Jz 5,11; 1Sm 1,12; 6,21; 14,13; 2Rs 9,6; Sb 2,10. No Novo
Testamento ainda mais, onde é empregada apenas uma só vez, aplicada a toda a Igreja, no
texto de 1Pd 2,10: “Vós que outrora não éreis povo, mas agora sois povo de Deus, que não
tínheis alcançado misericórdia, mas agora a alcançastes”. Entretanto, o termo “povo” é empre-
gado inúmeras vezes, tanto no Antigo Testamento quanto no Novo Testamento302, com diver-
sos equivalentes, tais como “meu povo”, quando Deus fala com Israel, ou “nós somos um po-
vo”, quando Israel repele sua eleição e sua pertença ao Senhor.
A origem da expressão Povo de Deus encontra-se na promessa de Deus em Ex 19,5:
“Agora, se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, sereis para mim uma proprie-
dade peculiar entre todos os povos, porque toda a Terra é minha”. Isso quer dizer que Javé é o
Deus de Israel e Israel é o povo de Javé. A palavra laós, escolhida pelos tradutores gregos para
indicar o “povo de Javé”, passa a ser termo técnico empregado para diferenciar Israel dos de-
mais povos303, que são “os pagãos” (éthne) ou “as nações”. Corresponde ao termo hebraico
am, também reservado para Israel, distinguindo dos gojîm, termo indicativo dos pagãos. Israel
é o povo peregrino de Deus, como povo (am) de seu Deus, que o guia e estimula, inclusive na
guerra (cf. Js 5,13.23).
302
J. Rigal afirma que o termo “povo” é usado 360 vezes no Antigo Testamento e 104 vezes no Novo Testa-
mento (RIGAL, op. cit., p. 113).
150
povo, pois todos são irmãos e filhos do mesmo pai. De uma simples nação, deve ser feita uma
comunhão, um verdadeiro am, em que cada um participa, na justiça e no amor, da vida do
outro;
c) o relacionamento particular com Javé, superior e sem comparação com os deuses
dos outros povos, pois ele é um Deus dos vivos, e não dos mortos (cf. Ez 37,11-14), um Deus
próximo (Dt 4,7), que guia o seu povo em todas as circunstâncias, inclusive na guerra (Is 54,1;
Os 11,1-4);
d) a união de todos os membros do povo em uma comunhão em torno de um centro
divino, que é Javé (Gn 11,6);
e) enfim, diz respeito a duas grandezas – filiação divina e fraternidade – que são ca-
tegorias do Reino de Deus.
Convém lembrar que essa imagem é muito mais uma categoria teológica do que pro-
priamente uma realidade histórica, pois é um ideal mais do que propriamente um fato históri-
co. No entanto, de uma simples nação, de uma unidade histórico-biológica, deve acontecer
uma verdadeira comunhão, isto é, um real am, cujos membros não estão unidos entre si uni-
camente em virtude da descendência e da sorte, mas também pela participação na justiça e no
amor, da vida do outro, fruto do mesmo centro divino de unidade. Por isso, am elohim, povo
de Deus, expressa que todos os membros estão unidos entre si por um mesmo centro divino de
comunhão.
A promessa em Am 9, 11-15 foi realizada plenamente no Novo Testamento, confor-
me interpreta At 15,14: “[...] escolher dentre os gentios (éthne) um povo (laós) reservado ao
seu nome” (isto é, para si). Em todos os textos do Novo Testamento, onde há referência ao
“novo Povo de Deus” (cf. At 15,14ss; 2Cor 6,16; 1Pd 2,9), chamam a atenção dois aspectos:
a) trata-se sempre de citações do Antigo Testamento, indicando que tudo aquilo que foi dito ao
antigo Israel é, agora, aplicado ao povo da nova aliança; b) o termo laós no Novo Testamento é
o mesmo do Antigo Testamento, sempre empregado para distinguir Israel, enquanto povo de
Javé, dos povos pagãos ou das nações. Assim a Igreja do Novo Testamento, a da nova aliança,
é vista como cumprimento das promessas feitas ao povo do Antigo Testamento, como novo
303
Hubert Frankemölle diz que o conceito de fé como pertença ao Povo de Deus já estava presente no Antigo
Testamento, pois o termo laós é superado nos profetas, que passam a incluir também os pagãos (cf. FRAN-
KEMÖLLE, Iglesia-Eclesiología. In: EICHER, op. cit., p. 500).
151
Povo de Deus, embora o termo “Israel” não venha aplicado, de forma direta, à Igreja do Novo
Testamento. Apenas Paulo, em Gl 6,16, utiliza a expressão “Israel de Deus”.304
O Novo Testamento mostra que os discípulos se compreendem como verdadeiro Is-
rael, novo Povo de Deus. O fundamento desse entendimento é a fé, fundada e iniciada na ex-
periência pessoal do ressuscitado, que apareceu aos Doze, escolhidos como testemunhas quali-
ficadas das maravilhas salvíficas de Deus em favor de seu povo. Para a comunidade cristã, as
promessas veterotestamentárias estavam cumpridas e nelas constava a esperança na futura
realização em plenitude do Reino de Deus, iniciado pelo Messias (cf. Mc 1,15), que é aquele
que veio, anunciado por João Batista e crido como tal pelos seus discípulos.
O Vaticano II proclama, em Lumen Gentium 9, que a nova aliança, instituída por
Jesus Cristo, é o novo Povo de Deus. E essa contém três elementos essenciais e indissociáveis:
o enraizamento da Igreja no Antigo Testamento, sua novidade radical em Jesus Cristo e sua
abertura para todas as pessoas, tanto judeus quanto gentios.305
Todavia, a comunidade primitiva cria formas próprias, independentes da comunidade
judaica, ainda capazes de evolução posterior:
304
FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 28.
305
Cf. RIGAL, op. cit., p. 112.
152
na ajuda mútua, no padecer em comum e, também, em parte, na posse coletiva dos bens (At
2,45; 4,32-36).
Assim, a comunidade cristã não se converteu em uma seita judaica, mas, com o pas-
sar do tempo, libertou-se completamente dos judeus. De início, pela formação de um cristia-
nismo gentio, livre da lei judaica, que obteve reconhecimento da comunidade primitiva no
concílio dos apóstolos (Gl 2,1-10 e At 15,21.25). Depois, a destruição da cidade de Jerusalém
e a cessação do culto no Templo alteraram a situação, de tal forma que Jerusalém, ao deixar de
ser o centro do culto pela destruição do Templo, também deixou de ser o centro eclesial. Des-
sarte, a chefia transitou de Jerusalém para Roma, trazendo a novidade de comunidades mistas,
formadas por judeus e não judeus, fora do primeiro centro. Com o repúdio da Igreja por parte
dos judeus, a história passa a ser de uma Igreja cristã, formada por gentios, os éthne. Por isso,
é possível resumir esse processo da seguinte maneira: 1º- só judeus; 2º- judeus e gentios (pa-
gãos); 3º- só gentios.
Com efeito, a Igreja se realiza, agora, em âmbito espiritual, contrapondo-se não mais
aos outros povos, mas somente àqueles indivíduos ou coletividades que expressamente não
querem manter nenhum relacionamento salvífico com Jesus Cristo. A diferença não está mais
na raça (etnia judaica), mas na opção por Cristo pela fé, que conduz à recepção do Batismo, o
que corresponde ao conteúdo da realidade denominada “Igreja”, enquanto é o mistério da au-
tocomunicação de Deus por Jesus Cristo, realizada em benefício da comunidade humana e,
por ela, em benefício de cada pessoa, na forma humana do falar e do agir.306
É o que demonstra o estudo etimológico da palavra Igreja. A ekklesía, da língua gre-
ga, ou a ecclesia, palavra usual das línguas latinas, é a denominação mais importante e mais
frequente nos escritos neotestamentários. A Igreja primitiva quer indicar, com essa palavra, o
Povo de Deus. Paulo fala de “ekklesía de Deus” para indicar a comunidade convocada por
Deus (cf. 1Ts 2,14; 2Ts 1,4; 1Cor 1,1; 10,32). Essa terminologia não é criada pela comunidade
primitiva, mas herdada do judaísmo.
306
SCHMAUS, op. cit., p. 21.
153
a) Histórico307
Na primeira época da Igreja, ao menos até o ano 70, ela se vê como o “Povo de Deus
da nova aliança”. Até ao século IV, o termo “povo” é empregado pelos Padres apostólicos
para a Igreja, apesar de não constituir uma temática eclesiológica propriamente dita, apesar de
eles ignorarem a conexão entre o povo de Deus do Antigo Testamento e Novo Testamento,
porque, para eles, o povo judeu representava o tipo de apostasia que, por isso, a exemplo de
Esaú, havia perdido o direito de progenitura, e a Igreja é um povo novo.308 Também, porque a
Eclesiologia da época privilegiava a dimensão cristológica da Igreja, e a noção de “povo” não
nutria sua reflexão. Clemente, em sua segunda carta309, afirma que o verdadeiro povo estava
oculto até Cristo. Inácio não usa a expressão “Povo de Deus”, mas fala da “Igreja universal”,
que é o cristianismo, isto é, a comunhão com o Senhor glorificado.310 Marcião desconhece a
continuidade entre o Deus do Antigo Testamento e o Deus do Novo Testamento.
O desenvolvimento de uma “Teologia da palavra revelada” conduz à substituição,
cada vez maior, do conceito histórico de povo para uma concepção teológico-salvífica. Apesar
de Rm 9,11, Israel já não aparece mais como o povo eleito, mas como povo rejeitado, confor-
me expõem tanto Justino, nos seus Diálogos311, como Ireneu.312 Os justos do Antigo Testa-
mento eram vistos como pré-cristãos que se salvaram graças à sua fé, e não por meio de Israel,
segundo Orígenes, Atanásio e, inclusive, Agostinho.313
Deve-se sobretudo a Agostinho a passagem do conceito de Igreja do plano histórico
ao espiritual, no qual se assenta, também, a Civitas Dei frente à Civitas terrena. Se antes da
controvérsia donatista, para a pertença à Igreja, determinante era a fé intelectual, depois, era
determinante quem possuía a caritas. Caim e Abel são, respectivamente, tipos do judaísmo e
do cristianismo, da sinagoga e da Igreja. Sua Eclesiologia estava centrada na imagem de Cor-
po de Cristo.314
307
Sigo, aqui, as ideias encontradas em AUER, op. cit., 1986, p. 85-88 e RIGAL, op. cit., p. 122-129.
308
Epístola de Barnabé 5,7; 7,5; 13,2.5-6.
309
CLEMENTE, Carta II, 28.
310
INÁCIO DE ANTIOQUIA, Carta aos Esmirnenses 8,2. (Introdução, tradução e notas por Paulo Evaristo
Arns). Petrópolis: Vozes, 1970, p. 81.
311
JUSTINO, Diálogos 135ss (PG 6,788).
312
IRENEU, Epídeixis 93-95.
313
ORÍGENES, PG 13,134; ATANÁSIO, Contra Ar IV, 29 (PG 26,513); AGOSTINHO, Ecclesia ab Abel.
In: Ps 118 Sermo 29, n. 9 (PL 37,1589).
314
AGOSTINHO, Cidade de Deus, livro XVIII, cap. XLVII.
154
315
AGOSTINHO, Ps 47,2 (PL 36,353s).
316
AGOSTINHO, Qev 1,2, cap. 40 (PL 35,1355).
317
TOMÁS DE AQUINO, Suppl. III, q. 60, a. 1, ad 4.
155
b) Na Lumen Gentium
318
BECKER, W. Newman, John Henry, Kard. In: Lexikon für Theologie und Kirche, VII:932-936.
319
SEMMELROTH, op. cit., p. 475.
320
Sobre a qualificação teológica da Constituição, ver BETTI, U. Qualificação teológica da Constituição. In:
BARAÚNA, op. cit., p. 300-307.
321
C. Moeller vê uma divisão binária dupla ou por pares de capítulos na Lumen Gentium: o mistério da Igreja (I,
II); a estrutura da Igreja: hierarquia e laicato (III, IV); a finalidade da Igreja, no campo da santidade, à qual todos
são chamados, com ou sem a profissão pública dos conselhos evangélicos (V, VI); a consumação da Igreja na
escatologia (VII, VIII) (cf. MOELLER, C. O fermento das idéias na elaboração da Constituição. In: BARAÚNA,
op. cit., p. 190).
156
a) sinal no mundo: está presente neste mundo e para este mundo. Mas é, ao mesmo
tempo, estranha pelo modo de se apresentar e agir. Ela deve ser estranha, porque lhe incumbe
testemunhar ao mundo a salvação escatológica e que o mundo não é definitivo. Mas, ao mes-
mo tempo, está presente na história humana, nas transformações históricas. É sinal de salva-
ção, tornando inteligível o invisível;
b) povo peregrino, enquanto a caminho entre a promessa e o cumprimento; entre a
certeza e a incerteza; entre o claro e o escuro. Também é transitória, porque caminha em dire-
ção a um fim. No entanto, vai crescendo, pois a marcha da história leva ao crescimento. Ela
deverá esforçar-se para realizar a salvação para si e para a história, visto que o crescimento da
Igreja significa crescimento para a história;
c) todos os membros deste povo vivem em unidade, igualdade e comunitariamente
(Lumen Gentium 10 e 12). A igualdade comum é fruto do mesmo Batismo, pois, antes de ser
hierarquia ou leigo, todos são cristãos batizados e participam do múnus de Cristo. A unidade
deve excluir o clericalismo e o laicismo, visto não haver oposição interna entre grupos eclesi-
ais. A fronteira é externa, ou seja, entre os que são membros do Povo de Deus e os que não o
são;
d) a participação se dá pelo Batismo. Por isso não abrange todas as pessoas (Lumen
Gentium 15), pois é um “pequeno rebanho” (cf. Lumen Gentium 9 e 5), figura apta para de-
terminar a relação hodierna da Igreja com o mundo, a exemplo de seus primeiros tempos.
Contudo, ela é germe de unidade, esperança e salvação para toda a humanidade;
e) povo aberto para todos, universal e, por isso, católico (Lumen Gentium 13). A in-
corporação a esse Povo está afirmada em Lumen Gentium 14, que, além dos três vínculos
(vínculo simbólico, vínculo sacramental e vínculo hierárquico), acrescenta a adesão com o
coração.322
c) Reflexão sistemática
322
O documento de Puebla toma a imagem do Vaticano II e a aborda na dimensão de comunhão, em dois pris-
mas: a) vive em mistério de comunhão (232-269); b) está a serviço da comunhão (270-281). O documento de
Santo Domingo não aborda explicitamente o tema do Povo de Deus, mas considera a Igreja um povo santo ou
“comunidade santa”, pois “somente a santidade de vida alimenta e orienta uma verdadeira promoção humana e
cultura cristã” (Santo Domingo 31).
157
O emprego dessa imagem mostra que o verdadeiro sentido da Igreja não se deixa
confinar em uma única definição lógica. Daí é natural que variem, conforme a época, os as-
pectos empregados para explicar a natureza da Igreja. “Essa dialética do relevo na apreciação
da obra da redenção e, com isto, da Igreja, constitui um dos momentos que lembram com in-
sistência que a Igreja não tem a posse total de sua existência nem no conjunto de todas as suas
verdades em cada seção de tempo de sua passagem pela História”.323
A conceituação da Igreja como Povo de Deus comporta uma interpretação histórica
da obra da redenção. Por faltar a adequada visão da interpretação histórica, para o método es-
colástico medieval, essa imagem não foi valorizada, no período medieval, para entender a na-
tureza da Igreja. Entendê-la desse modo, implica, em primeiro lugar, situar a Igreja na linha
sucessória da obra redentora de Deus, no sentido de que a Igreja realiza a consumação defini-
tiva e final da aliança com seu povo eleito, enquanto sacramento de salvação. Em segundo
lugar, destaca que a Igreja está inserida no fluir da história humana em busca da cidade celes-
te, mostrando que ela antecipa já no presente, através de seu compromisso com a história hu-
mana, o que ela será definitivamente, no futuro, quando chegar o final dos tempos.324
Assim, a categoria Povo de Deus não é outra coisa do que a manifestação do mistério
da Igreja. A Igreja, portanto, se apresenta como o Povo em marcha, através do espaço e do
tempo, em direção da glória. O novo Povo de Deus busca a nova pátria, a Jerusalém celeste,
inserido, no entanto, na história presente. Por isso, entre as duas alianças, há uma ruptura e
uma continuidade: a Igreja se encontra no tempo intermediário entre a ascensão de Cristo e
sua segunda vinda na glória. Nesse ínterim, o Povo caminha guiado pelo Espírito Santo: é um
Povo peregrino, o Povo de Deus em marcha.325
Mas, para ser Povo de Deus, é preciso ser chamado, pois a eleição é seu traço maior,
fundado na escolha de Deus. Já Israel demonstrava essa consciência:
Se Javé se afeiçoou a vós e vos escolheu, não é por serdes o mais numeroso de todos
os povos – pelo contrário: sois o menor dentre os povos! – e sim porque Javé vos
ama, e para manter a promessa que ele tinha jurado aos vossos pais; por isso Javé
vos fez sair com mão forte e vos resgatou da casa da escravidão, da mão do Faraó,
rei do Egito (Dt 7,7-8).
323
Cf. SEMMELROTH, op. cit., p. 472.
324
Ibid., p. 474.
325
Cf. PHILIPS, op. cit., p. 119-122.
158
E essa iniciativa de Deus caracteriza também o novo Povo de Deus e, assim, o dis-
tingue de outros povos. Essa ideia é desenvolvida, fundamentalmente, por Paulo, ao conside-
rar a Igreja como a assembleia dos “chamados” (cf. Rm 1,6; 8,28; 1Cor 1,2.24; Cl 1,24; 1Ts
2,12). Essa escolha é gratuita da parte de Deus, que chama a quem o mundo considera loucura
e fraqueza (cf. 1Cor 1,25), acolhendo os pagãos no seio da Igreja: “Simeão expôs como, desde
o começo, Deus cuidou de tirar dentre os gentios um povo para seu Nome” (At 15,14). Por
isso, Paulo aplica à Igreja a profecia de Oseias, não só no sentido de que laós e éthne não se
opõem mais, mas tira o laós dos éthne: “Chamarei meu povo àquele que não é meu povo e
amada àquela que não é amada” (At 9,25). Tudo isso acontece porque Deus ama de uma forma
incondicional a humanidade. Esse amor ultrapassa a ordem natural, pois é um desígnio de
salvação, pertencente à história da salvação.
Deus chama para formar um povo. Israel, a partir da escolha de Deus, se constituiu
um povo, tanto do ponto de vista histórico quanto religioso. A formação do povo e eleição se
confundem (cf. Dt 7,6). O mesmo vale para o novo Povo de Deus: “Mas vós sois a raça eleita,
o sacerdócio real, a nação santa, o povo de sua particular propriedade, a fim de que proclameis
as excelências daquele que vos chamou das trevas para a sua luz maravilhosa” (1Pd 2,9). É
um povo, portanto, que vem de Deus e a ele pertence.
E é um povo aberto para todos. Embora seja um povo pequeno entre outros povos,
ele representa a todos, pois Deus chamou-o de todas as nações para serem seus discípulos (cf.
Mt 28,19) e formarem um só povo. Tal é o sentido da catolicidade da Igreja.
O Povo de Deus é um povo salvo, pois eleição e salvação constituem duas realidades
sucessivas. Israel é escolhido para ser salvo, desde sempre, mas tal convicção vem reforçada
por meio da experiência da saída do Egito: “Quanto a vós, porém, Javé vos tomou e vos fez
sair do Egito, daquela fornalha de ferro, para que fôsseis o povo da sua herança, como hoje se
vê” (Dt 4,20).
Da mesma forma que a eleição, a salvação é uma iniciativa exclusiva de Deus, mani-
festada ao longo da história do povo, na superação das tendências à idolatria e à injustiça. As-
sim, o mistério da salvação se apresenta com duas faces indissociáveis: a opressão e a liberta-
ção, por iniciativa de Deus, e aquilo que ele dá, que é a sua vida. As diversas etapas da história
do povo são uma demonstração dessa constatação. Enquanto se manifestam a debilidade e o
pecado do povo, Deus se mostra fiel. E Deus chama a atenção, por meio dos profetas, julgan-
159
do e salvando. E tudo isso tem seu cumprimento no povo da nova aliança, quando Deus adqui-
re a Igreja, através do sangue de seu Filho Jesus Cristo, “o qual se entregou a si mesmo por
nós, para remir-nos de toda iniquidade, e para purificar um povo que lhe pertence, zeloso no
bom procedimento” (Tt 2,14). E diz Paulo aos anciãos de Éfeso: “[...] apascentar a Igreja de
Deus, que ele adquiriu para si pelo sangue de seu próprio Filho” (At 20,28). E essa salvação
não é apenas tirar do mal, mas é, também, participar da vida e da intimidade de Deus, pois a
salvação fez da pessoa humana uma nova criatura e filhos seus (cf. Rm 8,14-17).326
Da história de Israel emerge uma nova característica da imagem Povo de Deus: Israel
é um povo em marcha, pois foi escolhido e salvo. A relação do povo com Deus está marcada
pela promessa para o futuro. Apesar das infidelidades do povo, Deus continua chamando-o de
seu povo, que tem um caminho a percorrer, até chegar ao termo fixado por ele. E isso vai
acontecendo ao longo da história desse povo, sempre advertido pelos profetas.
A Igreja tem consciência de que é um povo em marcha desde o tempo apostólico:
“Porque não temos aqui embaixo cidade permanente, mas estamos à procura da cidade que
está para vir” (Hb 13,14). Numerosas passagens do Novo Testamento demonstram a consciên-
cia de que a Igreja é Povo de Deus escatológico, baseadas na experiência do povo de Israel,
principalmente, no deserto, que, se é o caminho em busca da terra prometida, também foi um
tempo de tentação.
O Povo de Deus é, também, um povo sacerdotal, fruto da consciência da grandeza de
Deus e da indignidade humana. No Novo Testamento, a primeira carta de Pedro é prova dessa
consciência, ao combinar e relacionar diversas passagens do Antigo Testamento com a Igreja:
“Mas vós sois a raça eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo de sua particular proprie-
dade, a fim de que proclameis as excelências daqule que vos chamou das trevas para a sua luz
maravilhosa” (1Pd 2,9). Portanto, o novo Povo de Deus é um povo eleito e peregrino, no qual
acontece a salvação escatológica, pois nele se cumprem as promessas feitas ao povo de Isra-
el.327
O Vaticano II assume essa perspectiva, quando declara:
326
RIGAL, op. cit., p. 116-120.
327
Ibid., p. 120-122.
160
presente tempo, busca a futura cidade perene (cf. Hb 13,14), também é chamado
Igreja de Cristo (cf. Mt 16,18). Pois o próprio Cristo adquiriu-a com o seu sangue
(cf. At 20,28), encheu-a de seu Espírito e dotou-a de meios aptos de união visível e
social. Deus convocou e constituiu a Igreja – comunidade congregada daqueles que,
crendo, voltam seu olhar a Jesus, autor da salvação e princípio da unidade e da paz –
a fim de que ela seja para todos e para cada um o sacramento visível desta salutífera
unidade. Devendo estender-se a todas as regiões da Terra, ela entra na história dos
homens, enquanto simultaneamente transcende os tempos e os limites dos povos.
Andando, porém, através das tentações e tribulações, a Igreja é confortada pela força
da graça de Deus prometida pelo Senhor, para que na fraqueza da carne não decaia
da perfeita fidelidade, mas permaneça digna esposa de seu Senhor e, sob a ação do
Espírito Santo, não deixe de renovar-se a si mesma, até que pela cruz chegue à luz
que não conhece ocaso (Lumen Gentium 9).
Os membros do Povo de Deus participam, igualmente, dos três múnus de Jesus Cris-
to. Os números 13 e 14 da Lumen Gentium apresentam a Igreja como um povo católico, isto é,
universal, do qual se participa pelo Batismo. O número 13 serve de elo, pois a unidade dá base
à catolicidade, não apenas através da perspectiva do espaço e do tempo, mas também pela
diversidade, no que diz respeito a cada indivíduo e às comunidades na Igreja.328
E esse Povo de Deus goza do senso da fé, de acordo com a seguinte proposição da
Lumen Gentium:
O conjunto dos fiéis, ungidos que são pela unção do santo (cf. 1Jo 2,20 e 27), não
pode enganar-se no ato de fé. E manifesta esta sua peculiar propriedade mediante o
senso sobrenatural da fé de todo o povo, quando, “desde os Bispos até aos últimos
fiéis leigos”, apresenta um consenso universal sobre questões de fé e costumes. Por
328
Cf. PHILIPS, op. cit., p. 120.
161
esse senso da fé, excitado e sustentado pelo Espírito da verdade, o Povo de Deus –
sob a direção do sagrado Magistério, a quem fielmente respeita – não já recebe a pa-
lavra de homens, mas verdadeiramente a palavra de Deus (cf. 1Ts 2,13); apega-se
indefectivelmente à fé uma vez para sempre transmitida aos santos (cf. Jd 3); e, com
reto juízo, penetra-a mais profundamente e mais plenamente a aplica na vida (cf.
Lumen Gentium 12).
329
Ibid., p. 154-159.
330
A teologia clássica denominava ecclesia triumphans, ecclesia patiens e ecclesia militans.
162
Por isso a Igreja, enriquecida com os dons de seu Fundador e observando fielmente
seus preceitos de caridade, humildade e abnegação, recebeu a missão de anunciar o
Reino de Cristo e de Deus, de estabelecê-lo em todos os povos e deste Reino consti-
tuiu na Terra o germe e o início. Entrementes, ela, enquanto cresce paulatinamente,
anela pelo Reino consumado e com todas as suas forças espera e suspira por unir-se
ao seu Reino na glória (Lumen Gentium 5).
331
RAHNER, K. Chiesa e mondo. In: Sacramentum Mundi, II: 755-757.
163
A Igreja é, por força de sua natureza intrínseca, escatológica, uma vez que ela nasce
do desígnio salvífico de Deus e tem por missão levar a humanidade para a casa de Deus. Por
isso, a salvação de Deus, já presente nela, irá realizar-se paulatinamente, visto que a Igreja
caminha na história até a consumação definitiva no final dos tempos. Com efeito, ela já realiza
a obra da salvação no hoje da história humana, como Corpo de Cristo, Povo de Deus, mas não
de forma definitiva, o que acontecerá apenas na consumação dos tempos, no fim da história.333
332
A palavra “escatologia”, de origem grega, significa o estudo (logía) das realidades últimas (éschata), ou
seja, das realidades definitivas da fé cristã.
333
MONDIN, op. cit., p. 389.
164
É que o Reino de Deus já está presente, mas não definitivamente, porque, ao mesmo
tempo, ainda deverá vir e, portanto, não está aqui. Vive-se no tempo intermédio, entre a as-
censão e a segunda vinda de Cristo à Parusia. O último dia põe luz na atual escuridão do mun-
do. Dessarte, a história humana presente não é compreensível sem a tensão escatológica. Co-
mo afirma o segundo parágrafo do n. 48 da Lumen Gentium, o futuro já está presente na Terra,
visto que Jesus Cristo realizou sua missão e voltou para junto do Pai, mas continua presente na
sua Igreja, mediante a luz do Espírito Santo, que faz da Igreja o Corpo de Cristo e o instru-
mento universal de salvação.
Mas o parágrafo anterior do número 48 da Lumen Gentium mostra que o tema prin-
cipal desse capítulo do citado documento é a realização da Igreja, ou seja, a realização plena
da comunidade. Jesus Cristo convida todos a participarem dela e nela ele comunica sua santi-
dade, destinada a florescer na felicidade final.334
Também está presente a noção de comunhão dos santos, expressa no n. 49 da Lumen
Gentium, com a terminologia “Igreja celeste” e “Igreja na Terra”, e significa a unidade de to-
dos aqueles que pertencem a Cristo. Por meio dela, acontece a troca de bens espirituais, de
acordo com o primeiro parágrafo do n. 50 da Lumen Gentium, o que leva à imitação dos san-
tos, conforme o segundo parágrafo do mesmo número da Lumen Gentium.335
334
Cf. PHILIPS, op. cit., p. 476 e 478.
335
Ibid., p. 478.
165
CAPÍTULO SEXTO
A ORGANIZAÇÃO DA IGREJA
Este capítulo visa explicitar a organização da Igreja, tendo como pano de fundo a
sua dupla estrutura, o divino e o humano, conforme a Lumen Gentium 8, que a torna uma
comunhão orgânica, de acordo com a perspectiva adotada por esta obra. Inicia-se por fun-
damentar a necessária organização da Igreja, para, depois, explicitá-la de acordo com seus
princípios organizativos, conforme ela os recebeu de Jesus Cristo e a evolução histórica
acontecida ao longo do tempo.
visto que os dons e carismas se institucionalizam ao serem reconhecidos pela Igreja. E essa
estrutura é, desse modo, sem paralelo fora da Igreja.336
Essa doutrina já está presente no ensinamento do Papa Leão XIII, em sua Encíclica
Satis Cognitum, de 29 de junho de 1896, quando escreve:
E é por isso que frequentemente as Escrituras indicam a Igreja ora “corpo” ora
“Corpo de Cristo” (1Cor 12,27). Como corpo ela é visível, e enquanto é [o Cor-
po] de Cristo, é um corpo vivo, operoso e vital, pois [Cristo] a guarda e a susten-
ta. Assim como nos animais o princípio vital é invisível e permanece totalmente
oculto, mas se revela e se manifesta no movimento e na atividade de seus mem-
bros, assim também na Igreja o princípio da vida sobrenatural se manifesta cla-
ramente através das obras que realiza. De onde segue que está em um grave e pe-
rigoso erro quem forja uma Igreja oculta e totalmente invisível, assim como quem
a considera como qualquer outra instituição humana com uma espécie de disci-
plina exterior e de culto externo [...] sem aqueles sinais que diariamente provam
de maneira patente que a Igreja toma a sua vida de Deus (DS 3300s).
Essa mesma ideia é retomada e aprofundada por Pio XII, tanto na Mystici Corporis
(29 de junho de 1943) quanto na Humani Generis (12 de agosto de 1950), que expressam o
caráter sacramental de toda a Igreja e, por meio dela, a nova concepção básica de sua visibi-
lidade. O mesmo faz o Vaticano II, que, ao afirmar a já citada relação entre o humano e o
divino na Igreja, conforme expressa a Lumen Gentium 8, mostra toda a visibilidade da Igre-
ja como “visibilidade sacramental”, ou seja, que o visível pretende mostrar e garantir o in-
visível. Com efeito, mediante o visível, o invisível tem o seu lugar e o seu sentido na Igreja.
Assim se expressa o documento conciliar, ao indicar que a organização da Igreja deve ser
entendida dentro dessa perspectiva sacramental:
336
Cf. SCHMAUS, op. cit., p. 139.
