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GERALDO LUIZ BORGES HACKMANN

A AMADA IGREJA DE JESUS CRISTO

Manual de Eclesiologia como comunhão orgânica

2ª Edição

PORTO ALEGRE

2013
2

“Ninguém creia que lhe baste a leitura sem a unção,


a especulação sem a devoção,
a investigação sem a admiração,
a atenção sem a alegria,
a atividade sem a piedade,
a ciência sem a caridade,
a inteligência sem a humildade,
o estudo sem a graça divina,
a pesquisa humana sem a sabedoria inspirada por Deus”
(São Boaventura,
Itinerarium mentis in Deus, prol. n. 4).
3

SUMÁRIO

Sumário ......................................................................................................................... XX

PREFÁCIO ....................................................................................................... XX

INTRODUÇÃO ................................................................................................ XX

Capítulo primeiro: NOTAS SOBRE A HISTÓRIA DO TRATADO DE


ECLESIOLOGIA ............................................................................................. XX

1.1 Alguns traços da realidade “Igreja” na Sagrada Escritura ..................................... XX


1.2 A Eclesiologia no período patrístico ...................................................................... XX
1.3 A Eclesiologia da reforma gregoriana ................................................................... XX
1.4 A Eclesiologia no período escolástico ................................................................... XX
1.5 A elaboração dos primeiros tratados De Ecclesia ................................................. XX
1.6 A Eclesiologia de Trento ....................................................................................... XX
1.7 A renovação da Eclesiologia ................................................................................. XX
1.8 A Eclesiologia do Concílio Ecumênico Vaticano I ............................................... XX
1.9 A Eclesiologia do Concílio Ecumênico Vaticano II .............................................. XX
1.10 A situação atual da Eclesiologia .......................................................................... XX
1.11 A Eclesiologia na América Latina ....................................................................... XX
1.11.1 A Conferência de Medellín ............................................................................... XX
1.11.2 A Conferência de Puebla .................................................................................. XX
1.11.3 A Conferência de Santo Domingo .................................................................... XX
1.11.4 A Eclesiologia da Teologia da Libertação ........................................................ XX

Capítulo segundo: A IGREJA E O MISTÉRIO TRINITÁRIO ....................... XX

2.1 A Igreja e Deus Pai ................................................................................................ XX


2.2 A Igreja e Jesus Cristo ........................................................................................... XX
2.3 A Igreja e o Espírito Santo ..................................................................................... XX
2.4 A Igreja como comunhão ....................................................................................... XX

Capítulo terceiro: AS NOTAS DA IGREJA ..................................................... XX

3.1 A unidade da Igreja................................................................................................ XX


3.2 A santidade da Igreja ............................................................................................. XX
3.3 A catolicidade da Igreja ......................................................................................... XX
3.4 A apostolicidade da Igreja ..................................................................................... XX
3.5 A romanidade ......................................................................................................... XX
4

Capítulo quarto: A IGREJA COMO MISTÉRIO-SACRAMENTO DE


SALVAÇÃO ..................................................................................................... XX

4.1 A redescoberta do mistério da Igreja ..................................................................... XX


4.2 A Igreja como mistério-sacramento de salvação ................................................... XX
4.3 A Igreja, Corpo de Cristo ........................................................................................ XX
4.4 A Igreja, realidade simultaneamente visível e espiritual ....................................... XX
Excurso: Há salvação fora da Igreja?......................................................................... XX

Capítulo quinto: A IGREJA, POVO DE DEUS ............................................... XX

5.1 Povo de Deus no Antigo e Novo Testamentos .................................... XX


5.2 A Igreja, novo Povo de Deus ................................................................................. XX
5.3 A Igreja e o Reino de Deus .................................................................................... XX
5.4 A dimensão escatológica da Igreja ........................................................................ XX

Capítulo sexto: A ORGANIZAÇÃO DA IGREJA .......................................... XX

6.1 Seus fundamentos .................................................................................................. XX


6.2 A estrutura fundamental da Igreja ......................................................................... XX
6.3 A diferenciação: hierarquia e laicato ..................................................................... XX
6.4 O princípio da sucessão apostólica ........................................................................ XX
6.5 A colegialidade episcopal ...................................................................................... XX
6.6 Formas de colegialidade ........................................................................................ XX
6.6.1 Os Sínodos dos Bispos ........................................................................................ XX
6.6.2 As Conferências Episcopais ................................................................................ XX
6.6.2.1 O Sínodo de 1985 ............................................................................................. XX
6.6.2.2 A Carta Apostólica Apostolos suos .................................................................. XX
6.6.2.3 Algumas questões ............................................................................................ XX
6.6.3 Os Conselhos ...................................................................................................... XX
6.7 O Magistério .......................................................................................................... XX
6.8 A Igreja Particular .................................................................................................. XX
6.9 O exercício da autoridade na Igreja como serviço ................................................ XX
6.10 O regime na Igreja ............................................................................................... XX

Capítulo sétimo: OS MINISTÉRIOS NA IGREJA .......................................... XX

7.1 Uma Igreja ministerial ........................................................................................... XX


7.2 O leigo na Igreja e no mundo ................................................................................ XX
7.2.1 Recordando a história: do esquecimento à valorização do leigo ........................ XX
7.2.2 Quem é o leigo: definindo sua natureza e vocação eclesial ................................ XX
7.2.3 Missão na Igreja e no mundo: para que o leigo? ................................................. XX
7.2.4 O protagonismo dos leigos .................................................................................. XX
7.3 O ministério petrino ............................................................................................... XX
5

7.3.1 O papel de Pedro segundo o Novo Testamento .................................................. XX


7.3.2 O reconhecimento do papel primacial do Papa como sucessor do apóstolo Pe-
dro e bispo de Roma segundo alguns escritos patrísticos ............................................ XX
7.3.3 O ensinamento do Magistério ............................................................................. XX
7.3.4 A atualidade do primado ..................................................................................... XX
7.4 O ministério episcopal ........................................................................................... XX
7.5 O ministério presbiteral ......................................................................................... XX
7.6 O diaconato permanente ........................................................................................ XX
7.7 Os religiosos na Igreja ........................................................................................... XX

Capítulo oitavo: O SERVIÇO DA PALAVRA NA IGREJA .......................... XX

8.1 A infalibilidade de toda a Igreja ............................................................................ XX


8.2 A infalibilidade do Magistério da Igreja ................................................................ XX
8.3 A infalibilidade do Papa ........................................................................................ XX
8.4 Consenso e dissenso na Igreja ............................................................................... XX
8.5 A recepção ............................................................................................................. XX
8.5.1 O fato da recepção .............................................................................................. XX
8.5.2 A recepção como realidade eclesiológica ........................................................... XX

Capítulo nono: A VOCAÇÃO MISSIONÁRIA DA IGREJA ......................... XX

9.1 Alguns dados sobre a situação do Cristianismo hoje ............................................ XX


9.2 Alguns pressupostos .............................................................................................. XX
9.3 Os documentos recentes do Magistério ................................................................. XX
9.4 O Espírito Santo é o agente principal da Evangelização ....................................... XX
9.5 O Espírito Santo dado à Igreja: a missão ............................................................... XX
9.6 Algumas pistas em vista da Evangelização ........................................................... XX

CONCLUSÃO .............................................................................................................. XX

Questões para o estudo ................................................................................................ XX

BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................... XX
6

PREFÁCIO

Escrever, neste momento, uma Eclesiologia é, de certo modo, uma tarefa temerária,
pois o tema Igreja está, hoje, em permanente discussão, suscitando, por isso mesmo, muitos
debates, que, infelizmente, nem sempre se assinalam pela profundidade. Quantas vezes se ou-
ve dizer que o problema desta ou daquela pessoa é a sua “visão de Igreja”. A mesma crítica
atinge as instituições eclesiásticas. Acrescentem-se a essa dificuldade1 as muitas possibilidades
de ser refletida e abordada a Eclesiologia. Inclusive, a análise sobre a situação da Igreja é vari-
ada e dependente daquele que a faz, como retratam algumas publicações recentes.2

Entretanto, é preciso fazer uma outra consideração: a reflexão sobre a Igreja não avan-
çou no período pós-conciliar, assim como aconteceu com outros tratados teológicos, permane-
cendo, até hoje, como uma tarefa inacabada, embora tenham sido publicados alguns livros
analisando a Igreja no alvorecer do novo milênio.3 Observe-se que a renovação do pensamento
teológico se iniciou com a Cristologia, seguida da Eclesiologia. Contudo, a reflexão sobre a

1
E esta considero a maior dificuldade.
2
A título de ilustração, cito alguns artigos que versam sobre a análise da situação atual da Igreja e tentam fazer
uma radiografia de sua situação atual: BEOZZO, J. O. A Igreja do Brasil. De João XXIII a João Paulo II. De
Medellín a Santo Domingo. Petrópolis: Vozes, 1994; BOFF, C.. Para onde irá a Igreja da América Latina? In:
Revista Eclesiástica Brasileira 1990/2 (junho), p. 275-286; Id. Uma análise de conjuntura da Igreja Católica no
final do milênio. In: Revista Eclesiástica Brasileira, v. 56, fasc. 221 (março de 1996), p. 125-149; COMBLIN, J.
O ressurgimento do tradicionalismo na teologia latino-americana. In: Revista Eclesiástica Brasileira 1990/1 (mar-
ço), p. 44-75; GONZÁLEZ VALLÉS, C. Querida Igreja. São Paulo: Paulus, 1998; JAMES, C. Análise de con-
juntura religioso-eclesial. Por onde andam as forças. In: Perspectiva Teológica, ano 28, n. 75 (1996), p. 157-182;
LIBANIO, J. B. A volta à grande disciplina. Reflexão teológico-pastoral sobre a atual conjuntura da Igreja. São
Paulo: Loyola, 1983; Concilium 1981/1 (O neoconservadorismo) e 1981/6 (Radiografia da Igreja). Recentemente,
surgiu o seguinte livro, com uma apreciação muito pessoal sobre a situação atual da Igreja no início deste novo
milênio: COMBLIN, J. Um novo amanhecer da Igreja? Petrópolis: Vozes, 2002. Sugiro algumas perguntas, com
a finalidade de o leitor aprofundar a questão: 1) Qual é a realidade da Igreja Universal hoje? 2) Qual é a realidade
da Igreja no Brasil? 3) Qual é a realidade de sua Igreja Particular? 4) Quais são as linhas eclesiológicas que hoje
vigoram? 5) Quais são as críticas mais contundentes feitas à Igreja hoje, seja pelos próprios católicos, seja por
aqueles que não pertencem à Igreja Católica?
3
Como exemplos, podem-se citar: COMBLIN, J. O povo de Deus. São Paulo: Paulus, 2002. 410 p.; TEPE,
DOM V. Pequeno rebanho, grande sinal. Igreja hoje. São Paulo: Paulus, 2000.
7

Igreja não foi até o fim, porquanto outros temas emergiram e se revelaram como mais urgen-
tes4, relegando a reflexão eclesiológica para um segundo plano.

Por essas razões, titubeei muito antes de publicar esta obra. No entanto, a leitura do
livro de Ghislene Lafont5 deu-me o alento necessário, pois, ao encontrar algo que procurava há
bastante tempo, isso me possibilitou dar uma feição ao que estava refletindo nos últimos anos,
inspirando-me, desta feita, para encontrar um caminho que desse sentido, direção e unidade
para a Eclesiologia em elaboração. Outro livro, o de Salvador Pié-Ninot6, confirmou a desco-
berta do caminho encontrado.

Este livro, assim como o anterior7, nasceu na sala de aula. Após vários anos lecio-
nando a disciplina de Eclesiologia, pesquisando e expondo conteúdos, respondendo a dúvi-
das e ouvindo a reação dos alunos e de outros públicos em ambientes diversificados, che-
gou o momento de oferecer estas páginas a quem deseja aprofundar a sua compreensão de
Igreja. Não que pretenda ser uma obra completa ou perfeita. De forma alguma! Apenas
quer ser expressão do intuito de colaborar com os estudiosos da Teologia e com a formação
daquelas pessoas ávidas pela verdade, compartilhando, embora de forma modesta, o mesmo
amor à Igreja de Jesus Cristo.