167
Além da lei sociológica da necessidade de uma organização, por parte dos grupos,
acrescente-se a constatação da presença de elementos jurídicos na Igreja, desde o início de
sua vida histórica. Seria ingenuidade querer uma Igreja desprovida totalmente de uma or-
ganização, pois já no Antigo Testamento há a presença de elementos jurídicos: a aliança é
sempre celebrada de forma jurídica. Com Abraão, por exemplo, o compromisso entre as
partes é assumido pelo simbolismo do fogo de Deus que passa pelo meio dos animais parti-
dos (Gn 15,17-20). O mesmo acontece no Novo Testamento, quando Jesus Cristo põe ele-
mentos jurídicos na nova comunidade messiânica de salvação, que é a Igreja, ao dar a ple-
nitude da autoridade a Pedro (cf. Mt 16,18-19).
Assim, a organização da Igreja e de seus ministérios tem sua origem em Jesus Cristo
e na sua primeira instituição, que é a comunidade dos discípulos de Jesus, entre os quais os
Doze formavam um grupo especial. Jesus teve, desde o início, discípulos, assim como os
profetas (Samuel e Elias, por exemplo), João Batista e os fariseus, de acordo com o costu-
me judaico, também os tiveram (Mt 22,16; Mc 2,18). Mas as relações foram distintas: Jesus
escolheu pessoalmente seus discípulos (Jo 15,15) e foi o elo entre eles. Lucas menciona os
setenta e dois (Lc 10,1-24), número que recorda os setenta anciãos, que assistiam Moisés
(Nm 11,16.24).
Todavia, um grupo especial dentre os discípulos foi constituído pelos Doze.337 Esco-
lhidos pessoalmente por Jesus, conviveram com ele durante sua vida terrena (At 1,21s),
tiveram um encontro pessoal com o ressuscitado e receberam a missão diretamente dele (Lc
24,48; At 2,32; 3,15; 4,20; 5,32; 10,39; 13,31). Esses são os três elementos necessários para
alguém ser reconhecido como apóstolo, ou mais especificamente, como membro do grupo
dos Doze.338 É que a palavra apóstolo significa mensageiro de Deus ou missionário. O no-
me, primeiro, genérico, passa, depois, a indicar os Doze, a partir da distinção feita, nos úl-
timos tempos, pela reflexão teológica.339
Contudo, Jesus chama todos os cristãos ao seguimento, que se tornou um tema-
chave dos evangelhos. E esses seus seguidores, na Igreja primitiva, eram chamados “discí-
pulos de Cristo” (At 6,1.7). Tertuliano, referindo-se à perseguição e morte dos cristãos, di-
337
DELORME, J. II. Les disciples et les douze. In: DELORME, J. (Org.). Le ministère et les ministères selon
le Nouveau Testament. Paris: Seuil, 1974, p. 164-180.
338
Cf. SCHMAUS, op. cit., p. 35-37.
168
zia que o sangue dos mártires é semente de novos cristãos340, aludindo ao convite do Mes-
tre: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz cada dia e siga-
me” (Lc 9,23).
É por isso que a Igreja do Novo Testamento, o povo da nova aliança, ou o novo Po-
vo de Deus, vai se constituindo na herança de Jesus Cristo, transmitida pelo grupo dos Do-
ze. Com efeito, a comunidade da nova aliança é apostólica, isto é, fundada na missão e no
ministério dos Doze. Assim, o ministério apostólico se constitui no ministério central da
nova aliança.
Pois aí se verifica o princípio da encarnação, aplicado analogamente à Igreja, por-
que, por meio dela, acontece a salvação de Jesus Cristo, que a torna sacramento de salva-
ção. E nisso se manifesta o respeito divino pela estrutura antropológica do ser humano: a
pessoa necessita ver e sentir também visivelmente o que passa e acontece na sua interiori-
dade. Os sete sacramentos expressam estrutura idêntica, pois sempre o sinal visível está
indicando a graça invisível operada por Deus, através daquele sacramento particular.
Esse princípio é aplicado, validamente, à organização da Igreja, como também ao
primado e ao episcopado. Aí se manifestam uma forma e uma essência. A essência é a ori-
gem divina do poder da Igreja, proveniente da autoridade de Jesus Cristo, e a forma é a
historicização dessa essência. O divino se historiciza de acordo com as situações sociais,
culturais e políticas de cada época. A essência se apresenta sempre na forma histórica. Não
se encontra, todavia, uma essência pura, isto é, desprovida da situação histórica. Portanto,
não se pode esquecer que o elemento divino (a origem divina da organização da Igreja)
sofre a influência das situações históricas de cada época, enquanto seu rosto visível se
transforma, com a consciência de que “passa a figura deste mundo” (1Cor 7,31).
Como exemplo, considerando os séculos passados, do ponto de vista histórico, po-
der-se-ia dizer que o papado poderia ter-se desenvolvido de modo diferente do que se de-
senvolveu. Mas isso não pode conduzir à afirmação de que o primado, hoje existente na
Igreja, é um desvio do conteúdo proveniente de Jesus Cristo. A verdade é que cada sucessor
de Pedro vive seu ministério petrino conforme suas características próprias, de acordo com
339
DELORME, Diversité et unité des ministères d’après le Nouveau Testament. In: DELORME, J. (Org.). Le
ministère et les ministères selon le Nouveau Testament, p. 288-297.
340
TERTULIANO, Apologeticum 50. In: PL 1,534. O Papa João Paulo II usa esta expressão na Carta Apostó-
lica Novo Millennio Ineunte 41: “Sanguis martyrum semen christianorum”.
169
sua personalidade, cultura e formação, dando-lhe um cunho pessoal.341 Por mais original
que seja a forma dada por um Papa ao seu desempenho do primado, no entanto, em seu
âmago está sempre o poder supremo recebido de Cristo, vivido sob a assistência do Espírito
Santo, no tempo.
Na verdade, a forma visível que a Igreja toma em sua feição histórica é um meio, e
não um fim. Embora o sinal externo possa e deva mudar, sempre deverá ser sinal de salva-
ção, porque Deus continua salvando por meio da caducidade e transitoriedade dos sinais
externos, usados como meios de salvação.342 Pio XI já manifestava essa consciência, ao
declarar, a 28 de fevereiro de 1927, que “os homens não são para a Igreja, mas é a Igreja
que está para os homens”.
Nesse particular, a Igreja enfrenta tentações, seja a de suprimir um dos dois elemen-
tos, seja a de desconsiderar a união de ambos. Assim, a tentação de considerar a Igreja ape-
nas como instituição leva em conta somente o dado sociológico, enquanto a de considerar
tão só o seu lado espiritual nega a sua organização. Não levar em conta a união dessas duas
dimensões esquece a sacramentalidade da Igreja.
O Sínodo de 1985 chama a atenção para essas tentações descritas acima e, também,
hoje presentes: “Por outro lado, por causa de uma leitura parcial do Concílio, foi feita uma
apresentação unilateral da Igreja como estrutura puramente institucional, despojada de seu
mistério” (Relatio Finalis I, 4). E o mesmo Sínodo continua, como já foi citado anterior-
mente: “Não podemos substituir uma falsa visão unilateral da Igreja como puramente hie-
rárquica com uma nova concepção sociológica também unilateral” (Relatio Finalis II, A,
3).
341
Assim, os elementos profanos foram introduzidos desde o tempo do Imperador Constantino, mas particular-
mente desde Gregório Magno. Os Papas Gregório VII, Inocêncio III e Bonifácio VIII deram esplendor externo ao
primado. Quiçá, foram introduzidos elementos que aprofundaram o ministério papal e até elementos que o onera-
ram negativamente. Uma pesquisa histórica poderá revelar esse fato.
170
laicato. No entanto, uma análise mais aprofundada leva a indicar a estrutura fundamental da
Igreja, ou a sua organização básica, como a dimensão carismático-institucional, que lhe é
própria. Em outras palavras, novamente deve-se acenar para a dimensão divino-humana da
Igreja, de acordo com a reflexão já feita anteriormente, pois aquela é consequência desta,
sem esquecer que a unidade entre as duas dimensões acontece por obra do Espírito Santo,
conforme também já foi referido.
Com G. Ghirlanda, pode-se defender a posição de que a estrutura fundamental da
Igreja não pode ser reduzida à determinação de sua distinção, embora essencial, entre leigos
e clérigos, visto que laicato e ministério ordenado são carismas na Igreja, dentro de uma
muito mais ampla variedade de carismas. Isso leva a entender a Igreja com uma estrutura de
comunhão e, ao mesmo tempo, de missão, pois ela se torna comunhão de todos os partici-
pantes da mesma missão, que brota da unidade da missão de salvação que a Igreja recebeu
de Cristo. Participam dessa única missão só aqueles que estão unidos pelo vínculo da co-
munhão na fé e na caridade criada pelo Espírito Santo.343 Daí entender-se a Igreja como
uma comunhão orgânica.
Ultimamente houve uma consagração de uma certa oposição entre o carisma e o
poder, entendendo-os como duas estruturas de todo opostas e o poder como um desvirtua-
mento da intenção de Cristo, que pensava numa Igreja meramente carismática. Ainda mais,
a instituição seria fruto da ação de Pedro, ao passo que o carisma seria fruto de Paulo, resul-
tando no que foi convencionado chamar linha petrina e paulina na Igreja. Outros ainda
afirmam que a mais tradicional seria a carismática, suplantada pela institucional, quando as
comunidades carismáticas desapareceram totalmente.
No entanto, a tese da oposição entre “instituição e carisma” carece de fundamento
bíblico. Ela não corresponde à mentalidade judaica nem à cristã, porque todo ministério é
um carisma, um dom recebido de Deus.344 O que existe é unidade na diversidade, pois insti-
tuição e carisma são complementares.
342
Cf. AUER, op. cit., p. 137-139.
343
Cf. GHIRLANDA, G. Chiesa universale, particolare e locale nel Vaticano II e nel Nuovo Codice di Diritto
Canonico. In: LATOURELLE, R. (a cura), Vaticano II: Bilancio e prospettive venticinque anni dopo (1962-
1987). Roma e Assisi: Pontificia Università Gregoriana e Cittadella, 1987, p. 855, 866s.
344
LEMAIRE, Les ministères aux origines de l’Église, p. 191. Ele vê, nessa posição, a tese de Harnack, que
foi severamente criticada (cf. nota 1 e 2, p. 191, da obra citada).
171
345
DELORME, J. Diversité et unité des ministères d’après le Nouveau Testament. In: DELORME, op. cit., p.
336.
346
DELORME, op. cit, p. 341. A Comisão Internacional de Teologia diz: “Assim, é uma projeção indevida
dos nossos problemas modernos ver na Igreja do final do primeiro século e início do segundo uma luta entre
os carismáticos e os ministérios institucionalizados. Os ‘homens do Espírito’ são os ‘epískopoi’, como Inácio
de Antioquia, o ‘théophore’ (Ad. Eph. 9,2); é Policarpo de Esmirna, a didascalia apostólica, como diz o autor
de seu Martírio (XVI,2). A Didaché nos faz assistir à passagem de uma etapa a outra, sem que houvesse um
conflito. A polêmica, ao contrário, cai sobre os novidadeiros” (COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIO-
NAL, Le ministère sacerdotal. Paris: Seuil, 1971, p. 68).
347
Ibid., p. 341. LEMAIRE, A. “Les épitrês pastorales. B: Les ministères dans l’Église”. In: DELORME, Le
ministère et les ministères dans le Nouveau Testament, p. 104s.
348
G. Martelet considera erro falar de “dupla” estrutura da Igreja dos primórdios ou de uma pluralidade de
estruturas, pois, a rigor, havia só uma estrutura para São Paulo: a que vem do Espírito Santo por meio dos
apóstolos (cf. MARTELET, G. Teologia del sacerdozio. Duemilla anni di Chiesa in questione. Brescia: Que-
riniana, 1986, p. 301).
172
como algo que faz parte intrínseca de seu ser e de sua missão, o que significa, igualmente,
aceitar que ela está sujeita à influência da história, visto ela estar realizando sua missão no
mundo, o que não lhe tolhe, de um lado, sua identidade, e, por outro, não a torna imper-
meável à época histórica na qual está inserida. A propósito, vale a recomendação de Paulo:
“[...] aqueles que usam deste mundo, como se de fato não o usassem. Pois passa a figura
deste mundo” (1Cor 7,31).
349
Essa distinção é questionada por alguns teólogos, que a julgam fruto de um processo de discriminação
histórica ocorrido a partir do século III, quando os clérigos foram se separando dos leigos. Ver, por exemplo:
FORTE, B. A missão dos leigos. São Paulo: Paulinas, 1987, p. 30-37; SCHILLEBEECKX, Plaidoyer pour le
peuple de Dieu, p. 162ss.
173
batizados que exercem uma função ou um ministério determinado na Igreja. Contudo, todos
os cristãos, em virtude do sacramento do Batismo, são chamados à mesma vocação à santi-
dade, mas exercendo diferentes funções e serviços na Igreja. A diferença não está na di-
mensão antropológica nem nas capacidades diferentes, dotes ou inclinações pessoais, mas
na esfera teológica. As tarefas diferentes procedem da participação diferente na missão,
fundamentada na essência sacramental da Igreja. A diferença na comunidade dos batizados
é fruto do sacramento da Ordem. Por isso, a comunidade eclesial é formada por pessoas
batizadas ordenadas e não ordenadas, conforme os capítulos terceiro e quarto da Lumen
Gentium, em decorrência dos capítulos primeiro e segundo, que destacam a pertença de
todos os batizados ao mesmo e único Povo de Deus.
350
Ministério, n. 37. In: CONSELHO MUNDIAL DE IGREJAS. COMISSÃO DE FÉ E CONSTITUIÇÃO.
Batismo. Eucaristia. Ministério. Convergência da fé. Rio de Janeiro: CONIC/CEDI, 1983, p. 49.
174
351
AUER, op. cit., p. 213s.
175
a) Os Santos Padres
Clemente de Roma, como Paulo na espístola aos Filipenses, cita dois grupos de mi-
nistros: os bispos e os diáconos, seus auxiliares.352 Esses bispos foram instituídos pelos
apóstolos, agindo em nome de Jesus Cristo. E os apóstolos deixam instruções para que os
bispos, por sua vez, instituam outros homens comprovados, para que a missão continue. O
texto de Hb 13,7.17.24 refere-se a tal.
A Doutrina dos Apóstolos ou Didaqué, provavelmente compilada entre os anos 90-
100 d.C., testemunha a eleição de diáconos e bispos, no capítulo XV.353 A comunidade reu-
nida é quem escolhia esses guias. A epístola a Policarpo, em meados do século II, escrita
por Inácio de Antioquia, dá testemunho idêntico.354
Inácio de Antioquia († 126), no final do século I, nomeia três grupos: bispos, presbí-
teros e diáconos. O bispo está em nível superior, pois preside a comunidade, assistido pelo
colégio dos presbíteros, além dos diáconos. Em todas as suas seis cartas, Inácio afirma a
existência de um bispo, um colégio de presbíteros e outro de diáconos nas Igrejas. O bispo
é o chefe; os presbíteros formam o conselho e colaboram com ele. Os diáconos são minis-
tros da Igreja.355 Isso também está testemunhado nas epístolas pastorais, embora nestas nem
sempre apareça tão claramente distinta a posição do presbítero daquela do bispo.356 No de-
correr do século II, os três graus do sacerdócio tornam-se a forma geral de organização da
Igreja.
Entre outros testemunhos, pode-se citar Pastor de Hermas, em que os presbíteros
são chamados chefes das comunidades e presidentes das mesmas. Ireneu de Lião (140-202)
diz que a tradição apostólica se preservou mediante a sucessão dos presbíteros na Igreja,
para contrapor-se à doutrina gnóstica. Ele também cita a lista dos bispos de Roma como
exemplo da sucessão apostólica, que para ele é a garantia da reta tradição apostólica.357
Também Tertuliano, de forma análoga, vê na sucessão ininterrupta dos apóstolos a garantia
352
Cf. Primeira Carta de Clemente 42,2 e 42,4.
353
DIDAQUÉ OU DOUTRINA DOS APÓSTOLOS. Introdução, tradução e comentário de U. ZILLES. Petró-
polis: Vozes, 1970, p. 28 e 67-69.
354
CARTAS DE SANTO INÁCIO DE ANTIOQUIA. Carta a Policarpo 6,1. Introdução, tradução e notas de
Paulo Evaristo Arns. Petrópolis: Vozes, p. 87.
355
Inácio de Antioquia, em suas cartas, nomeia 60 vezes os bispos, 22 vezes os presbíteros e 15 vezes os
diáconos (cf. CARTAS DE SANTO INÁCIO DE ANTIOQUIA, op. cit., p. 19).
356
Ver sobre esse tema, por exemplo, LEMAIRE, op. cit., p. 102-117.
176
da permanência na apostolicidade das Igrejas, porque é dessa maneira que as Igrejas apos-
tólicas demonstram sua origem.358 Em Cipriano († 258) a sucessão no ministério apostólico
se confirma e se referenda mediante o reconhecimento dos bispos vizinhos, por meio do
qual se expressa a colegialidade dos verdadeiros bispos e com o qual se estabelece a unida-
de dos bispos verdadeiros, diante de numerosos falsos na época, e se assegura a verdade da
doutrina apostólica.359 Ainda podem ser citados Clemente de Alexandria, Orígenes, Hipóli-
to de Roma e Crisóstomo, que testemunham, no tempo do Concílio de Niceia (325), os três
graus do ministério em todas as comunidades cristãs.360
Até o Vaticano I, as afirmações do Magistério se restringem a asseverar a existência
dos bispos e a regular as relações entre bispos e presbíteros. Por exemplo, contra Abelardo,
no Concílio de Sens, em 1140 (DS 732); no Concílio de Florença, em 1431, no Decreto
para os Armênios (DS 1318). Também nas declarações contra Lutero, quando ele dizia que
os apóstolos não tiveram sucessores. O Concílio de Trento, na sessão XXIII, no cânon 6,
declara e define solenemente que a constituição hierárquica da Igreja é um dogma de fé:
“Se alguém diz que na Igreja Católica não há hierarquia instituída por uma disposição divi-
na, que se compõe de bispos, presbíteros e ministros, seja anátema” (DS 1776). Anterior-
mente, já Leão X afirmara a sucessão dos Doze (DS 1476). Ainda, Trento afirma a diferen-
ça entre bispo e presbítero, no poder de consagrar e confirmar (DS 1777).
O Vaticano I ensina a “ordinaria et immediata jurisdictionis potestas” dos bispos
em suas dioceses (DS 3061). O mesmo faz, mais tarde, Leão XIII, em 1896 (DS 3307); Pio
XII, ao referir-se à Primeira Carta de Clemente, ensina que os bispos são “divina instituti-
one sucessores apostolorum” (DS 3804).
O Vaticano II afirma, claramente, na Lumen Gentium 20 a 24, o episcopado como
autêntico sacramento, apesar de não falar, explicitamente, da doutrina da sucessão apostóli-
ca, porque considerou desnecessário, diante da evidência desta na consciência e na vida da
Igreja universal a partir do século III.361
357
Cf. IRENEU, Adversus Haereses III 2,2 e 3,1.
358
TERTULIANO, De praescriptione 32.
359
CIPRIANO, Epistola 45,3 68,3s.
360
A respeito da evolução histórica dos ministérios, ver HACKMANN, G. L. B. Servir a Cristo na comuni-
dade. O ministério presbiteral em Edward Schillebeeckx. São Paulo: Loyola, 1993, p. 109-157.
361
Cf. AUER, op. cit., p. 219.
177
Esse princípio afirma, portanto, que os bispos são sucessores dos Doze apóstolos.
Isso acontece por uma ação deles em obediência a um mandato missionário recebido de
Jesus Cristo, no qual está incluído, embora não formulado expressamente. A sucessão acon-
tece tanto no ministério da palavra quanto na função ministerial: é a chamada apostolicida-
de de ministério e apostolicidade de doutrina. Esta se opera mediante a imposição das mãos
e da consagração.362
Embora não se encontre, em nenhum lugar da Escritura, uma palavra explícita em
que Cristo tenha ordenado instituir sucessores, essa providência dos apóstolos estava inclu-
ída na própria tarefa confiada a eles. Assim, a Igreja é apostólica e a missão perdura através
do espaço e do tempo. A doutrina eclesial da sucessão deve ser vista da seguinte maneira:
a) a partir da compreensão da Igreja em sua totalidade, pois erraria quem a
pensasse unicamente como transmissão individual de alguns poderes ministeriais do consa-
grante ao consagrado;
b) o lugar especial dessa doutrina deve ser visto exclusivamente na conexão
entre o ministério apostólico e o ministério episcopal, pois a cátedra é o espaço vital no
qual se preserva e garante a identidade de palavra, sacramento e ministério na Igreja, atra-
vés de todos os tempos e lugares;
c) a favor de que só conta a fórmula apóstolo-bispo, podem-se aduzir as se-
guintes doutrinas, já estabelecidas desde o século III: 1 – a doutrina da diferença decisiva
de graus entre episcopado e presbiterato; 2 – só os bispos são consagrados por vários ou
todos os bispos presentes, manifestando, desse modo, que eles formam entre si um verda-
deiro collegium episcoporum; 3 – só o bispo possui o poder de ordenar, por meio do qual
consagra sacerdotes para as suas dioceses como colaboradores, pois só ele possui a força
geradora espiritual que mantém vivo o ministério apostólico em todos os tempos e lugares.
Assim, como afirma J. Auer, “esta função vital é um genuíno lugar teológico da sucessão
apostólica na Igreja”.363
362
Cf. ibid., p. 220.
363
Cf. ibid., p. 220.
178
Esse é um ensinamento do Vaticano II, resgatado por ele da tradição eclesial antiga.
A doutrina da colegialidade episcopal encontra-se no número 22 da Lumen Gentium e na
Nota Prévia, inserida no final do texto oficial do mesmo documento conciliar. Também se
encontra na Christus Dominus n. 4. Além da palavra colégio, a Lumen Gentium emprega as
expressões ordo, corpus ou communio episcoporum (cf. Lumen Gentium 22). O fundamen-
to teológico é muito simples: o caráter vicário e representativo do ministério episcopal, pois
ele é exercido em nome de Cristo, do qual deve refletir a unidade dos objetivos e ações na
Igreja. Por meio dos bispos, é Cristo mesmo quem prega o Evangelho, santifica e guia o
Povo de Deus, sendo, portanto, os ofícios de ensinar, santificar e reger exercidos colegial-
mente.
A origem desse conceito é o colégio dos Doze apóstolos, cujo fundamento encontra-
se nas instruções dadas por Cristo a eles (cf. Mt 18,18; 28,19; Jo 20,21; At 2,42s; 4,33ss;
6,1s; 8,14; 15; Gl 1,17.19; 1Cor 9,1.2.5; 15,7.9; Ef 2,20; 3,5).
O termo colégio deve ser entendido no sentido de que os bispos formam uma comu-
nidade ou “grupo estável”. Não deve ser entendido num sentido meramente técnico ou es-
tritamente jurídico, pois poderia indicar igualdade de direitos. Isso acontece por causa do
Papa: ele não é um entre iguais, visto que o primado o diferencia dos demais bispos (cf.
Nota Prévia 1). Portanto, para o colégio episcopal, não vale o princípio do “inter pares”,
mas o “primus inter pares”, porquanto o Papa, como chefe, se distingue dos demais bispos
do mundo inteiro, sendo o primeiro dentre iguais.
O colégio episcopal sempre é entendido como os bispos do mundo inteiro sob a
chefia do Papa, em verdadeira comunhão hierárquica. Sem isso não há colégio episcopal.
Isso significa que cada bispo é sinal e garantia da unidade da Igreja e torna presente a única
Igreja universal em sua Igreja particular.364 E a colegialidade se torna visível no concílio
ecumênico, quando é exercido o poder supremo que o colégio tem sobre toda a Igreja. Essa
doutrina encontra-se na Nota Prévia n. 3.
364
Cf. ibid., p. 224.
179
o Papa, como Pastor Supremo da Igreja, pode exercer o seu poder em qualquer
tempo, à sua vontade, como é exigido pelo cargo. Ao contrário, o colégio, embora
sempre existindo, nem por isso age permanentemente com ação estritamente co-
legial, como atesta aliás a Tradição da Igreja (cf. Nota Prévia 4).
365
MONDIN, op. cit., p. 324 e 326.
366
Um estudo sobre instituição, finalidades e natureza dos Sínodos dos bispos encontra-se na seguinte tese de
doutorado: MAURIZIO CLAUDIO BRAVI, Il sinodo dei vescovi. Istituzione, fini e natura. Indagine
teologico-giuridica. Roma: Pontificia Università Gregoriana, 1995, 397p.
181
O Papa João Paulo II convocou algumas Assembleias Especiais do Sínodo com fi-
nalidade particular. São as seguintes:
14-31.01.1980 Sínodo particular A situação pastoral nos Países Reconnaissants envers Dieu
para os Países Baixos (31.01.1980)
Baixos
28.11- I Assembleia Para que sejamos testemu- Tertio millennio iam (13.12.1991)
14.12.1991 Especial para a nhas de Cristo que nos liber-
Europa tou
10.04- Assembleia Es- A Igreja na África e a sua Ecclesia in Africa (14.09.1995)
08.05.1994 pecial para a missão evangelizadora peran-
África te o ano 2000: “Sereis minhas
testemunhas” (At 1,8)
26.11- Assembleia Es- Cristo é a nossa esperança, Uma esperança nova para o Líbano
14.12.1995 pecial para o renovados pelo seu espírito, (10.05.1997)
Líbano solidários testemunhamos o
seu amor
12.11- Assembleia Es- Encontro com Jesus Cristo Ecclesia in America (22.01.1999)
11.12.1997 pecial para a vivo: o caminho para a con-
América versão, a comunhão e a soli-
dariedade na América
19.04- Assembleia Es- Jesus Cristo, o Salvador, e a Ecclesia in Asia (06.11.1999)
14.05.1998 pecial para a sua missão de amor e de
Ásia serviço na Ásia: “Eu vim para
que tenham vida e vida em
abundância” (Jo 10.10)
22.11- Assembleia Es- Jesus Cristo: seguir o seu Ecclesia in Oceania (22.11.2001)
12.12.1998 pecial para a caminho, proclamar a sua
Oceania Verdade, viver a sua Vida:
um chamado para o povo da
Oceania
1-23.10.1999 II Assembleia Jesus Cristo, vivo na sua Ecclesia in Europa (28.06.2003)
Especial para a Igreja, fonte de esperança
Europa para a Europa
04.10- II Assembleia A Igreja na África ao serviço Africae Munus (19.11.2011)
25.10.2008 Especial para a da reconciliação, da paz e da
África justiça
10.10- Assembleia Es- Oriente Médio: comunhão e Ecclesia in Medio Oriente
182
Depois do estudo feito anteriormente, cabe, neste momento, iluminar a situação das
Conferências após o Código de Direito Canônico de 1983. É o que se pretende fazer a se-
guir em dois momentos. Inicia-se pela análise do Sínodo de 1985, pois faz uma referência
explícita às Conferências Episcopais. Em seguida, aborda-se a Carta Apostólica Apostolos
Suos, sob a forma de Motu Proprio, sobre a natureza teológica e jurídica das Conferências
Episcopais, procurando dar uma resposta ao pedido e às proposições feitas pelo Sínodo de
1985. Por fim, algumas questões que podem ser colocadas nos dias de hoje.
Entre os temas abordados pelo Sínodo Extraordinário de 1985, convocado pelo Papa
João Paulo II, para celebrar, verificar e promover o Concílio Ecumênico Vaticano II367,
encontra-se o das Conferências Episcopais. Apesar de o relatório introdutório aos trabalhos,
elaborado pelo Cardeal Danneels com base nas respostas dadas pelas Conferências ao ques-
tionário368, ter dado pouco relevo ao tema, os debates demostraram uma tendência diferen-
te, pois tanto as intervenções quanto as discussões por grupos linguísticos deram um lugar
de destaque às Conferências Episcopais.
a) As intervenções
367
Este é o argumento central do Sínodo Extraordinário de 1985.
368
O questionário, com nove perguntas, foi enviado, a 1º de abril de 1985, para todos os membros com direito
de participar do Sínodo (cf. ANTÓN, A. Le conferenze episcopali. Instanze intermedie? Lo stato teologico
della questione. Pauline: Cinisello Balsamo, 1992, p. 163).
183
b) A “Relatio Finalis”
369
Cf. ibid., p. 173-174.
184
O Relatório Final dos trabalhos do Sínodo, publicados assim como foram entregues
ao Santo Padre, acolheu os tópicos mais significativos sobre o tema das Conferências Epis-
copais, que afloraram durante os debates.
Em primeiro lugar, a Eclesiologia de comunhão aparece como o horizonte no qual
deve ser colocada a Conferência Episcopal. A. Antón é de opinião de que essa escolha ad-
quire um valor hermenêutico para o teólogo e para o canonista na busca de compreender a
sua natureza teológica e a sua competência jurídica.370 Não poderia ser diferente, pois o
Sínodo afirma que a Eclesiologia de comunhão “é a ideia central e fundamental” dos do-
cumentos do Concílio Vaticano II (cf. Relatio Finalis II, c, 1).
Em segundo lugar, as Conferências Episcopais aparecem como “realizações parciais
da colegialidade, entendida em sentido estrito”. O n. 4 da Relatio Finalis aborda o tema da
colegialidade, que tem seu fundamento sacramental na Eclesiologia de comunhão:
Desse texto, vê-se que a Relatio indica diversos graus da atividade colegial. Inicial-
mente, mostra que o afeto colegial, ou o espírito colegial (cf. Lumen Gentium 23), vai além
370
Ibid., p. 183.
185
371
Ibid., p. 185.
186
pelo direito, não se pode afirmar que as Conferências Eclesiásticas sejam só de direito ecle-
siástico. Mesmo que fossem, de tal tese não se pode concluir que não derivem do princípio
teológico da colegialidade, pois nesse princípio se fundamentam;
– terceiro: a Conferência Episcopal é uma aplicação concreta do afeto colegial (af-
fectus collegialis) e, por isso, deve buscar o bem e a unidade da Igreja:
Por meio das Conferências Episcopais o afeto colegial é levado à aplicação con-
creta (cf. LG 23). Ninguém duvida da sua utilidade pastoral, e, mais ainda, da sua
necessidade nas circunstâncias atuais. [...] No seu modo de proceder, as Confe-
rências Episcopais devem ter presente o bem da Igreja, a saber, o serviço da uni-
dade, e a responsabilidade inalienável de cada bispo para com a Igreja universal e
a sua Igreja Particular (cf. Relatio Finalis II, C, 5);
– quarto: o Sínodo deseja que se estude o status teológico das Conferências Episco-
pais:
Porque as Conferências Episcopais são tão úteis, antes, necessárias no trabalho
pastoral atual da Igreja, deseja-se que o estudo de seu status teológico e, sobretu-
do, a questão da sua autoridade doutrinal sejam explicitados de modo mais claro e
mais profundo, tendo-se em consideração o que é apresentado pelo Concílio no
Decreto Christus Dominus, n. 38, e pelo Código de Direito Canônico nos câno-
nes 447 e 753 (Relatio Finalis II, C,8,b).
O Papa João Paulo II assim também quer, conforme expressou em seu discurso à
Cúria Romana, de 28 de junho de 1986, ao recomendar que os estudos pedidos pelo Sínodo
sejam realizados, diante das esperanças e temores suscitados pelas Conferências Episco-
pais;
– quinto: o Sínodo também recomenda que se estude em que medida aplicar o prin-
cípio de subsidiariedade para a Igreja: “Recomenda-se um estudo que considere se o prin-
cípio da subsidiariedade, vigente na sociedade humana, se pode aplicar na Igreja, e em que
grau e sentido se possa ou deva fazer tal aplicação (cf. Pio XII, AAS 38, 1946, p. 144)” (cf.
Relatio Finalis II, C, 8, c).
a) Histórico
Procurando dar uma resposta ao Sínodo de 1985, a Carta Apostólica se propõe res-
ponder aos desejos da Assembleia Sinodal, conforme vem expresso na Relatio Finalis. Esse
187
desejo referia-se a esclarecer, em primeiro lugar, o status teológico das Conferências Epis-
copais, em relação com o munus docendi, e, em segundo lugar, seu estatuto jurídico, de tal
forma a “estabelecer uma práxis das referidas Conferências que seja teologicamente funda-
da e juridicamente segura” (Apostolos Suos 7).
A Carta Apostólica foi publicada treze anos após a conclusão do Sínodo. A explica-
ção para tão grande distância entre a conclusão do Sínodo e a publicação do documento
deve-se ao longo percurso de preparação que antecedeu a elaboração definitiva do mesmo.
Ele passou por várias redações, nas quais se procurou incorporar os pareceres das 47 Con-
ferências Episcopais e o parecer individual de 63 bispos, que responderam ao primeiro Ins-
trumentum Laboris.372
O primeiro Instrumentum Laboris, intitulado “Status teológico e jurídico das Confe-
rências Episcopais”, datado de 1º de julho de 1987373, foi elaborado por um grupo interdi-
casterial de estudo e enviado em janeiro de 1988. Dom Francesco Monterisi, na apresenta-
ção da Apostolos Suos, foi muito sincero ao dizer que as respostas foram tão críticas que
não restou outra alternativa a não ser redigir um documento completamente novo.
O segundo texto-base foi elaborado, no ano de 1990, por uma comissão composta
por bispos e especialistas em Teologia e Direito Canônico, sendo discutido no decorrer des-
se ano. De 1991 a 1996, o texto foi objeto de exame e discussão. Atendendo a sugestão da
Congregação dos Bispos, o Papa confiou o documento aos cuidados da Congregação para a
Doutrina da Fé para um novo e definitivo exame. Por fim, o texto foi assinado pelo Papa
João Paulo II, no dia 21 de maio de 1998, publicado em forma de Motu Proprio.374
b) O documento
372
ANTÓN, A. La carta apostólica MP ‘Apostolos Suos’ de Juan Pablo II: Se reafirman algunos puntos cla-
ves, mientras muchos otros quedan abiertos a la investigación teológica y canónica. In: Gregorianum 80, 2
(1999), p. 264.
373
O texto do Instrumentum Laboris encontra-se em Enchiridion Vaticanum. Documenti ufficiali della Santa
Sede (1986-1987), vol. X. Dehoniane: Bologna, 1991, p. 1286-1305. O instrumento de trabalho, após a intro-
dução, é composto por duas partes: a primeira, sobre o status teológico das Conferências Episcopais; a segun-
da, sobre o status jurídico das Conferências Episcopais.
374
Cf. ANTÓN, La carta apostólica..., p. 266s.
188
O documento, portanto, tem um alcance bem preciso: não pretende abordar toda a
questão das Conferências Episcopais. O Cardeal J. Ratzinger comenta, na apresentação da
Carta Apostólica, que ela não pretende abordar toda a problemática inerente à relação entre
a Igreja universal e a Igreja Particular, em cujo horizonte deve ser situada a natureza das
Conferências Episcopais. Muito menos responder às inúmeras questões postas pelos teólo-
gos, nos últimos anos, sobre o fundamento teológico das Conferências Episcopais. Por essa
razão, o Cardeal Ratzinger esclarece que o objetivo do documento não é pôr um fim a apro-
fundamentos teológicos ulteriores, “no quadro da fidelidade e continuidade doutrinal em
sintonia com os ensinamentos do Magistério”.375
A. Antón pensa que o tipo de documento, um Motu Proprio, que é a forma ordinária
de emitir decisões com valor legislativo, por parte de Pastor supremo da Igreja376, sugere
que o centro de gravitação da Apostolos Suos se situa nas normas complementares sobre as
Conferências Episcopais. Isso significa que convém situá-la no âmbito disciplinar e não no
doutrinal, embora esta parte seja a mais extensa. Contudo, os pontos doutrinais têm por
finalidade assegurar teológica e juridicamente as novas normas (a última parte do documen-
to) e garantir a eficácia da ação pastoral das Conferências Episcopais. Essa interpretação
está de acordo com a finalidade específica da Carta Apostólica, conforme foi comentado
anteriormente.377
375
RATZINGER, J. La presentazione del Card. Joseph Ratzinger. In: L’Osservatore Romano (24.07.1998), p.
6, col. 1 (apud ANTÓN, op. cit., p. 267).
376
Cf. CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO, cânon 29.
377
ANTÓN, La carta apostólica..., p. 267.
189
378
H. Legrand afirma que essa é a “afirmação mais paradoxal” da Apostolos Suos, porque retrata uma com-
preensão de colegialidade que isola o Colégio Episcopal das outras instituições presentes no Vaticano II (cf.
LEGRAND, H. O ministério do Papa. Primado e colegialidade no Vaticano II. In: DOS ANJOS, M. FABRI
190
É interessante notar que a Apostolos Suos fala da finalidade das Conferências Epis-
copais em termos de “colaboração”, “consulta”, “apoio”, “ajuda fraterna”, “intercâmbio de
pontos de vista”, “união de esforços e intentos” e “promover o bem comum” (5; 6; 13; 15 e
17). Assim, está reconhecida a importância delas como ajuda subsidiária aos bispos no
exercício do ministério episcopal em suas Igrejas Particulares. Igualmente, para o docu-
mento, não há dúvida de que as Conferências Episcopais se constituem em uma instância
legislativa decisória, dentro dos limites previstos e sob as condições determinadas pelo di-
reito universal, pelos próprios estatutos e em conformidade com as normas estabelecidas
por ele mesmo.
A dinamicidade da colegialidade está no fato de que o exercício da colegialidade
leva a buscar formas de atuação que melhor respondam aos postulados de cada situação
histórica. Em virtude desse fundamento ontológico-sacramental, comum a todas as realiza-
ções da colegialidade, é preciso reconhecer a índole dinâmica da mesma.379 Aqui se descor-
tina um sem-fim de iniciativas pastorais a serem tomadas pelas Conferências Episcopais,
com a finalidade de realizar a missão evangelizadora da Igreja.
(Org.). Bispos para a esperança do mundo. Uma leitura crítica sobre os caminhos de Igreja. Paulinas: São
Paulo, 2000, p. 107.
379
Cf. ibid., p. 277.
191
ontológico-sacramental. Sujeito do afeto colegial é cada bispo, ao reger a sua Igreja Particular
como uma “porção” da Igreja universal (cf. Lumen Gentium 23), e com consciência de que
deve estendê-lo ao bem de toda a Igreja e a grupos de bispos reunidos em Conferências de
nação ou território, que exercem em conjunto o seu múnus pastoral (cf. Christus Dominus 38).
Dessa forma, o documento situa a pista para declarar o estatuto teológico das Confe-
rências Episcopais com base na atividade verdadeiramente colegial, embora parcial, exercida
por elas.
380
Cf. ibid., p. 277, nota 32 e 34.
381
Apud ANTÓN, La carta apostólica..., p. 285.
192
outro pilar na Igreja além dos dois já existentes: o Colégio Episcopal com o sucessor de
Pedro como cabeça e o bispo em sua Igreja Particular.
6). Sempre foi uma tarefa difícil harmonizar a unidade com a diversidade, além da dificul-
dade de trabalhar os conflitos, em uma Igreja acostumada a viver e a prezar a unidade.
e) As normas complementares
382
Cf. ibid., p. 293.
194
383
A propósito, ver CONGAR, Y. La ‘réception’ comme réalité ecclésiologique. In: Revue des Sciences Phi-
losophiques et Théologiques 56 (1972), p. 369-403. Há uma publicação abreviada do mesmo artigo em Conci-
lium 1972/7, p. 886-907.
384
DENZLER, G. Autoridade e recepção das conclusões conciliares na cristandade. In: Concilium 187
(1983/7), p. 22s; ROUTHIER, G. La réception d’un concile. Paris: Du Cerf, 1993, p. 57s.
385
ALBERIGO, G. A sinodalidade após o Vaticano II. In: DOS ANJOS, op. cit., p. 132s.
195
386
CHAMOSO, R. SÁNCHEZ. La sinodalidad, santo y seña de la Iglesia-comunión. In: Nuevo Mundo 181
(1998), p. 59.
387
Cf. ANTÓN, Le conferenze..., p. 296.
196
munial e colegial, que, realizado em nível local, por meio da riqueza da diversidade das
Igrejas, expressa e mantém a comunhão da Igreja Católica una e indivisa.388
Ainda se pode acrescentar a compreensão que Cipriano tem de Concílio, pois refere-
se a ele com a expressão in unum convenire, para indicar tanto a assembleia (concilium)
quanto o parecer comum (commune concilium) e o seu consenso (consensum). Para ele, era
fundamental o procedimento para se chegar ao consenso. A unanimidade dos bispos que
deviam tomar a decisão, mais a dos outros aos quais cumpriria aderir ou colocá-la em práti-
ca, deveria ser a maior possível. Quanto maior a aceitação pelas Igrejas vizinhas, tanto
maior era a autoridade do Concílio. Também conta a concordância deste com a Sagrada
Escritura e com a Tradição. E esse consenso permaneceu como um elemento fundamental
na noção de Concílio, a partir da práxis conciliar na Igreja.389
b) O princípio de subsidiariedade
Não será aqui abordado o princípio vertente em seu significado social (sociológico),
mas apenas em sua pertinência eclesiológica e, particularmente, em relação com as Confe-
388
Cf. ibid., p. 299.
389
Cf. ibid., p. 303. A. Antón observa que aí acontece o consenso na dimensão horizontal (aceitação pelas
Igrejas vizinhas) e na dimensão vertical (concordância da decisão tomada com a Sagrada Escritura e a Tradi-
ção). Sendo assim, São Cipriano atribui à ação do Espírito Santo a decisão tomada.
197
rências Episcopais. Esse tema tem suscitado diversos estudos, como bem comprovam J. A.
Komonchak390 e Angel Antón.391
Pela primeira vez o termo vem aplicado à Igreja pelo Papa Pio XII, em seu discurso
ao Consistório, no dia 20 de fevereiro de 1946, por ocasião da recepção aos novos cardeais,
mas ele ressalta que esse princípio não deve prejudicar a estrutura hierárquica da Igreja.392
A partir daí, discute-se sua aplicabilidade ou não à Igreja. G. Mucci defende a posi-
ção de que o princípio de subsidiariedade não é aplicável à Igreja por causa da sua origem
divina e da diferença essencial entre a Igreja e o Estado, por ser a estrutura hierárquica da
Igreja incompatível com esse princípio.393
No entanto, o Magistério dos últimos Papas (Pio XII, João XXIII e Paulo VI) e os
Sínodos de 1967, 1969, 1974 e 1985, como também o Código de Direito Canônico, de
1983, referem-se ao princípio de subsidiariedade como possível de ser aplicado à Igreja. E
vão mais longe, ao afirmar que é compatível sua aplicação à Igreja na relação do Papa com
os bispos e da Sé Apostólica com outras instâncias de organização da Igreja. Nessas instân-
cias incluem-se as Conferências Episcopais.
Nas discussões do Sínodo de 1969, prevaleceu a opinião de que esse princípio pode-
rá ser aplicado concretamente às Conferências Episcopais, respeitados os direitos e a liber-
dade do Papa e de cada bispo.394 Para tal contribuiu a homilia do Papa Paulo VI, por ocasi-
ão da abertura do Sínodo, na qual ele falou explicitamente da subsidiariedade como princí-
pio regulador das relações dos bispos, como pastores de suas Igrejas Particulares, com ou-
tras instâncias hierárquicas superiores, ou seja, o exercício da colegialidade devia ser sem-
pre animado pela unidade e caridade.395
390
KOMONCHAK, J. A. Le principe de subsidiarité et sa pertinence ecclésiologique. In: LEGRAND, H.;
MANZANARES, J.; GARCÍA Y GARCÍA, A. Les conférences épiscopales. Théologie, statut canonique,
avenir. Paris: Du Cerf, 1988, p. 392-447.
391
ANTÓN, A. Il principio di sussidiarietà nell’ambito delle conferenze episcopali. In: ANTON, Le
conferenze..., p. 467-525.
392
Cf. Revista Eclesiástica Brasileira, 1946, p. 449.
393
A propósito, ver KOMONCHAK, op. cit., p. 400.
394
Pastor aeternus II, I (cf. Enchiridion Vaticanum. Documenti ufficiali della Santa Sede. 1968-1970, vol. 3.
Dehoniane: Bologna, 1977, 1027-1033).
395
Apud ANTÓN, Le conferenze..., p. 483.
198
396
Ibid., p. 487. A. Acerbi dá as seguintes sugestões para que a descentralização aconteça: o direito de inicia-
tiva ou de proposta; o direito de consulta quanto ao exercício do Magistério pontifício; conciliação entre auto-
nomia (regulada) dos bispos e o direito de primado do bispo de Roma; estabelecimento de regras de procedi-
mento para as intervenções do Magistério, conforme a sugestão de Dom Gasser; um Concílio representativo
do episcopado mundial, naturalmente presidido pelo Papa, e com voto deliberativo (cf. ACERBI, A. Para uma
nova forma de ministério petrino. In: DOS ANJOS, op. cit., p.186-190.
397
KLOPPENBURG, B. A Eclesiologia do Vaticano II. Petrópolis: Vozes, 1971, p. 153.
398
Cf. KOMONCHAK, op. cit., p. 425s.
199
6.6.3 Os Conselhos
Como já foi visto, a Igreja não pode perder a consciência de que se origina do misté-
rio trinitário de comunhão, manifestado em Jesus Cristo, e de que deve viver esse mistério
de comunhão orgânica entre seus membros e anunciá-lo, abrindo-se a todo o gênero huma-
no.
Também já foi afirmada a Eclesiologia de comunhão como a Eclesiologia-chave do
Vaticano II, presente, principalmente, na Lumen Gentium. Entre as novidades trazidas por
ela e, de modo geral, o novo espírito eclesial inaugurado pelo Vaticano II, estão os variados
Conselhos a existirem em níveis diversos, tanto na Igreja universal quanto Particular, que
se tornam, também, expressão de colegialidade.
Com efeito, os Conselhos são uma forma de participação dos leigos na Igreja, que,
sem inverter os papéis próprios de cada estado, conforme já foi estudado no início deste
capítulo, ajuda o cristão a sentir sua responsabilidade na tarefa comum da Igreja, fruto da
expressão nova da comunhão após o Vaticano II, e exprime uma nova articulação das res-
ponsabilidades a serviço da comunhão orgânica, superando a tentação de se fixar em for-
mas que foram boas em determinada época e certa cultura, e adquirir, assim, falsas segu-
ranças.
399
Cf. ANTÓN, Le conferenze..., p. 502.
400
Cf. ibid., p. 517-521.
401
Cf. KOMONCHAK, op. cit., p. 439.
200
402
Este ponto tem por base a obra PETER, R. L’Église dans tous ses conseils. Diriger, animer et vivre con-
seils et réunions d’Église. Paris: Bayard éd/Centurion, 1997 (especialmente 109-134).
201
6.7 O Magistério
403
LAURET, B. Magisterio. In: EICHER, op, cit., p. 7.
404
Nesse sentido, o Cardeal Ratzinger afirma: “O Magistério da Igreja manifesta-se a favor da primazia da
obediência e dos limites da autoridade da Igreja” (cf. RATZINGER, J. A Carta Apostólica ‘Ordinatio sacer-
dotalis’. In: L’Osservatore Romano (edição semanal em Português), ano XXV, n. 26 (25/06/1994), p. 3).
202
to, mas a proclamação da verdade realizada e manifestada em Jesus Cristo, e, nesse sentido,
epifânica. O seu poder e sua autoridade são o poder e a autoridade da Palavra de Deus, da
qual dá testemunho (2Cor 13,8). Ele atua e concretiza na comunidade dos fiéis a autoridade
intrínseca da Palavra de Deus, pela qual a autoridade do Magistério se converte em autori-
dade de serviço submisso à Palavra de Deus (cf. Lumen Gentium 25).
Por isso, tem autoridade, mas autorizada. É um ensinamento que requer obediência
por causa da verdade que apresenta. É a autoridade formal do Magistério. Isso acontece na
Igreja (cf. Mc 16,16), o que leva o cristão a crer na Igreja. É, pois, a mediação humana com
a eficácia divina.
Sua tarefa é zelar, transmitir, interpretar, definir, proclamar, salvaguardar a verdade
confiada por Cristo à Igreja. Zelar pela integridade e autenticidade da verdade de Cristo,
pois o Evangelho não pode ser mudado (cf. 1Tm 4,16). Portanto, zelar pela ortodoxia, por-
que a Igreja é mestra da verdade para os próprios filhos e arauta do Evangelho para os ou-
tros. Como o depositum fidei, confiado à Igreja, contém o credo das verdades fundamentais,
ela necessita estar sempre atenta para evitar as heresias.
O Magistério age de modo extraordinário e ordinário. O primeiro é exercido em
função hermenêutica e supletiva pelo Papa, quando fala ex cathedra, e pelo Concílio Ecu-
mênico. Também pelos bispos dispersos pelo mundo, mas em comunhão com o sucessor de
Pedro, quando convergem numa única sentença a reter como definitiva (cf. Lumen Gentium
25). Tudo isso relativo a uma definição dogmática. O segundo, o ordinário, diz respeito ao
ensinamento doutrinal, contido no depósito da fé, feito, seja pelo Papa, em seu ensinamento
ordinário, seja pelos bispos, espalhados pelo mundo inteiro, também em seus ensinamentos
ordinários.
Magistério e trabalho teológico não se excluem. Se é verdade que a Teologia não
pode restringir-se a ser apenas uma reflexão do que o Magistério explicita, não menos ver-
dade é que ela não pode criar um Magistério paralelo. A Congregação para a Doutrina da
Fé, na Instrução sobre a vocação eclesial do teólogo, quando expõe a relação entre Magis-
tério e Teologia, quanto ao problema da dissensão, explica a particularidade própria da
Igreja, entendida como mistério de comunhão, cuja origem é a unidade do Pai, do Filho e
do Espírito Santo, que se organiza de acordo com a vontade de seu fundador:
203
A Igreja universal, até agora, foi vista como mistério e sacramento de salvação. Mas
é necessário e indispensável estudar a Igreja Particular. Como já foi visto, o Novo Testa-
mento designava, com maior frequência, a assembleia cristã de um determinado lugar. Con-
tudo, também indicava uma realidade ao mesmo tempo universal e local.
Do ponto de vista histórico, a Igreja Particular sofreu um processo de esquecimento,
iniciado, segundo A. Beni, no século XI, quando a Eclesiologia começou a partir da Igreja
universal, motivada pela necessidade de salvaguardar sua liberdade e autonomia frente ao
Imperador.405 Porém, o Vaticano II redescobriu a Teologia da Igreja Particular, conforme
expressam os seguintes textos: Lumen Gentium 23 e 26; Ad Gentes 19-22; Orientalium Ec-
clesiarum 15; Unitatis Redintegratio 22; Presbyterorum Ordinis 5 e 6; Gaudium et Spes 91.
O vocabulário empregado pelo Vaticano II causou uma certa confusão, pois empre-
gava indistintamente, para indicar a mesma realidade, as palavras “particular” e “local”.
Depois do livro de P. de Lubac, intitulado Les Églises particuliérs dans l’Église univer-
selle406, a diocese designa a Igreja particular, porque a dimensão do mistério permanece, ao
passo que local só é a condição espaçotemporal, em que existe uma homogeneidade de am-
405
Cf. BENI, op. cit., p. 381s.
406
Paris: Aubier, 1971.
204
biente sociocultural, designando mais dioceses. Exemplo: a Igreja que está no Brasil, na
Itália etc., não a Igreja do Brasil ou da Itália. Desse modo, a “localidade” se constitui numa
verdadeira dimensão da Igreja Particular, à qual ela não pode renunciar, por ser, ao mesmo
tempo, visível e indicar um povo determinado.407
A Lumen Gentium 23 refere-se à Igreja Particular deste modo: a “una e única Igreja
Católica é constituída pelas Igrejas Particulares”. Assim, a Igreja Católica designa a Igreja
em todo o mundo. A Igreja universal, enquanto considerada sociologicamente, indica o
conjunto de Igrejas Particulares.
Com efeito, a Igreja Particular é um “evento” da Igreja universal, que é encontrada e
vivida em cada Igreja Particular. Todavia, a Igreja Particular não é simples expressão geo-
gráfica ou mera porção do rebanho, como também não é apenas uma representação da Igre-
ja e, muito menos, quantitativamente a Igreja, a comunidade ou assembleia universal, pois
pode haver outras comunidades particulares com os mesmos títulos, prerrogativas e direi-
tos.408 Por isso, a Igreja universal não é mero resultado da soma das Igrejas Particulares.
A Igreja Particular é uma Igreja que torna presente realmente, no espaço e no tempo,
em um lugar determinado, a Igreja universal, a Igreja una e única de Cristo. O Vaticano II
assim define: “Diocese é a porção do Povo de Deus confiada a um bispo para que a pasto-
reie em cooperação com o presbitério” (Christus Dominus 11). O Código de Direito Canô-
nico, nos cânones 368 e 369, além de declarar que as Igrejas Particulares são primeiramente
as dioceses, “nas quais e das quais se constitui a una e única Igreja Católica”, apresenta a
mesma compreensão conciliar de diocese.
De Lubac define assim: “O Povo de Deus é um só povo, não porque se compõe de
numerosas Igrejas Particulares, mas porque cada uma das comunidades é uma forma sob a
qual se apresenta este único Povo de Deus. A Igreja universal está toda e em cada uma das
Igrejas Particulares”.409 Assim como a Igreja Particular é a realização da Igreja universal,
ela participa das propriedades, características e predicados da Igreja universal.
Embora em cada Igreja Particular esteja presente a Igreja universal, nenhuma Igreja
Particular é, em sentido exclusivo e pleno, a Igreja universal, apesar de aquela buscar ser
407
Cf. MONDIN, op. cit., p. 407.
408
Cf. BENI, op. cit., p. 383.
409
DE LUBAC, op. cit., p. 51.
205
sempre mais o que ela já é essencialmente. Assim, os elementos constitutivos da Igreja Par-
ticular são:
410
Cf. ibid., p. 387-389.
411
MONDIN, op. cit., p. 412.
206
ele prefere usar a terminologia Igreja Local, e não Igreja Particular, porque a entende a par-
tir do uso neotestamentário.412
É necessário fomentar a comunhão entre as Igrejas Particulares (cf. 1Cor 12,25),
para, assim, a Igreja universal expressar sua catolicidade e unidade. Dever-se-iam criar me-
canismos concretos de comunhão entre as Igrejas Particulares. No Brasil, existe o projeto
das “Igrejas irmãs”, como uma forma de ajuda humana e material, além de outras iniciati-
vas nacionais e diocesanas.
412
TILLARD, J-M. R. L’Église locale. Ecclésiologie de communion et catholicité. Paris: Du Cerf, 1995,
578p.
413
SCHMAUS, op. cit., p. 130.
207
Do ponto de vista prático, hoje, depara-se com uma certa ojeriza à autoridade na
Igreja, porque muitos a confundem com autoritarismo, acrescida à dificuldade de recepção
da palavra do Magistério, por não ser levada em conta a orientação dada, pois vale é a posi-
ção pessoal nos mais diversos campos do pensamento e da moral. Vale, por isso, mudar
essa mentalidade, através de uma visão nova de autoridade na Igreja, além de um exercício
renovado da autoridade, entendido como serviço.
Hoje se vive num clima democrático, com paridade de direitos e deveres, com cons-
ciência de participação na sociedade.415 Esse clima trouxe um questionamento para o regi-
me eclesiástico e fez surgir uma aspiração interna de participação na Igreja, também, em
termos de decisões. Por isso, a Igreja não pode ficar indiferente.
Contudo, nenhum sistema terreno pode ser aplicado diretamente à Igreja, pois só ser-
vem para sistemas apenas humanos, que não é o caso da Igreja, a qual é humano-divina e vive
do regime recebido de seu fundador. Daí que não se adaptam à Igreja as denominações dos
regimes políticos vigentes hoje, como democracia, socialismo, totalitarismo e outros. A
Igreja tem um regime próprio, derivado do poder de Jesus Cristo e transmitido até nós, ho-
414
Cf. ibid., p. 133.
415
Aristóteles dizia que havia três sistemas bons: monarquia, aristocracia e politeia (ou estado constitucional).
As deformações eram, respectivamente, a tirania, a oligarquia e a democracia, sendo, esta última, a deforma-
ção mais suportável. Ele pensava que os sistemas políticos devem estar fundamentados em realidades transce-
dentes: Deus, ideias e valores. Quando, no entanto, as pessoas decidem por capricho, o sistema vai mal, pois o
último critério deixa de ser a verdade e a virtude.
208
je, por meio dos apóstolos. Com efeito, carece totalmente de sentido o desejo ou a atitude
de alguém querer abolir a hierarquia da Igreja, porquanto, como já foi afirmado, ela é de
instituição divina. É verdade que o assunto pode ser tratado no sentido de questionar a atua-
ção da autoridade na Igreja, exercida dentro de um determinado modelo de Igreja.
Diante disso, é possível afirmar que (a) a Igreja não é, em seu conjunto, uma reali-
dade soberana, como o Estado, porque vive do que recebeu de Deus em Jesus Cristo, além
do que (b) a sua tarefa primeira e exclusiva é estar a serviço da salvação das pessoas como
filhos de Deus e conduzi-las até Deus, porque (c) ela recebeu os princípios de seu serviço e
de sua autoridade de Cristo e da revelação de Deus, que leva a contradizer, muitas vezes, o
coração humano corrompido pelo pecado, apesar de responder à realidade mais íntima do
coração humano, e porque (d) a Igreja nunca pode ser meta de si mesma, pois ela é o Corpo
de Cristo e, por isso, constituída numa realidade própria por vontade de Cristo como espaço
de salvação no mundo.
Por isso, o fundamento e a garantia do poder e do direito na Igreja é Deus, do qual
provêm a Revelação, o Salvador e a Igreja, com a ação do Espírito Santo nela mesma. As
pessoas e as comunidades vivem com liberdade, fruto do dom da graça de Deus e do orde-
namento divino. Por essa razão, ela se opõe a toda forma de domínio e de capricho huma-
nos. Resulta na fraternidade, que não é prerrogativa exclusiva de uma democracia, mas a
expressão mais íntima da humanitas, que constitui um fundamento real da Igreja e de sua
constituição.416
Como, recentemente, algumas vozes clamam por democracia na Igreja, podem-se
aduzir as quatro exigências postas por J. Ratzinger para se refletir sobre essa questão:
416
AUER, op. cit., p. 177.
209
Diante de tudo isso, cabe a pergunta: qual é o caminho a se tomar? Poder-se-ia vis-
lumbrar uma resposta a partir das seguintes indicações:
a) colegialidade e colaboração em todos os níveis;
b) fraternidade como um princípio básico social, em que a liturgia torna-se a sua
expressão;
c) promoção da justiça social pela caritas;
d) a articulação do princípio da subsidiariedade (cf. Quadragesimo Anno 79) com o
da solidariedade;
e) fomento à responsabilidade e à participação de todos na tarefa pastoral co-
mum.418
417
RATZINGER, J.; MAIER, H. Democracia na Igreja. Possibilidades, limites, perigos. São Paulo: Paulinas,
1976.
418
BENI, op. cit., p. 648-650.
210
CAPÍTULO SÉTIMO
OS MINISTÉRIOS NA IGREJA
Essa expressão quer indicar uma Igreja toda corresponsável pela missão e pela vida
da Igreja. Já no Vaticano II encontra-se essa intenção, como, por exemplo, em Lumen Gen-
tium 31; 32; 33; Apostolicam Actuositatem 2 e 10. O objetivo é evitar que a tarefa esteja
concentrada nas mãos de poucos, fomentando uma Igreja mais ativa e mais responsável
pela missão da Igreja.419
Isso porque todo batizado participa do sacerdócio de Cristo, conforme o Vaticano II
redescobre:
Cristo Senhor, Pontífice tomado dentre os homens (cf. Hb 5,1-5), fez do novo
Povo “um reino e sacerdotes para Deus Pai” (Ap 1,6; cf. 5,9-10). Pois os batiza-
dos, pela regeneração e unção do Espírito Santo, são consagrados como casa espi-
ritual e sacerdócio santo, para que por todas as obras do homem cristão ofereçam
sacrifícios espirituais e anunciem os poderes daquele que das trevas os chamou à
sua admirável luz (cf. 1Pd 2,2-10) (Lumen Gentium 10).
Todo o povo de Deus é responsável pela missão da Igreja, no dizer do Vaticano II:
419
Ver essas ideias, mais desenvolvidas, em ANTONIAZZI, A. Os ministérios na Igreja, hoje. Perspectivas
Teológicas. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 34-41.
211
É nesse sentido que se fala de uma Igreja toda ministerial e se enfatiza a comunida-
de e a dimensão de serviço, que deve ter todo o ministério, como também a co-
responsabilidade de todos na Igreja, embora diferenciada. Por essa razão, trata-se de revita-
lizar todos os ministérios em função de uma Igreja em comunhão orgânica, que chama à
participação em seu serviço em ordem à salvação. Isso não significa confusão de papéis e
funções entre hierarquia e laicato, mas é necessário saber distinguir os carismas e ministé-
rios exercidos para o bem da comunidade, conforme recomenda o apóstolo Paulo, ao usar a
imagem do corpo (cf. 1 Cor 12,11.18).
O Sínodo de 1971, celebrado em Roma, ao analisar o problema do ministério pres-
biteral e a crise que enfrentava na época, encontrou-se diante do dilema: ou a ordenação de
homens casados ou a abertura para a participação de leigos nos ministérios. O Sínodo optou
pelo segundo caminho, mantendo inalterado o modelo de presbítero e abrindo o acesso de
leigos a determinados ministérios. É o caso do sacramento da Eucaristia e da Ordem, com a
possibilidade de leigos serem ministros extraordinários da Comunhão e instituídos nas fun-
ções do leitorado e do acolitato, antes unicamente possíveis como caminho à ordenação
diaconal e presbiteral.420
A Carta Apostólica Motu Proprio Ministeria Quaedam, de 15 de agosto de 1972, de
Paulo VI, reforma os ministérios e ordens. Antes havia a tonsura, as ordens menores (ostia-
riato, exorcitato, acolitato e leitorado) e maiores (subdiaconato, diaconato e presbiterato),
somente dadas aos candidatos ao presbiterato. A partir de então, foi abolida a tonsura, que
foi substituída pelo rito de admissão; as ordens menores desapareceram, sendo introduzidos
os ministérios, que passaram a ser instituídos e não mais recebidos em um rito de ordena-
ção, com acesso aos leigos, que são o leitorado e o acolitato. Foram abolidos o ostiariato, o
exorcitato e o subdiaconato. Permitiu-se às Conferências Episcopais introduzirem outros
ministérios, segundo as próprias necessidades. Os candidatos ao diaconato e ao sacerdócio,
contudo, devem receber, necessariamente, o leitorado e o acolitato.421
420
Ver, a propósito, BENI, op. cit., p. 630-634.