Agradeço a todos aqueles que colaboraram na publicação desta obra, principalmente


aos alunos, que, com suas críticas, contribuíram para o aprofundamento e a lapidação das
ideias e do texto, tornando-a, deste modo, mais aprimorada.

O autor

4
A título de ilustração, podem-se referir os temas da Trindade e do Espírito Santo, que foram objeto de inú-
meras publicações.
5
LAFONT, G. Imaginer l’Église catholique. Paris: Du Cerf, 1995.
6
PIÉ-NINOT, S. Introdução à eclesiologia. São Paulo: Loyola, 2000 (original: Introduzione alla
ecclesiologia. Casale Monferrato: PIEMME, 1994).
7
HACKMANN, G. L. B. Jesus Cristo, nosso Redentor. Iniciação à Cristologia como Soteriologia. 2. ed.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.
8
9

INTRODUÇÃO

Já passados mais de cinquenta anos de início do Concílio Ecumênico Vaticano II e


tendo sido encerrado o Grande Jubileu comemorativo dos dois mil anos do nascimento do
Redentor, convocado pelo Papa João Paulo II por meio de sua Carta Apostólica Tertio Mil-
lennio Adveniente (10 de novembro de 1994), “um novo percurso de caminho se abre para a
Igreja” (Novo Millennio Ineunte 1). A chegada do novo milênio comporta, portanto, para a
Igreja, o dever de abrir perspectivas novas, em vista da sua missão. É o que expressa o texto
escolhido pelo Papa, extraído do episódio da pesca milagrosa: “Faze-te ao largo: lançai
vossas redes para a pesca” (Lc 5,4). A frase de Jesus Cristo é, ao mesmo tempo, um convite
à fé e à confiança. Por essa razão, o Papa queria que a Igreja vivesse o novo milênio lan-
çando-se para o futuro, como “profecia do futuro”, guardando o tesouro da graça recebida
da celebração do Grande Jubileu, “traduzindo-a em ardentes propósitos e diretrizes concre-
tas de ação” (Novo Millennio Ineunte 3).

A intuição básica das linhas deste livro é a unidade indissolúvel entre a ideia da co-
munhão (koinonía) e a dimensão sacramental da Igreja, em analogia com o mistério da en-
carnação, que faz com que a Igreja exista em comunhão orgânica. Ou, em outras palavras,
na Igreja acontece a unidade orgânica entre as suas duas dimensões, que lhe são, por natu-
reza, inerentes: o divino e o humano. Essa perspectiva é denominada por G. Ghirlanda co-
mo a dimensão “carismático-institucional” da Igreja, além de afirmá-la como a sua estrutu-
ra fundamental.8

Por outro lado, não é outra coisa do que a afirmação daquilo que expressa a Lumen
Gentium no título do número 8, ao final do primeiro capítulo: “A Igreja simultaneamente

8
Cf. GHIRLANDA, G. Chiesa universale, particolare e locale nel Vaticano II e nel Nuovo Codice di Diritto
Canonico. In: LATOURELLE, R. Vaticano II: Bilancio e prospettive venticinque anni dopo (1962-1987).
Roma e Assisi: Pontificia Università Gregoriana e Cittadella, 1987, p. 843.
10

visível e espiritual”. O problema é que se perdeu a consciência da unidade dessas duas di-
mensões no período pós-conciliar, acarretando Eclesiologias unilaterais e, por isso mesmo,
prejudiciais. R. Coffy faz uma análise pertinente dessa questão, comentando que a Lumen
Gentium não quis substituir uma visão piramidal da Igreja, a hierárquica, por outra de cará-
ter democrático, como se simplesmente pretendesse inverter a pirâmide (conforme muitas
vezes é retratada a Igreja), mas apresentar uma nova visão de Igreja, mais unitária e orgâni-
ca, que, esquecida no pós-Concílio, foi recuperada pelo Sínodo de 1985.9 Portanto, a afir-
mação da Igreja como comunhão orgânica faz com que seja superada uma visão fragmentá-
ria entre o essencial e o pastoral e entre o espiritual e o social, além da oposição entre o ad
intra e o ad extra, como se não fossem dois aspectos complementares da mesma Igreja. Por
isso, ela é sacramento universal de salvação (cf. Lumen Gentium 1).

O leitor não encontrará, nestas páginas, questões discutidas, embora possam ser fei-
tas referências a temas controvertidos pertinentes aos assuntos apresentados. O objetivo é
apresentar a doutrina teológica básica sobre a Igreja de Jesus Cristo, que amamos e servi-
mos. Não é, portanto, um livro temático, enquanto objetiva ser um manual de Eclesiologia,
para preencher uma lacuna existente, hoje, na literatura teológica brasileira. Também neste
livro sigo as orientações do Magistério sobre o ensino da Teologia, que não é demais repe-
tir:

A finalidade pastoral da formação dos futuros presbíteros exige que ela tenha por
base o estudo da Teologia, entendida pelo Concílio Vaticano II como estudo da
doutrina católica, à luz da fé e sob a direção do Magistério da Igreja, de modo que
os estudantes possam “nela penetrar profundamente, torná-la alimento da própria
vida espiritual, anunciá-la, expô-la, defendê-la no ministério” (OT 16).10

O conteúdo do livro está concebido da forma exposta a seguir.

O primeiro capítulo intenta resgatar a história da Eclesiologia enquanto disciplina


teológica, desde os seus inícios até os dias de hoje, pois a memória da Eclesiologia é fun-

9
COFFY, R. L’Église, vingt ans après Vatican II. In: Nouvelle Revue Théologique 107/2 (1985), p. 161-173.
10
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Formação dos presbíteros na Igreja do Brasil
– diretrizes básicas (Documentos da CNBB – 55). São Paulo: Paulinas, 1995, n. 147, p. 83. Conferir, a propó-
sito, Pastores dabo Vobis, nº 52.
11

damental para compreender todo o processo de autocompreensão da Igreja que ela reflete,
pois a Igreja necessita pensar a si mesma para poder partir em missão.

O segundo capítulo busca mostrar a fonte trinitária da Igreja. Deus Pai, Deus Filho e
Deus Espírito Santo concorrem para a fundação da Igreja, cada um a seu modo. O capítulo
seguinte, o terceiro, aborda as notas da Igreja, entendendo-as como decorrência da sua es-
sência. Assim, a unidade, santidade, catolicidade e apostolicidade tornam-se maneiras de
reconhecer onde se encontra a verdadeira Igreja, porquanto elas devem realizar o que é
próprio da essência da Igreja, ou da realidade chamada Igreja.

Os três capítulos subsequentes – o quarto, o quinto e o sexto – formam uma unidade


indissolúvel, pois foram escritos a partir da compreensão do eixo central desta obra, a uni-
dade entre o visível e o invisível, o divino e o humano. O quarto capítulo aborda a dimen-
são sacramental da Igreja, destacando as ideias de mistério, sacramento e comunhão. A
Lumen Gentium intitula seu primeiro capítulo com a afirmação da Igreja como mistério, e,
por essa razão, ela é sacramento de salvação, pois o mistério da Igreja é o desígnio amoroso
de Deus para com a humanidade, que Ele quer salvar. O título do quarto capítulo une misté-
rio, sacramento e comunhão, pois sacramento é a tradução latina do grego mystêrion, e as
duas palavras possuem o mesmo significado. Daí não se poder separar o mistério da Igreja
de sua sacramentalidade, visto que ela realiza a comunhão orgânica entre Deus e a humani-
dade. A Igreja como Povo de Deus (quinto capítulo) é indissociável do seu mistério, de-
semboca na sua necessária organização (sexto capítulo) e não está em função de si mesma,
mas existe a partir de sua identidade e a serviço de sua missão, em vista da humanidade. A
mesma indissolubilidade entre os dois capítulos iniciais da Lumen Gentium quer estar aqui
retratada, abrindo caminho para bem entender a sua organização. Como ela não é uma rea-
lidade meramente abstrata, mas situada em um contexto histórico, a Igreja necessita de uma
organização, a fim de poder realizar aquilo para o que ela foi fundada por Jesus Cristo no
mundo.

Os capítulos seguintes mantêm a mesma lógica: os ministérios (capítulo sétimo), o


serviço da Palavra (capítulo oitavo) e a vocação missionária (capítulo nono). O centro é a
12

Palavra de Deus, que deve ser proclamada a todos os povos e em todos os tempos. Por essa
razão, os ministérios são serviços desempenhados na e para a Igreja, comunidade de fé, a
partir de um chamado de Deus, tendo em vista a Palavra de Deus, que deve ser preservada e
anunciada de forma autêntica por aqueles que receberam o encargo ministerial de procla-
má-la. Daí a infalibilidade da Igreja, do sucessor de Pedro e do Magistério. Enfim, a Igreja
encontra sua razão de ser em sua vocação missionária, isto é, no anúncio do Evangelho de
Jesus Cristo.

Como se percebe, o livro segue, aproximadamente, o esquema da Lumen Gentium, o


que significa a incorporação, como fez o Vaticano II, da nova perspectiva eclesiológica, ad-
vinda com a renovação da Eclesiologia, iniciada no final do século XVIII e começo do século
XIX.

Por fim, cabe a pergunta: qual é a Eclesiologia deste manual? A resposta é fornecida
pela síntese apresentada pelo Relatório Final do Sínodo de 1985, que considera os seguintes
aspectos como imprescindíveis para a renovação da Igreja, para a consciência de sua missão e
para uma releitura dos sinais dos tempos.

Dimensão cristológica: pela qual se torna presente o mistério da Igreja, porque “toda
a importância da Igreja deriva de sua conexão com Cristo” (Relatio Finalis II, A, 3), além de
apontar para a unidade entre a teologia da cruz e o mistério pascal, pois é “nessa perspectiva
pascal que se afirma a unidade da cruz e da ressurreição” (Relatio Finalis II, D, 3), que, por
sua vez, abre perspectiva para a teologia da criação e da encarnação e fundamenta falar da
missão no mundo.

Dimensão antropológica: a atenção da pessoa humana à sua história e à sua cultura


implica “uma constante atualização” e uma necessidade de “inculturação” que levem em conta
os valores verdadeiramente humanos, especialmente a “dignidade da pessoa humana, os direi-
tos fundamentais dos homens, a paz, a liberdade contra as opressões, a eliminação da miséria e
da injustiça”. Daí a necessidade de evangelizar a cultura, pois “a salvação verdadeiramente
integral só se obtém se estas realidades humanas forem purificadas e ulteriormente elevadas à
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familiaridade com Deus por Jesus Cristo no Espírito Santo” (ibid.). Este é o princípio teológi-
co para o problema da inculturação:

Porque a Igreja é comunhão, que une a diversidade e unidade, ela assume tudo o que
de positivo se encontra em todas as culturas. Todavia, a inculturação é diferente da
mera adaptação externa, porque significa uma íntima transformação dos autênticos
valores culturais mediante a integração no cristianismo e a encarnação do cristianis-
mo nas várias culturas humanas (Relatio Finalis II, D, 4).

Dimensão dialogal: o diálogo com as religiões cristãs e não cristãs, além dos não
crentes, é um dos pontos centrais da missão da Igreja nos dias de hoje. Isso porque o

diálogo não pode ser oposto à missão. O diálogo autêntico tende a que a pessoa hu-
mana abra e comunique sua interioridade ao seu interlocutor. Além disso, todos os
cristãos receberam de Cristo a missão de fazer todos os povos discípulos de Cristo
(Mt 28,20). Neste sentido Deus pode servir-se do diálogo entre cristãos e não cristãos
e os não crentes como caminho para comunicar a plenitude da graça (Relatio Finalis
II, D, 5).

Dimensão diaconal: a Igreja toma consciência de que há uma unidade intrínseca en-
tre a fé e a promoção humana, como tão bem retratam os documentos Sollicitudo Rei Socialis,
de João Paulo II, e Santo Domingo, do Episcopado da América Latina. Já em 1985, o Sínodo
dos Bispos concluía:

Devemos entender como integral a missão salvífica da Igreja em relação ao mundo.