421
PAULO VI, Ministeria Quaedam. O texto completo encontra-se em ENCHIRIDION VATICANUM, v. 4.
Dehoniane: Bologna, 1978, p. 1106-1117.
212
- fuga dos leigos das realidades temporais para buscar a Deus. Deve-se motivá-
los para que perseverem presentes e ativos no meio delas e ali encontrem o
Senhor (cf. Puebla 797);
- a tendência à clericalização dos leigos ou a reduzir o compromisso leigo àque-
les que recebem ministérios, deixando de lado a missão fundamental do leigo,
que é a sua inserção nas realidades temporais e em suas responsabilidades fa-
miliares (cf. Puebla 815);
- não se devem promover tais ministérios como estímulo puramente individual,
fora de um contexto comunitário (cf. Puebla 816);
- o exercício de ministérios por parte de alguns leigos não pode diminuir a parti-
cipação ativa dos demais (cf. Puebla 817).422
O tema dos leigos, ainda hoje, permanece um desafio para a Igreja, tanto em termos
da reflexão teológica quanto da pastoral. Apesar de o Vaticano II ter dado um passo impor-
tante no campo da vida laical e ter posto o fundamento para a compreensão da natureza e
do lugar dos leigos no mundo e na Igreja, ainda permanece um tema a ser aprofundado e,
até, a ser mais bem definido, pois ainda nos dias de hoje falta uma maior clareza quanto ao
papel do laicato na Igreja.423
Com efeito, esse tema não perdeu sua relevância na atualidade. O Papa João Paulo
II, em seu programa preparatório ao novo milênio adventício, dá grande ênfase ao papel do
laicato, ao se expressar da seguinte maneira: “[...] no campo eclesial, a escuta mais atenta
da voz do Espírito através do acolhimento dos carismas e da promoção do laicato [...]”
(Tertio Millennio Adveniente 46). Anteriormente, em 1992, em Santo Domingo, por ocasi-
ão dos quinhentos anos de evangelização do continente latino-americano, a quarta Confe-
422
Cf. IRIARTE, G. Comunidade eclesial de base. Um novo modo de ser Igreja. São Paulo: Paulinas, 1992,
p. 84s.
423
Há muitas reflexões a respeito desse assunto. Cito aqui, apenas, a constatação da ruptura entre os leigos e o
Magistério: JAMES, C. Análise de conjuntura religioso-eclesial. Por onde andam as forças. In: Perspectiva
Teológica, ano XXVIII, n. 75 (maio/agosto 1996), p. 173s; FELLER, V. G. A Igreja que queremos para o
novo milênio. In: Revista Eclesiástica Brasileira, fasc. 234 (junho 1999), p. 264-270.
215
rência do CELAM aponta para um papel indispensável, exercido pelos leigos na tarefa
evangelizadora, ao referir-se a eles como “protagonistas da Nova Evangelização” (cf. Santo
Domingo 97). Esses chamados mostram ter havido um grande caminho percorrido, mas,
talvez, se esteja longe da meta desejável e necessária.424
Este ponto visa apresentar, inicialmente, um breve histórico do tema do laicato na
Igreja, delimitado ao período que abarca a era do Concílio Ecumênico Vaticano II, para,
depois, tentar uma definição de sua natureza, e, finalmente, apontar pistas para a sua missão
no mundo e na Igreja. Cita-se, primeiro, a missão na Igreja e, depois, no mundo. No entan-
to, tal ordem não significa a desvalorização da tarefa do fiel cristão para com o mundo. Pelo
contrário, acredita-se que, em primeiro lugar, vem a missão no mundo, como especificidade
do fiel leigo, para só então ele exercer uma tarefa na comunidade eclesial. É que se acredita
que o leigo está comprometido, prioritariamente, com a ordem temporal. Contudo, ambas
as missões estão relacionadas, visto se iluminarem reciprocamente. O problema é que se
passou a ideia, nos últimos anos, de que efetivamente é leigo apenas, e só pode ser conside-
rado como tal, quem exerce algum trabalho pastoral na Igreja ou participa de algum movi-
mento pastoral. Evidentemente, não está errada essa posição, mas a missão do leigo aponta,
antes de tudo, para o mundo, e só então para a comunidade eclesial, enquanto a participação
em algum movimento, ministério ou grupo dentro da comunidade eclesial deve servir como
apoio para o exercício consciente de sua cidadania, como cristão e agente transformador do
mundo, nos diversos setores da vida civil.
Muito se tem escrito sobre os fiéis leigos na Igreja, a partir do Concílio Ecumênico
Vaticano II, e, muito mais, talvez, se tenha falado. Mas ainda falta algo significativo, sufi-
cientemente esclarecedor da real natureza do laicato em si mesmo e da sua missão, tanto na
Igreja quanto no mundo. Contudo, não se pode esquecer a obra de Y. Congar intitulada
424
É o que afirma o Arcebispo de Pamplona, no discurso inaugural ao VIII Simpósio Internacional de Teolo-
gia, dedicado à missão do leigo na Igreja e no mundo (cf. SARMIENTO, A. et al. La misión del laico en la
Iglesia y en el mundo. VIII Simposio Internacional de Teología de la Universidad de Navarra. Pamplona:
Universidad de Navarra, 1987, p. 39).
216
Jalons pour une théologie du laïcat, que marcou época e expressou o novo espírito eclesial
para com os leigos na Igreja.425
O Concílio Ecumênico Vaticano II, especialmente o capítulo quarto da Constituição
Dogmática Lumen Gentium e o Decreto Apostolicam Actuositatem, foi um marco referenci-
al para a questão do laicato na Igreja, visto que desencadeou uma nova mentalidade e uma
postura nova para com os leigos.
A partir daí, a temática do laicato, na Igreja, nesses três últimos decênios, foi abun-
dantemente abordada, como provam os textos do Vaticano II426, dos documentos dos Pa-
pas427, de diferentes organismos da Santa Sé428, do Sínodo dos Bispos de 1987429 e das
Conferências Episcopais em todo o mundo. No Brasil, também a Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB) tem se ocupado largamente do tema dos leigos, ao se pronunciar,
inúmeras vezes, sobre os mais diversos campos da vida laical.430
Porém, o interesse pelo tema do laicato já é mais antigo. Todavia, não se pode es-
quecer que foi um tópico periférico na Eclesiologia, pois os manuais careciam de uma
abordagem adequada. Os tratados de Eclesiologia disponíveis acentuavam, comumente, na
época moderna, os elementos visíveis, hierárquicos e institucionais da Igreja, reservando
um lugar secundário para o tema dos leigos.431
425
Tradução em português: CONGAR, Y. Os leigos na Igreja. São Paulo: Herder, 1966, 712p. Interessante é
o seguinte estudo sobre essa obra: PELLITERO, R. La teología del laicado en la obra de Yves Congar. Pam-
plona: Universidad de Navarra, 1996, 529p.
426
Como já foi lembrado, especialmente o quarto capítulo da Constituição Dogmática Lumen Gentium e o
Decreto Apostolicam Actuositatem.
427
Entre os últimos documentos mais importantes, pode-se apontar a Exortação Pós-Sinodal Christifideles
Laici, de João Paulo II, publicada após o Sínodo sobre os leigos, celebrado no Vaticano, em 1987. Também
podem ser lembrados seus discursos proferidos nos encontros com os laicatos, por ocasião de suas inúmeras
visitas pastorais a diversos países do mundo.
428
Para tal, ver o índice de 1962 a 1987, no Enchiridion Vaticanum, em que está a relação de documentos
emanados pelos diversos organismos da Santa Sé (cf. Laicato/Laico. In: Enchiridion Vaticanum. Supplemen-
tum 2. Indici generali 1962-1987. Bologna: Dehoniane, 1993, p. 812-824).
429
Para o Sínodo de 1987, ver Lineamenta (28 de janeiro de 1985). In: Enchridion Vaticanum, v. 9. Bologna:
Dehoniane, 1991, p. 1340-1409; Instrumentum laboris (22 de abril de 1987). In: Enchiridion Vaticanum, v.
10. Bologna: Dehoniane, 1991, p. 1141-1211; Propositiones (29 de outubro de 1987). In: Enchiridion Vatica-
num v. 10, p. 1439-1515; Mensagem Iam instante (29 de outubro de 1987). In: Enchiridion Vaticanum, v. 10,
p. 1516-1533.
430
Como exemplo, pode-se citar: CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, Leigos e parti-
cipação na Igreja. Reflexão sobre a caminhada na Igreja no Brasil (Estudos da CNBB 45). São Paulo: Pauli-
nas, 1986; id., Os leigos na Igreja e no mundo. Vinte anos depois do Vaticano II (Estudos da CNBB 47). São
Paulo: Paulinas, 1987; id., Missão e ministérios dos leigos e leigas cristãos (Estudos da CNBB 77). São Pau-
lo: Paulinas, 1998.
431
Cf. MONDIN, op. cit., p. 7s.
217
432
FORTE, op. cit., p. 23-37.
433
Comentário sobre esses tópicos, ver em ANTÓN, El misterio de la Iglesia II, p. 510-519.
218
434
Cf. SERVUS MARIAE, Para entender a Igreja no Brasil. A caminhada que culminou no Vaticano II
(1930-1968). Petrópolis: Vozes, 1994, p. 47-50.
435
Cf. ibid., p. 58-70.
219
436
A propósito, Medellín dedica o Documento 10 aos leigos, intitulado “Movimento dos leigos”. Puebla
aborda o tema no ponto 3, inserido no capítulo “Agentes de comunhão e participação”. Santo Domingo trata
de “Os fiéis leigos na Igreja e no mundo” dentro do terceiro ponto (Na unidade do Espírito, com diversidade
de ministérios e carismas) da segunda parte, dedicada à Nova Evangelização.
437
Cf. PELLITERO, op. cit., p. 353s. O autor opina que a emergência da valorização da mulher na Igreja traz
a questão da distinção entre sacerdócio comum e sacerdócio ministerial.
438
JOÃO PAULO II, A vossa missão é santificar o mundo. Homilia proferida na Sé Catedral de Lisboa: En-
contro com os Leigos, no dia 13 de maio de 1982. In: L’Osservatore Romano (Edição Semanal em Portu-
guês), de 16 de maio de 1982, p. 03.
220
439
A propósito de estatísticas sobre a participação de leigos nas atividades pastorais, ver VALLE, R.; PITTA,
M. Comunidades Eclesiais Católicas. Resultados estatísticos no Brasil. Petrópolis: Vozes e CERIS, 1994,
95p.
440
ROUTHIER, G. La réception d’un concile. Paris: Du Cerf, 1993, p.101-106.
441
O termo laikós etimologicamente deriva do substantivo laós, que significa povo. O sufixo ikós confere um
significado especial, que designa uma categoria oposta a outra no meio do povo. O adjetivo não é conhecido
na literatura clássica: ele pode ser encontrado em antigos papiros e inscrições, para indicar a massa dos habi-
tantes, a população, enquanto distinta daqueles que administram (cf. FORTE, op. cit., p. 21).
221
povo. Com efeito, o significado de leigo como “um cristão sem cargo” é muito antigo.443
Todavia, De La Potterie adverte que não significa que se deva dar ênfase ao significado
negativo do termo leigo, mas a revalorização do leigo deve dar-lhe dignidade e a função
que lhe compete, e não lhe atribuir um sentido que não possui.444
A questão, desta feita, é saber qual o sentido, na atualidade, dado a essa palavra. É
preciso partir da descrição oferecida pela Lumen Gentium, que não quis apresentar uma
definição no sentido estrito do termo, a ontológica, mas descrever os elementos que com-
põem o laicato.445 Pode-se afirmar que é uma descrição tipológica, pois o vê em seu tecido
concreto de relações, com Jesus Cristo, com a Igreja e com o mundo, em seu ser (consagra-
ção) e agir (missão). Apesar de ser negativa, contém uma visão positiva e uma verdadeira
compreensão teológica do laicato, impedindo qualquer visão do leigo a partir da oposição
entre grupos dentro da Igreja, o que foi superado pelo Vaticano II.446 E essa descrição é a
seguinte:
Pelo nome de leigos aqui são compreendidos todos os cristãos, exceto os mem-
bros de ordem sacra e do estado religioso aprovado na Igreja. Estes fiéis pelo Ba-
tismo foram incorporados a Cristo, constituídos no Povo de Deus e a seu modo
feitos participantes do múnus sacerdotal, profético e régio de Cristo, pelo que
exercem sua parte na missão de todo o povo cristão na Igreja e no mundo. A ín-
dole secular caracteriza especialmente os leigos (Lumen Gentium 31).
Essa descrição destaca, em primeiro lugar, um elemento comum, válido para todos
os batizados na Igreja, uma vez que os considera como fiéis e, nessa qualidade, iguais na
Igreja; e, em segundo lugar, realça um elemento peculiar, isto é, a condição secular dos
leigos, que os distingue da hierarquia.
442
Cf. CONGAR, Os leigos na Igreja, p. 14.
443
Cf. MAGNANI, G. La cosiddetta teologia del laicato ha uno statuto teologico? In: LATOURELLE, R. (a
cura), Vaticano II: Bilancio & Prospettive venticinque anni dopo (1962-1987), v. 1. Assisi: Cittadella, 1987,
p. 494-516; SCHILLEBEECKX, E. A definição tipológica do leigo cristão conforme o Vaticano II. In:
BARAÚNA, op. cit., p. 982.
444
DE LA POTTERIE, I. L’origine et le sens primitif du mot ‘läic’. In: Nouvelle Revue Théologique, 80
(1958), p. 840-853.
445
Cf. MONGE, M. S. Eclesiología. La Iglesia, misterio de comunión y misión. Madrid: Atenas, 1994, p.
369.
446
É a opinião de MAGNANI, op. cit., p. 520. O mesmo encontra-se em RODRIGUEZ, P. La identidad teo-
lógica del laico. In: SARMIENTO et al., op. cit., p. 93.
222
O elemento comum é o mesmo para todos os batizados, visto que nasce da recepção
do mesmo sacramento, que torna todos os cristãos iguais e irmãos na comum pertença à
mesma Igreja. Nessa igualdade comum, podem-se destacar os seguintes aspectos:
447
Cf. FORTE, op. cit., p. 56-67. Laicidade é a “afirmação da autonomia e da consistência do mundo profano
em relação à esfera religiosa” (id., p. 56). A laicidade na Igreja “quer dizer respeito pela autonomia do mun-
dano em seu interior: os batizados são sujeitos humanos, nos quais dignidade e responsabilidade próprias
devem ser reconhecidas e promovidas” (id., p. 63). Ainda quer dizer “a responsabilidade de todos os batiza-
dos (não só dos leigos) em vista da ordem temporal: nesse sentido, a laicidade é vista ‘como dimensão da
missão da encarnação da História’ que brota da ordenação para o serviço e para a missão inserida na antropo-
logia da graça” (id., p. 64). “Por fim, a assunção crítica da laicidade na Eclesiologia comporta o reconheci-
mento por parte da Igreja do valor próprio e autônomo das realidades terrestres, o respeito e a atenção em
relação à laicidade do mundo” (id., p. 66). Segundo R. Pellitero, essa posição caracteriza o pensamento teoló-
gico de B. Forte sobre os leigos (cf. PELLITERO, op. cit., p. 353).
223
Contudo, o peculiar, que é a índole secular dos leigos, está muito bem clarificado e
distinto, conforme o texto da Lumen Gentium 31, já citado anteriormente. O Papa João Pau-
lo II, em sua Exortação Apostólica Christifideles Laici, de 30 de dezembro de 1988, tam-
bém destaca o elemento peculiar como essencial, uma vez que se constitui em um elemento
qualificador e não como um elemento entre outros:
Mas a comum dignidade batismal assume no fiel leigo uma modalidade que o
distingue, sem todavia o separar, do presbítero, do religioso e da religiosa. O
Concílio Vaticano II apontou a índole secular como sendo essa modalidade: “A
índole secular é própria e peculiar dos leigos”. [...] É verdade que todos os mem-
bros da Igreja participam da sua dimensão secular, mas de maneiras diferentes.
Nomeadamente a participação dos fiéis leigos tem uma modalidade de atuação e
de função que, segundo o Concílio, lhe é “própria e peculiar”: tal modalidade é
indicada na expressão “índole secular” (Christifideles Laici 15, grifos do autor).
Esses textos mostram o fiel leigo como um novo protagonista humano dentro da
Igreja e no mundo. A propósito, é interessante lembrar uma afirmação de Karl Rahner que,
talvez, ajude a minimizar o escândalo daquele que não aceita essa peculiaridade do leigo e
o queira na mesma situação daqueles que são apontados pela Lumen Gentium como inte-
grantes da hierarquia, por terem recebido o sacramento da Ordem. Esse conhecido teólogo
alemão diz que um leigo plenamente dedicado à missão espiritual da Igreja deixaria de ser
realmente leigo, fundamentando sua afirmação a partir da distinção entre a cooperação no
“apostolado da missão ministerial ou apostolado hierárquico” e a tarefa própria do leigo, a
actio catholicorum: esse apostolado não é apostolado de missão ministerial e profissional,
senão apostolado da caridade na situação mundana de leigo, a qual forma parte de sua con-
dição de leigo, pois todo cristão, em virtude do Batismo e da Confirmação, está autorizado
e obrigado a dar testemunho de sua fé, a interessar-se por seu próximo e pela sua salva-
ção.448
Da mesma forma pensa E. Schillebeeckx, ao caracterizar o leigo do seguinte modo:
448
Cf. RAHNER, K. Escritos de Teología, v. II. Madrid: Taurus, 1963, p. 337-374 (especialmente p. 360).
449
SCHILLEBEECKX, A definição tipológica..., p. 991, grifo do autor.
224
A “índole secular”, que caracteriza o leigo, portanto, diz respeito à relação secular
da Igreja com o mundo. Sem esta, não haveria sentido em apresentar uma descrição eclesio-
lógica do leigo, mesmo que fosse tipológica, a partir de sua relação explícita com o mundo.
Por essa razão, afirma o mesmo autor supracitado: “A relação com o mundo secular só po-
de ser absorvida no conceito teológico do leigo, se a missão específica da Igreja já inclui
em si mesma uma definida relação eclesial com este mundo secular”.450
Aí temos um elemento distintivo e positivo, pois o leigo irá procurar o Reino de
Deus através da sua relação com o mundo secular. Essa distinção escapa da compreensão
negativa de leigo, que o vê como um não clérigo, ou como um cristão neutro. O leigo deve
ordenar as coisas do mundo segundo a vontade de Deus, seja como criança, jovem ou adul-
to. Todos os fiéis leigos, de acordo com sua faixa etária e condição de vida, seja vocacional
ou profissionalmente, devem ordenar o mundo para Deus. É como afirma Puebla: o leigo é
“homem de Igreja no coração do mundo e de homem do mundo no coração da Igreja” (Pu-
ebla 786).
O Sínodo de 1987, como já foi apontado, distingue teologicamente, com base na
índole secular, a diferença entre os fiéis leigos e os presbíteros. O Sínodo entende a secula-
ridade dos leigos da seguinte maneira, assumindo a Proposição 4 do Relatório Final, entre-
gue ao Santo Padre no encerramento dos trabalhos:
A índole secular do fiel leigo não deve, pois, definir-se apenas em sentido socio-
lógico, mas sobretudo em sentido teológico. A característica secular é vista à luz
do ato criador e redentor de Deus, que confiou o mundo aos homens e às mulhe-
res, para tomarem parte da obra da criação, libertarem a mesma criação da in-
fluência do pecado e santificarem a si mesmos no matrimônio ou na vida celibatá-
ria, na família, no emprego e nas várias atividades sociais.451
Enfim, em forma de síntese, com relação ao laicato na Igreja, devem-se ter em conta
três postulados básicos452:
450
Ibid., p. 998.
451
SYNODUS EPISCOPORUM – 1987, De vocatione et missione laicorum. Propositiones. In: Enchiridion
Vaticanum, v, 10, p. 1445.
225
reunido na “unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo” é estar sob o primado absoluto do
Senhor, pôr-se na escuta de sua Palavra;
b) a renovada consciência da índole escatológica da Igreja e do destino final comum
rumo à pátria celeste evidencia a vocação universal à santidade na comunhão eclesial: to-
dos, cada um conforme o dom e o ministério recebidos, antecipam, no próprio presente, o
futuro da promessa do Senhor nas obras de caridade, justiça e paz;
c) a tensão entre origem e destino, o ínterim que existe entre o já e o ainda-não em
sua provisoriedade e em sua complexidade, ajuda a pensar em uma Igreja una na diversida-
de, rica pela variedade de dons e serviços que não fazem concorrência à unidade fundamen-
tal, mas a exprimem e a fecundam conforme Deus proporciona a cada um o poder de fazer.
Entre o princípio e o fim, encontra-se uma Igreja da Trindade, que vive em comunhão e
que, por isso, não anula o diferente, mas o reconhece e o promove na verdade do amor.
a – A missão na Igreja
O Vaticano II aponta a missão dos fiéis leigos na Igreja a partir da conhecida trilo-
gia das funções, ou dos múnus de ensinar, santificar e reger. Essa é a missão de Jesus Cris-
to, que se prolonga na missão dos pastores e da qual também participam os leigos a seu
modo. Daqui em diante será abordado cada um desses três múnus.
Àqueles, pois, que une intimamente à sua vida e missão, também concede parte
de seu múnus sacerdotal no exercício do culto espiritual para que Deus seja glori-
452
Extraídos de FORTE, op. cit., p. 18-20.
226
ficado e os homens salvos. Por isso, consagrados a Cristo e ungidos pelo Espírito
Santo, os leigos são admiravelmente chamados e munidos para que neles se pro-
duzam sempre mais abundantes os frutos do Espírito. Assim todas as suas obras,
preces e iniciativas apostólicas, vida conjugal e familiar, trabalho cotidiano, des-
canso do corpo e da alma, se praticados no Espírito, e mesmo os incômodos da
vida pacientemente suportados, tornam-se “hóstias espirituais, agradáveis a Deus,
por Jesus Cristo” (1Pd 2,5), hóstias que são piedosamente oferecidas ao Pai com
a oblação do Senhor na celebração da Eucaristia. Assim também os leigos, como
adoradores agindo santamente em toda parte, consagram a Deus o próprio mundo
(Lumen Gentium 34).
Esse texto apresenta, fundamentalmente, três campos como ação sacerdotal dos lei-
gos: a) a oferenda espiritual de toda a vida; b) a participação em toda a vida sacramental e
no culto, não como meros espectadores ou simples destinatários, mas como verdadeiros
protagonistas, posto que “é toda a comunidade, o Corpo de Cristo unido à sua Cabeça, que
celebra” os sacramentos, pois “a assembleia inteira é o ‘liturgo’, cada um segundo a sua
função”, visto ela ser diferenciada (Catecismo da Igreja Católica 1140-1144); c) o exercí-
cio dos diversos ministérios dentro do campo específico de atividade correspondentes aos
leigos, ou até nos casos de suplência, supondo a missão canônica.453
Ao texto antes citado ainda se pode acrescentar a dimensão do sacerdócio comum
dos fiéis, que é próprio a todo batizado, uma vez que resulta deste e é exercido da forma
como vem expresso anteriormente. P. Delhaye entende esse tipo de sacerdócio como o ser-
viço de Deus através da vida cristã, tornada um sacrifício vivo, santo e agradável a Deus ao
oferecer-se em um culto espiritual, que afeta todos os atos da vida cotidiana e da ação apos-
tólica.454
Cristo, o grande Profeta que proclamou o Reino do Pai, quer pelo testemunho da
vida, quer pela força da palavra, continuamente exerce seu múnus profético até à
plena manifestação da glória. Ele o faz, não só através da hierarquia que ensina
em seu nome e em seu poder, mas também através dos leigos. Por essa razão,
constituiu-os testemunhas e ornou-os com o senso da fé e a graça da palavra (cf.
At 2,17-18; Ap 19,10), para que brilhe a força do Evangelho na vida cotidiana,
453
Aqui não cabe a abordagem da questão dos ministérios dos leigos. A respeito desse tema, ver, por exem-
plo, FERNANDEZ, A. Ministerios no ordenados y laicidad. In: SARMIENTO et al., op. cit., p. 387-405;
MEDINA ESTEVEZ, J. Notas sobre los miniterios de la Iglesia confiados a los fieles laicos. In: SARMIEN-
TO et al., op. cit., p. 407-413; CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, Missão e ministé-
rios dos cristãos leigos e leigas (Documentos da CNBB 62). São Paulo: Paulinas, 1999.
454
DELHAYE, P. El sacerdocio común cristiano, estado de la cuestión. In: SARMIENTO et al., op. cit., p.
176s.
227
A missão profética resulta não de uma concessão dada pelo Magistério, mas do Ba-
tismo, sendo, portanto, inerente a todo batizado, e acontece por meio de três funções: o sen-
tido da fé, o testemunho de vida e a graça da palavra.
O sentido da fé455 é como um instinto que conduz a toda verdadeira doutrina, como
uma luz que defende e detecta perigos, dado germinalmente com a fé e se nutre e se fortale-
ce, como a fé, pela Revelação de Jesus Cristo. Por essa razão, o Vaticano II não temeu
afirmar a infalibilidade do ato de crer (cf. Lumen Gentium 12).
O testemunho de vida é outra contribuição que os leigos devem prestar ao profetis-
mo, sempre estimado e urgido ao longo dos séculos. Paulo VI não vacila em afirmar que o
primeiro meio de evangelização é o testemunho de vida autenticamente cristã, porque o
homem de hoje escuta com mais gosto o testemunho do que a pregação (cf. Evangelii Nun-
tiandi 41). O documento do Vaticano II, Ad Gentes, no capítulo segundo, descreve o cami-
nho aberto pelo testemunho, a partir da vida orientada sempre para Deus e segundo ele, até
a consumação escatológica. É isso que dá credibilidade para o que o leigo diz e anuncia,
pois está sendo fermento de uma nova sociedade, em meio ao mundo escravizado pelo pe-
cado e pelas estruturas injustas. Tudo isso vivido nas condições comuns da vida, de acordo
com a Lumen Gentium 35, mas de uma forma diferente, fruto da adesão a Jesus Cristo. É o
que explicita o texto seguinte, que, inclusive, identifica o leigo com o cristão:
É mister que a Igreja se faça presente nessas sociedades por seus filhos que entre
elas vivem ou a elas são enviados. Onde quer que vivam, pelo exemplo da vida e
pelo testemunho da palavra, devem todos os cristãos manifestar o novo homem
que pelo Batismo vestiram, e a virtude do Espírito Santo que os revigorou pela
Confirmação. Assim os outros, vendo as suas boas obras, glorificarão o Pai (cf.
Mt 6,16) e mais perfeitamente compreenderão o autêntico sentido da vida e o vín-
culo universal da comunhão humana (Ad Gentes 11).
A graça da palavra é a expressão que se encontra na Lumen Gentium 35, com a qual
conclui a participação dos fiéis leigos no múnus profético de Cristo. Não implica o ensinar
228
Também através dos fiéis leigos o Senhor quer dilatar o seu reino, reino de ver-
dade e de vida, reino de santidade e graça, reino de justiça, amor e paz. Neste rei-
no a própria criatura será libertada do jugo da corrupção para a liberdade gloriosa
dos filhos de Deus. [...] Por isso os fiéis devem reconhecer a natureza íntima de
toda criatura, seu valor e sua ordenação ao louvor de Deus. E mesmo através das
obras seculares devem ajudar-se a si mesmos para uma vida mais santa. E isso de
tal forma que o mundo seja imbuído do espírito de Cristo e na justiça, caridade e
paz atinja mais eficazmente o seu fim. No desempenho desse dever de alcance
universal compete aos leigos a principal responsabilidade (Lumen Gentium 36).
455
Sobre o sentido da fé, ver SANCHO, J. El ‘sensus fidei’ en los laicos. In: SARMIENTO et. al., op. cit., p.
545-551.
456
A respeito desse assunto, ver BENI, op. cit., p. 669-689.
457
É o que determina o Código de Direito Canônico, cânon 229, § 1, 2 e 3.
458
É o que determina o cânon 216, do Código de Direito Canônico.
229
b – A missão no mundo
459
Gostaria de recordar a acusação de burocratização da Igreja. A organização é, sem dúvida, necessária, mas
deverá ser evitado o exagero, que leva a dificultar a vida dos fiéis. Deve-se saber discernir uma crítica injusta
de outra procedente. A propósito, pode-se ver o décimo segundo capítulo da seguinte obra, intitulado “Que-
bra-molas”: VALLÉS, Querida Igreja, p. 103-111. Sobre outra questão, que é a do voto consultivo, ver MA-
RIJUÁN, J. M. Vocación y misión de los laicos dentro de la relación Iglesia-Mundo. In: CHICA, F.;
PANIZZOLO, S.; WAGNER, H. (Org.). Ecclesia Tertii Millennii advenientis. Omaggio al P. Angel Antón.
Casale Monferrato: PIEMME, 1997, p. 797s.
460
Sobre o significado desse texto, ver BELDA PLANS, M. La misión específica de los laicos: estudio de los
términos en los Documentos del Concilio Vaticano II. In: SARMIENTO et. al., op. cit., p. 333s.
230
Poder-se-ia afirmar, sem medo, não ser possível aumentar a responsabilidade dos
leigos na comunidade eclesial a tal ponto de prejudicar o desempenho de seus trabalhos no
mundo. Deve haver um equilíbrio entre as tarefas seculares e eclesiais, a fim de poderem
desempenhar adequadamente as que lhes incumbem. A propósito, pode-se citar o cânon
227 do Código de Direito Canônico vigente:
É direito dos fiéis leigos que lhes seja reconhecida, nas coisas da sociedade civil, a
liberdade que compete a todo cidadão; usando dessa liberdade, cuidem que suas ati-
vidades sejam imbuídas do espírito evangélico e atendam à doutrina proposta pelo
Magistério da Igreja, precavendo-se, porém, em questões discutíveis, de não apre-
sentar a própria opinião como doutrina da Igreja.
461
O texto integral é o seguinte: “Enquanto essas tensões afetam principalmente aqueles que participam em
movimentos leigos, grandes setores do laicato latino-americano não tomaram consciência plena de sua per-
tença à Igreja e são afetados pela incoerência entre a fé que dizem professar e praticar e o compromisso real
que assumem na sociedade. Divórcio entre fé e vida exacerbado pelo secularismo e por um sistema que ante-
põe o ter mais ao ser mais” (Puebla 783).
231
rica Latina “como uma resposta aos problemas apresentados pela realidade de um Conti-
nente no qual se dá um divórcio entre fé e vida” (Santo Domingo 24).
No momento atual, enquanto é claro o princípio pelo qual corresponde aos leigos o
dever peculiar de ordenar o mundo segundo o Reino de Deus462, devem ser levadas em con-
ta as dificuldades que eles enfrentam no exercício dessa tarefa. Por essa razão, é importante
não apenas respeitar a liberdade inerente e necessária ao exercício dessa missão, mas tam-
bém impedir que ela seja cerceada em nome de qualquer motivo. É preciso, portanto, apoiar
os leigos no exercício dessa tarefa, favorecendo-os e ajudando-os de todas as maneiras. As
normas da Igreja devem contribuir e não impedir ou delimitar a transformação do mundo. É
evidente que o exercício dessa missão não significa que a transformação do mundo não
deva corresponder ao desígnio de Deus, competindo ao Magistério a tarefa de zelar para
que isso aconteça.
Para tal, faz-se necessária uma atitude de diálogo entre o Magistério e os fiéis lei-
gos, como também entre eles e as instâncias competentes da sociedade em geral, nas quais
eles estão inseridos, seja por relações de trabalho ou outras, de qualquer tipo. Só assim o
fiel leigo poderá exercer a sua tarefa com competência na sociedade civil e, ao mesmo tem-
po, fiel à sua identidade da fé, ser uma presença transformadora do Evangelho de Jesus
Cristo, contribuindo para a implantação do Reino de Deus no mundo, segundo a vontade e
o desígnio de Deus.
Daí convém recordar o que escrevia Paulo VI sobre a necessidade do diálogo entre a
Igreja e o mundo na Encíclica Ecclesiam Suam, de 6 de agosto de 1964:
Há uma terceira atitude, que a Igreja Católica deve tomar neste momento da his-
tória do mundo. Referimo-nos ao estudo sobre os contatos que ela há de manter
com a humanidade. [...] A Igreja deve entrar em diálogo com o mundo em que
vive. A Igreja faz-se palavra, faz-se mensagem, faz-se colóquio (Ecclesiam Suam
III).
462
O Código de Direito Canônico, no cânon 225, § 2, reconhece e afirma essa nota dos leigos.
232
463
LORSCHEIDER, A. Uma possível conferência nacional de cristãos leigos. In: Revista Eclesiástica Brasi-
leira, v. 55, fasc. 219 (setembro/1995), p. 520.
233
cultura, a científico-técnica, exige uma presença qualificada. Com efeito, o leigo, caracteri-
zado pela índole secular, pode e deverá ser essa presença evangélica no mundo 464, o que
está de acordo com o texto claro e incisivo da Lumen Gentium:
É, porém, específico dos leigos, por sua própria vocação, procurar o Reino de
Deus, exercendo funções temporais e ordenando-as segundo Deus. Vivem no sé-
culo, i.é., em todos e em cada um dos ofícios e trabalhos do mundo. Vivem nas
condições ordinárias de vida familiar e social, pelas quais sua existência é como
que tecida. Lá são chamados por Deus, para que, exercendo seu próprio ofício,
guiados pelo espírito evangélico, a modo de fermento, de dentro, contribuam para
a santificação do mundo. E assim manifestam Cristo aos outros, especialmente
pelo testemunho de sua vida resplandecente em fé, esperança e caridade. A eles,
portanto, cabe, de maneira especial, iluminar e ordenar de tal modo todas as coi-
sas temporais, às quais estão intimamente unidos, que elas continuamente se fa-
çam e cresçam segundo Cristo, para louvor do Criador e Redentor (Lumen Gen-
tium 31).
Esse texto também sugere algumas observações que podem ser muito sugestivas
para o protagonismo do leigo na Igreja no Brasil nesta hora histórica, ou seja, no início de
um novo milênio, que deve ser marcado com renovado elã evangelizador:
a) a diferença das tarefas dos presbíteros e dos leigos;
b) todos estão comprometidos com o “mutirão evangelizador”;
c) o protagonismo é dos fiéis leigos;
464
Cf. ibid., p. 519s.
465
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, Rumo ao novo milênio. Projeto de Evangeli-
zação da Igreja no Brasil em preparação ao Grande Jubileu do ano 2000. São Paulo: Paulinas, 1996, n. 88, p.
34.
234
Esses últimos textos citados, embora longos, levantam questões muito interessantes
e pertinentes, que ajudam o fiel leigo a exercer a sua tarefa evangelizadora no mundo como
verdadeiro protagonista, e não como mero executor de algo determinado por outro ou por
concessão dada por quem possui a primazia da autoridade na Igreja.
Uma questão a refletir é como, efetivamente, valorizar o fiel leigo na Igreja, sem
cair na tentação de clericalizá-lo imediatamente ou de fazê-lo assumir a função do presbíte-
ro, permitindo ou exigindo que ocupe o lugar e o papel específico que diz respeito ao pres-
bítero na comunidade eclesial. Esses perigos são reais e denunciados em muitos documen-
tos do Magistério. É o que se encontra em Santo Domingo, no texto anteriormente citado
(cf. Santo Domingo 97). A questão sugere que o leigo assuma, em primeiro lugar, aquilo
que lhe é específico: a sua índole secular. Assim, ele estará exercendo aquela configuração
que, realmente, lhe é própria, e servindo de fermento no mundo, transformando o tecido
social de acordo com o Reino de Deus e também marcando presença efetiva como cristão,
convicto e consciente de sua fé e identidade cristãs. Nesse sentido, deve-se entender o texto
que segue:
A missão específica delegada a todos os fiéis leigos se faz viva quando eles se en-
carnam de forma plural, de acordo com a variedade de meios possíveis de exercê-la. Desde
o terreno sociopolítico, passando pela evangelização da cultura e atingindo a variedade de
235
ministérios confiados a eles, o campo da atuação dos leigos se manifesta imenso, pois a
sociedade hodierna é plural, por isso, plural será a forma concreta de ser presença transfor-
madora do Reino de Deus no meio do mundo, como verdadeiro protagonista da nova evan-
gelização.466
Para tal, é necessário investir na formação dos leigos, conforme recomenda o docu-
mento do CELAM,467 o que contribuirá, segundo M. S. Monge, para despertar o sentido de
responsabilidade, superando o clericalismo; o sentido comunitário, superando o individua-
lismo; o sentido da solidariedade, superando o personalismo; o sentido missionário, supe-
rando o salvacionismo.468 Esse foi o apelo de João Paulo II à IV Conferência do Episcopa-
do Latino-Americano, que respondeu, ao assumir os leigos como a linha pastoral prioritá-
ria:
Por fim, o protagonismo dos fiéis leigos leva-os a desenvolver uma espiritualidade
própria, que pode ser chamada de “espiritualidade do cotidiano”469. Essa significa o assumir
da vida toda como fonte de união com Deus e caminho de desenvolvimento da vocação à
santidade (cf. Mt 5,48), fruto do Batismo, buscando realizá-la e experienciá-la como cami-
nho que conduz para Deus Pai, em profunda atitude de louvor pela criação e razão de ale-
gria.
466
BONNET, P. A. Il ‘christifidelis’ recuperato protagonista umano della Chiesa. In: LATOURELLE, op.
cit., p. 477.
467
CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. DEPARTAMENTO DE LEIGOS, Manual de for-
mação dos leigos. Petrópolis: Vozes, 1995.
468
MONGE, op. cit., p. 188-190.
469
Expressão usada por GARCIA-MATEO, R. Teologia spirituale. Il laicato. Roma: Università Gregoriana,
1995, p. 83.
236
O bispo de Roma470 tem uma situação particular na sucessão apostólica, pois ele é o
único que sucede individualmente a um apóstolo, que é Pedro, enquanto a sucessão dos
outros apóstolos, por parte dos demais bispos, se dá não individualmente, mas em conjunto,
como colégio. E é por meio do apóstolo Pedro que a Igreja permanece na forma de vida e
de regime que recebeu de Jesus Cristo.
470
Sobre a estrutura hierárquica, ver AUER, op. cit., p. 202-336; BENI, op. cit., p. 429-602; MONDIN, op.
cit., p. 320-353.
237
a) O primeiro século
O primeiro testemunho claro é de Clemente de Roma (96), numa carta que escreve à
comunidade de Corinto. Havia uma revolta nessa comunidade contra os superiores eclesiás-
ticos e Clemente procura apaziguar. Isso ele faz por própria iniciativa e se desculpa por não
se ter preocupado antes com o caso. Nele fala toda a comunidade de Roma. Pede obediên-
cia, por isso não é uma simples exortação. Essa carta gozou de prestígio durante todo o sé-
culo II.
Por causa das desgraças e das calamidades que se precipitaram repentina e sucessivamente
sobre nós, talvez estejamos a ocupar-nos com atraso dos acontecimentos que se deram entre
vós. [...] É, pois, acertado que nos orientemos por tais e tão grandes exemplos, curvemos
nossa cerviz e ocupemos o lugar da obediência, para acalmarmos a vã sedição e alcançar-
mos com lisura a meta proposta da verdade.471
Na mesma carta, nos números 40, 42 e 44, Clemente Romano afirma a sucessão
apostólica. A lista da sucessão composta por Eusébio de Cesareia também é um argumento
inquestionável a favor do primado e da sucessão.
b) O segundo século
471
CARTA DE S. CLEMENTE ROMANO AOS CORÍNTIOS 1 e 63 (Introdução, tradução do original grego
e notas por Dom Paulo Evaristo Arns). Petrópolis: Vozes, 1973, p. 19 e 64.
240
não a eles, conforme o expressa a Constituição Dogmática Dei Filius, do Concílio Vaticano
I (1870), citando a frase de São Vicente de Lérins, na qual vem afirmada a necessidade de
um desenvolvimento segundo a mesma ordem da fé, sentido e pensamento, em cada gera-
ção e em cada tempo (DS 3020).472 A seguir, abordam-se alguns autores do período patrís-
tico, que deixaram escritos a respeito da Igreja de Roma e de Pedro e seus sucessores.
1 – Inácio de Antioquia
Na Saudação da carta aos Romanos, escrita por volta do ano 107, Inácio, Bispo de
Antioquia, na Síria, escreve:
Inácio, também chamado Teóforo, à Igreja que recebeu misericórdia pela grande-
za do Pai altíssimo e de Jesus Cristo seu Filho único, Igreja amada e iluminada
pela vontade daquele que escolheu todos os seres, isto é, segundo a fé e a carida-
de de Jesus Cristo nosso Deus, ela que também preside na região da terra dos
romanos, digna de Deus, digna de honra, digna de ser chamada bem-aventurada,
digna de louvor, digna de êxito, digna de pureza, e que preside na caridade na
observância da lei de Cristo e que leva o nome do Pai.473
o texto é um elogio denso e cheio de conteúdo à Igreja de Roma, presente nas ex-
pressões enfáticas, que ele não usa para nenhuma outra Igreja a quem endereça cartas. Com
isso, embora implicitamente, reconhece estar diante de uma Igreja que goza de proeminên-
cia perante todas as outras. Não há um significado jurídico nas expressões, mas este não era
o seu objetivo. No conjunto, todavia, indica um papel particular do primado que a Igreja de
Roma exerce em relação às outras Igrejas.474
As expressões “preside na região” e “preside na caridade” mostram que não diz
sobre quem ou sobre que coisa preside, pois em ambas o verbo presidir é intransitivo. A
Igreja de Roma simplesmente preside e desenvolve essa presidência em uma região bem
472
“Crescat igitur et multum vehementerque proficiat, tam singulorum quam omnium, tam unius hominis
quam totius Ecclesiae, aetatum ac saeculorum gradibus, intelligentia, scientia, sapientia: sed in suo dumtaxat
genere, in eodem scilicet dogmate, eodem sensu eademque sententia” (DS 3020).
473
INÁCIO DE ANTIOQUIA, Carta aos Romanos, 1,1-3. In: CARTAS DE SANTO INÁCIO DE ANTIO-
QUIA. Comunidades em formação, op. cit., p. 63, grifos nossos.
474
A fonte básica deste texto é FALBO, G. Il primato della Chiesa di Roma alla luce dei primi quattro secoli.
Roma: Coletti, 1989.
241
Na medida em que a leitura avança, o texto mostra Roma como mestra. Compara-
da com as suas outras cartas, na dirigida Aos Romanos, Inácio coloca-se na condição de
discípulo, entendendo que se deve conformar ao ensinamento de Roma. Nas outras cartas,
ele instrui, exorta e recomenda. Inclusive, em Aos Romanos 9,1, recomenda a Igreja da Sí-
475
HARNACK, A. “Das Zeugnis des Ignatius über das Ansehen der römischen Gemeinde”. Sitzungsberichte
dell’Accademia di Berlino, 1896, p. 111-131 apud FALBO, op. cit., p. 119, nota 4.
476
IGNACE D’ANTIOCHIE. Lettres (Texte grec, introduction, traduction et notes de P. Th. Camelot O.P.
Sources Chrétiennes 10). Paris: Du Cerf, 1969, p. 106, nota 1.
242
ria à de Roma, a qual, no período em que fica sem bispo, é confiada aos cuidados de Cristo
e da caridade da Igreja de Roma.
Em Aos Romanos 3,1, reconhece o papel magisterial da Igreja de Roma sobre as
demais: “Jamais tivestes inveja de alguém, instruístes sim a outrem. É meu desejo que
guardem sua força as lições que inculcais a vossos discípulos”. Certamente, Inácio sublinha
as intervenções concretas da Igreja de Roma. A alusão à “inveja”, no início do capítulo
terceiro, faz pensar na carta de Clemente Aos Coríntios.
É interessante notar que só na carta Aos Romanos não se encontra nenhuma exorta-
ção à concórdia e à unidade. Com isso, talvez Inácio queira confirmar o que compete à
Igreja de Roma: a vigilância sobre a unidade e a concordância da Igreja. Ele não quer dar
ordens à Igreja de Roma, mas, ao contrário, entrar em sintonia com a Igreja de Pedro e Pau-
lo, conforme Aos Romanos 4,3.
Inácio não cita o bispo de Roma, mas a Igreja de Roma, como sinal de que o que
conta é o papel primacial dela, mesmo que o bispo do momento seja possuidor de uma per-
sonalidade insignificante ou vigorosa.477
2 – Ireneu de Lião
O testemunho de Ireneu sobre a Igreja de Roma está enquadrado dentro de sua fina-
lidade geral, isto é, a de combater as heresias gnósticas, que pretendiam ser a verdade au-
têntica. A arma de Ireneu, como fará Tertuliano mais tarde, é a “tradição inalterada”: o de-
pósito da fé, recebido de Jesus Cristo e dos apóstolos, que fundaram as Igrejas, e transmiti-
do até nós, por uma sucessão ininterrupta de pessoas, os bispos das Igrejas, que o recebe-
ram de seus antecessores e que, por sua vez, o entregaram íntegro aos seus sucessores. Esse
é o motivo pelo qual Ireneu dá importância fundamental às “listas episcopais” das Igrejas
fundadas pelos apóstolos. Ele se declara capaz de fornecer o elenco ininterrupto dos bispos
de cada Igreja apostólica. Como esse empreendimento seria muito demorado, ele se restrin-
ge à Igreja de Roma. Ireneu entende que ela de Roma guarda fielmente a tradição apostóli-
ca.
477
FALBO, op. cit., p. 118-124.
243
É nesse contexto que se situa a sua famosa frase, atinente ao primado romano. To-
davia, ela é obscura em sua formulação latina; por isso, objeto das mais variadas hipóteses
da parte dos estudiosos quanto à sua interpretação. O texto é o seguinte:
Com efeito, deve necessariamente estar de acordo com ela, por causa da sua ori-
gem mais excelente, toda a Igreja, isto é, os fiéis de todos os lugares, porque nela
sempre foi conservada, de maneira especial, a tradição que deriva dos apóstolos
(Ad hanc enim ecclesiam propter potentiorem principalitatem necesse est omnem
convenire ecclesiam, hoc est omnes qui sunt undique fideles, in qua semper ab
his sunt undique, conservata est ea quae est ab apostolis traditio).478
não se tem certeza se a expressão “ad hanc ecclesiam” se refere à Igreja de Roma
ou à Igreja universal, da qual se separaram os hereges, que são os que não seguem a tradi-
ção transmitida pelos apóstolos. Apesar de a construção gramatical permitir a dúvida, o
contexto leva a concluir que a frase é um parêntese e se refere à Igreja de Roma. É por isso
que, logo a seguir, lembra a sucessão, a partir de Pedro e Paulo até Eleutério. Como se vê, o
contexto é o da Igreja de Roma, e não o da universal. Assim, Ireneu quer demonstrar a
permanência da tradição apostólica em cada Igreja Local, da qual a Igreja de Roma, funda-
da por Pedro e Paulo, é exemplo. B. Botte diz que ad hanc refere-se a in qua, o que não
deixa dúvidas de que o contexto indica a Igreja de Roma. Isso confirma a interpretação tra-
dicional, que sustenta referir-se a Roma479;
principalitas é um termo muito genérico e pode traduzir muitas palavras gregas,
todas muito precisas. Quanto à sua interpretação, duas opiniões são possíveis. A primeira
diz que os termos archê e archaiótes indicam origem, no sentido de que a Igreja de Roma
pode reivindicar a origem superior em relação a todas as outras Igrejas, porque foi fundada
pelos apóstolos Pedro e Paulo, aduzindo ao termo proteía, que significa prioridade: assim,
a Igreja de Roma pode ser considerada a prior omnium pelo fato de estar instituída na pes-
soa do apóstolo Pedro pelo próprio Salvador. A segunda opinião prefere as palavras “auto-
ridade” e “direção”, que é exercida pela Igreja de Roma, e com a qual todas as Igrejas de-
478
IRENEU DE LIÃO, Livros I, II, III, IV, V (Introdução, notas e comentários H. Ribeiro; organização das
notas bíblicas R. Frangiotti; tradução L. Costa. Coleção Patrística 4). São Paulo: Paulus, 1995. Texto Latino:
Adversus Haereses III, 3,2.
479
BOTTE, B. A propos de l’Adversus Haereses 3,3,2 de Saint Irénée. In: Irénikon 30 (1957), p. 156-163
apud FALBO, op. cit., p. 131, nota 39.
244
vem estar “de acordo”. Mas o “estar de acordo” é uma “necessidade de fato” (necessitas
facti), e não “necessidade jurídica” (necessitas juris). Aqui há nova discordância: a necessi-
dade de toda a Igreja concordar com a de Roma é uma conclusão lógica, no sentido de que
cada Igreja, na medida em que mantiver pura a tradição apostólica, concordará ipso facto
com a Igreja de Roma. De toda sorte, independentemente das traduções possíveis, a moti-
vação é a mesma para reconhecer a proeminência da Igreja de Roma: ela foi fundada pelos
apóstolos Pedro e Paulo e, mediante a sucessão ininterrupta dos bispos, conservou fielmen-
te o depósito da fé transmitido pelos apóstolos480;
a repetição de qui sunt undique parece ser uma confusão na cópia. Por essa razão,
trata-se da Igreja de Roma “na qual, por meio de seu bispo, foi conservada a tradição apos-
tólica”.
Portanto, a frase de Ireneu, pelo que vem antes e depois, e interpretada à luz de todo
o pensamento do autor, significa a Igreja de Roma. Mais adiante, Ireneu fala de Clemente,
terceiro sucessor de Pedro, que considera natural o dever da Igreja de Roma de intervir na
de Corinto, para “reuni-los na paz, reavivar-lhes a fé, e reconfirmar a tradição que há pouco
tempo tinha recebido dos apóstolos”.481 É o reconhecimento do papel da Igreja de Roma de
ser garantia da disciplina eclesiástica (ad pacem eos congregans), da unidade e da pureza
da fé (reparans fidem) e da conservação da autêntica tradição apostólica (adnuntians quam
ab apostolis acceperat traditionem).
Ireneu foi a Roma, em 177, para recorrer à autoridade doutrinal e à mediação eclesi-
al de Eleutério, 12º sucessor de Pedro. Eusébio narra as discussões na Gália por causa do
montanismo e refere-se ao Papa com as expressões “negociador em favor da paz das Igre-
jas” e “zelador do testamento de Cristo”.482 Ele mesmo vê a autoridade da Igreja de Roma,
não no sentido jurídico, que está no esquema hodierno, mas no sentido de um ponto de refe-
rência eclesial, que se coloca na categoria da comunhão, concernente ao essencial, isto é, a
fé e a praxe eclesial. Ele dá um passo adiante ao de Inácio de Antioquia, pois especifica o
480
Cf. Sources Chrétiennes 34 (Paris, 1956), p. 414-424. Livro II da Adversus Haereses, em que principalitas
significa “pela sua mais forte autoridade de fundação”.
481
O texto latino é o seguinte: “ad pacem eos congregans et reparans fidem eorum et adnuntians quam in
recenti ab apostolis acceperat traditionem”. In: Adversus Haereses III, 3,3. Em português: IRENEU DE
LIÃO, op. cit., p. 250.
482
EUSÈBE DE CÉSARÉE. Histoire ecclésiastique (Texte grec, traduction et notes par G. Bardy. Sources
Chrétiennes 31, 41 e 55). Paris: Du Cerf, 1952, 1955 e 1967. Aqui: Histoire ecclésiastique V, 3,4 e V, 4,1-2
(v. II, p. 26-28).
245
“preside” (prokáthetai): cada Igreja deve estar de acordo com a Igreja de Roma toda vez
que surgirem problemas de fé ou de fundamento da vida cristã.483
3 – Cipriano
483
FALBO, op. cit., p. 128-137.
246
munique a todos os apóstolos igual poder, todavia institui uma só cátedra, deter-
minando assim a origem da unidade.
É verdade que os demais (apóstolos) eram o mesmo que Pedro, mas o primado é
conferido a Pedro para que fosse evidente que há uma só Igreja e uma só cátedra.
Todos são pastores, mas é anunciado um só rebanho, que deve ser apascentado
por todos os apóstolos em unânime harmonia.
Aquele que não guarda essa unidade, proclamada também por Paulo, poderá pen-
sar que ainda guarda a fé? Aquele que abandona a cátedra de Pedro, sobre o qual
foi fundada a Igreja, poderá confiar que ainda está na Igreja?484
Sobre um só edificou a sua Igreja. Embora, depois da sua ressurreição, tenha co-
municado igual poder a todos os apóstolos, dizendo: “Como o Pai me enviou, eu
vos envio a vós. Recebei o Espírito Santo, a quem perdoardes os pecados ser-
lhes-ão perdoados, a quem os retiverdes ser-lhes-ão retidos”, todavia, para tornar
manifesta a unidade, dispôs com a sua autoridade que a origem da unidade proce-
desse de um só.
É verdade que os demais apóstolos eram o mesmo que Pedro, tendo recebido
igual parte de honra e de poder, mas a primeira urdidura começa pela unidade, a
fim de que a Igreja de Cristo aparecesse uma só.
O Espírito Santo, falando na pessoa do Senhor, designa esta Igreja única, quando
diz no Cântico dos Cânticos: “Uma só é a minha pomba, a minha perfeita, única
filha da sua mãe e sem igual para a sua progenitora”.
Aquele que não guarda esta unidade poderá pensar que ainda guarda a fé? Aquele
que resiste e faz oposição à Igreja poderá confiar que ainda está na Igreja?
Paulo apóstolo inculca o mesmo ensinamento e mostra o sacramento da unidade,
dizendo: “Um só corpo e um só espírito, uma é a esperança da vossa vocação, um
Senhor, uma fé, um Batismo, um só Deus”.485
Os estudos sobre essas três redações são muitos. A hipótese mais provável é que o
primeiro texto foi escrito contra Felicíssimo e, depois, revisado para ser enviado a Novaci-
ano. A hipótese mais provável é que o primeiro texto é o original, pois a carta seria escrita a
Novaciano. A hipótese de que o segundo texto seria o original apresenta menos probabili-
dade.
O problema de fundo é a relação entre Pedro e os apóstolos, que se traduz na ques-
tão da relação do bispo de Roma com os demais bispos. Desse modo, o pensamento dos
textos é o mesmo, apenas com acentuações diferentes. O ponto de partida é igual: a unidade
da Igreja, comum nos dois textos, expressa pela afirmação “sobre o qual edificarei a minha
Igreja”. Mas o conceito do igual poder e da igual dignidade concedidos a todos os apóstolos
484
SÃO CIPRIANO, A unidade da Igreja Católica 4,8-10.
485
Ibid. 4, 3-7.
247
486
FALBO, op. cit., p. 143-162.
248
Optato, bispo da cidade de Mileve, que viveu cerca de 320 a 385, na sua luta contra
os donatistas, cita a lista dos bispos de Roma como prova do primado da Igeja romana e
ensina que a comunhão com a Igreja de Roma é o penhor da legitimidade e da autorização
divina às outras Igrejas, dando a certeza de pertencer à Igreja Católica.487
Ambrósio afirma: “Onde está Pedro, aí está a Igreja” (Ubi ergo Petrus, ibi eccle-
sia).488
Jerônimo declara ao Papa Dâmaso: “Não sigo a ninguém como cabeça, a não ser
Cristo somente, e por isso quero permanecer em comunhão contigo, isto é, com a Sé de
Pedro. Eu sei que sobre esse rochedo está fundada a Igreja”.489
Agostinho, na sua luta contra Pelágio, quando três Sínodos rejeitaram o pelagianis-
mo, procura arduamente a aprovação de Roma, porque, segundo ele, somente a Sé Apostó-
lica conferirá a devida força à decisão dos bispos africanos, não cabendo mais apelação.
Daí surgiu a expressão Roma locuta, causa finita, para indicar como eram acatadas as deci-
sões tomadas pelo Papa. 490
Após a análise dos escritos de alguns Santos Padres, que mostram o reconhecimento
do papel primacial da Igreja de Roma sobre as demais, cabe o estudo de uma praxe antiga
da Igreja, dominante entre os orientais: o recurso a Roma. O valor teológico dessa praxe
advém, diferentemente dos ocidentais, das considerações que eles fazem sobre Pedro, por
não apresentarem declarações explícitas sobre o papel primacial de Roma. Só por esse ca-
minho é que se pode chegar, de algum modo, ao pensamento deles sobre seus sucessores
como chefes das Igrejas fundadas por eles.
O que permanece implícito na teoria vem, todavia, explicitado pelo fato do uso do
recurso a Roma nas questões de maior importância, no plano doutrinal e disciplinar, nas
487
PL 11, 946-950.
488
PL 14, 1134.
489
PL 22,355.
490
PL 33, 760. 762. 764; 44, 389-390. 549-554.
249
controvérsias teológicas, nos casos de deposição dos bispos ou de incerteza sobre sua legi-
timidade. Todos esses casos testemunham como está viva, embora, obviamente, com nuan-
ças diversas, a consciência dos Padres orientais do papel de Roma como garantia da verda-
de e da unidade.
491
Histoire ecclésiastique II, 15,2 e 16,1 (v. I, p. 71).
492
Id. IV, 14,1 (v. I, p. 179).
493
Id. V, 23-25 (v. II, p. 66-72).
250
todas as Igrejas da África e de Antioquia e aceitas por todas elas.494 Ainda acrescenta a in-
tervenção autorizada de Estêvão, na questão do batismo de adultos495, e louva a caridade de
Roma em ajudar os irmãos em necessidade, trazendo o testemunho de Dionísio de Corin-
to496 e de Dioníso de Alexandria.497
Desse modo, ele testemunha, mesmo que implicitamente, o prestígio da Igreja ro-
mana, acima de todas as outras, porque é a Igreja de Pedro. Isso, apesar da visão eclesioló-
gica das quatro sedes apostólicas, em que transparece, em Eusébio, um influxo político,
devido à grande estima que ele tinha ao Imperador Constantino, por entendê-lo como envi-
ado por Deus. Essa estima levará a privilegiar a Igreja de Constantinopla enquanto sede
imperial, passando da tetrarquia para a pentarquia. Mas essa visão não penetra na substân-
cia das coisas, porque, mesmo no período da decadência política de Roma, e até em con-
comitância com isso, cresce o seu prestígio como primeira sede e como garantia da fé e da
unidade da Igreja.498
Assim, Clemente de Alexandria oferece as mais numerosas e circunstanciais notí-
cias sobre as relações entre Pedro e a Igreja de Roma.499 Orígenes, em seu comentário sobre
o Gênesis, fala da vinda de Pedro a Roma e de sua crucificação de cabeça para baixo.500 Ele
foi a Roma no tempo de Zeferino, Papa de 199 a 217, com o desejo de ver a “antiquíssima
Igreja dos Romanos”.501 Era a Igreja mais importante e, por isso, podia julgar as questões
controvertidas.
2 – Paulo de Samósata
494
Id. VI, 43, 3 (v. II, p. 154).
495
Id. VII, 2 (v. II, p. 167).
496
Id. IV, 23, 9-11 (v. I, p. 204s).
497
Id. VII, 5, 2 (v. II, p. 169).
498
FALBO, op. cit., p. 165.
499
Histoire ecclésiastique VI, 14,5-7 (v. II, p. 107).
500
Id. III, 1,2 (v. I, p. 13).
501
Id. VI, 14,10 (v. II, p. 108).
502
MANZANARES, C. V. Paolo di Samosata. In: Dizionario Sintetico di Patristica. Vaticano: Libreria
Editrice Vaticana, 1995, p. 144.
251
disso, foi convocado um Sínodo em Antioquia, que ocorreu em 264, no qual ele prometeu
corrigir-se. No entanto, ele não colocou em prática a sua promessa proferida diante dos
bispos. Por isso, foi convocado outro Sínodo para 268. Neste, ele foi desmascarado, e a
sentença de excomunhão e de deposição foi comunicada, em primeiro lugar, ao bispo de
Roma, Dionísio, e só depois ao bispo de Alexandria, Máximo, e, por último, aos bispos de
todo o mundo.503 Dionísio de Roma ratificou a decisão do Concílio de Antioquia. Mas Pau-
lo ainda não se conformou e negou-se a deixar a igreja e a residência episcopal. O Impera-
dor, apesar de pagão, determina obediência ao mandar que o edifício pertence a quem está
em comunhão epistolar com o bispo de Roma.504
Esse caso demonstra a consideração de que gozava a Igreja de Roma e a prática de
dirigir-se a ela nas questões de maior importância. As cartas de comunhão eram o instru-
mento que manifestava a profunda união entre as Igrejas: os nomes dos bispos em comu-
nhão vinham escritos nos dísticos e eram lidos na Eucaristia. Ser excomungado significava
ser excluído dos dísticos e, como consequência, da vida íntima da Igreja, da qual as mani-
festações públicas e solenes eram sinal. E a comunhão com o bispo de Roma era fundamen-
tal, apesar da busca da comunhão também com todos os bispos orientais. Isso porque a co-
munhão com a Igreja universal acontecia mediante a comunhão com o bispo de Roma, e a
excomunhão, por parte de Roma, significava a exclusão da Igreja universal.
Atanásio, Bispo de Alexandria, a partir de 328, viu-se envolvido na luta ariana, que
seguiu ao Concílio de Niceia, de 325. Ele foi um intrépido defensor da ortodoxia e, por
isso, os arianos se voltaram contra ele. Foi deposto e exilado várias vezes, sempre calunia-
do pelos seus inimigos. Esses fatos ocorreram no tempo de Constantino († 337) e de seu
filho, Constanço.