A missão da Igreja, embora seja espiritual, implica a promoção também no campo
material. Por isso, a missão da Igreja não se reduz a um monismo, de qualquer modo
que ele possa ser entendido. Certamente, nesta missão há uma clara distinção, mas
não separação, entre os aspectos naturais e os sobrenaturais. Esta dualidade não é um
dualismo. É preciso, portanto, pôr de parte e superar as falsas e inúteis oposições, por
exemplo, entre a missão espiritual e a diaconia em favor do mundo (Relatio Finalis
II, D, 6).

Uma Eclesiologia que, priorizando a unidade dos elementos divino e humano, en-
quadra-se na perspectiva da sacramentalidade da Igreja, considerando-a sacramento universal
de salvação. Uma Eclesiologia que busca a unidade orgânica entre esses dois elementos, mos-
trando que a separação ou a ruptura deles ou a priorização desarmônica, tanto de um quanto de
outro, implica uma fragmentação que esfacela e desvirtua a verdade da Igreja na sua essência.

Uma Eclesiologia que não quer deixar de considerar a situação do povo latino-
americano, mas que quer a unidade de todos os elementos inerentes à autocompreensão da
Igreja ligada a sua aplicabilidade pastoral, o que incide, natural e necessariamente, em uma
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visão unitária entre o essencial e o pastoral. Não que este livro vá se converter em um receituá-
rio pastoral, mas o que se intenta é que ele dê os elementos suficientes para que a pessoa con-
siga concretizar, na realidade em que está trabalhando, o que a Igreja é em si mesma, ou seja,
em sua essência, em uma fidelidade permanente a Jesus Cristo.

II

a) Origem da Eclesiologia11

O tratado sobre a Igreja enquanto disciplina teológica é, praticamente, recente na Teo-


logia. Nem Orígenes, Agostinho ou Santo Tomás dedicaram alguma parte especial de sua vas-
ta obra teológica ao mistério da Igreja. Encontra-se abordado, ocasionalmente, no contexto de
outros tratados, mas não de forma direta, sistemática e exaustiva.

As primeiras obras teológicas sobre a Igreja são do final da Idade Média, fruto mais de
juristas do que de teólogos, pois se atêm mais aos aspectos jurídicos e institucionais do que
propriamente ao mistério em si. A causa dessa perspectiva foi a situação que a Igreja enfrenta-
va naquele momento histórico.12 Antes, a Igreja vivia sem uma reflexão explícita sobre si
mesma. Mas não quer dizer que ela não se conhecia. Havia, sim, uma Eclesiologia implícita,
que passou a ser explicitada por exigência das circunstâncias históricas.

A doutrina oficial recente sobre a Igreja vem formulada nos documentos do Vaticano
II, particularmente Lumen Gentium, Gaudium et Spes, Nostra Aetate e Ad Gentes, que ofere-
cem uma síntese atualizada, mais os documentos Pastor Aeternus (1870), do Vaticano I (DS
3050-3075), a Encíclica Satis cognitum (1896), de Leão XIII (DS 3300-3310), e a Encíclica
Mystici Corporis (1943), de Pio XII (DS 3800-3822). Ainda se acrescentam a Encíclica Eccle-
siam Suam (06 de agosto de 1964) e a Exortação Pós-Sinodal Evangelii Nuntiandi (08 de de-

11
LE GUILLOU, M-J. Iglesia: III. Teologia dogmática. In: Sacramentum Mundi. Barcelona: Herder, 1976, 3:601-
622; MONDIN, G. B. La Chiesa primizia del regno. Trattato di ecclesiologia. In: C. ROCCHETTA (Org.). Corso
di Teologia Sistematica, v. 7. Bologna: Dehoniane, 1986, p. 7-25.
15

zembro de 1975), ambas de Paulo VI. De João Paulo II, destacam-se a Christifideles Laici (30
de dezembro de 1988) e a Redemptoris Missio (07 de dezembro de 1990). O Relatio Finalis
do Sínodo extraordinário de 1985 também não pode deixar de ser citado, devido a sua impor-
tância para a avaliação da época pós-conciliar e atualização do último Concílio Ecumênico.
Também a Carta Apostólica Tertio Millennio Adveniente, de 10 de novembro de 1994, alcan-
çou destaque, devido à motivação e ao planejamento para a preparação ao novo milênio, por
parte de toda a Igreja. Igualmente a Carta Encíclica Ut Unum Sint, de 25 de maio de 1995,
sobre o empenho ecumênico, destacou-se por ter reassumido o ideal da união de todos os cris-
tãos. Recentemente, a Carta Novo Millennio Ineunte, de 06 de janeiro de 2001, pretende traçar
algumas coordenadas pastorais para a Igreja no novo milênio.

Na América Latina, os documentos das conferências episcopais do CELAM, Medellín


(1968), Puebla (1979) e Santo Domingo (1992), assim como a Exortação Apostólica Pós-
Sinodal Ecclesia in America, de 22 de janeiro de 1999, resultado da Assembleia Especial do
Sínodo dos Bispos para a América, que teve lugar no Vaticano, de 16 de novembro a 12 de
dezembro de 1997, visam incrementar a evangelização e a cooperação entre as diversas Igrejas
Particulares do continente latino-americano.

b) O lugar teológico da Eclesiologia

Inicialmente, a Eclesiologia era um apêndice de um dos tratados de Cristologia, Pneu-


matologia, Sacramentos ou Graça. Também chegou a ser abordada na Teologia Fundamental e
na Apologética. Com o passar do tempo, tomou-se consciência de que a Igreja é uma realidade
teológica complexa, com uma multiplicidade de aspectos que exigem um desenvolvimento
apropriado. Pressupõe uma Teologia da Revelação e da Palavra de Deus, fontes de uma con-
ceituação da Igreja e de sua compreensão. A reflexão teológica leva a explicitar a presença de
Deus na Igreja e sua atuação na história humana como comunidade institucional e sacramento
de salvação (Lumen Gentium 1).

12
Cf. MONDIN, op. cit., p. 7. A questão será abordada no capítulo primeiro de forma mais detalhada.
16

Por isso, só é possível apreender bem o significado da realidade espiritual e visível da


Igreja à luz da fé, que inclui tanto os dados revelados como sua evolução ao longo da história,
enquanto sua forma histórica demonstra a presença de Deus. Daí afirma Paulo VI: “O mistério
da Igreja não é simples objeto de conhecimento teológico, deve ser fato vivido, em que a alma
fiel, antes de ser capaz de definir a Igreja com exatidão, a pode apreender numa experiência
conatural” (Ecclesiam Suam I).

Em relação com a Teologia Fundamental, os teólogos procuram estudar o significado


da Igreja como seu fundamento. Essa função da Eclesiologia é denominada teológico-
transcendental, no sentido de que ela torna possível todas as demais disciplinas teológicas
enquanto condição transcendental, porque ela recebeu e transmite a Revelação. Por isso, a
Igreja é o verdadeiro e próprio sujeito da fé.13 Nesse sentido, crê-se na Igreja (credo ecclesi-
am), conforme se reza na profissão de fé católica.14

O tratado teológico intitulado Eclesiologia é o estudo da Igreja, ou seja, da comuni-


dade de fiéis, reunidos em nome de Jesus Cristo, com o intuito de constituir a comunidade
de salvação fundada por ele e, assim, continuar a sua missão.15 Como tal, a Igreja é uma

13
Cf. LE GUILLOU, 1976, 3:602s.
14
A distinção entre Credo in Deum e Credo ecclesiam será abordada posteriormente.
15
A procura por uma definição de Igreja nos coloca diante de uma via sem saída. Isso porque a Igreja, por ser
sobrenatural e, consequentemente, uma realidade que escapa à compreensão humana, não pode ser definida em
sentido estrito, mas, apenas, ser descrita. A história da Igreja nos apresenta alguns conceitos que tiveram uma
grande abrangência ao longo dos séculos, extraídos dos chamados modelos ou cenários de Igreja. Estes podem ser
resumidos em três, devido à incidência maior que tiveram para a autocompreensão da Igreja ao longo do tempo,
particularmente no segundo milênio. O primeiro modelo é o da instituição ou tradicional, pelo qual a Igreja é vista
a partir de sua instituição e de sua hierarquia, acentuando seus elementos internos, em detrimento das suas rela-
ções com o mundo. O segundo modelo é o da Igreja servidora ou moderna, pelo qual a Igreja é vista a partir da
aplicação do Concílio Vaticano II, em sua tentativa de atualização, entrando em diálogo com o mundo. O terceiro
modelo é o libertador. Nesse modelo, a tônica recai sobre a situação da América Latina e o comprometimento da
Igreja no processo de transformação. João Batista Libanio, em seu livro Cenários da Igreja, descreve, além do
primeiro e do terceiro, outros dois, que são denominados de Igreja Carismática e Igreja da Pregação. No primeiro
recai o acento sobre o movimento carismático, que incentiva a experiência de Deus e tem forte poder de criar
clima espiritual. O segundo está centrado no conhecimento e na pregação da Palavra de Deus (cf. LIBANIO, J.
Cenários da Igreja. São Paulo: Loyola, 1999, p. 48-89). Contudo, podem apresentar-se algumas tentativas de
descrever a Igreja. Entre elas, está a de M. Schmaus: “A Igreja, como Corpo de Cristo, é o povo de Deus do
Novo Testamento, que vive, age e está a serviço do reino de Deus e da salvação humana. Esta é condicionada
por este reino, que caminha rumo ao absoluto futuro dos homens servindo ao mundo” (cf. SCHMAUS, M. Fé
da Igreja, v. IV. Petrópolis: Vozes, 1978, p. 22). Outra é a de A. Beni, que, ao refletir sobre esse mesmo pro-
blema, afirma uma definição, não real e própria, mas em gênero próximo, o qual ressalta os aspectos comuns
que a Igreja tem com as outras sociedades, e em diferença específica, isto é, aquilo que distingue a Igreja de
17

comunidade relacionada com a fé cristã, mas, por essa mesma razão, não deixa de ser histó-
rica, enquanto grupo dado e concretamente existente, e socialmente constituída. Dessarte, a
Igreja pode ser abordada do ponto de vista histórico, sociológico e dogmático.

Do ponto de vista histórico, a Igreja pode ser considerada a partir da sua origem,
enquanto continuidade do movimento iniciado por Jesus, de seus discípulos, da comunida-
de primitiva ou de seu crescimento ao longo de sua vida histórica. Essa perspectiva é estu-
dada pela disciplina de História da Igreja.

Do ponto de vista da Sociologia, a Igreja pode ser considerada como um grupo or-
ganizado da comunidade de uma religião, pois a Igreja Católica é uma comunidade visível
e institucionalizada, que assume, como consequência, uma determinada figura. E, assim,
torna-se objeto do estudo da Sociologia da Religião, com possibilidade de crítica tanto in-
terna quanto externa.

Do ponto de vista dogmático, a Igreja parte da compreensão última sobre si mesma,


fornecida por ela própria, na medida em que a comunidade, ao se compreender e se intitular
como uma comunidade eclesial, que quer ser e formar uma verdadeira Igreja, e isso a partir
da Páscoa, informa quem ela é. E essa autoexplicação é fundamental para o estudo da Igreja
do ponto de vista dogmático, pois constitui o marco de sua aproximação teológica.

Como tal, a Igreja se torna o lugar do seguimento de Jesus Cristo em comunidade,


em vista a alcançar a salvação eterna, o que faz a Igreja pretender ser uma comunidade
messiânica de salvação que vive da Palavra de Deus, inspirando-se e guiando-se pela vida e
pela prática de Jesus Cristo. Isso vai acontecer, por exemplo, na liturgia, na pregação, nas
orações e no serviço ao próximo e à sociedade.