O Papa Júlio (337-352) era considerado o juiz natural da controvérsia. Por isso, os
arianos enviaram o presbítero Macário, com a missão de conseguir a confirmação do Síno-
do de Tiro e reconhecer Pisto como o novo bispo de Alexandria. Mas Atanásio convocou
503
Histoire ecclésiastique VII, 30, 2.17.
504
Id. VII, 30, 19.
252
505
Cf. FALBO, op. cit., p. 171s.
253
expõe a triste situação de sua Igreja. Em uma das cartas, Basílio expõe o recurso a Roma.
Enfim, escreve ao Papa Dâmaso, na carta 70, urgindo ser necessário intervir, de acordo com
a tradição do século anterior, como havia feito o Papa Dionísio.
Nota-se, novamente, um testemunho claro, por meio desse fato, do reconhecimento
do papel primacial de Roma, apesar de o resultado da ação de Basílio só ter surtido efeito
mais tarde, quando ele já havia morrido, pois a distância era grande, o que dificultou uma
informação objetiva. Basílio dava muita importância à comunhão entre os bispos, que era
alimentada pela troca de correspondência ou por visitas. E o bispo de Roma ocupa um pa-
pel preponderante quanto à comunhão, pois ele é o “corifeu dos ocidentais”, expressão usa-
da por ele, estabelecendo um paralelo com Pedro, o “corifeu” dos apóstolos. A sua Eclesio-
logia dá o primeiro lugar ao bispo de Roma, pois ele deve condenar as heresias e excomun-
gar os hereges, enquanto todos os bispos, tanto do Ocidente quanto do Oriente, devem estar
em comunhão com ele.506
506
Ibid., p. 173-177.
254
Igreja de Antioquia e se impôs a tarefa de restabelecer a plena unidade entre a sua Igreja e
Roma.
A ocasião foi-lhe dada com ordenação como bispo de Constantinopla. Devendo co-
municar a sua eleição a Roma, quer reconciliar com Roma o ex-bispo de Constantinopla,
Flaviano de Antioquia. A proposta de reconciliação foi apresentada por ele no Concílio de
Cápua, de 392, o qual ele preside, a todos os bispos que professavam a doutrina ortodoxa.
Depois de muitas dificuldades, ele teve sucesso, mais tarde, ao conseguir o reconhecimento
de Flaviano, por parte de Roma, restabelecendo, desse modo, a unidade.
Todo esse esforço demonstra que a comunhão com a Igreja de Roma é uma das
principais preocupações nos fatos concretos da vida de Crisóstomo e corresponde à sua
visão eclesiológica. Iluminativos são os recursos a Roma feitos por ele, assim como os úl-
timos fatos de sua vida, quando ele apela para Roma. Assim, continua a tradição do recurso
à “Igreja principal”, seguindo os traços dos grandes Padres orientais, Atanásio e Basílio.507
A doutrina da Igreja ensina que ela continua nos seus ministérios a estrutura do co-
légio apostólico. Esse princípio nos leva a algumas conclusões.
507
Ibid., p. 177-184.
255
versal foi dado a um colégio estruturado, com um chefe. A partir daí a posição de Pedro
dentro do colégio funda, ao mesmo tempo, a possibilidade de incorporar a si mesmo o con-
junto do colégio e de representá-lo. Com efeito, o Papa, como sucessor de Pedro, representa
o colégio episcopal e pode sozinho, dessa forma, tomar decisões que obrigam a Igreja intei-
ra. Um bispo não pode fazer isso, assim como também não os bispos do mundo inteiro. A
Nota prévia afirma que o colégio episcopal é o Papa na chefia de todos os bispos. Portanto,
os bispos sem o Papa, mesmo reunidos em Concílio ecumênico, não poderão tomar nenhu-
ma decisão que obrigue a Igreja inteira.
c. A Igreja vive em comunhão de fé e de trabalho. Assim, as decisões papais sempre
deverão estar em comunhão de fé, devendo sempre fazer parte do depósito da fé (depositum
fidei), pois todos, na Igreja, estão sujeitos à Revelação e à Tradição apostólica. Evidente-
mente, essas decisões dizem respeito a questões de fé e moral.
d. As tarefas na Igreja não são as mesmas, mesmo dentro do colégio episcopal. En-
quanto o Papa tem a seu encargo a Igreja universal, pois é o seu pastor supremo e universal,
os bispos, por sua vez, têm a seu encargo uma Igreja Particular, que é “a porção do Povo de
Deus confiada a um bispo para que a pastoreie em cooperação com o presbitério” (Christus
Dominus 11; CIC 369). Colegialmente, os bispos residenciais têm o encargo da Igreja uni-
versal, por exemplo, num Concílio ecumênico. E a pertença ao colégio episcopal se dá por
meio da ordenação e da imposição das mãos, em que acontece a comunhão hierárquica, que
é a comunhão com o chefe e demais membros do colégio episcopal.
O Papa é, antes de tudo, o bispo de Roma, isto é, de uma Igreja Particular. Mas co-
mo sede de Pedro tem um carisma especial entre as Igrejas Particulares. Também o Papa é
pastor da totalidade do rebanho, exercendo um poder pleno, supremo, ordinário, imediato e
verdadeiramente episcopal. Ele é o “pastor supremo”, ou seja, aquele que preside na cari-
dade e que tem o encargo da unidade e da saúde do todo. O seu pastoreio é solicitude geral,
em união com os bispos, e graças a eles uma promoção da missão e uma confirmação fra-
terna da fé.
Historicamente constatamos que a sede de Roma tem a presidência na caridade,
sendo modelo de fé para as outras Igrejas. O Papa pode substituir ou providenciar um bispo
que falte. Também resolve uma situação de crise, numa função de competência da autori-
dade local. Sustém a autoridade dos bispos locais, mediante a sua autoridade superior à dos
256
bispos locais. Ele pode fazer tudo na Igreja, mediante a plenitude de poder que possui, des-
de que não esteja contrário à fé, ao estatuto fundamental da Igreja (o Código de Direito
Canônico) e ao direito divino.
O dogma do primado foi definido pelos seguintes Concílios: Lião, em 06 de julho
de 1274 (DS 861); Florença, em 06 de julho de 1439 (DS 1307-1308); Vaticano I, em 1870
(DS 3053-3075). A partir da doutrina ensinada por esses Concílios, do ponto de vista do
desenvolvimento do dogma do primado, podem-se fazer as seguintes observações:
508
SCHMAUS, op. cit., p. 157.
257
Esses Concílios ensinam que o primado é de jurisdição, com extensão sobre toda a
Igreja; o Papa é o sucessor do apóstolo Pedro e tem a plenitude do poder recebido de Jesus
Cristo. Assim, o Papa tem o poder de jurisdição sobre os demais Bispos. Com efeito, a base
do papado é cristológica, e não apenas mero resultado de uma evolução histórica, porquan-
to ele é proveniente da vontade de Jesus Cristo. O Vaticano II trouxe um complemento ne-
cessário com a doutrina do episcopado e da colegialidade episcopal.
Hoje, o primado está na ordem do dia, tanto nos meios católicos quanto no diálogo
ecumênico. Pode-se dizer que é um dos sinais dos tempos. Para tal, mais do que nunca, o
primado deve-se constituir em um “ministério de unidade”, o que não contraria a tradição
patrística. E esse ministério de unidade pode ser exercido pelo Papa, visto que ele se torna
centro de convergência ou mediador de todos os cristãos. Esse papel poderia ser exercido
não apenas internamente, dentro da Igreja Católica, mas em relação a todos os cristãos do
mundo. Nesse sentido, o Papa João Paulo II declara, em sua Encíclica Ut Unum Sint, dese-
jar um estudo sobre o primado, a fim de abrir uma situação nova favorável ao ecumenismo:
Assim, os bispos têm uma autoridade de ministério que visa à direção pastoral das Igrejas
fundadas pelos apóstolos, cuja autoridade deriva daquela dos apóstolos.
Os bispos não têm o carisma da Revelação e não podem constituir Tradição assim
como os apóstolos. Estes podem colocar Tradição normativa, ao passo que aqueles estão
sujeitos à Tradição. É claro que o colégio episcopal goza da infalibilidade, quando julga ou
ensina formalmente uma verdade pertinente ao depósito da fé.
Um bispo individualmente não sucede a um apóstolo individualmente, exceto o bis-
po de Roma. A sucessão dos bispos é sempre colegial: cada bispo sucede a todos os apósto-
los.
Os apóstolos realizam a presença do Senhor, que já veio pleno de graça e de verda-
de, mas em vista da vinda futura: isso supõe Jesus Cristo como fundamento (1Cor 3,10). Os
apóstolos foram, por isso, escolhidos, consagrados e enviados pessoalmente pelo Senhor.
Os bispos o são por meio de uma mediação – a dos apóstolos –, pois foram escolhidos, con-
sagrados e enviados por eles.
Os poderes episcopais são o poder de Ordem e o poder de jurisdição. Essa divisão
foi feita pela Igreja, pois inicialmente a missão e função recebida de Cristo pelos apóstolos
é considerada una.
Essa subdivisão aconteceu porque alguns bispos se mostraram indignos pela sua
conduta pessoal ou por suas posições heréticas. Como deviam ser depostos por causa disso,
surgiu a questão se, com a deposição, perdiam também o poder espiritual. Agostinho fez tal
divisão: o bispo não perde o poder espiritual, que é proveniente do sacramento da Ordem,
apenas lhe é vetado o exercício do mesmo, perdendo, por isso, a jurisdição. Com a Teologia
pós-tridentina, essa distinção é aceita pela Teologia sem problemas.
Mas o poder de jurisdição está subordinado ao poder de Ordem, pois aquele pressu-
põe este. O poder de jurisdição pode ser perdido, ao passo que o de Ordem não, já que este
é resultado da ordenação episcopal. O poder de Ordem está em função do caráter salvífico
presente na comunidade messiânica de salvação, isto é, o aprofundamento e a conservação
da vida divina na pessoa humana. O poder de jurisdição serve à Ordem salvificamente ope-
rante na comunidade fraterna, cuja vida tem raízes na sacramentalidade da Igreja. Este está
260
limitado local ou pessoalmente, pois se destina àquelas pessoas para as quais o sacerdócio
foi instituído.509
Hoje essa divisão está sendo questionada. Com certeza deve-se superar a tendência
ou o perigo de uma separação radical entre esses dois poderes, embora sejam dois. A uni-
dade entre ambos acontece no âmbito sacramental. A elucidação desse problema encontra-
se na Lumen Gentium 20. Uma Igreja sem o múnus episcopal não seria a Igreja de Jesus
Cristo.
509
Ibid., p. 192.
261
- o múnus de pastor não se resume ao cuidado individual dos fiéis, mas abarca a
formação de uma autêntica comunidade cristã;
- educar, passo a passo, os catecúmenos e os neófitos;
- “não se edifica nenhuma comunidade cristã, se ela não tiver por raiz e centro a
celebração da Santíssima Eucaristia: por ela há de iniciar-se, por isso, toda
educação do espírito comunitário”;
- “é pela caridade, oração, exemplo e obras de penitência que a comunidade
eclesial desempenha verdadeira função de mãe para com as almas que devem
ser levadas a Cristo”;
- “na construção da comunidade cristã, os presbíteros não estão jamais a serviço
de alguma ideologia ou facção humana, mas, como arautos do Evangelho e
pastores da Igreja, se desdobram por conseguir o crescimento espiritual do
Corpo de Cristo”.
Convém notar que esses três múnus têm igualdade de importância e são exercidos
de forma igual, apesar de ter sido mais valorizado, do ponto de vista histórico, o múnus de
santificar, pelo qual o presbítero quase que reservava suas atividades aos sacramentos.510 A
Congregação para o Clero publicou, no dia 19 de março de 1999, o documento intitulado O
Presbítero. Mestre da palavra, ministro dos sacramentos e guia da comunidade em vista do
terceiro milênio, no qual ressalta a unidade dos três múnus de Jesus Cristo no exercício do
ministério presbiteral.
O sacramento da Ordem se realiza em três graus: episcopado, presbiterato e diaco-
nato. A Lumen Gentium, do Vaticano II, atribui a sacramentalidade da Ordem, em primeiro
lugar, ao bispo, quando fala em “ordenação episcopal” e, abolindo o linguajar anterior,
“consagração episcopal”. O n. 28 do documento citado entende que o presbítero participa
da sacramentalidade da ordenação episcopal, e não possui a plenitude da Ordem, o que o
faz “colaborador da Ordem episcopal” que “prolonga a ação do bispo em todas as comuni-
dades locais cristãs” e “torna visível em todos os lugares a Igreja universal” (Lumen Gen-
tium 28; Presbyterorum Ordinis 2 e 7).
510
A respeito dessa crítica, ver HACKMANN, G.L.B. Servir a Cristo na comunidade. O ministério presbite-
ral em Edward Schillebeeckx. São Paulo: Loyola, 1993, p. 135-149.
266
511
A propósito, ver HACKMANN, op. cit., p. 159-174.
512
Ver, sobre o tema do celibato, um estudo amplo em COPPENS, J. (Org.). Sacerdozio e celibato. Studi
storici e teologici. Ancora: Milano, 1975, 1025p.
513
A respeito da história e das motivações do celibato sacerdotal, ver HACKMANN, G.L.B. O celibato sa-
cerdotal: história. In: Teocomunicação, 21 (1991/4), p. 545-552; id. Celibato sacerdotal: motivações. In: Teo-
comunicação, 22 (1992/1), p. 133-144. O processo de dispensa do celibato encontra-se regulamentado em De
dispensatione a sacerdotali caelibatu, de 14.10.1980, emanado da Sagrada Congregação para a Doutrina da
Fé, de acordo com o cânon 291, do Código de Direito Canônico de 1983.
267
514
A questão da ordenação de mulheres para o presbiterato começou a ser discutida na Igreja Católica e foi
objeto da Declaração Inter Insigniores, emanada da Congregação para a Doutrina da Fé, de 15 de outubro de
1976. O Papa João Paulo II escreveu a Carta Apostólica Ordinatio Sacerdotalis, de 22 de maio de 1994, na
qual ele afirma que a ordenação sacerdotal é reservada somente aos homens por uma disposição divina, conti-
da no depósito da fé.
515
INÁCIO DE ANTIOQUIA, Carta aos Tralianos 2,3; Carta aos Efésios 2,1; Carta aos Esmirnenses 8,1;
10,1.
516
Disdakalia II, 44,2.
268
29). Quer dizer que o situa dentro da constituição hierárquica da Igreja como membros de
Ordem sagrada, admitindo a possibilidade de diáconos casados. E declara ainda mais: “São-
lhes impostas as mãos, ‘não para o sacerdócio mas para o ministério’, porquanto, fortaleci-
dos com a graça sacramental, servem ao povo de Deus na diaconia da liturgia, da palavra e
da caridade, em comunhão com o bispo e seu presbitério” (Lumen Gentium 29).
Posteriormente, o diaconato, incluindo o acesso a homens casados, foi regulamenta-
do pela Carta Apostólica Motu Proprio Ad Pascendum, datada de 15 de agosto de 1972,
também de Paulo VI.517 Ultimamente, duas Congregações publicaram uma declaração con-
junta sobre o diaconato permanente: a Congregação para a Educação Católica promulgou as
Normas fundamentais para a formação dos diáconos permanentes, e a Congregação para o
Clero o Diretório do ministério e da vida dos diáconos permanentes, ambos datados de 22
de fevereiro de 1998.518
Em meio às discussões atuais sobre a ordenação do diaconato, pode-se afirmar, a
partir de uma Eclesiologia orgânica, que o diaconato representa e atualiza o ministério de
Jesus Cristo em seus múltiplos aspectos, em comunhão com o episcopado e o presbiterato,
enquanto servidor. Com Eloy Bueno de la Fuente, pode-se entender a sua peculiariedade
sacramental, não a partir da ótica do poder sobre os sacramentos, mas na dimensão do ser-
viço comunitário, apontando para uma Igreja mais servidora. E o diácono realizará as suas
funções vinculadas mais ao ministério do bispo do que ao do presbitério, mais em perpecti-
va diocesana do que paroquial.519
A vida religiosa, apesar de aparecer como um fenômeno universal das religiões, tem
seu fundamento na vida de Jesus, em seus gestos, exemplos e palavras (Lumen Gentium 43
e Perfectae Caritatis 12). É de instituição divina, pois os conselhos evangélicos são um
dom divino que a Igreja recebeu do seu Senhor.
517
Id., p. 1118-1131.
518
A Comissão Teológica Internacional publicou um documento sobre o diaconato permanente intitulado
Diaconato, evolução e perspectivas, datado de 30 de setembro de 2002.
519
Cf. DE LA FUENTE, E. B. Eclesiología (Sapientia Fidei 18). Madrid: BAC, 1998, p. 201-203.
269
Ela é entendida como a consagração total da pessoa a Deus. Por isso, apresenta-se
como parte integrante da essência da Igreja. Também não poderá jamais ser abolida, uma
vez que se constitui um elemento vital do Corpo de Cristo, que é a Igreja. O fundamental é
o seguimento de Jesus, que assume forma particular na vida religiosa. Implica uma vida
consagrada a Deus por meio dos três votos (castidade, pobreza e obediência), vividos em
comunidade e a partir de um carisma especial, recebido de seu fundador, como um tesouro
a ser conservado, que origina uma espiritualidade característica.
A Perfectae Caritatis estabelece cinco princípios para a atualização da vida religiosa,
que deve acontecer sob o impulso do Espírito Santo e guia da Igreja:
CAPÍTULO OITAVO
Como a Igreja está a serviço da Palavra de Deus, neste capítulo520 serão desenvolvi-
dos alguns aspectos característicos do desempenho da Igreja desse serviço, que se constitui
em verdadeira missão para ela, enquanto comunidade messiânica de salvação, que é a Igre-
ja do Novo Testamento. A opção por construir um capítulo em torno da Palavra na Igreja
implica algumas repetições, mas ajuda, por outro lado, a destacar a importância da Palavra
de Deus para a Igreja. Para tal, é necessário, em primeiro lugar, recordar três princípios
relacionados com o desempenho da palavra pela Igreja:
a) a Revelação foi confiada a toda a Igreja, pois toda ela participa da missão salvífi-
ca de Jesus Cristo, particularmente pelo múnus profético. Para tal, serve-se da Bíblia, a Pa-
lavra de Deus, e do Magistério, que se tornam, assim, as regras próximas da fé. Entretanto,
a Revelação não é apenas um “depósito”, mas também um processo vital, do qual se tem a
receber e a dar;
b) os graus e as maneiras de participação na função profética de Cristo não são idên-
ticos para todos na Igreja. Apesar de nenhum batizado ser excluído, o Papa e os bispos,
sempre em união com ele, como herdeiros do colégio apostólico, participam de modo parti-
cular do múnus profético, ao receberem o serviço de guiar os irmãos na fé e de assegurar a
sua reta compreensão contra possíveis desvios. Por isso, só estes são, na Igreja, os mestres
autênticos, ou seja, testemunhas qualificadas, oficiais, os únicos intérpretes autorizados da
mensagem de Cristo e de sua interpretação (hermenêutica e reinterpretações). Mas eles
mesmos não podem acrescentar nem cortar nada dessa Palavra recebida de Jesus Cristo que
devem anunciar com fidelidade;
c) os textos neotestamentários que dão fundamento são Mt 28,18-20; At 1,8 e Jo
20,21.
271
Deus dispôs com suma benignidade que aquelas coisas que revelara para a salva-
ção de todos os povos permanecessem sempre íntegras e fossem transmitidas a
todas as gerações (Dei Verbum 7).
O texto básico encontra-se na Lumen Gentium 12, em que está afirmada a infalibili-
dade de todo o Povo de Deus, como já foi citado anteriormente:
O conjunto dos fiéis, ungidos que são pela unção do Santo (cf. 1Jo 2,20 e 27),
não pode enganar-se no ato de fé. E manifesta essa sua peculiar propriedade me-
diante o senso sobrenatural da fé de todo o povo, quando, desde os bispos até aos
últimos fiéis leigos, apresenta um consenso universal sobre questões de fé e cos-
tumes.
520
Este capítulo é, com alguns acréscimos, uma síntese de BENI, op. cit., p. 663-739.
272
natural da infalibilidade. Com efeito, o Espírito Santo, qual mestre espiritual e interior,
além de agir em todos os cristãos, para mantê-los firmes em toda a verdade e conservá-los
na fidelidade a Cristo, age, de modo especial, nos pastores, que são os sucessores dos Doze,
isto é, do apóstolo Pedro e dos outros onze, dotando o seu Magistério de um adequado ca-
risma de verdade.
A razão teológica é a seguinte: se a Igreja é perene e, portanto, indefectível nos seus
elementos essenciais, deve ser perene nela também o Magistério infalível. Por meio dessa
prerrogativa, a Igreja pode conservar intactas, até o final dos tempos, a pureza e a unidade
do depósito da fé. Com efeito, sem um Magistério infalível, a Revelação terminaria por
ceder às vicissitudes e contrariedades das opiniões humanas. A declaração da Congregação
da Doutrina da Fé Mysterium Ecclesiae afirma o seguinte: “O Povo de Deus tem necessida-
de da intervenção e da ajuda do Magistério, quando surgem dissensos internos e se difun-
dem sobre uma doutrina que deve ser crida e retida; e isso para evitar que, dentro do Corpo
de seu Senhor, ele seja privado da comunhão da única fé” (n. 2).
O mesmo documento explica a natureza da infalibilidade da seguinte forma:
légio apostólico, e não os bispos individualmente, são infalíveis, de acordo com a Nota
Prévia, no final da Lumen Gentium, que é uma explicação do n. 22 do mesmo documento,
sempre sob a presidência do Papa, sucessor individual do apóstolo Pedro. Portanto, a infa-
libilidade diz respeito a todo o colégio episcopal, e não a um bispo individualmente, pois os
bispos, com exceção do sucessor de Pedro, sucedem ao colégio dos apóstolos. De fato, o
colégio dos bispos sucede ao colégio apostólico. Quer dizer que os bispos são infalíveis
somente quando unidos entre si, sob a chefia do Papa, pois o colégio não existe sem a sua
cabeça (cf. Nota Prévia 3).
O ensinamento episcopal assume uma forma dupla: ensino solene, por meio do
Concílio ecumênico, e Magistério ordinário e universal. Em ambos os casos, sempre quan-
do se verificam as condições exigidas, o Magistério é infalível.
O Concílio ecumênico é a reunião legítima dos pastores da Igreja, para discutir e
decidir sobre questões de fé, de moral e de disciplina da Igreja universal. Os elementos
formais que tornam um Concílio ecumênico são os seguintes: convocação, celebração e
confirmação ou aprovação do Papa. Quando a participação é representativa de uma parte
dos cristãos, diz-se Concílio particular. Quando participam bispos de mais províncias ecle-
siásticas, diz-se Concílio plenário; provincial, se restrito a uma Província eclesiástica.
Os bispos, fora de um Concílio ecumênico, podem também ser infalíveis, mesmo
dispersos pelo mundo e em comunhão de Magistério com o sucessor de Pedro, quando con-
cordam em uma única sentença a reter como definitiva, embora individualmente não gozem
dessa prerrogativa (cf. Lumen Gentium 25). Tais ensinamentos concordes, que se constitu-
em em Magistério ordinário, acontecem, se explicam e podem ser acertados através da
pregação, das cartas encíclicas e pastorais, dos catecismos diocesanos, dos decretos e decla-
rações doutrinais, da aprovação tácita ou expressa dos escritos dos padres e dos teólogos,
dos estatutos dos Sínodos e dos Concílios plenários etc. Como na prática nem sempre é
fácil saber até que ponto existe o consenso, o Papa pode verificar a sua existência ou não
sobre determinado assunto por meio de um instrumento hábil.521
521
O Papa Pio XII aplicou um questionário para verificar o consenso universal sobre a doutrina da Assunção
de Maria aos céus e o usou como o argumento decisivo para a proclamação do dogma da Assunção, como
está afirmado na Munificentissimus Deus, de 1º de novembro de 1950 (cf. PIO XII, Allocuzione nel Concisto-
rio del 30 Ottobre 1950. In: AAS, 42 (1950), p. 774-775).
274
1º) as conclusões teológicas são verdades que se deduzem por raciocínio verdadeiro
e próprio das premissas contidas na Revelação. Exemplo: a Eucaristia é o corpo de Cristo,
e, da verdade racional que cada corpo tem sua quantidade, deduz-se a conclusão teológica
de que na Eucaristia está presente o corpo de Cristo com sua quantidade. Também esses
ensinamentos gozam de infalibilidade, porque esse carisma é dado para zelar pela integri-
dade do depósito da fé, através da razão, pois a Igreja deve saber até onde se estende sua
infalibilidade, para discernir o falso e o verdadeiro (DS 3405);
2º) os fatos dogmáticos são realidades não contidas na Revelação e de cuja aceita-
ção dependem intrínseca e necessariamente a consciência e a segurança do dogma. Como
522
Summa Theologiae II-II, 1, 4, ad 3.
275
As notas teológicas são fórmulas que servem para qualificar o valor dogmático de
uma doutrina em relação com a fé. Assim, uma verdade é de fé divino-católica ou de fé
católica ou dogma de fé, quando revelada por Deus e proposta pelo Magistério extraordiná-
rio ou ordinário para se crer como tal. É fé definida (de fide definita) quando proposta pelo
Papa, por meio de uma definição solene, ou pelo Concílio. É de fé divina (de fide), quando
contida de modo evidente na Revelação, mas não proposta a se crer explicitamente pela
Igreja. É de fé eclesiástica, quando não contida formalmente na Revelação, mas definida
infalivelmente pelo Magistério. É próxima à fé, quando é considerada contida na Revelação
unanimemente pela Igreja, mas não definida expressamente. É teologicamente certa, quan-
do a doutrina é deduzida de uma verdade revelada, cuja negação seria rejeitar um dogma. É
doutrina católica, quando a doutrina expressa é autenticamente ensinada pela Igreja, mas
não ainda como verdade de fé.
As censuras teológicas indicam o grau de contraste de uma doutrina com a fé e com
os costumes. Assim, uma doutrina é herética, quando está em oposição certa e direta a uma
verdade divino-católica, isto é, um dogma. É próxima a heresia, quando a verdade negada é
uma verdade próxima à fé. É errônea na fé, quando está em oposição a uma verdade de fé
divina ou de fé eclesiástica. É somente errônea, quando em oposição a uma proposição
teologicamente certa. É temerária, quando em oposição a uma doutrina católica comumen-
te aceita pela Igreja, mas não ainda como verdade de fé.
Os cristãos devem obediência ao Magistério nas verdades formalmente declaradas e
ao seu ensino ordinário, como verdades da fé divina e católica. A não aceitação (desobedi-
ência em questões de fé e de moral) põe em risco a salvação pessoal (cf. Lumen Gentium
25).
Portanto, o Pontífice Romano, chefe do colégio dos bispos, em virtude de seu ofício,
goza da infalibilidade da Igreja, quando, qual pastor supremo e doutor de todos os fiéis, que
confirma na fé os irmãos (Lc 22,32), sanciona com ato definitivo uma doutrina sobre a fé e
a moral (cf. DS 3070).
Essa definição foi assumida pelo Vaticano II (Lumen Gentium 25) e Mysterium Ec-
clesiae 3, como, aliás, não poderia deixar de ser. A infalibilidade papal é uma prerrogativa
intimamente conexa com o primado, conferido por Cristo a Pedro e a seus sucessores (cf.
Mt 16,18-19).
O Vaticano II completou em muitos aspectos essa doutrina, que não ficara totalmen-
te clara no Vaticano I. Apresentando uma doutrina mais completa, o Vaticano II mostra a
infalibilidade como dom da Igreja universal e afirma que também o colégio dos bispos goza
dela, quando em colégio episcopal presidido pelo Papa. O número 25 da Lumen Gentium é
central.
Algumas observações referentes a essa doutrina523:
523
Cf. SCHMAUS, op. cit., p. 180-187.
277
524
Cf. ibid., p. 184.
278
8.5 A recepção
525
“On pourrait poursuivre l’histoire de tous les conciles sous l’angle de leur réception”. CONGAR, Y. La
‘réception’ comme réalité ecclésiologique. In: Revue des Sciences Philosophiques et Théologiques 56 (1972),
p. 374. Há uma publicação abreviada do mesmo artigo em Concilium 1972/7, p. 886-907, que não será usada
aqui.
526
“Thème dangereux? En tout cas, thème rarement abordé, et cependant d’une importance majeure tant au
point de vue de l’oecuménisme qu’à celui d’une ecclésiologie pleinement traditionelle et catholique” (cf. id.,
p. 369).
527
Cf. ROUTHIER, G. La réception d’un concile. Paris: Du Cerf, 1993, p. 15 e 16, notas 2 e 3.
279
car e promover o Concílio Ecumênico Vaticano II”, que provocou um debate sobre a sua
recepção528; segundo, o movimento ecumênico, que trouxe o tema à luz de forma tão pre-
ponderante que o consagrou no sentido de frisar a necessidade de os diálogos e os acordos
bilaterais ou multilaterais serem recebidos pelas respectivas Igrejas.
G. Routhier, com razão, defende a opinião de que o tema da recepção é, ao mesmo
tempo, tradicional, por isso longe de ser estranho à literatura teológica ou à prática eclesial,
e oculto, pois esteve ausente em um período da história da Igreja, devendo, por isso mesmo,
ser redescoberto, motivos pelos quais não se pode considerá-lo como um conceito novo.529
Em suma, poder-se-ia afirmar que a recepção implica um conceito já conhecido pela tradi-
ção eclesial, porém não discutido. Essa é a conclusão de J. P. Boyle, quando estuda o Vati-
cano I.530
J. Ratzinger comunga com esse tipo de constatação, ao mostrar que a ideia da re-
cepção já estava presente entre os bispos no Concílio de Trento (1545-1563), especialmente
através dos Cardeais Cervini e Seripando. A recepção está presente nos textos conciliares,
como demonstra o Decreto sobre os Livros Sacros e as Tradições a Receber, da quarta ses-
são, de 8 de abril de 1546, na qual foi definido o cânon bíblico (DS 1501-1508). O Vaticano
I fez uso da recepção, ao receber doutrinas anteriores, não apenas quando professou publi-
camente a fé de Trento, na segunda sessão, mas também quando redigiu novos enunciados
doutrinais a partir de decretos de Concílios anteriores.531
528
Assim o L’Osservatore Romano anuncia a convocação da segunda Assembleia Extraordinária do Sínodo
dos Bispos: “Um Sínodo extraordinário para reviver e aprofundar o Concílio Vaticano II: O Papa convocou
uma Assembleia Extraordinária do Sínodo dos Bispos, a ser realizada de 25 de novembro a 8 de dezembro
deste ano, para recordar o Concílio Ecumênico Vaticano II a vinte anos do seu encerramento, com o objetivo
de reviver aquela atmosfera de comunhão eclesial e de aprofundar o denso ensinamento conciliar, em ordem à
sua aplicação na vida da Igreja. Este anúncio foi feito no encerramento da Semana de oração pela unidade dos
Cristãos, ao término da Missa celebrada na Basílica de S. Paulo fora dos Muros, no dia 25 de janeiro”. (In:
L’Osservatore Romano. Edição Semanal em português, de 3 de fevereiro de 1985, ano XV, nº 5, p. 01).
529
ROUTHIER, op. cit., p. 17. Observo que sigo, fundamentalmente, essa obra para a elaboração deste item.
530
Ibid., p. 18.
531
RATZINGER, J. Ein Versuch zur Frage des Traditionsbegriffs. In: Offenbarung und Überlieferung. Fri-
bourg, 1965, p. 58, 59 e 65 apud ROUTHIER, op. cit., p. 18.
280
Igreja e entre as Igrejas Locais e as Igrejas de diversas confissões cristãs. E esse processo
tem um alcance maior, ao dizer respeito, também, às relações entre Igreja, cultura e socie-
dade.
Portanto, o fato da recepção faz parte da história da Igreja, embora, como foi frisado
anteriormente, não refletido e nem sempre presente nos debates teológicos. A análise da
recepção faz constatar sempre ter havido uma recepção feita pelo Papa, que pode ser cha-
mada de oficial, e que sempre existiu, conforme demonstra o estudo da história dos Concí-
lios e da liturgia, que prova sempre ter havido a realidade da recepção na Igreja. Esta se
encontra regulada pelo Código de Direito Canônico, conforme os cânones 222 e 227 do
Código, de 1917, e do cânon 338 do Código, de 1983. O Vaticano II demonstra o mesmo,
ao apenas considerar válido e verdadeiro ato colegial uma iniciativa dos bispos somente
quando aprovada pelo Papa, conforme Lumen Gentium 22.532
Contudo, embora exista uma recepção oficial, convém frisar, desde já, que a recep-
ção de um Concílio não depende exclusivamente do Papa ou do colégio dos bispos, mas é
um processo que envolve toda a Igreja, pois é ela toda quem recebe um Concílio, a partir de
princípios teológicos explícitos, conforme será exposto mais adiante. O estudo da história
dos Concílios, enquanto aponta para a vida concreta da Igreja, mostra a recepção como algo
inerente a ela mesma.
A fé de Niceia só foi plenamente recebida após uma caminhada de 56 anos, mar-
cada por Sínodos, excomunhões, exílios, intervenções e violências imperiais. Foi o Concí-
lio de Constantinopla, de 381, que pôs fim a essas querelas, o qual, por sua vez, só foi con-
siderado ecumênico533 porque sua profissão de fé foi recebida por Calcedônia534, como ex-
pressão mais completa da fé nicena. Com efeito, o Símbolo, conhecido como constantino-
politano, foi lido após o de Niceia e os cânones do de 381 como “sinódicos535 do segundo
Concílio”. Mas foi só em 519, e antes por consentimento tácito e suposto, que Roma, mais
precisamente, o Papa Hormisdas (514-523), recebe a profissão de fé do Patriarca de Cons-
532
Deve-se comparar com Christus Dominus 4 e Lex Ecclesiae Fundamentalis, cânones 41 e 46, § 1.
533
Não se vai entrar, aqui, na discussão sobre a ecumenicidade dos Concílios. Para tal, pode-se ver WOL-
FINGER, F. O Concílio ecumênico e a recepção de suas conclusões. In: Concilium 187 (1983/7), p. 95-101;
RICCA, P. O Concílio ecumênico: expressão de colegialidade dos bispos ou a communio ecclesiarum, ou
representação de toda a comunidade dos fiéis? In: Concilium 187 (1983/7), p. 102-109.
534
Santo Ambrósio se lamentava do esquecimento e da ausência de Roma em Constantinopla (cf. Epist. 13,4-
8. PL 16,952-953. In: CONGAR, op. cit., p. 372).
535
Sinódicos é a coleção de resoluções sinodais.
281
536
Cf. ALBERIGO, G. (Org.). Storia dei concili ecumenici (2. ed.). Brescia: Queriniana, 1993, p. 46-56.
537
Cf. DENZLER, G. Autoridade e recepção das conclusões conciliares na cristandade. In: Concilium 187
(1983/7), p. 16s. Ver também ALBERIGO, op. cit., p. 52s.
538
Cf. DENZLER, op. cit., p. 17. Sobre a questão dos privilégios pretendidos por Constantinopla, como nova
Roma, ver ALBERIGO, op. cit., p. 105s.
539
Cf. ALBERIGO, op. cit., p. 77.
282
540
Cf. CONGAR, op. cit., p. 372s; ALBERIGO, op. cit., p. 96 e 106s.
541
Constantino afirma que o Imperador, enquanto sucessor e igual aos apóstolos, não necessita de um Concí-
lio para decidir em matéria de fé (cf. id., p. 148).
542
Cf. DENZLER, op. cit., p. 17.
543
GILL, J. Il concilio di Firenze. Firenze: G. C. Sansoni, 1967, p. 417. É sintomática a afirmação com a qual
o autor conclui o último capítulo do livro: “A causa da união estava perdida” (p. 462).
283
1917, o que justifica afirmar, seguindo Congar, que a recepção de um Concílio depende de
sua eficácia.544
E Y. Congar ainda acrescenta:
a) O conceito de recepção
544
CONGAR, op. cit., p. 374.
545
Ibid., p. 373.
546
KILMARTIN, E. J. Reception in History: An Ecclesiological Phenomenon and its Significance. In: Jour-
nal of Ecumenical Studies 21(1984), p. 37 apud ROUTHIER, op. cit., p. 69, nota 7.
284
descrevendo esse processo, no intuito de tornar o conceito mais operacional e mais apto a
suster as análises relativas aos fatos particulares da recepção.
Y. Congar define recepção como o “processo pelo qual um corpo eclesial faz ver-
dadeiramente sua uma determinação que ele não deu a si próprio, reconhecendo, na medida
promulgada, uma regra que convém à sua vida”.547
Motivado pela razão de não se poder apresentar uma definição operacional estrita
de recepção, por ser um fenômeno amplo e complexo e conhecer diferentes acentos e mo-
dalidades, ao longo das idades e segundo as confissões548, G. Routhier afirma ser mais fácil
encontrar elementos que descrevem ou caracterizam o processo e o apresenta como “um
processo espiritual através do qual as decisões propostas por um Concílio são acolhidas e
assimiladas na vida de uma Igreja Local e tornam-se, para esta, uma viva expressão da fé
apostólica”.549
Diante dessas duas definições, podem ser feitas algumas observações. Em primeiro
lugar, é preciso distinguir entre dois sentidos do termo recepção, segundo A. Grillmeier,
que, por sua vez, se inspirou no estudo de Franz Wieacker sobre a recepção do direito ro-
mano no mundo germânico.
O primeiro é o sentido estrito, reputado como sentido próprio, enquanto o segun-
do, o sentido análogo, que é o mais largo, vem considerado como sentido impróprio. Se-
gundo A. Grillmeier, só se pode falar de recepção no sentido do encontro da ação de dar e
receber entre duas regiões culturais diferentes e separadas, tornando-a um processo exóge-
no e não endógeno, ou epidêmico e não endêmico. Tal é o sentido estrito ou próprio.550
Diante dessa compreensão, a recepção é um elemento cultural que o “povo A” re-
cebe do “povo B”, mas caracterizado por não ter sido criado por ele; portanto, totalmente
estranho. Assim, não podem ser considerados como fenômeno de recepção uma evolução
interna ou o desenvolvimento de um elemento no interior de uma cultura. Contudo, o refe-
547
“Par ‘réception’ nous entendons ici le processus par lequel un corps ecclésial fait sienne en vérité une
détermination qu’il ne s’est pas donné à lui-même, en reconnaissant, dans la mesure promulguée, une règle
qui convient à sa vie” (CONGAR, op. cit., p. 370).
548
Sobre a história detalhada do processo de recepção, ver ROUTHIER, op. cit., p. 15-65.
549
“Sommairement, nous décrivons la réception comme un processus spirituel par lequel les décisions propo-
sées par un concile sont accueillies et assimilées dans la vie d’une Église locale et deviennent pour celle-ci
une vivante expression de la foi apostolique” (ROUTHIER, op. cit., p. 69).
550
Cf. ROUTHIER, op. cit., p. 53. Por “exógeno” se entende o que cresce de fora para dentro, enquanto por
endógeno o que cresce de dentro para fora; por “epidêmico” o que se alastra rapidamente e, por “endêmico” o
que já existe em um determinado lugar.
285
rido autor não descarta a possibilidade de acontecer a recepção dentro da própria Igreja
Católica, embora ele reserve o conceito de recepção, em sentido próprio, para o processo de
câmbio entre as Igrejas regionais, como ocorreu nos primeiros séculos da Igreja, ou, ainda,
entre Igrejas separadas. O que não se enquadra nessa ótica é considerado “recepção inau-
têntica ou imprópria”, ou o sentido análogo.551
A posição de A. Grillmeier foi criticada por diversos autores, especialmente por Y.
Congar, por parecer muito rígida. Na verdade, há dois elementos que se entrecruzam na
posição de Grillmeier e que devem ser abordados separadamente: a distinção entre os par-
ceiros e a originalidade do bem produzido pela relação com o parceiro que o recebe.
Deve-se reconhecer que certa exogenia é necessária, pois não é possível haver tro-
ca de um bem sem a presença de dois parceiros distintos. Essa via abre a perspectiva para
compreender a Teologia da recepção, a partir de uma Teologia da Igreja Particular e de uma
Teologia do Espírito Santo, que distribui seus variados dons a todos os membros da Igreja.
Essas duas bases já são suficientes para justificar a distinção de parceiros. A isso se acres-
centem a necessidade de a Igreja Local ser sujeito de ação e iniciativa e a existência de su-
jeitos ativos e capazes de iniciativas, como condição para poder haver troca e comunicação,
entre pessoas que acolham na fé a Palavra de Deus, como possibilidade de haver processo
de recepção.552
A referida distinção de sujeitos não inclui a exigência de que estes sejam totalmen-
te estranhos uns aos outros, pois a Teologia da comunhão, quadro no qual deve ser situada a
Teologia da recepção, mostra a necessidade de uma pertença comum. Assim, a separação
absoluta dos parceiros, com ausência total de intersubjetividade, é incompatível com a co-
munhão, visto a relação supor a diferença de parceiros e a pertença comum a um sistema,
ou, de outra forma, a semelhança permite construir relações entre eles. É o que pensa, com
razão, W. Beinert, ao afirmar que os parceiros devem ter algo em comum, ou seja, um mí-
nimo de semelhança entre o que dá e o que recebe, que pode ser, ao menos, a mesma lín-
gua. Portanto, é necessária uma separação relativa entre os parceiros e não absoluta, como
551
Cf. GRILLMEIER, A. Konzil und Rezeption. Methodische Bemerkungen zu einem Thema der ökumenis-
chen Diskussion der Gegenwart. In: Theologie und Philosophie 45 (1970), p. 324 apud ROUTHIER, op. cit.,
p. 57s. A. Grillmeier entende por região a Igreja Local em seu sentido antigo, como diocese, província ecle-
siástica, os patriarcados e, mais recentemente, a união dos diferentes ritos.
552
ROUTHIER, op. cit., p. 54-55.
286
quer Grillmeier, apesar de que uma maior separação entre parceiros aumentará a possibili-
dade de troca.553
Quanto à produção de um bem espiritual proposto pela recepção, é preciso distin-
gui-la de um simples desenvolvimento interno, que, de fato, não constitui um fenômeno de
recepção, mas de evolução. A posição de Grillmeier, ao exigir exogenia absoluta, é muito
restritiva. Posição intermediária é tomada por William Rush, segundo o qual acontece um
verdadeiro fenômeno de recepção quando “é pedido às Igrejas aceitarem e fazerem sua
qualquer coisa que elas não produziram”.554 Como exemplo pode-se trazer um documento
de convergência ecumênica. Esse documento vem, em certo sentido, de fora delas todas e
pode ser reivindicado por uma instância que ultrapasse cada uma delas, havendo, contudo,
um conhecimento anterior. O mesmo vale para uma decisão conciliar, que jamais será to-
talmente estranha às Igrejas, pois todas professam a mesma fé apostólica. Essa posição in-
termediária mantém a exogenia do bem produzido, em relação ao parceiro que o recebe, e,
assim, um processo de troca é facilmente concebível, sem que o princípio da exogenia te-
nha sido considerado absoluto.555
Outros exemplos de exogenia relativa do bem produzido são as discussões com an-
ticalcedonianos e nestorianos, as quais demonstram que o bem produzido não é completa-
mente estranho entre as Igrejas separadas. O mesmo vale para os acordos sobre verdades
fundamentais da fé com os luteranos.556 A Unitatis Redintegratio 14 e a Lumen Gentium 15
não excluem que a Igreja Católica possa receber algo de outras Igrejas cristãs por meio do
aprofundamento e da renovação, podendo enriquecer-se enquanto se aprofunda.
Sintetizando, no caso da recepção das decisões de um Concílio pelas Igrejas Lo-
cais, a exogenia se manifesta de duas maneiras: a) o bem produzido pode ser relativamente
estranho a uma Igreja Particular, em razão de um desenvolvimento unilateral de sua tradi-
ção, da ocultação secular de um elemento de sua tradição ou de maior ou menor consonân-
cia desse bem com a cultura na qual se insere uma Igreja Particular; b) a instância que pro-
553
Ibid., p. 55.
554
RUSH, W. G. “Baptism, Eucharist, Ministry”. In: Dialog 22 (1983), p. 91. Apud id., p. 57, nota 129.
555
Id., p. 57.
556
O recente acordo sobre a Justificação é um exemplo de que não há um desconhecimento absoluto, apesar
das diferenças existentes entre as duas Igrejas.
287
duz esse bem – o episcopado –, embora esteja na Igreja e a represente, fica em relação dia-
lética com ela e se situa frente a frente com ela mesma.557
Tendo em vista o que foi explicitado acima, devem-se levar em conta dois aspec-
tos: a) se um Concílio, seja universal ou regional, está, essencialmente, em ato anamnético
e se enraíza na fé apostólica confessada por todas as Igrejas, dificilmente se pode imaginar
que o bem produzido seja totalmente estranho. O mesmo acontece no diálogo ecumênico,
no qual se constata que as convergências são maiores que as diferenças, embora as Igrejas
reconheçam divergências; b) há um distanciamento, por parte de quem recebe, da instância
de produção, pois, em certo sentido, o Povo de Deus tem de “receber” as determinações
doutrinais ou disciplinares de um Concílio, decididas pelos bispos, que não foram produzi-
das imediatamente. Todavia, o episcopado não pode jamais se considerar separado da Igre-
ja, apesar de sua posição original na mesma. A verdade a ser crida na Igreja é sempre dada
(traditio) e ela deve ser recebida (receptio). A recepção, dessa forma, testemunha o consen-
timento de todas as Igrejas ao ensinamento de um Concílio e não somente dos fiéis, toma-
dos não individualmente, ao ensinamento dos bispos.558
Enfim, pode-se afirmar que se está diante de um fenômeno de recepção, mesmo
nos casos de acolhida, por uma Igreja Particular, das decisões de um Concílio. Se a exoge-
nia não é perfeita, nem quanto à diferença dos parceiros, nem quanto ao bem produzido e
aos parceiros que o recebem, a distinção e a “exogenia relativa” são suficientes para que
haja, efetivamente, um processo de intercâmbio. Assim, recepção se torna esse processo de
acolhida, em uma Igreja Particular, das decisões de um Concílio, enquanto o processo de
uma Igreja aceitar uma proposição dogmática completamente diferente é um outro tipo do
fenômeno de recepção.559
557
ROUTHIER, op. cit., p. 59.
558
Ibid., p. 59-60. O autor ainda acrescenta mais duas observações: 1ª - se as decisões de um Concílio geral
não apresentam nenhuma característica estranha às Igrejas Locais, sua recepção não se estende senão a decê-
nios, e não demora séculos. Se encontram adversidades, contestação, ou mesmo oposição, é que o bem produ-
zido apresenta certa característica de estranheza. O bem produzido corrige unilateralismos, colocando as ques-
tões sob novas perspectivas, dando novo equilíbrio aos elementos de confissão da fé, iluminando certos aspec-
tos entregues ao envelhecimento. 2ª - A característica escatológica da verdade deixa aberta a questão do apro-
fundamento das verdades doutrinais e, como consequência, permite reconhecer que o ensinamento de um
Concílio apresenta certa característica de novidade e, como tal, certa exogenia. É o que afirma Dei Verbum 8
(ROUTHIER, op. cit., p. 61-62).
559
Por exemplo, uma Igreja monofisista aceitar a definição de Calcedônia.
288
560
Aqui só serão abordados os princípios teológicos da recepção. Y. Congar expõe, longamente, as teorias
jurídicas que justificam a recepção: a teoria da aceitação das leis e a teoria dos galicanos (cf. CONGAR, op.
cit., p. 385-391).
561
Cf. ROUTHIER, op. cit., p. 70.
562
FRANSEN, P. L’autorité des conciles. In: Problèmes de l’autorité (Unam Sanctam 38). Paris: Du Cerf,
1962, p. 83s apud CONGAR, op. cit., p. 402.
289
563
Cf. id., p. 392. O autor, no mesmo lugar, explicita melhor: “Em teologia da Tradição, dir-se-ia: passagem
da traditio passiva à traditio activa ou ainda do traditum ao tradens, sendo este último efetivamente identifi-
cado com o que se chamou, a partir do século XVIII, a ‘Igreja docente’”.
564
Y. Congar comenta que um dos erros de Sohm foi conceber “uma espécie de Pneumatologia sem estruturas
dadas” (cf. id., p. 393).
565
Id., p. 393.
290
566
Id., p. 399. E o autor continua: “Eis por que a recepção de um Concílio se identifica praticamente com sua
eficácia, como se observa no caso de Latrão IV, do Tridentino, e mesmo Niceia I, de Calcedônia ou de Niceia
II” (id.).
567
WOLFINGER, F. O Concílio ecumênico e a recepção de suas conclusões. In: Concilium 187 (1983/7), p.
101.
568
GRILLMEIER, A. The Reception of Church Councils. In: MCSHANE, P. Foundations of Theology: Pa-
pers from the International Lonergan Congress. Dublin, Gill et Macmillan, 1971, p. 383 apud ROUTHIER,
op. cit., p. 71, nota 13.
291
569
Cf. ROUTHIER, op. cit., p. 71-72.
570
Cf. ibid., p. 73.
571
A propósito, ver KASPER, W. Jesús, el Cristo. 6. ed. Salamanca: Sígueme, 1986, p. 16s.
572
Cf. ROUTHIER, op. cit., p. 74.
292
do na Itália. O mesmo vale para o Vaticano II, visto que, para exemplificar, a reforma litúr-
gica encontrou etapas diferentes nas diversas regiões do Brasil e do mundo.573
573
Cf. ibid., p. 75.
574
Cf. ibid., p. 77.
575
Cf. ibid., p. 79.
576
Cf. POTTMEYER, H. J. Una nuova fase della ricezione del Vaticano II. In: ALBERIGO, G.; JOSSUA, J.-
P. (a cura) Il Vaticano II e la Chiesa. Brescia: Paideia, 1985, p. 44-51.
293
Outra tentativa é feita por A. Acerbi, o qual considera, em primeiro lugar, o Vatica-
no II como uma experiência espiritual que trouxe a “reforma da Igreja para a missão sob o
signo da Palavra de Deus”, e não como uma “máquina de produzir documentos”. A essa
fase segue a da superação do Concílio por fidelidade ao próprio Concílio, perseguindo a
aplicação para hoje da intenção original do Vaticano II, presente nos diversos documen-
tos.577
A partir dessas abordagens diferentes, podem ser extraídos alguns elementos co-
muns que estão além de aspectos particulares. Assim, a recepção de um Concílio por uma
Igreja Particular deve levar em conta os seguintes aspectos:
- a história dessa Igreja Particular;
- a evolução da Igreja inteira durante esse período;
- a história econômica, política, social e cultural do lugar onde está inserida essa
Igreja Particular.578
O último elemento é importante, pois determinados tipos de Teologias podem cor-
rer o risco de descurar esses aspectos de caráter histórico e de desenvolvimento sociocultu-
ral na avaliação da recepção de um Concílio. Trata-se de não se deter apenas no período
pós-conciliar e no pequeno espaço de tempo que ele ocupa, fácil de circunscrever, mas é
preciso discernir as características da época e os fatores que o influenciam. Como conse-
quência, deve-se assinalar que todo estudo da recepção de um Concílio deve levar em conta
a história social, política, econômica, cultural e religiosa da Igreja de um lugar, antes e de-
pois desse Concílio, como também a identificação das correntes que atravessam a socieda-
de na qual ele se insere.579
A partir daí, podem-se estabelecer critérios para o processo de recepção: a) os crité-
rios externos dizem respeito à periodização dos fatos relativos à história de uma Igreja Par-
ticular; b) critérios internos são os inerentes à história dos Concílios e internos à vida da
Igreja, como a evolução cultural, política e econômica, porque são singulares e podem ser
577
Cf. ACERBI, A. A recepção do Concílio Vaticano II em um contexto histórico transformado. In: Concili-
um 166 (1981/6), p. 102-111.
578
ROUTHIER, op. cit., p. 81.
579
ROUTHIER, loc. cit.
294
580
ROUTHIER, loc. cit.
581
Cf. ROUTHIER, op. cit., p. 82.
582
Cf. ibid., p. 83.
583
GRILLMEIER, op. cit., p. 395-411 apud ROUTHIER, op. cit., p. 84.
295
584
Id., p. 84.
585
Id., p. 86.
586
Id., p. 86.
296
esforço feito para a aplicação de um Concílio ainda não é recepção, mas uma fase da mes-
ma.587
Nesse sentido, o Vaticano II não foi concluído no dia 8 de dezembro de 1965. Paulo
VI, no Congresso Internacional de Teologia do II Concílio ecumênico, em setembro de
1965, diz que a tarefa do Concílio ecumênico não está encerrada definitivamente com a
promulgação dos decretos, porque eles, como ensina a história dos Concílios, muito mais
do que um ponto de chegada, são um ponto de partida em direção a novos objetivos. Com
efeito, depois de dezembro de 1965, foi necessário bom número de documentos, decretos
de aplicação e instruções para precisar certas orientações do Vaticano II, o que é um dos
aspectos da recepção. A assembleia conciliar encontra, portanto, um prolongamento no
período de recepção, no qual não se pode definir exatamente a sua duração nem o seu con-
torno.588
Partindo do ponto de vista de G. Alberigo, o qual destaca que a fase importante da
recepção acontece quando os participantes da assembleia conciliar (bispos e teólogos) ces-
sam de ser os protagonistas da vida eclesial, observa-se que essa fase já está sendo supera-
da, pois a geração dos protagonistas do Vaticano II ou já desapareceu, ou está indo para o
término de suas atividades na Igreja.
No entanto, a recepção do Vaticano II está em curso, mesmo considerando-se a
afirmação de J. Ratzinger, o qual lança a hipótese de que, em 1975, a recepção correta do
Concílio ainda não tinha começado e, posteriormente, assevera que a “a recepção real ainda
não começou de todo”. Na mesma obra, mais adiante, ele apresenta uma periodização mais
equilibrada por meio de esquemas binários (recepção e não recepção): uma fase eufórica,
até 1968, seguida de uma fase de desilusão (1970-1980), e os anos 80, que representam
uma fase de síntese e de equilíbrio.589 Apesar de tal ponto de vista, não se pode concluir
que exista uma não recepção do Vaticano II.
Ainda há outras tentativas, como a interpretação de J.-M. R. Tillard, que periodiza a
recepção, ao distinguir entre duas ondas: a) a aceitação vaga, globalmente de 1965 a 1980;
b) aceitação apesar de tudo, de 1980 em diante. Também a de C. Floristan, que distingue
quatro etapas: entusiasmo (1965-1971); contestação (1972-1975); transição (1976-1978) e
587
Id., p. 183.
588
Id., p. 71.
589
Id., p. 78.
297
involução (1979-1985). G. Routhier observa que esses estudos são eurocêntricos e tomam
os acontecimentos de maio de 1968 como um divisor da história pós-conciliar.590
Independentemente desses modos diversos de descrever a periodização do processo
de recepção do Vaticano II feita pelos estudiosos acima referidos, pode-se aludir à tríade
“doutrina-vida-culto”, que são expressões da Tradição viva da Igreja. Essa tríade corres-
ponde à periodização que sintetiza modos diferentes, como já foi referido, a saber: a recep-
ção querigmática, teológica e litúrgica.
O Vaticano II conheceu uma grande difusão de seus documentos, responsável por
uma mudança geral da mentalidade eclesial: o movimento conciliar, como observa H. J.
Pottmeyer. Igualmente, é inegável a reforma da liturgia, que, apesar de conhecer fases dife-
rentes nos diversos países do mundo, propiciou uma nova vivência da vida litúrgica na
Igreja. Também aconteceu a mudança da estrutura da Igreja. A promulgação do Código de
Direito Canônico, em 1983, de acordo com o espírito do último Concílio, reflete o novo
espírito eclesial.591
O Sínodo Extraordinário de 1985 constituiu, sem dúvida, um marco importante no
pós-Concílio. Além de verificar a recepção do Vaticano II, contribuiu para avaliar e apro-
fundar o seu espírito.592 A elaboração do Catecismo da Igreja Católica, a exemplo do de
Trento, fruto de uma das recomendações do Sínodo, apesar de toda a polêmica que gerou,
contribui e contribuirá para uma difusão do espírito do Vaticano II e para uma catequese, de
acordo com o seu ideário e seus princípios, favorecendo o aprofundamento, desse modo, da
recepção querigmática.
Ainda uma consideração sobre o enraizamento de um Concílio em um terreno de-
terminado, de acordo com os fatores históricos próprios de uma Igreja Particular, como foi
aludido anteriormente. A América Latina representa uma aplicação do Vaticano II para a
sua realidade concreta, determinando uma verdadeira recepção criativa do último Concílio.
É o que expressa S. Galilea, ao considerar que as Conferências de Medellín e Puebla são
590
Id., p. 80.
591
Ver o decreto de promulgação do novo Código, de 25 de janeiro de 1983. Uma visão crítica é apresentada
por CORECCO, A. Aspetti della ricezione del Vaticano II nel Codice di diritto canonico. In: ALBERIGO;
JOSSUA, op. cit., p. 333-397.
592
Ver a nota 4, em que há uma referência aos objetivos do Sínodo, de acordo com as palavras de João Paulo
II.
298
593
GALILEA, S. L’America Latina nelle conferenze di Medellín e Puebla. Un esempio di ricezione selettiva
e creativa del Concilio. In: ALBERIGO; JOSSUA, op. cit., p. 87-106.Também GIRARDI, G. De la ‘Iglesia
en el mundo’ a la ‘Iglesia de los pobres’. El Vaticano II y la teología de la liberación. In: FLORISTAN, C.;
TAMAYO, J.J. El Vaticano II, veinte años después. Madrid: Cristandad, 1985, p. 430-463.
594
THEOBALD, C.; MIETH, D. Editorial. Questões abertas. In: Concilium 279 (1999/1), p. 9-11.
299
CAPÍTULO NONO
A VOCAÇÃO MISSIONÁRIA DA IGREJA
595
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Rumo ao Novo Milênio. Projeto de Evangeli-
zação da Igreja no Brasil em preparação ao Grande Jubileu do ano 2000 (Documentos da CNBB 56). São
Paulo: Paulinas, 1996, n. 80.
596
É interessante a seguinte afirmação, fruto de uma pesquisa recente: “A juventude francesa prefere Buda a
Cristo”. Os jovens da França, de 18 a 24 anos, respondem que creem em Deus da seguinte forma: em 1957,
73% responderam afirmativamente; em 1967, 81%; em 1977, 62%; em 1997, 46%. O índice dos que disseram
300
impacto da modernidade e de outros fatores recentes até então desconhecidos. Ainda pro-
põe um questionamento sobre os sujeitos efetivos da missão, enquanto a afirmação de que
os leigos são os protagonistas da evangelização suscita a pergunta sobre o real significado,
o alcance e as implicações dessa responsabilidade para a Igreja, do ponto de vista inter-
no.597
Não devem ser esquecidos os fatores da liberdade religiosa e do surgimento de co-
munidades religiosas novas, de tipo evangélico e pentecostal598, que questionam a missio-
nariedade da Igreja, perante o respeito ao pluralismo religioso e o necessário diálogo inter-
religioso599, como parte da tarefa ecumênica. Constata-se que, por vezes, a liberdade religi-
osa é confundida com mera tolerância religiosa e descompromisso com a tarefa missioná-
ria, sem cair, por outro lado, no proselitismo. Com certeza, a promoção do ecumenismo não
anula a obrigatoriedade da missão, de acordo com o espírito do Vaticano II: “Por sua parte,
incumbe a cada discípulo de Cristo o dever de disseminar a fé” (Lumen Gentium 17).
O Censo de 1991, do IBGE, apresenta cifras reveladoras sobre a situação do catoli-
cismo no Brasil. Eis alguns desses dados: dos convertidos para as Igrejas Evangélicas, 64%
são originários da Igreja Católica; criaram-se quatro mil novas denominações religiosas,
não identificadas no Censo de 1980; as Igrejas Evangélicas estão predominando no Cristia-
nismo Reformado, sendo o primeiro lugar ocupado pela Assembleia de Deus em número de
templos e fiéis espalhados por todo o Brasil; a Universal do Reino de Deus está em quinto
lugar entre os Evangélicos Pentecostais, apesar de seu crescimento e exploração da mídia; a
Igreja Batista ocupa o primeiro lugar entre os Evangélicos Tradicionais; perda do constran-
gimento na explicitação das identidades religiosas não católicas e não cristãs, como Espiri-
não crer em Deus subiu de 17%, em 1957, para 51%, em 1997. O mais surpreendente é que, ao serem pergun-
tados sobre qual a religião que melhor responde aos anseios dos jovens de hoje, o budismo ficou com 29%
das preferências, enquanto o cristianismo com 13% e o Islã com 11% (cf. REVISTA ECLESIÁSTICA BRA-
SILEIRA, Juventude francesa prefere Buda a Cristo, v. 58, fascículo 230, junho de 1998, p. 464).
597
O Pe. Antoniazzi critica a posição de Santo Domingo quanto ao tema dos sujeitos da evangelização, pois o
Documento, apesar de afirmar que o protagonismo da evangelização cabe aos leigos (parte III), na parte II,
capítulo 1, e mais especificamente no n. 293, parece sugerir um predomínio do clero e dos religiosos. Vale
sua constatação final: o avanço da participação dos leigos na evangelização implica uma “nova atitude e uma
nova qualificação do clero” (cf. ANTONIAZZI, A. A missão da Igreja no documento. In: AA.VV. Santo
Domingo. Ensaios Teológico-Pastorais. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 203s).
598
A propósito, ver reflexão sobre esse assunto e o desafio que representa para a Igreja, em CALIMAN, A.
“O desafio pentecostal: aproximação teológica”. Perspectiva Teológica, ano XXVIII, n. 76 (set.dez. 1996), p.
295-309. Também o Editorial da mesma revista, intitulado “O ressurgir pentecostal: um desafio para a pasto-
ral e a teologia” (p. 285-293).