É tarefa da Eclesiologia, portanto, compor uma doutrina teológica sobre a Igreja,


extraindo daí a sua pretensão, ou seja, ser a comunidade que vive autenticamente a palavra

outras sociedades, pois ela é uma realidade completamente diferente, específica e com gênero próprio (cf.
BENI, A. La nostra Chiesa. Firenze: Fiorentina, 1981, p. 38-41).
18

de Cristo em sua vida. E o julgamento para tal será feito na perspectiva da fé cristã, e, por-
tanto, eclesial, o que torna a Eclesiologia uma disciplina estritamente teológica e a distin-
gue da Filosofia ou da Sociologia da Religião, evitando que seja confundida com um estudo
meramente científico16 da Igreja.17

c) A relação entre Cristologia e Eclesiologia

O mistério de Jesus Cristo continua ocupando o centro da Teologia, apesar de já se ter


consciência de que a ciência teológica deveria ter uma dimensão mais trinitária, conforme
tendência recente. Mas é certo que toda a economia salvífica tem seu centro de unidade no
Filho de Deus. Nessa perspectiva compreende-se a recomendação do Vaticano II de as disci-
plinas teológicas deverem ser restauradas por um contato mais vivo com o mistério de Cristo e
a história da salvação (cf. Optatam Totius 16).

A mesma recomendação vale para a Eclesiologia. Assim, Jesus Cristo é o fundamento


da Igreja, enquanto seu fundador. Por outro lado, a Igreja tem a missão de tornar a mensagem
e a salvação de Cristo presentes em todos os povos e em todas as épocas, visto que ela é a de-
positária da Revelação.18

Por isso, não se pode dissociar Cristologia de Eclesiologia. No centro da Igreja encon-
tram-se o mistério de Cristo e a sua missão. Diante disso, pode-se afirmar a necessidade de
uma sistematização cristo-eclesiocêntrica da Teologia, a partir da dimensão da história da sal-
vação. Assim, em uma Teologia centrada na história da salvação, a Eclesiologia se torna a

16
A expressão “meramente científico” quer indicar a atitude que considera a ciência capaz de resolver todos
os problemas da humanidade e suficiente para satisfazer todas as necessidades da razão humana, sem levar em
conta a fé religiosa.
17
As ideias dos últimos parágrafos deste ponto encontram-se em HÄRING, H. Iglesia – Eclesiología. B. Teo-
logía sistemática. I. Concepto y problema. In: EICHER, P. (Org.) Diccionario de conceptos teológicos. Barce-
lona: Herder, 1989, p. 505-507.
18
Aqui se pode fazer referência ao problema da vinculação entre evangelização e cultura, pois a Igreja sempre
usou dos recursos próprios das diversas culturas, com a finalidade de que a sua pregação da mensagem de Cristo
atingisse a humanidade e se difundisse por todas as regiões do universo (cf. Gaudium et Spes 58). Daí a grande
preocupação pela evangelização da cultura, hoje tão presente na América Latina, conforme demonstra Puebla e,
especialmente, Santo Domingo.
19

disciplina que ocupa o centro da perspectiva. A Eclesiologia, enquanto disciplina teológica


autônoma dentro do conjunto de toda a sistematização teológica, refletirá essa nova consciên-
cia, fruto da centralidade do mistério de Cristo e de sua missão, compromisso da Igreja, comu-
nidade aberta à dimensão histórica e consciente do lugar do Povo de Deus na história da salva-
ção e na história humana.

Assim esteve orientado o período imediatamente subsequente ao término do Vaticano


II com o programa da “volta às fontes” bíblicas e patrísticas.

Enfim, estas linhas são escritas sem nenhuma pretensão de esgotar o tema ou de apre-
sentar algo perfeito, mas para meditar sobre a Igreja como aprendiz de Deus. Com respeito
reverencial, escrevo sobre a Igreja de Jesus Cristo com a consciência de estas linhas serem
uma pálida ideia daquilo que ela representa no projeto salvífico do Pai. Em se falando da Igre-
ja, vale a ordem dada por Deus a Moisés quando o chamou: “Não te aproximes daqui; tira as
sandálias dos pés porque o lugar em que estás é uma terra santa” (Gn 3,5). Contudo, vale a
pena olhar para ela, a fim de contemplá-la no desígnio amoroso de Deus, ouvindo o que ele
nos tem a dizer, assim como também a Tradição e o Magistério, que desde o início da cami-
nhada histórica da Igreja vem refletindo e afirmando sobre ela.
20

CAPÍTULO PRIMEIRO

NOTAS SOBRE A HISTÓRIA DO TRATADO DE ECLESIOLOGIA

Este capítulo visa traçar algumas coordenadas sobre a história do tratado sistemático
de Eclesiologia, que apenas surge como tal na ciência teológica a partir do segundo milênio. A
causa desse fato deve-se não à ausência de uma reflexão explícita sobre a identidade e a mis-
são da Igreja, que, aliás, existiu desde os primórdios de sua história, mas a uma exigência tar-
dia, quando a Igreja, enquanto comunidade organizada, começava a enfrentar vicissitudes no-
vas na sua relação com o Estado, até então nunca vividas. Esse é o momento em que os pri-
meiros eclesiólogos iniciam uma reflexão sistemática escrita, dando origem, assim, aos pri-
meiros tratados de Eclesiologia propriamente ditos.
A Igreja vai surgindo sem refletir sobre si mesma, com uma Eclesiologia dentro de
si, interna, ou seja, com uma Eclesiologia implícita. A falta de um tratado especial de Eclesio-
logia pode ser atribuída a dois fatores: o primeiro, a situação histórica não o exigiu, mesmo
diante da paz de Constantino, quando a religião se confrontava com a política; o segundo, a
Igreja é o fundamento do edifício dogmático e, por isso, se dilui no pensamento teológico de
então. O que existe nesse período é a reflexão sobre determinados aspectos, mas ainda inci-
piente, que parte do Evangelho e leva a um aprofundamento da realidade da Igreja. Por esses
motivos, nem os Padres, nem os teólogos da Idade Média elaboraram um tratado de Ecle-
siologia.
Esta breve exposição, que não pretende ser exaustiva, inicia com a análise da reali-
dade “Igreja” na Escritura, continuando, a seguir, com a abordagem do período patrístico-
escolástico e dos primeiros tratados De Ecclesia, para finalizar com alguns traços da Eclesio-
logia de Trento e do Concílio Ecumênico Vaticano II. Assim, espera-se dar uma ideia, embora
sucinta, da dinâmica que esteve presente na elaboração do tratado de Eclesiologia, com a fina-
lidade de lançar algumas luzes para a situação atual da Eclesiologia.

1.1 Alguns traços da realidade “Igreja” na Sagrada Escritura


21

a) A etimologia da palavra Igreja

A palavra usual das línguas latinas Ecclesia é originária do grego Ekklêsía, denomi-
nação mais importante e frequente no Novo Testamento. A Igreja primitiva quer indicar, com
esse nome, que é o Povo de Deus, o verdadeiro Israel. Paulo usa a expressão Ekklêsía toû
Theoû (At 20,28), que significa a comunidade convocada por Deus (1Ts 2,14; 2Ts 1,4; 1Cor
1,1; 10,32). Essa terminologia não é criada pela comunidade primitiva, mas herdada do juda-
ísmo.
No Antigo Testamento, são duas palavras utilizadas para indicar o conceito que hoje
denominamos “Igreja”, pois a palavra, assim como é empregada mais tarde nos escritos neo-
testamentários, não existe antes de Jesus Cristo. As duas palavras são qahal e eda. Ambas
significam comunidade ou assembleia do povo de Israel, principalmente como comunidade
religiosa e cultual, mas com nuança diferente. Qahal, de origem deuteronomista, indica o
momento ativo da comunidade ou da assembleia convocada por Deus. Eda, dos escritos sa-
cerdotais e na literatura pós-exílica, indica o momento passivo da comunidade reunida, ou
seja, como congregação.19 A Septuaginta traduziu o primeiro termo por Ekklêsía, extraído do
grego profano20, que era o termo técnico para indicar a assembleia política dos cidadãos das
cidades-estados gregas, reunida para tomar decisões políticas ou jurídicas, mas com uma evo-
lução do ponto de vista de seu conteúdo, porque passou a significar a reunião, não só dos ho-
mens, mas também das mulheres e crianças, para aceitar a decisão de Deus na sua Palavra, e
não para tomar uma decisão política, como indicava o significado profano. Eda foi traduzida
por sinagoghê (sinagoga), que se tornou o nome fixo para indicar tanto a comunidade religiosa
judaica quanto o seu lugar de reunião.
As línguas germânicas apresentam uma etimologia um pouco diferente, pois as
palavras Kirche, Church, Kerk etc. são provenientes do grego tardio kiriakón, que significa
casa do Senhor.21

19
Segundo S. Pié-Ninot, a primeira indica a Ecclesia convocans et congregans e a segunda, a Ecclesia convo-
cata et congregata (cf. PIÉ-NINOT, op. cit., p. 27s).
20
Os dois termos são usados, aproximadamente, cem vezes (cf. FRANKEMÖLLE, H. Iglesia-Eclesiología.
In: EICHER, op. cit., 1989, p. 499).
21
Cf. DE FRAINE, J. Igreja. In: VAN DEN BORN, A. (Org.). Dicionário Enciclopédico da Bíblia. Petrópo-
lis: Vozes, 1971, col. 709.
22

No Novo Testamento, a palavra ekklêsía tem três significados usuais: a) indica a co-
munidade local (At 2,47; 8,1.3; 9,31; Rm 1,7; Cl 1,2; Fl 1,1; 1Cor 1,2; 16,1); b) a Igreja uni-
versal (2Cor 8,1; 11,2; 1Ts 2,14; 1Cor 4,17; 11,16; 15,9; 16,1; Gl 1,13; At 20,28); c) a assem-
bleia litúrgica (1Cor 11,18; 14,19).22 Esses acentos diversos no significado de Igreja, nos es-
critos do Novo Testamento, estão no nível da consideração, e não no nível objetivo. A Igreja é
“universal” e “particular”, e essa dialética pertence a sua essência.23 Fora de São Paulo e de
alguns lugares dos Atos, indica sempre as Igrejas locais.

Daí se podem extrair três consequências:

 muitas vezes acontece a confusão sobre o significado de Igreja, quando as pessoas


empregam a palavra Igreja para designar, com o mesmo sentido, o templo e a comunidade de
fé. O templo ou a casa construída para a oração e reunião da comunidade é a igreja com “i”
minúsculo, ao passo que a Igreja, conforme o sentido descrito acima, como comunidade de fé
e assembleia reunida, é com “i” maiúsculo. Com o advento do Vaticano II, surgiu uma nova
consciência, que provocou a participação ativa de cada batizado em sua comunidade eclesial,
pois trouxe a convicção de que o Batismo torna o cristão responsável pela Igreja;
 por “Igreja” não se entende simplesmente o cristianismo, no sentido de doutrina ou
um conjunto de doutrinas ensinadas por Jesus Cristo. A Igreja é, antes de tudo, constituída por
pessoas que vivem em comunidade, de acordo com a proposta de seu fundador, professando a
fé na doutrina ensinada por ele. Por essa profissão de fé, as pessoas se distinguem de outros
grupos religiosos. Dizer Igreja significa referir-se às pessoas que acolhem e praticam a doutri-
na de Jesus Cristo, em uma comunidade determinada e configurada, de acordo com o deposi-
tum fidei católico, ao passo que cristianismo refere-se, primariamente, ao conjunto de doutri-
nas e de ritos;
 a Igreja não se confunde com a hierarquia eclesiástica, como frequentemente se
emprega no falar corriqueiro. O uso desta redução – Papa, bispos e padres para designar a

22
Cf. SCHMAUS, op. cit., p. 19-21.
23
Cf. FRANKEMÖLLE, Iglesia-Eclesiología. In: EICHER, op. cit., p. 494s.
23

Igreja – é comum, embora errada e funesta, unilateral e prejudicial, tanto para a hierarquia
quanto para o laicato, porque coloca toda a responsabilidade nos primeiros.24

b) Prefiguração no Antigo Testamento

O Antigo Testamento não possui a palavra Igreja no sentido idêntico ao que encon-
tramos no Novo Testamento, mas há diversas formas de manifestação, por meio de nomes e
conceitos, pelos quais se exprime a entidade teológica denominada “Igreja”. O conjunto des-
ses nomes e conceitos exprime o que ela é, quer ser e deverá tornar-se.
Eis algumas dessas manifestações:

 Povo de Deus: fundado na promessa de Javé (Am 9,2s), cria um relacionamento


particular com ele, superior ao de todos os demais povos. Ele é o centro de união e comunhão
desse povo, pois todos são filhos e irmãos do mesmo Pai;
 resto santo: Israel, enquanto Povo de Deus, é muito mais uma entidade teológica
(postulado teológico) do que um fato sociopolítico. O resto é a parte de Israel que permaneceu
fiel às promessas, mesmo no cativeiro (1 Rs 9,14.18; 2 Rs 19,4; Is 1,9; 46,3; Sf 3,12s);
 diáspora: é uma categoria que indica os hebreus que vivem fora da Palestina, isto é,
na dispersão, implicando a ideia de uma minoria religiosa vivendo no meio de outra comuni-
dade religiosa e nacional;
 cidade santa: Javé funda e elege a comunidade e dele também se originam o Tem-
plo, Sião e Jerusalém (três conceitos usados, muitas vezes, como sinônimos), que expressam o
lugar da promessa de Deus e da sua revelação e, assim, lugar do agir benéfico de Deus, per-
ceptível especialmente no culto (Ez 40-48; Ex 15,1-8; Sl 78; Is 46,13).
A Igreja do Novo Testamento é a continuidade do Antigo Testamento, não havendo
ruptura entre ambos. A declaração encontrada no documento Nostra Aetate confirma essa
afirmação: “Perscrutando o Mistério da Igreja, este Sacrossanto Concílio recorda o vínculo
pelo qual o povo do Novo Testamento está espiritualmente ligado à estirpe de Abraão” (Nostra
Aetate 4). E a Lumen Gentium assume essa mesma posição: “Tudo isso, porém, aconteceu em
preparação e figura para aquela nova e perfeita aliança que se estabeleceria em Cristo, e para

24
MONDIN, op. cit., p. 29s.
24

transmitir uma revelação mais completa através do próprio Verbo de Deus feito carne” (Lu-
men Gentium 9).

c) No Novo Testamento

O Novo Testamento oferece uma figura bem definida de Igreja: o novo Povo de
Deus, a nova qahal, a aliança definitiva, uma comunidade que se constitui em grupo social,
distinto de qualquer outro existente no mundo, fundado pelo Filho encarnado de Deus Pai,
Jesus Cristo. Como se vê, desde o início, a Igreja possui tudo aquilo de que necessita para ser
sacramento de salvação para toda a humanidade. Chama a atenção, desde o começo, o rápido
crescimento numérico de seus membros, o que faz com que sejam fundadas comunidades cris-
tãs em todas as cidades do Império Romano.25
A consciência eclesiológica da primeira comunidade está expressa em At 2,42-47 e
4,32-35. Ela tem consciência de ser a comunidade de Jesus, o Messias, que realizou o plano
salvífico do Pai (At 10,38 e 39-43), e o novo Povo de Deus, o edifício espiritual (1Pd 2,3-5).
Fiel à vontade de seu fundador, a comunidade primitiva conserva as estruturas recebidas de
Jesus: edifica-se sobre os fundamentos dos apóstolos e profetas. Os chefes (os Doze, diáconos
e presbíteros) são responsáveis pela ordem e crescimento da comunidade. Pedro exerce uma
missão e importância insubstituíveis. A fé nas verdades ensinadas por Jesus encontra-se no
“símbolo apostólico”, cujo núcleo é Jesus Cristo. Os ritos do Batismo (Mt 28,19-29) e da Eu-
caristia (Lc 22,19) demonstram a consciência da presença dinâmica do Espírito Santo na vida
cotidiana pelos carismas e em toda a ação apostólica. A lei fundamental que regula as relações
entre as pessoas do novo Povo de Deus é o mandamentum novum, a lei da caridade fraterna e
do serviço recíproco, não importando a função.
São Paulo emprega muitas imagens para referir-se à Igreja: novo Israel (Gl 3,28; 4,26
e 6,16; Rm 11,32); templo e plantação (1Cor 3,16 e 3, 6-8); comunidade sacramental (Gl 3,27;
1Cor 12,13; Rm 6,3-5; 1Cor 10,17 e 11, 20-34; Ef 5,22-23.25s.32). Mas a sua imagem central
é a de corpo de Cristo (1Cor 12,12-30), por apresentar características muito significativas: os
membros são muitos, mas um só é o corpo, indicando, assim, a união dos fiéis em Cristo; os
membros da Igreja são, ao mesmo tempo, membros de Cristo; Jesus Cristo é a cabeça de seu

25
Ibid., p. 65.
25

Corpo, que é a Igreja, acontecendo, desse modo, a presença interior de Cristo na Igreja e da
Igreja em Cristo, mediante a palavra, o sacramento e os dons do Espírito, e, especialmente, por
meio da Eucaristia, da qual a Igreja vive.26

1.2 A Eclesiologia no período patrístico

O estudo da história da Eclesiologia desse período compreende um arco de tempo


muito longo e revela momentos de muita profundidade no campo da pesquisa teológica, ape-
sar de a Eclesiologia obter uma abordagem sistemática só no final do período seguinte.
O mistério da Igreja é versado de forma fragmentária pelos Padres gregos e latinos,
sempre no contexto de outros tratados. Os Santos Padres abordam determinados temas, tais
como Espírito e Eucaristia; maternidade da Igreja pela fé, amor, oração, penitência e testemu-
nho; amor e paz; concórdia entre as Igrejas locais; colegialidade episcopal; o Papa como guar-
dião da caridade da Igreja universal. Estabelecem-se princípios eclesiológicos importantes:
apostolicidade e sucessão apostólica (Santo Ireneu); papel do Papa como cabeça do corpo da
Igreja e no campo do Magistério e da jurisdição (já nos séculos III e IV). Assim, a visão patrís-
tica de Eclesiologia está centrada na linha da Eucaristia e da história da salvação.
É incontestável que, entre as Igrejas de origem apostólica, a de Roma, desde o prin-
cípio, é alvo de um reconhecimento de um primado sobre todas as outras. A sede de Roma
tem um primado de responsabilidade sobre toda a Igreja, desde a época subapostólica, e não
simplesmente de honra. A Carta de Inácio, bispo de Antioquia, e a obra Adversus haereses, de
Ireneu, bispo de Lião, são testemunhos inegáveis.

a) Ireneu

Entre os diversos autores desse primeiro período, destaca-se Ireneu. Ele nasceu entre
140 e 160 na Ásia Menor, talvez em Esmirna. Nas obras Adversus haereses e Demonstratio
apostolica praedicationis, elabora uma síntese global do cristianismo e, como consequência,
um modelo coerente de Igreja, motivado pelo combate ao gnosticismo e ao neoplatonismo,
que apresentava muita afinidade com o cristianismo. Seu trabalho teológico visa responder aos

26
SCHMAUS, op. cit., p. 58-62.
26

seguidores desses dois erros. Daí segue uma Eclesiologia atenta à situação própria do tempo,
sem nunca desviar-se das verdades reveladas e contidas no depositum fidei. Por definir a Igreja
em termos platônicos, distingue a realidade em dois planos: um ideal, divino, eterno, invisível,
perfeito, incorruptível; outro, a imagem e cópia do primeiro. Assim, Ireneu considera toda a
providência salvífica terrena como correspondente ao modelo celeste e derivante do próprio
Deus.
Graças à assistência do Espírito Santo, a Igreja é um lugar seguro de indefectibilida-
de da verdade, pois o seu ensinamento é o mesmo em toda parte, no tempo e no espaço.27 O
conceito de Tradição é fundamental para Ireneu. Por isso, a garantia tangível da verdade se
encontra na sucessão apostólica, concedida por Jesus Cristo aos seguidores da sua nova alian-
ça. Com esses critérios de verdade e de pertença à Igreja, Ireneu busca evitar erros doutrinais
que possam desviá-la da missão de sacramento de salvação para todos os povos, frente a sua
rápida expansão.28

b) Orígenes

Orígenes, que nasceu por volta de 185, em uma família cristã de Alexandria, e mor-
reu em 253, traçou sulcos indeléveis na história do pensamento cristão e para a própria Igreja.
Ele contribuiu para a legítima helenização do cristianismo, frente ao problema da relação entre
Igreja e cultura. Ao afrontar tal problema, conclui que o cristianismo não veio destruir a filoso-
fia grega, mas nobilizá-la e aperfeiçoá-la. Assim como Ireneu e Clemente, recorre ao princípio
da exemplaridade para explicar a revelação da verdade, pois este estabelece entre as coisas um
laço de unidade e ordena-as conforme uma hierarquia, de acordo com o grau de semelhança
entre a imagem e o modelo. Assim, ele dá ordem e unidade ao grande universo das verdades
reveladas.29 Para ele, portanto, a realidade visível e estruturada da Igreja, contemplada aqui, é
uma imagem de sua realidade invisível. A Tradição é fundamental na Igreja, que é o Corpo de
Cristo.30

27
Cf. IRENEU DE LIÃO, Adversus Haereses III, 38,2.
28
Ibid., 33,8. In: PG VII, 1077-1078.
29
Cf. MONDIN, op. cit., p. 72-77.
30
Contra Celsum 6,48. In: PG 11,1373.
27

c) Tertuliano

Tertuliano, nascido em Cartago, por volta de 155, e morto após 220, deixa o estoi-
cismo e o integrismo dominarem seu pensamento teológico e eclesiológico, o que o leva a um
rigorismo ético e a aceitar somente o que vem diretamente de Cristo e da sua Igreja. Usa a
imagem do corpo para falar da Igreja. Dá importância, como consequência, aos sacramentos
do Batismo e da Eucaristia. Para distinguir a verdadeira Igreja das seitas, propõe o critério,
assim como Ireneu, da apostolicidade. Considera que a sucessão ininterrupta dos Bispos, des-
de a época apostólica, é sinal da Tradição autêntica.31

d) Cipriano

Cipriano, que nasceu entre 200 e 210 e morreu em 258, foi Bispo de Cartago. Marti-
rizado durante a perseguição de Valeriano, no ano 258, ocupa um lugar de capital importância
na Eclesiologia, sobretudo devido à doutrina da validade dos sacramentos e da unidade da
Igreja. A sua obra principal intitula-se De catholicae ecclesiae unitate. Sua Eclesiologia adqui-
re uma perspectiva notadamente pneumática e hierárquica, ao entender que a Igreja é constitu-
ída por dois grupos, o dos pastores, formado pelos Bispos, que são os chefes, e o do povo.
Para evitar a tendência de fragmentar a Igreja em pequenas seitas, identifica-a com a hierar-
quia. Diante do sectarismo nascente, ele se torna o defensor de sua unidade, entendendo-a
realizada na Eucaristia e no Bispo. Segundo P. Faynel, pode-se dizer que Cipriano fala de uma
espécie de encarnação da Igreja no Bispo.32 Mas a unidade é o fermento, o sinal e o vínculo da
verdadeira Igreja. Também combate qualquer tentativa de mundanização da Igreja.33 Nesse
sentido, ele escreve: “Esta unidade devemos guardar e exigir com firmeza, especialmente nós,
Bispos, que na Igreja presidimos, para dar prova de que o episcopado também é um e indiviso.
Ninguém engane os irmãos com mentiras, ninguém corrompa a pureza da fé com pérfidos
desvios”.34

31
De praescriptione 32,3.
32
FAYNEL, P. La Iglesia (tomo I). Barcelona: Herder, 1982, p. 159.
33
Ibid., p. 83-85.
28

e) Santo Agostinho

Santo Agostinho (354-430) exerce uma influência decisiva em toda a tradição latina.
Elabora a sua Eclesiologia com a finalidade de explicá-la aos fiéis e para responder aos donati-
stas35, assumindo na Eclesiologia as exigências de sua posição sobre a graça.36 Ele delineia um
modelo eclesiológico nessa mesma compreensão, isto é, na figura da civitas, mesmo a vendo
ainda mais rica, como corpo místico, esposa de Cristo, casa de Deus, por exemplo. Natural-
mente, o modelo da civitas se aplica à Igreja de modo análogo: exprime a Igreja enquanto re-
ferida a uma comunidade humana, que recebe a denominação de civitas, ou seja, Estado, na-
ção ou povo.

1.3 A Eclesiologia da reforma gregoriana

Esse período abrange os meados do século XI, que se caracteriza por uma situação
de degradação eclesial. Os historiadores consideram que, nesse lapso de tempo, a Igreja estava
nas mãos dos leigos.37 O poder civil nomeava padres, Bispos e o próprio Papa. O papado foi
objeto de disputas políticas e familiares. Ainda mais, é um período em que acontecem a simo-
nia38 e o nicolaísmo.39 A decadência da Igreja era tal que o pensamento dominante então é
“reforma”, com o intuito de mudar sua vida interior, através da busca da coerência entre a vida
religiosa e o Evangelho, da afirmação de seu direito e do término da dominação dos príncipes

34
Cf. CIPRIANO. A unidade da Igreja Católica (Introdução, tradução e notas por C. BERALDO). Petrópolis:
Vozes, 1973, n. 5, p. 34.
35
Donatismo é um cisma nascido em 311, após a ordenação episcopal de Ceciliano de Cartago, ordenado
pelas mãos de um Bispo acusado de traição durante a perseguição de Diocleciano. Os Bispos dissidentes
escolheram Magiorino, que foi sucedido por Donato, do qual derivou o nome de tal cisma. Parece que os
donatistas negaram a validade dos sacramentos administrados por ministros indignos e ensinavam a necessi-
dade de um novo Batismo para os cristãos que caíam em pecado (cf. DS 123, 705 e 913). Santo Agostinho
batalhou fortemente contra eles.
36
CONGAR, Y. L’Église de Saint Augustin à l’époque moderne. Paris: Du Cerf, 1970, p. 11.
37
Sobre este período, ver FLICHE, A. Reforma gregoriana y reconquista. In: FLICHE, A.; MARTIN, V.
Historia de la Iglesia. v. VIII. Valencia: EDICEP, 1976, p. 94-112.
38
A simonia consiste em tratar os bens espirituais como se fossem objeto de compra e venda. O nome vem do
mago Simão, que intentava comprar de Pedro e de João o poder de dar o Espírito Santo (cf. At 8,9-25). Ocor-
reu, algumas vezes, ao longo da vida da Igreja e, por isso, foi condenada (DS 304, 473, 586, 691-694, 707,
751 e 820; CIC 149, 188 e 1380).
39
O nicolaísmo é proveniente de Nicolau, fundador de uma seita do século II com tendências gnósticas e
libertinas. Ele tolerava a participação nos banquetes sagrados, próprios dos cultos pagãos (cf. Ap 2,6.15).
29

leigos. Assim, a reforma da Igreja se constituía em uma tarefa espiritual, moral, canônica e, de
certo modo, também política. Segundo J. Rigal, essa imensa empreitada significará, tanto na
doutrina quanto na vida do povo cristão, uma verdadeira mudança eclesiológica.40

Os Papas Gregório VI, Leão IX, Vítor II, Estêvão IX, Nicolau II e Alexandre II fo-
ram os protagonistas da reforma gregoriana. A virada decisiva aconteceu com Nicolau II,
quando, em 1059, apoiado por Hildebrando, reforma os estatutos da eleição do Papa, confian-
do-a estritamente aos cardeais.

Cluny teve uma influência considerável. O nome principal é Pedro Damião (1007-
1072), que repousa seu pensamento eclesiológico em fundamento tradicional: a Igreja é o
Corpo de Cristo e a comunhão acontece no Espírito. Todos os batizados são a Igreja (nos uti-
que sumus ecclesia41) e todos os membros da Igreja são consagrados e possuem a dignidade
sacerdotal. Os sacerdotes atualizam a ação de Cristo para a humanidade. Ele considera válidas
as ordenações simoníacas, desde que feitas de acordo com a fé da Igreja. A Igreja de Roma
deve ser venerada por todos, pois ela é o “fundamento e a base” de toda a Igreja, além de ter
autoridade divina, enquanto o Papa é o Bispo universal de todas as Igrejas. Para ele, os dois
poderes, o político e o religioso, procedem de Deus e devem ser exercidos conjuntamente, pois
compreendem uma mesma missão.

O Papa Gregório VII (1073-1085) estava profundamente penetrado do espírito de


Cluny, visto ter sido monge antes de sua eleição. Ele estava convicto de que a santidade da
Igreja dependia do sacerdócio e de que a renovação da instituição eclesial deveria apoiar-se no
papado. As resistências o incitam a continuar no caminho traçado pelos seus predecessores.

No Sínodo de 1074, ele combate a simonia e depõe os sacerdotes que denigrem sua
dignidade. Seguem decretos, mantendo a mesma posição. No Sínodo de Roma, de fevereiro de
1075, ele condena as investiduras leigas. Entre os meios eficazes que ele se utiliza para estabe-
lecer a reforma da Igreja, está o Dictatus Papae, o qual estabelece a origem divina do poder da

40
RIGAL, J. Le mystère de l’Église. Fondements théologiques et perspectives pastorales. Paris: Du Cerf,
1996, p. 18.
41
Sermo 72: PL 144, 909 C.
30

Igreja de Roma, que tem, como consequência, a autoridade suprema do Papa sobre toda a
Igreja e sobre todos os cristãos leigos. Com isso, o Papa pode depor e transferir os Bispos,
ordenar a quem ele quiser, comandar, por meio de seu legado, os Bispos de um Concílio, além
de, com o seu poder universal, poder depor os imperadores.

O Dictatus contribuiu para que o episcopado reconquistasse a sua independência e


dignidade, libertando-o da tutela imperial. Contudo, aconteceu uma certa simbiose entre a
Igreja e a sociedade temporal. A Eclesiologia passou a ter uma conotação monárquica, a partir
de uma visão teocêntrica e das prescrições jurídicas trazidas pela reforma gregoriana, que in-
troduziram uma visão jurídico-monárquica da Igreja.42

1.4 A Eclesiologia no período escolástico

O contexto sociopolítico do período escolástico é a civitas christiana, entendida co-


mo a sociedade que profundamente assimilou os valores, os costumes, as leis e a linguagem do
Evangelho. Tem unidade porque seus cidadãos têm a mesma fé, os mesmos costumes e leis
iguais. Dois são os governadores: o imperador, que cuida do bem-estar e da paz, e o Papa,
responsável pela salvação eterna.
Os teólogos da Idade Média continuam fiéis à visão patrística e por isso veem a Igre-
ja como uma sociedade espiritual de comunhão com Deus em Cristo, fecundada pelo Espírito
Santo. É uma congregatio fidelium43, isto é, a comunidade de fiéis, a reunião dos irmãos da
mesma fé, ou o sujeito coletivo de fé, ou, segundo K. Rahner, a comunidade legitimamente
estabelecida em sua constituição social, na qual a revelação de Deus, escatologicamente dada
em Cristo, permanece presente para o mundo como realidade e verdade pela fé, esperança e

42
RIGAL, op. cit., p. 23-27.
43
Sobre o conceito de congregatio fidelium, ver ANTÓN, A. El misterio de la Iglesia. Evolución histórica de
las ideas eclesiológicas. I – En busca de una eclesiología y de la reforma de la Iglesia. Madrid: BAC, 1976, p.
11-14; 196-199. O autor entende a expressão a partir de três características que designam, em sua totalidade,
a Igreja enquanto comunidade de fé: a Igreja é uma realidade de cima; uma comunidade de fiéis, chamados a
realizar radical e irrevogavelmente a fé em sua dimensão sacramental, que é a índole comunitária da fé;
enquanto sujeito da fé, a Igreja deve buscar o fundamento último da igualdade de todos os fiéis, que os une
na comunidade eclesial.
31

caridade.44 Dessarte, a Igreja é uma sociedade espiritual, mas com uma existência também
visível e institucional. Eis aí a sua dimensão sacramental, que é inerente à sua missão no mun-
do.
Todavia, é interessante observar a ausência da Eclesiologia nas sumas desse período,
seja na Escola franciscana, seja na dominicana. A razão provável desse fato é a presença mar-
cante que a Igreja tinha na vida e na mensagem cristã, de tal forma que parecia desnecessária
uma reflexão específica sobre ela, dada a sua penetração em toda a Teologia. A título de
exemplo, vêm citados apenas dois autores significativos dessa época:

a) Bernardo de Claraval

Viveu de 1090 a 1153. Foi um dos grandes autores desse período. Com ele, inicia-se
a idade de ouro da Escolástica. Ele entende a Igreja a partir de três modelos: o somático, com a
imagem do Corpo de Cristo; o político (civitas Dei ou a Jerusalém celeste); e o das núpcias,
entendendo-a como esposa de Cristo. Recorre mais a este último, porque ilustra as relações da
Igreja e dos cristãos com o esposo, Jesus Cristo. A Igreja é a “Igreja militante”, pois está em
luta contra os seus inimigos internos e externos. Todos os cristãos devem perseguir uma vida
ascética muito severa, apresentando a todos um ideal de santidade. O Papa possui um poder
universal sobre toda a Igreja, mas deve exercê-lo em uma atitude de serviço, conforme expres-
sa na obra De consideratione libri quinque ad Eugenium III. A característica de serviço vale
também para os bispos, os quais ele não deve substituir em suas funções, dando a entender o
que hoje se chama de princípio de subsidiariedade.45

b) Santo Tomás

Na obra de Santo Tomás (1225-1274) também não se encontra nenhum tratado de


Eclesiologia, pois ele aborda a Igreja dentro do mistério de Cristo. Y. Congar explica tal au-
sência: primeiro, porque está em toda a Summa Theologiae; depois, devido a que nenhuma
necessidade especial a exigisse, pois a Igreja penetrava totalmente a vida das pessoas. Quando

44
RAHNER, K. Handbuch der Pastoraltheologie. Praktische Theologie der Kirche in ihrer Gegenwart. vol. I.
Freiburg-Basel – Wien: Herder, 1964, p. 119.
45
Cf. MONDIN, op. cit., p. 99-104.
32

aconteceu o divórcio entre a Igreja e a sociedade, foi sentida a necessidade, ainda acrescida
pelos erros que foram surgindo nesse período. Além disso, a ciência jurídica (canônica) mo-
nopolizava o pensamento teológico de então, e, como Pedro Lombardo havia omitido o trata-
do de Eclesiologia em suas Sentenças, os teólogos de então não despertaram para um tratado
específico sobre a Igreja.
Santo Tomás entende a Igreja como congregatio (coetus, collectio, universitas, so-
cietas, collegium) fidelium, mas com uma referência teológica, e não sociopolítica. Essa en-
globa todos aqueles que creem em Cristo, conforme o tema da ecclesia ab Abbel46 ou da ec-
clesia universalis, vivificada pela graça de Deus. A ideia do Corpo místico de Cristo passa a
ser a societas sanctorum, que inclui a visibilidade e a estrutura hierárquica da Igreja. Do con-
texto do Corpo de Cristo, ele explica as notas da Igreja. O Espírito Santo é o princípio último
da unidade da Igreja. Santo Tomás dá lugar central para a Eucaristia, pois entende que ela con-
tém Cristo e todo o bem da Igreja.47

1.5 A elaboração dos primeiros tratados “De Ecclesia”

O segundo milênio48 apresenta uma nova perspectiva eclesiológica, que se distancia


da concepção patrística e medieval. Os fatores que determinaram essa mudança são os seguin-
tes:

a) a crise da fusão entre o Império e a Igreja: surge a crise irreversível das relações
entre Ecclesia e o imperium. Inicialmente, há fusão entre o império e a Igreja; depois, o impé-
rio prevalece e, finalmente, a Igreja. Mais do que oposição concreta entre duas entidades, está
em jogo uma civilização, pois surge um novo tipo de Estado, agora independente da Igreja,
deixando para trás a respublica christiana49;