301
tismo Kardecista, Umbanda e Candomblé, o que não acontecia nos Censos anteriores a es-
se; a Umbanda é a segunda religião que mais cresce e da qual mais emigram adeptos para
as Igrejas Evangélicas e Pentecostais. Oitenta por cento da população brasileira declarou-se
católica, enquanto, em 1980, era 88,9%, 91,77% em 1970 e 95,7% em 1950. Jovens entre
18 e 24 anos declaram-se cristãos sem religião.600
O Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (CERIS), em parceria com
o Instituto Nacional de Pastoral (INP), realizou, em seis grandes cidades (Rio de Janeiro,
São Paulo, Recife, Salvador, Belo Horizonte e Porto Alegre), uma pesquisa sobre os vários
perfis do catolicismo nas cidades, as crenças e as práticas religiosas. O resultado, enquanto
“desoculta tendências na realidade brasileira que vêm de mais atrás, e outras que foram
surgindo nos últimos anos”, mostra a convivência atual de novos movimentos e pastorais
sociais da década de 60, provando que a realidade religiosa do Brasil é plural e dinâmica e,
por isso, precisa encontrar novos caminhos evangelizadores proféticos.601
599
Cf. MIRANDA, M. DE FRANÇA Diálogo inter-religioso e fé cristã. In: Perspectiva Teológica, ano
XXIX, n. 77 (jan./abr. 1997), p. 31-52.
600
Dados extraídos de JAMES, C. Análise de conjuntura religioso-eclesial. In: Perspectiva Teológica, ano
XXVIII, n. 75, (maio/ago. 1996), p. 157-159.
601
CERIS, Desafios do catolicismo na cidade. Pesquisa em regiões metropolitanas brasileiras. São Paulo; Rio
de Janeiro: Paulus e Ceris, 2002. O texto citado encontra-se à p. 10.
602
No caso do Brasil, ao procurar responder à convocação do Papa e estabelecer o seu projeto de preparação
ao Grande Jubileu do ano 2000, conclama as comunidades diocesanas para assumirem um “mutirão evangeli-
zador” (cf. CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Rumo ao Novo Milênio. Projeto de
Evangelização da Igreja no Brasil em preparação ao Grande Jubileu do ano 2000, n. 88).
302
tendo em vista que o “termo evangelização, por isso mesmo, expressa a missão global da
Igreja”.603
Jesus Cristo foi enviado pelo Pai para evangelizar, isto é, para anunciar a Boa-
Nova do Reino de Deus ao mundo. Isso ele fez tanto por palavras quanto por ações, ao
proclamar a novidade do Reino de Deus, especialmente aos pobres (cf. Lc 4,16-21). E,
por essa razão, ele dá a seguinte resposta aos enviados de João: “Ide anunciar a João o
que ouvis e vedes: os cegos veem e os coxos andam, os leprosos ficam limpos e os sur-
dos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados. Feliz é aquele que não
se escandalizar de mim” (Mt 11,5).
Ele foi sempre fiel à sua missão, a ponto de consumar a sua obra por meio de
morte na cruz e, depois do terceiro dia, ressuscitar. A sua morte não foi morte qualquer,
mas redentora, isto é, foi a causa da salvação da humanidade do pecado, como expressa
o apóstolo Paulo aos Filipenses:
Ele, subsistindo na condição de Deus, não pretendeu reter para si ser igual a
Deus. Mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo, tor-
nando-se solidário com os homens. E, apresentando-se como simples homem,
humilhou-se, feito obediente até à morte, até à morte da cruz. Pelo que tam-
bém Deus o exaltou e lhe deu o nome que está sobre todo nome. Para que ao
nome de Jesus se dobre todo joelho de quantos há no céu, na terra, nos abis-
mos. E toda língua proclame, para glória de Deus Pai, que Jesus Cristo é Se-
nhor (Fl 2,6-11).
A missão da Igreja tem seu fundamento na missão de Jesus Cristo, pois ele envia os
apóstolos a pregar e a batizar:
Então Jesus se aproximou e lhes disse: Toda a autoridade me foi dada no céu e na
terra. Ide, pois, fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do
Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a observar tudo quanto vos man-
dei. Eis que eu estou convosco, todos os dias, até ao fim do mundo (Mt 28,18-20).
603
Id., nº 61.
303
Dessarte, a Igreja não anuncia a si mesma, mas a Jesus Cristo e sua salvação, em
obediência ao mandato recebido dele por meio dos apóstolos.
Por isso, a missão de Jesus continua presente na Igreja, pois ela é, hoje, para o mun-
do, a continuadora de sua missão. Os apóstolos, eles mesmos chamados por Jesus Cristo e
enviados por ele, continuaram, por sua vez, a chamar e enviar sucessores, o que garantiu e
garante a continuidade da missão, através do tempo e do espaço, atingindo a todos os povos
em todas as épocas. O Evangelho pregado pela Igreja é o mesmo Evangelho de Jesus Cris-
to, recebido dele por meio dos Doze, o que a torna católica e apostólica. É como diz o Papa
Paulo VI: “Existe, portanto, uma ligação profunda entre Cristo, a Igreja e a evangelização.
Durante este ‘tempo da Igreja’ é ela que tem a tarefa de evangelizar. E essa tarefa não se
realiza sem ela e, menos ainda, contra ela” (Evangelii Nuntiandi 16).
O Papa Paulo VI apresenta cinco razões fundamentadoras e justificadoras para es-
clarecer os laços existentes entre a Igreja e a evangelização, provenientes do Novo Testa-
mento e da própria história da Igreja, manifestando em sua vida e ação a vinculação entre
ambos, fruto daquilo que a Igreja tem de mais íntimo: a Igreja nasce da ação evangelizadora
de Jesus e dos Doze; nascida da missão, pois a Igreja é enviada por Jesus, ela fica no mun-
do até o Senhor da glória voltar para o Pai; evangelizadora como é, a Igreja começa por
evangelizar a si mesma; ela é depositária da Boa-Nova que há de ser anunciada; enviada e
evangelizadora, a Igreja envia também ela própria evangelizadores (cf. Evangelii Nuntiandi
15).
envergonho do Evangelho. Ele é uma força de Deus para a salvação de todo aquele que crê,
do judeu primeiro, mas também do grego” (Rm 1,16).
O objetivo da evangelização consiste, precisamente, em suscitar e alimentar de mo-
do progressivo a fé em Jesus Cristo. Suscitar pelo anúncio claro de sua mensagem de salva-
ção. O anúncio, primeiro passo da missão, suscita a fé. É como Paulo, tomado pelo ardor
evangelizador, explica:
Mas como invocarão aquele em quem não creram? E como crerão, sem terem ou-
vido falar? E como ouvirão falar, se não houver quem pregue? E como pregarão,
se ninguém for enviado? Como está escrito: Quão belos são os pés dos que anun-
ciam o bem. Mas nem todos obedecem ao Evangelho. Porque Isaías diz: Senhor,
quem creu em nossa pregação? Por conseguinte, a fé procede da audição, e a au-
dição da palavra de Cristo (Rm 10, 14-17).
604
C. Boff considera a nova evangelização como o grande projeto pastoral do atual Papa (cf. BOFF, C. Uma
análise de conjuntura da Igreja Católica no final do milênio. In: Revista Eclesiástica Brasileira, v. 56, fascícu-
lo 221 (março de 1996), p. 134).
305
E essa salvação é oferecida a todos, pois a proposta de Cristo é uma proposta à li-
berdade do homem:
Com razão, Arialdo Beni afirma que a salvação proclamada pela Igreja é total e uni-
versal, pois é salvação da pessoa em sua totalidade, ou seja, da alma e do corpo, de toda a
pessoa enquanto indivíduo e enquanto ser social: da família, do Estado, de todos os grupos
com valores positivos e de todo o universo. É a libertação integral pessoal e coletiva de
todos os sofrimentos e do mal, sob qualquer forma que se manifeste.605
O agir é uma resposta, consequência e expressão da fé, sendo sua expressão inesti-
mável. Não se trata aqui de aquilatar o valor da ação acima da graça de Deus e do sopro do
Espírito, muito menos de considerar que a Igreja deverá justificar-se através das obras e da
ação humana, caindo em uma visão utilitarista e comercial. A ação demonstra o sentido e a
orientação da própria Igreja, enquanto fruto das convicções de fé. No dizer de Hans Zirker,
“a forma como a Igreja compreende e explica a própria prática constitui um momento es-
sencial da sua autocompreensão e da sua autoapresentação”.606
O esforço missionário além dos limites da Igreja, ou a missão ad gentes, se distin-
gue da pregação e do ensino dentro da Igreja, apesar de segui-lo. Por essa razão, do ponto
de vista interno da Igreja, acompanhando a dedicação caritativa para com as pessoas e gru-
pos, está a responsabilidade para com as condições e estruturas políticas, pois a caridade
605
Cf. BENI, op. cit., p. 250.
306
O motivo dessa atividade missionária está na vontade de Deus, que “quer que to-
dos os homens sejam salvos e venham ao conhecimento da verdade. Porque um é
Deus, um também o mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus,
que se entregou para redenção de todos” (1Tm 2,4-5). “E em nenhum outro há
salvação” (At 4,12). É necessário que pela pregação da Igreja todos o reconheçam
e a ele se convertam e pelo Batismo sejam incorporados nele e na Igreja, seu
Corpo.
606
ZIRKER, H. Ecclesiologia. Brescia: Queriniana, 1987, p. 234.
607
Ibid., p. 234-237.
307
Portanto, fica claro que o motivo da evangelização está na vontade de Deus, que
quer que todas as pessoas sejam salvas. E é por meio da pregação que todos os povos o
reconhecerão como Senhor e Redentor. Por isso, os dois textos conciliares afirmam a ne-
cessidade da Igreja para a salvação, pois ela, qual porta, dará acesso à salvação por meio do
Batismo, sacramento de entrada na Igreja, como meio necessário de acesso à salvação. Eis
aí a razão e a necessidade da evangelização.
b) Evangelii Nuntiandi
A Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, de 1975, surgiu como fruto das con-
clusões do Sínodo de 1974 sobre a evangelização no mundo contemporâneo, que aponta a
fidelidade à mensagem de Jesus Cristo, da qual a Igreja é servidora, e às pessoas, às quais
deve transmiti-la, intata e viva, como o “eixo central da evangelização”. A Exortação apon-
ta três problemas que o Sínodo teve presentes durante a sua realização:
O documento está dividido em sete capítulos: “De Cristo Evangelizador a uma Igre-
ja evangelizadora”; “O que é evangelizar”; “O conteúdo da evangelização”; “As vias de
evangelização”; “Os destinatários da evangelização”; “Os obreiros da evangelização”; e “O
espírito da evangelização”. Ele compreende a natureza da Igreja a partir da evangelização:
ser canal do dom da graça, reconciliar os pecadores com Deus e perpetuar o sacri-
fício de Cristo na Santa Missa, que é o memorial da sua Morte e gloriosa Ressur-
reição (Evangelii Nuntiandi 14).
O capítulo VI, intitulado “Os obreiros da evangelização”, mostra que todos são res-
ponsáveis pela obra evangelizadora da Igreja, pois a Igreja toda é missionária (Evangelii
Nuntiandi 59), o que torna a missão um ato eclesial (Evangelii Nuntiandi 60), assumindo
uma perspectiva universal (Evangelii Nuntiandi 61), incluindo, também, a responsabilidade
da Igreja Particular (Evangelii Nuntiandi 62 e Ad Gentes 6).
O documento marcou época, como não poderia deixar de ser. A sua leitura demons-
tra uma visão clara da consciência eclesial da evangelização e do seu papel para com a hu-
manidade e, também, para o mundo. Apesar de já fazer mais de vinte anos de sua publica-
ção, ainda mantém sua atualidade.
c) Redemptoris Missio
Ela nasce da experiência pessoal do Papa, fruto de suas constantes visitas apostóli-
cas aos mais diversos países do mundo inteiro no decorrer de mais de dez anos de pontifi-
cado, até então. Ele, ao reafirmar o compromisso com a missão evangelizadora da Igreja,
recebida de Jesus Cristo por meio dos Doze, tem presentes os novos desafios para a missão,
diante da crise de identidade e de motivação sofrida pela Igreja, no período posterior ao
término do Vaticano II.
Para o tema que detém a nossa atenção, o capítulo terceiro, no conjunto da Encícli-
ca, é muito significativo, pois ressalta a presença e a ação do Espírito Santo quanto à mis-
são evangelizadora da Igreja, ao nomeá-lo como “protagonista” da missão. Assim o Papa
justifica a denominação:
Esses dois documentos, resultantes das Conferências dos Bispos da América Latina
(CELAM), respectivamente de 1979 e 1992, são de capital importância, visto que são sinais
vivos da preocupação evangelizadora da Igreja deste nosso Continente.
A Conferência de Puebla foi a aplicação da Evangelii Nuntiandi para a América
Latina, o que se torna claro em seu título: “A evangelização no presente e no futuro da
América Latina”. Todo o documento retrata esse intuito, a começar pelo seu próprio es-
quema, divisível em três partes: a primeira, o ver, onde se encontra uma análise pastoral da
evangelização na América Latina; a segunda, o julgar, na qual são destacados o conteúdo e
o conceito de evangelização; a terceira parte, o agir, que propõe ações em vista da evange-
lização, que encontra no binômio “comunhão e a participação” o meio pelo qual ela aconte-
cerá.
A IV Conferência do Episcopado Latino-Americano, acontecida em Santo Domin-
go, aborda os temas da nova evangelização, promoção humana e cultura cristã, os quais
“englobam as grandes questões que, daqui para o futuro, deve enfrentar a Igreja diante das
novas situações que emergem na América Latina e no mundo” (Discurso inaugural do San-
to Padre em Santo Domingo 1). A segunda parte do documento, intitulada “Jesus Cristo
Evangelizador vivo em sua Igreja”, une os três temas propostos pelo Papa em uma conti-
nuidade: a nova evangelização encontra na promoção humana sua expressão mais profunda,
pois o plano da Criação não pode ser dissociado do plano da Redenção, criando, dessa for-
ma, uma cultura cristã (cf. Santo Domingo 157). Interessante é notar que o documento con-
sidera a promoção humana como a dimensão privilegiada da nova evangelização, superan-
do a incoerência entre a fé e a vida cotidiana (cf. Santo Domingo 159).
O livro dos Atos dos Apóstolos já atesta os primeiros passos da missão evangeliza-
dora:
Essa visão, além de estar presente no Concílio Ecumênico Vaticano II (cf. Lumen
Gentium 4 e 12 e Gaudium et Spes 22, 26 e 41), encontra-se nos documentos do Papa João
Paulo II, por meio de afirmações explícitas de que é o Espírito Santo quem faz a ação evan-
gelizadora da Igreja avançar e frutificar, conforme a já citada Redemptoris Missio 21 e o
passo que segue:
Esses dois textos servem, perfeitamente, para elucidar o pensamento do Papa sobre
a importância da ação própria do Espírito Santo no desempenho da missão evangelizadora
da Igreja, que não poderá exercer a sua missão sem a assistência do mesmo Espírito Santo,
que a anima no cumprimento da sua missão até o fim dos tempos, conforme já Jesus Cristo
havia prometido: “E eis que eu estou convosco todos os dias, até à consumação dos sécu-
los” (Mt 28,20).
Essa tarefa não foi sempre fácil e isenta de sacrifício, como lembra a Comissão Pas-
toral e Missionária do Grande Jubileu do Ano 2000:
Ao longo da sua história bimilenar, a Igreja pagou alto preço pela audácia de seus
filhos, que confirmaram com o sangue a própria franqueza ao anunciar que Cristo
é o único Salvador (cf. At 4,12): “[...] se não tivesse havido aquela sementeira de
mártires e aquele patrimônio de santidade que caracterizavam as primeiras ge-
rações cristãs” (TMA 37), a Igreja não se teria desenvolvido ao longo de todo o
primeiro milênio. João Paulo II acrescenta que, “no final do segundo milênio, a
Igreja tornou-se novamente a Igreja dos mártires”. O nosso testemunho não é,
portanto, secundário, mas tem um valor salvífico que precisa ser sempre mais re-
descoberto.608
Neste ponto, serão destacados alguns aspectos da missão do Espírito Santo na Igre-
ja, que se convertem, necessariamente, em missão própria de todo cristão, como membro
consciente da Igreja de Jesus Cristo.
A Igreja é una, porque Cristo é indiviso, do qual ela tem o corpo. A unidade assim
concebida pode parecer uniformidade, dado que nela não há mais judeu, grego, nem ho-
mem, nem mulher (cf. Gl 3,28). Mas é no Espírito que a Igreja é batizada no único Cristo
608
COMISSÃO PASTORAL E MISSIONÁRIA DO GRANDE JUBILEU DO ANO 2000. O Espírito que é
Senhor e dá a Vida. Subsídio pastoral-missionário para o ano de 1998. São Paulo: Paulinas, 1997, p. 80.
313
(1Cor 12,13), por isso o apóstolo descobre, ao mesmo tempo, a unidade e a diversidade, ou
seja, a unidade em uma grande diversidade (1Cor 12,4-30).
É próprio do Espírito Santo unir, diversificando, fazendo realçar a alteridade de cada
um. Ele age, enquanto amor, criando o ser-em-relação. A comunhão das pessoas não su-
prime, mas acentua a identidade de cada um na reciprocidade das relações.609 O Espírito
unifica a Igreja, segundo o papel que ele exerce no mistério eterno, em que as três Pessoas
divinas são distintas. Assim, a Igreja é uma na diversidade, como Deus é um na Trindade.
Essa missão aparece sob outro ponto de vista: ele é único e edificante – “em um só
Espírito” (1Cor 12,13) – e se multiplica. Os fiéis constituem um só e único corpo na diver-
sidade dos membros, pois grande é a variedade dos ministérios e dos dons do Espírito San-
to, que são todos exercidos dentro do Corpo de Cristo em vista da sua unidade (1Cor 12,4-
30). É preciso superar a tentação da uniformidade, que levaria a Igreja a esfacelar-se ou a
atrofiar-se, porque sufocaria o Espírito que faz a unidade na diversidade. É necessário, tam-
bém, prestar atenção à diversidade do mundo, que ultrapassa as fronteiras da Igreja, apren-
dendo a trabalhar com todas as pessoas, culturas, modos de pensar e avaliar diferentes ex-
pressões da vida cristã. Mas a diversidade é sinal da presença do Espírito, enquanto inte-
grada na unidade.610
609
Cf. DURRWELL, op. cit., p. 88s.
610
Cf. ibid., p. 86s.
611
“Amans sic fit extra se in amatum translatus” (cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologiae I, q.
20, a. 2, ad 1).
314
mim” (Gl 2,20). É assim que o Espírito Santo é fundamento de reciprocidade.612 Ele é co-
munhão, o amor que “amorifica”. Por meio de sua presença, o fiel pertence a Cristo (Rm
8,9). Com isso, destaque recebem o amor e a solidariedade, com a consequente superação
do egoísmo e do individualismo, ou seja, o cultivo da humanização e cultura dos valores da
fé.
O Espírito Santo é poder e ação, que se manifesta como uma presença e como um
chamado para o futuro. As primeiras comunidades cristãs tinham uma percepção bem pre-
cisa da graça que as permeava, pois exprimiam a identidade cristã com fórmulas criativas e
fiéis ao Evangelho de Jesus Cristo. Assim, hoje, as comunidades cristãs vivem o mesmo
poder criador, que as impele para o futuro, porquanto o Espírito Santo impele à ação, sem-
612
Cf. DURRWELL, op. cit., p. 88.
613
Cf. ibid., p. 89.
315
pre para a frente, provocando a passagem da teoria à ação, na qual os leigos se transformem
em verdadeiros protagonistas do apostolado cristão. Isso supõe uma adequada formação
permanente do laicato, que o capacite a assumir a sua identidade cristã na Igreja e no mun-
do.
A presença do Espírito torna a Igreja filial: “Com efeito, não recebestes um espírito
de escravos, para recair no temor, mas recebestes um espírito de filhos adotivos, pelo qual
clamamos: Abba! Pai” (Rm 8,15; cf. Gl 4,6-7). Essa filiação nasce da água e do Espírito (Jo
3,5). A água é o símbolo do Espírito. É a participação da natureza divina (2Pd 1,4), por
vontade exclusiva de Deus (Jo 1,13), que é de tipo pessoal e comunitário, sendo, todavia,
mais real do que qualquer outra, assim como real foi a relação filial entre Jesus Cristo e seu
Pai.614
614
Cf. ibid., p. 91s.
615
S. Dianich cataloga os possíveis modelos de missão da seguinte forma: a) A missão cumprida - já realiza-
da: os escritos do Novo Testamento dão a sensação de que a comunidade apostólica já tinha consciência da
vinda próxima de Cristo, por isso considerava que a missão já havia sido concluída, em vista da perspectiva
escatológica já realizada (p. ex.: 1Ts 4,16s; 1Jo 2,17); b) A missão escondida: nasceu da Igreja dos mártires,
quando a perseguição e a morte dos cristãos contribuem para o crescimento do número dos cristãos, de acordo
com a frase de Tertuliano: “O sangue dos mártires é semente de novos cristãos” (Apologeticum 50); c) A
missão “contra os povos”: o anúncio do Evangelho é feito, muito mais, contra os povos do que com os povos.
A esperança do Povo de Deus é uma esperança contra os outros, não com os outros. É uma consciência já
existente no Antigo Testamento e, depois, também em Paulo, conforme 1Cor 15,25: “Porque é necessário que
ele reine até pôr todos os inimigos debaixo de seus pés”. Essa mentalidade, posteriormente, com o advento do
tempo de Constantino, continuou a mesma. É a societas christiana (cf. DIANICH, S.. Chiesa in missione. Per
una ecclesiologia dinamica. Cinisello Balsamo: Paoline, 1987, p. 80-133). Arialdo Beni apresenta outra clas-
sificação de modelos de missão, partindo da relação da Igreja com o mundo: a) de fuga e de defesa: isolando-
se e fechando-se, quase que em um gueto, como no tempo das antigas perseguições e da Revolução Francesa;
b) de condenação em bloco: confundindo o mundo com o reino de pecado e de escuridão e negando qualquer
valor efetivo à realidade terrestre, como no tempo do famoso Syllabus, de Pio IX, de 08 de dezembro de 1864
316
fé é o único justo e legítimo, pois a Igreja é distinta do mundo, mas não separada, nem indi-
ferente. É como ensina o Vaticano II: a Igreja não é do mundo, mas está no mundo e deve
ser para o mundo; “caminha juntamente com a humanidade inteira” e “experimenta com o
mundo a mesma sorte terrena” (Gaudium et Spes 40), para contribuir na “construção ade-
quada do mundo”, no qual as pessoas todas vivem comunitariamente (cf. id., 21).616 Eis as
seguintes pistas:
(DS 2901-2980); c) de antagonismo e de concorrência: quase um poder terreno ao lado de outro poder, e que
se esforça por competir com o outro por meio de sua organização cultural e assistência social (escolas, asilos,
hospitais próprios); d) de longa e progressiva dominação, como na época da “cristandade medieval”, na qual a
Igreja e o Estado se confundiam e este tornava-se “braço secular” daquela; e) de fusão, a ponto de perder a
própria identidade e tornar-se quase uma cidade terrestre, reduzindo servilmente toda a sua atividade ao com-
promisso secular e profano; f) de uma comunidade de fé, que é distinta e independente da comunidade políti-
ca, mas não separada, e, portanto, de aceitação consciente e cordial deste “mundo mundano” assim como é,
com características próprias e positividade por si mesmo, com um único objetivo de servi-lo, desejosa de
ajudá-lo, sem colisão ou comprometimentos de qualquer espécie, desenvolvendo todas as suas virtualidades
por um autêntico progresso sempre maior, e levar o mundo a sua plenitude (cf. BENI, op. cit., p. 247s).
616
BENI, op. cit., p. 248.
317
precisamente por serem membros da Igreja, têm por vocação e por missão anunciar o
Evangelho: para essa obra foram habilitados e nela empenhados pelos sacramentos de inici-
ação cristã e pelos dons do Espírito Santo” (Christifideles Laici 33). Santo Domingo afirma
que os leigos são os “protagonistas” da nova evangelização (cf. Santo Domingo 97).
3 – Diálogo com o mundo, que implica a atitude de escuta, como tão bem se encon-
tra no Vaticano II, com a Constituição Pastoral Gaudium et Spes:
Escuta para poder aprender da história e discernir os sinais dos tempos.617 O mundo
atual, caracterizado, recentemente, pela descristianização e pelo crescente progresso técni-
co-científico, apresenta-se como uma realidade complexa e em mutação (cf. Redemptoris
Missio 32), o que exige um anúncio claro e convincente da salvação de Cristo (cf. Evangelii
Nuntiandi 52).
4 – Busca da unidade por meio da abertura ao ecumenismo e do diálogo inter-
religioso, com consciência de que ambos fazem parte da missão evangelizadora da Igreja
(cf. Redemptoris Missio 55; Santo Domingo 136-138), diante da constatação de que a divi-
são dos cristãos é um escândalo para o mundo e um prejuízo para a pregação do Evangelho
(cf. Unitatis Redintegratio 1). O Projeto Rumo ao Novo Milênio recomenda que todos os
setores sejam envolvidos no trabalho ecumênico e no diálogo inter-religioso.618
5 – Uma promoção humana que dê atenção aos excluídos, resultante da exigência da
fé, como já foi descrito anteriormente, pois a ausência dessa promoção significa “ignorar a
doutrina do Evangelho sobre o amor para com o próximo que sofre ou se encontra em ne-
cessidade” (Evangelii Nuntiandi 31; cf. Ad Gentes 12; Evangelii Nuntiandi 30-39). Santo
Domingo cita os novos desafios nesse campo: direitos humanos, ecologia, terra, empobre-
cimento e solidariedade, trabalho, mobilidade humana, ordem democrática, nova ordem
econômica, integração latino-americana e família (Santo Domingo 157-227). Marcou época
617
A propósito dessa afirmação, ver DE FREITAS, M. C. A Igreja do Brasil rumo ao novo milênio. In: Pers-
pectiva Teológica, ano XXIX, n. 77 (jan./abr. 1997), p. 27.
618
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, n. 143.
318
619
A. Antoniazzi põe a discussão sobre qual dos dois aspectos tem a prioridade e responde que depende da
situação concreta em que o cristão e a evangelização se encontram (cf. ANTONIAZZI, op. cit., p. 200).
620
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, n. 45.
621
M. C. de Freitas apresenta quatro possíveis visões do evento da preparação ao novo milênio: uma aproxi-
mação triunfalista; uma aproximação derrotista; uma aproximação a partir dos excluídos; e uma aproximação
cristocêntrica (cf. DE FREITAS, loc. cit., p. 16-19).
319
Enfim, não é demais repetir: “Outra não é a missão da Igreja. Ela existe para evan-
gelizar. O termo evangelização, por isso mesmo, expressa a missão global da Igreja”.622 E
ainda:
622
Id., n. 61.
320
CONCLUSÃO
Não se poderia concluir esta obra sem uma alusão a Maria, a Mãe de Deus. Nela, a
Igreja tem sua melhor parte. Elucidativo é o fato de o último capítulo da Lumen Gentium
ser dedicado à Mariologia, pois mostra Maria não apenas como modelo para a Igreja, mas
como a Igreja já realizada. Seguindo o exemplo da Mãe de Deus, a Igreja chegará, sem dú-
vida, ao fim feliz de sua jornada terrena.
O Papa João Paulo II, quando convocou a Igreja para o triênio preparatório ao
Grande Jubileu do ano 2000, apresentava, no segundo ano, Maria como a “mulher dócil à
voz do Espírito Santo” e, por isso, “modelo de docilidade ao Espírito Santo para a Igreja”:
Maria, que concebeu o Verbo encarnado por obra do Espírito Santo e que depois,
em toda a existência, se deixou guiar pela sua ação interior, será contemplada e
imitada no decorrer deste ano sobretudo como a mulher dócil à voz do Espírito
Santo, mulher do silêncio e da escuta, mulher de esperança, que soube acolher,
como Abraão, a vontade de Deus “esperando contra toda esperança” (Rm 4,18).
Ela leva à sua expressão plena o anseio dos pobres de Javé, resplandecendo como
modelo para quantos se confiam, com todo coração, às promessas de Deus (Tertio
Millennio Adveniente 48).
Como tal, pode-se dizer que ela se converteu, segundo a opinião de Raniero Canta-
lamessa, na primeira e na maior carismática da Igreja, não que ela tivesse recebido algum
dom particular, ou tivesse realizado algum milagre, mas “porque nela o Espírito Santo rea-
lizou a maior de suas ações prodigiosas, suscitando em Maria não uma palavra de sabedo-
ria, não uma grande capacidade de governo, não uma visão, não um sonho, não uma profe-
cia, mas a vinda mesma do Messias”.623 Pois o que o Espírito Santo operou em Maria pode
ser considerado um verdadeiro carisma, “aliás, como o carisma mais alto jamais concedido
a uma criatura humana”.624
É elucidante a declaração da Comissão Teológico-Histórica do Grande Jubileu do
ano 2000:
Tudo aquilo que Maria tem e se tornou, com o seu livre consentimento e a sua co-
laboração, se deve ao seu Filho Jesus e à ação do Espírito Santo. A Virgem é a
623
CANTALAMESSA, R. Maria, um espelho para a Igreja. Aparecida: Santuário, 1992, p. 160.
624
Ibid., p. 161.
321
toda santa, porque desde o primeiro momento da sua existência foi “sacrário do
Espírito Santo” (Lumen Gentium 53). No fundo, “cheia de graça” significa “plena
do Espírito Santo”, porque é sempre ele, o Espírito, que a põe em comunhão com
toda a vida trinitária.625
E Maria, no Espírito Santo, continua sendo Mãe do Corpo de Cristo, que é a Igreja.
A efusão e a ação do Espírito Santo nela não se restringem ao momento da anunciação, mas
se perpetuam ao longo do tempo da Igreja, que, segundo o evangelista Lucas, é o tempo,
por excelência, do Espírito Santo. Quando ela gera o Verbo, o Filho de Deus feito carne (cf.
Jo 1,14), por virtude do Espírito Santo, está, por extensão, gerando todos aqueles que se
tornarem filhos de Deus pelo Batismo, ao aceitarem, pela fé, a vida de Deus, ofertada pelo
redentor por meio de sua obra salvífica. Por essa razão, “na raiz da maternidade de Maria
ampliada” a todas as pessoas, está sempre o Espírito Santo.626 Nela, a Igreja toda se torna
“pneumática e carismática”627, possibilitando que ela declare ao anjo, a exemplo de Maria,
que é modelo da Igreja (cf. Lumen Gentium 63): “Eu sou a serva do Senhor; faça-se em
mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38).
625
COMISSÃO TEOLÓGICO-HISTÓRICA DO GRANDE JUBILEU DO ANO 2000, p. 77.
626
Cf. id., p. 84.
627
Expressões usadas por CANTALAMESSA, R. O canto do Espírito. Meditações sobre o Veni Creator.
Petrópolis: Vozes, 1998, p. 163.
322
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