46
O Vaticano II, na Lumen Gentium 2, usa essa expressão no contexto do plano salvífico de Deus Pai, o qual
convoca a Igreja, que foi prefigurada desde a origem do mundo, preparada, fundada e manifestada pelo Espí-
rito Santo e, no final dos tempos, será consumada. A expressão é patrística e usada por Gregório Magno,
Ireneu, Orígenes, Agostinho, Leão Magno e João Damasceno. Tomás de Aquino usa ecclesia ab Abbel em
Summa Theologiae III, q. 8, a. 3, ad 3 (cf. PIÉ-NINOT, op. cit., p. 47).
47
CONGAR, op. cit., p. 232-241; MONDIN, op. cit., p. 104-109.
48
Daqui em diante, sigo ANTÓN, El misterio de la Iglesia I, p. 97-118.
49
FAYNEL, op. cit., p. 203.
33

b) a luta entre o Papa e o rei: a teoria das duas espadas50 expressa pela bula Unam
sanctam (18 de novembro de 1302 - DS 870-875) e o confronto entre Bonifácio VIII e Filipe,
o Belo;
c) o laicato defende seus direitos: acontece uma crise da ordem eclesiástica nesse
período. O monopólio crescente do clero foi sacudido por uma série de movimentos antiecle-
siásticos de base espiritualista, integrados, na sua maioria, por leigos, entre os quais, legistas,
humanistas, poetas, médicos e filósofos, que são os responsáveis pelas novas ideias;
d) o individualismo e o subjetivismo contra a autoridade no conhecimento: assim, os
primeiros tratados defendem a autoridade papal. Situam-se entre o pontificado de Bonifácio
VIII e o desterro dos papas em Avinhão. Esse período é sacudido pelo conflito entre o Papa e
o Império, particularmente nos reinos nacionais. Bonifácio VIII entra em conflito com Filipe,
o Belo. Surgida nas universidades e entre alguns teólogos isolados, passa a vigorar uma via
conciliadora entre a autoridade papal e o Império, defendendo os direitos do laicato e demais
pessoas da congregatio fidelium.
A Unam sanctam reivindica um poder ilimitado e direto sobre os reis por parte do
Papa e a subordinação do poder temporal ao espiritual, recorrendo ao símbolo das duas espa-
das. A última frase da bula – “Porro subesse Romano Pontifici omni humanae creaturae de-
claramus, dicimus, diffinimus (sic) omnino esse de necessitate salutis” –, de difícil interpreta-
ção, por parecer, à primeira vista, uma afirmação dogmática, deve ser entendida no sentido de
restringi-la ao âmbito espiritual, por dois motivos: a) a bula situa-se no campo espiritual ao
abordar o tema da necessidade da Igreja para a salvação; b) o mesmo sentido espiritual encon-
tra-se na obra Contra errores Graecorum, de Santo Tomás, fonte da citada bula papal.51
Nesse contexto histórico e eclesiológico, aparecem as duas primeiras obras de Ecle-
siologia propriamente dita, defendendo o poder pleno e universal do Papa, que são as seguin-
tes:

a) De ecclesiastica sive Summi Pontificis potestate, escrita por Egídio Romano


(1243-1316).52 Baseado na bula papal, com a qual apresenta uma convergência doutrinal per-

50
Sobre a origem da expressão duas espadas, ver ANTÓN, El misterio de la Iglesia I, p. 121-123.
51
Ibid., p. 109.
52
A biografia encontra-se em LANG, F. Aegidius von Rom. In: Lexikon für Theologie und Kirche. Freiburg:
Herder, 1986, 1:193.
34

feita, ele, de formação tomista, é o primeiro a traçar, formular e defender uma teoria completa
sobre o absolutismo papal. A Igreja é santa, católica, universal e mãe de todos. O poder e a
autoridade temporais têm sua origem unicamente nessa Igreja. O Papa tem a plenitudo potes-
tatis, concebida como poder diretamente derivado de Deus e reflexo de sua própria onipotên-
cia. Como consequência, surge a mais radical secularização da Igreja por atribuir ao Papa um
poder ilimitado, tanto no temporal quanto no espiritual.
b) De regimine christiano (1301-1302), escrita por Jacó de Viterbo († 1307/1308)53,
é a primeira obra sistemática de Eclesiologia. Precisamente, por isso, ele é chamado de pai da
Eclesiologia, pois com ela se dá o nascimento do tratado De Ecclesia, cuja espinha dorsal é o
Reino de Cristo, realizado em sua obra mais perfeita, no terceiro tempo, o da graça, na Igreja,
dotada das quatro propriedades do Symbolum fidei. O reino (regnum) da Igreja representa a
forma mais perfeita do Estado ou da res publica, cujo monarca supremo é o Papa. Com isso, o
conceito teológico-ético de Igreja é absorvido por um conceito de reino deste mundo, com
supervalorização de seu poder, no qual a convocatio multorum fidelium se transforma na co-
munidade secularizada, constituída por uma realidade temporal e com índole terrena. Na terra,
a Igreja é a Ecclesia militans; no céu, é a Ecclesia triumphans.
Essas duas obras estão marcadas pela ciência canônica, que aparece como disciplina
própria no século XII, com Graciano. Esse fator, acrescido dos anteriormente citados, propicia
a elaboração, no dizer de S. Pié-Ninot, de “uma eclesiologia dos poderes, das prerrogativas e
dos direitos da Igreja”, resultando uma Eclesiologia jurídica – cuja fonte foram as Decretais de
Graciano –, na qual os teólogos buscavam se documentar. Com isso, separou-se o poder de
ordem do de jurisdição, que trouxe certa autonomia do jurisdicional sobre o sacramental e ao
pastoral e uma visão da Igreja como corporação, compreendendo-a como cabeça e membros,
no sentido corporativo-sociológico.54

Mais tarde, essa característica jurídico-institucional recebe maior acento no decorrer


da época moderna, também por problemas enfrentados pela Igreja naquele momento histórico,
quando esta arrostará a problemática trazida pela Reforma e seus seguidores. Para contrapô-la,
os teólogos da época enfatizarão os aspectos visíveis, hierárquicos e institucionais. É como

53
A biografia encontra-se em TRAPP, D. Jakob v. Viterbo. In: Lexikon für Theologie und Kirche, 5:849.
54
Cf. PIÉ-NINOT, op. cit., p. 15.
35

procede, por exemplo, Belarmino, que entende a Igreja como uma sociedade com finalidade
sobrenatural, mas que tem uma estrutura marcadamente visível, sobre a qual insistem os ecle-
siólogos da época moderna.
A. Acerbi assim escreve:
A tendência jurídica apresentava fundamentalmente a Igreja como uma pessoa moral
corporativa, um sujeito de direitos e de privilégios representados pela hierarquia, e
como uma instituição mediadora da verdade e da graça, contraposta aos homens, be-
neficiários de tais mediações. A atenção era, por isso, quase voltada exclusivamente
às estruturas objetivas da Igreja e aos seus puros elementos constitucionais. Como
consequência, ela era levada a desenvolver a abordagem da autoridade de tal modo
que, da constituição social, aparecia como o elemento de base.55

Nesse contexto, se movem outros tratados de Eclesiologia que seguiram a mesma


linha desses dois anteriores. No entanto, surgiram alguns que buscaram um caminho interme-
diário na solução dos conflitos entre os soberanos e o Papa, seja impondo certos limites à ple-
nitudo potestatis do sucessor de Pedro em relação ao poder temporal dos reis, seja também
revalorizando aquele significado eclesiológico que a congregatio fidelium teve na Alta Idade
Média em relação às últimas manifestações da hierarquia, que absorvia cada vez mais toda a
iniciativa na Igreja.56

Uma série de fatores históricos novos está na origem desses escritos, dando-lhes uma
tendência característica:

a) a consolidação dos Estados nacionais, que provocou uma crescente consciência da


autonomia do poder temporal. Mesmo os bons imperadores conquistaram a simpatia de seto-
res da cristandade pela probidade moral. Como exemplo, vale recordar Frederico II e Filipe
IX, o Santo (1170-1214), como os mais significativos;
b) vozes, dentro da própria Igreja (da congregatio fidelium), que exigem o reconhe-
cimento teórico e prático de seus direitos como batizados frente ao clero, que desde a reforma
gregoriana reivindicou para si, cada vez mais exclusivamente, a iniciativa nos mais diversos
setores da vida eclesial, mesmo no temporal. A Igreja é entendida como congregatio fidelium,
expressão de origem aristotélica, que a compreende, agora, não mais teologicamente, mas do

55
ACERBI, A. Due ecclesiologie. Bologna: Dehoniane, 1975, p. 71.
56
ANTÓN, op. cit., p. 112.
36

ponto de vista sociológico, isto é, passa de uma Igreja exclusivamente clerical para uma visão
corporativa de todos os seus membros;
c) uma nova situação histórica marcada pela secularização influencia os novos escri-
tos De Ecclesia, acabando por invadir o ambiente cristão e teológico. Trata-se de uma reação
provocada pelo exagero do absolutismo eclesiástico, mas coadjuvada por uma onda de laicis-
mo, que vai penetrando gradualmente a cristandade do século XIV e acaba dominando a soci-
edade no tempo do humanismo.57
Congar afirma que as consequências para a Eclesiologia são uma epistemologia de
tipo empírico-científico e crítica a uma de tipo sacral e simbólica; o conhecimento real, que
toma o lugar da argumentação dedutiva e parte dos paradigmas celestes; e a substituição da
interpretação simbólica e alegórica pelo sentido literal e histórico. Não pode ser esquecido que
a autonomia do poder temporal e o caráter humano e ético do poder de alguns reis trouxeram
um conceito não clerical para a Igreja.58

Os representantes significativos são:

a) João de Paris O.P. († 22.09.1306)59, preocupado mais em garantir a unidade da


Igreja, cujo fundamento último é Cristo, escreve a obra De potestate regia et papali, na qual
defende um conceito espiritual de Igreja, expresso pelo conceito de communio fidelium, para
opô-lo, claramente, ao de congregatio clericorum. A communio fidelium é, para ele, o Corpo
místico de Cristo, ou seja, um organismo do qual Cristo é o princípio de unidade e de distin-
ção. Com isso, não consegue chegar à desejada síntese entre poder espiritual e temporal e es-
truturas comunitárias e hierárquicas. Os pontos-chaves de sua Eclesiologia são uma clara sepa-
ração entre ordem natural e sobrenatural como fundamento para uma distinção no exercício do
poder com duas ordens: o regnum, com o direito natural, e a Ecclesia, fundada no sobrenatural
e na encarnação com sua estrutura teândrica; o esforço por mitigar a hegemonia papal e outros
ministérios hierárquicos, procurando passar a congregatio fidelium para o primeiro plano,
mostrando que o Papa, os bispos e os outros ministros sagrados exercem uma função de servi-
ço, formulando o princípio da representação em sua doutrina conciliarista; insistência em situ-

57
Cf. ANTÓN, op. cit., p. 112-114.
58
Cf. CONGAR, op. cit., p. 281s.
59
MÜLLER, J. P. Joahnnes v. Paris. In: Lexikon für Theologie und Kirche, 5:1068.
37

ar a Igreja na categoria de fim, a qual serve o Papa, não dominando, mas como o membro mais
privilegiado e quasi caput Ecclesiae propter unitatem Ecclesiae conservandam.
Aqui surge uma ideia corporativa de Igreja, que tem como consequência a negação
de toda a autoridade de fato e de direito do Papa nos assuntos temporais dos soberanos e de
seus súditos.
b) Pedro de Palude O.P. (1280 - 31.01.1342)60, com a obra intitulada De potestate
Papae, que representa um caminho intermediário. Caracterizam seu pensamento os seguintes
aspectos: a) não aceita que a autoridade dos apóstolos derive de Pedro e a origem do poder
episcopal esteja no Papa, pois quer que Roma se restrinja a sua competência; b) distingue o
poder papal do temporal, por considerar a realidade interna e meta-histórica da Igreja de seus
outros aspectos sociais. Vê o âmbito da competência da jurisdição do Papa no espiritual da
Ecclesia e no temporal enquanto quantum ad terras Ecclesiae subiectas; c) nega que o poder
de jurisdição do Papa, recebido de Cristo, possa ser exercido sobre os soberanos temporais de
Cristo e que estes possuam uma jurisdição temporal recebida do Papa, mas estão indiretamen-
te sujeitos a ele quando as questões se dão no campo espiritual. Com essas ideias, ele traçou
novos rumos para o pensamento eclesiológico de então.
c) Marsílio de Pádua (1275/80-1342/43)61, com a obra Defensor pacis. Ele exagerou
a tendência democratizadora da Igreja e de suas estruturas. Procura aplicar o modelo democrá-
tico (de Aristóteles) à Igreja. Aproxima-se dos valdenses62, dando um conceito naturalista para
a Igreja. O modelo ideal para a Igreja é a pólis grega, entendendo-a como soma dos fiéis, e não
como uma comunidade sobrenatural com estrutura jurídica própria. Sua crítica atinge a hierar-
quia, que colocou no esquecimento o povo, ou seja, a congregatio fidelium. A fé tem priorida-
de, que é o critério de verdade (mais no sentido epistemológico). O Concílio representa a Igre-
ja e é o único organismo competente e apto para dirimir as questões de fé. O primado papal é
criação da história e não possui fundamento bíblico. Opõe-se à doutrina da plenitudo potestatis
papae, assim como está exposta na Unam sanctam. A unidade da Igreja é garantida pelo Con-
cílio geral e por Cristo, caput da Igreja, seu corpo.

60
ECKERT, W. Petrus de Palude. In: Lexikon für Theologie und Kirche, 8:374.
61
MIKAT, P. Marsilius v. Padua. In: Lexikon für Theologie und Kirche, 7:108-110.
62
Os valdenses também são conhecidos como “pobres de Lião”, grupo fundado pelo mercador Pedro Valdo por
volta de 1170. Insistiam na pobreza evangélica radical e repudiavam a riqueza da Igreja católica.
38

1.6 A Eclesiologia de Trento

Inicialmente, convém fazer algumas observações preliminares sobre a Eclesiologia


de Trento, estabelecendo umas poucas premissas, com a finalidade de bem a compreender:

a) a doutrina eclesiológica de Trento é pouco estudada, apesar de ter influenciado


quase quatro séculos de Eclesiologia;
b) condicionada por querer dar uma resposta à Teologia dos reformadores e querer
estancar a influência da Reforma, esclarece os pontos doutrinais mais atacados, sem, contudo,
pretender apresentar uma proposta doutrinal sistemática e ampla;
c) não havia um plano sistemático de doutrina eclesiológica. Prova disso é que o ca-
tecismo tridentino possui uma Eclesiologia implícita. Os temas eclesiológicos mais tratados
são Escritura e Tradição, loci theologici, estruturas hierárquicas da Igreja, sacramentos e Igre-
ja, que se tornaram temas clássicos no pós-Tridentino.
Diante disso, o ponto seguinte traça breves coordenadas sobre o movimento da Re-
forma, com a finalidade de destacar alguns aspectos, para ajudar a compreender a Eclesiologia
de Trento.
A Reforma colocou em juízo tudo o que a Igreja medieval construiu e intentou voltar
à Igreja antiga, no que tange à doutrina e à disciplina.63 Entre os fatores históricos que concor-
reram para o conceito de Igreja reformada, encontram-se, no plano religioso e eclesiástico, o
individualismo e o subjetivismo, a crítica e oposição à Igreja por causa da sua vida interna
(elementos sacramentais, cultuais e institucionais) e a decadência do papado, o conciliarismo e
o antirromanismo germânico, o misticismo e o evangelismo e paulinismo. Entre os fatores de
ordem teológica e eclesiológica, podem-se citar a decadência da Teologia escolástica e de ou-
tras tendências intelectuais dos séculos XIV e XV após os grandes gênios do cristianismo,
como Tomás e Boaventura, o que acarreta a desintegração; o agostinismo teológico, opção de
Lutero que ressalta a graça; e o biblicismo absoluto.
As consequências foram o rompimento da unidade monolítica da Idade Média no
campo religioso, cultural e do conhecimento, diminuição do prestígio religioso do Papa no fim

63
Daqui em diante, sigo ANTÓN, El misterio de la Iglesia I, p. 437-462.
39

da Idade Média e consequente debilitação real de sua autoridade, desejo de reforma da Igreja
de acordo com ideais de pureza evangélica, já vivo mesmo antes da Reforma, a partir de mo-
vimentos do final do século XII (reformatio in capite et in membris) e o retorno às fontes do
cristianismo contra o formalismo e legalismo.
Lutero tem um conceito eclesiológico característico. Do ponto de vista hermenêuti-
co-bíblico, opõe letra e espírito, ao dar importância ao sentido interno do texto na exegese das
cartas de Paulo, e aplica a alegoria do corpo à Igreja, resultando na oposição entre visível-
invisível, social-espiritual, graça-sinagoga, céu-Igreja da terra. Os elementos fundamentais de
sua Eclesiologia são a autossuficiência da Escritura (sola scriptura) no conhecimento teológi-
co, de tal forma que a origem e a natureza da Igreja são atribuídas à palavra; a consideração de
que a Igreja Católica é apostasia da Igreja primeva e a Igreja Reformada é sua continuidade; a
defesa de que a Igreja é a communio sanctorum, ressaltando a incorporação pela fé (sola fi-
des); a existência de dois reinos, a Igreja e o mundo; a valorização do sacerdócio dos fiéis em
detrimento da hierarquia eclesiástica, que é negada. Ele ainda é contra o primado, visto que o
Concílio é superior ao Papa.64
O Concílio de Trento (1545-1564) é a resposta da Igreja Católica ao movimento ini-
ciado com Lutero.65 Entretanto, o Tridentino teve dificuldade em dar uma resposta a Lutero.
Entre alguns fatores que dificultaram essa resposta, pode-se citar:

a) a nova teologia, sobretudo em Lutero, não partia de princípios eclesiológicos, mas


de uma problemática religioso-existencial para a qual, a juízo dos reformadores, a Teologia
tradicional não oferecia resposta válida;
b) faltou uma noção de Igreja à assembleia, diante da diversidade da Eclesiologia, no
ocaso da Idade Média: conciliarista, papalista e espiritualista, apesar de a Eclesiologia pós-
tridentina ter condições de responder aos principais pontos da Eclesiologia da Reforma;
c) foi um Concílio puramente episcopal, isto é, dominado pelo grupo de bispos preo-
cupados em reforçar sua posição contra a negação da hierarquia da Igreja Católica por Lutero;
d) alguns afirmaram não se poder esperar da assembleia de Trento uma Eclesiologia
orgânica e completa.

64
Ibid., p. 521-583.
65
Cf. CONGAR, op. cit., p. 226-229; ANTÓN, op. cit., p. 709-754.
40

A Eclesiologia de Trento se caracteriza pelos seguintes aspectos:

a) Escritura e Tradição como princípios e critérios do conhecimento teológico na


Igreja. Trento afirma como conceito-chave a puritas ipsa evangelii in Ecclesia, por meio da
qual assevera o entrelaçamento entre Evangelho e Igreja e o papel desta como garantia da con-
servação daquele;
b) existência da hierarquia na Igreja (sessão XXIII, de 15 de julho de 1563) e afirma-
ção de que nem todos os fiéis são sacerdotes ex aequo, por causa do sacramento da Ordem,
negado por Lutero. A opção do Tridentino de só expor os pontos da doutrina católica negados
pelos reformadores explica por que a assembleia conciliar não formulou expressamente as
teses católicas do sacerdócio comum dos fiéis;
c) esclarecimento da origem e do poder dos bispos diante da diversidade de posições
que chegaram a Trento;
d) primado do Papa jurídico, e não de honra.

O autor mais representativo do pós-Tridentino é o jesuíta Roberto Belarmino (1542-


1621).66 Sua obra teológica, com acento marcadamente apologético e polêmico, é a mais
completa e vigorosa defesa da doutrina católica, por isso é considerado o máximo expoente da
Teologia católica desse período. Para discorrer sobre a Igreja, usa os modelos político, que
indica a Igreja visível, e somático, que determina os elementos interiores e espirituais da Igreja
a partir da imagem do Corpo de Cristo. Define a Igreja da seguinte maneira: “A Igreja é uma
sociedade composta de pessoas unidas entre si pela profissão de uma única e idêntica fé cristã
e pela comunhão nos mesmos sacramentos sob a jurisdição dos pastores legítimos, sobretudo
do pontífice romano”. Para participar dessa Igreja, basta a fé: “Com efeito, a Igreja é um grupo
de pessoas tão visível e palpável quanto o grupo de pessoas que formam o povo romano, o
reino da França ou a república de Veneza”.

1.7 A renovação da Eclesiologia

66
CONGAR, op. cit., p. 230-233; MONDIN, op. cit., p. 117-119.
41

Após Trento, devido às sucessivas polêmicas antiprotestantes e aos desvios eclesio-


lógicos de tendência galicana, os tratados clássicos insistem quase exclusivamente nos aspec-
tos jurídicos e societários da Igreja, deixando na sombra os aspectos espirituais e carismáticos.
Da Igreja se descrevem a origem, a fundação por Cristo, a sua constituição interna hierárqui-
co-monárquica e as notas que a distinguem das outras comunidades cristãs separadas.
No início do século XIX, o continente europeu foi sacudido por um sopro renovador,
fruto do movimento romântico. No campo eclesiológico, o método apologético, com suas pro-
vas racionais e históricas, foi substituído pelo método dogmático, que deduzia suas argumen-
tações dos dados bíblicos e patrísticos. Essas ideias novas foram gestadas nas Escolas teológi-
cas de Roma e de Tubinga. Essa reação deve-se aos problemas suscitados pelo racionalismo e
pelo liberalismo no campo cultural e político. Em âmbito religioso, deve-se a uma imagem
centrada na autoridade da hierarquia, por causa de uma Eclesiologia de tipo ultramontano67, a
partir do final do século XVIII. A Escola de Tubinga manteve-se imune às influências do ro-
mantismo e do idealismo ao se dedicar ao estudo da Escritura e dos Santos Padres, fontes ge-
nuínas da fé e da Teologia. No seio da Reforma, o protagonista é D. E. Schleiermacher (1768-
1834), que não só influenciou a Teologia protestante, mas também o pensamento de J. A.
Möhler, em pontos decisivos de sua noção de Igreja. Ele considera a unidade da Igreja no bi-
polarismo indivíduo-totalidade ou também universal-indivíduo.
Os conceitos centrais nessa corrente renovadora de Eclesiologia são, por exemplo,
reino, vida, unidade orgânica e Corpo de Cristo, contrastando com os conceitos-chaves da
Eclesiologia ultramontana: sociedade, soberania, autoridade, monarquia etc. Os conceitos res-
gatados agora não são novos – apenas tinham sido esquecidos –, pois estão presentes na tradi-
ção secular da Igreja.68

67
O ultramontanismo significa “além da montanha” e é o nome depreciativo usado pelos montanistas para
indicar aqueles que acentuavam a autoridade do Papa e buscavam todas as soluções “além dos Alpes”, isto é,
em Roma. Os ultramontanos reagiram contra o febronianismo, galicanismo e jansenismo, que defendiam a
jurisdição das Igrejas Particulares contra a autoridade central de Roma. O movimento ultramontano culminou
com a definição da infalibilidade papal pelo Vaticano I, em 1870 (DS 3065-3075) (cf. Ultramontanismo. In:
O’COLLINS, G.; FARRIGIA, E. G. Dizionario Sintetico di Teologia. Roma: Libreria Editrice Vaticana,
1995, p. 404).
68
ANTÓN, A. El misterio de la Iglesia. Evolución histórica de las ideas eclesiológicas. II. De la apologética
de la Iglesia-sociedad a la teología de la Iglesia-misterio en el Vaticano II y en el posconcilio. Madrid: BAC,
1986, p. 222s.
42

Da Escola de Tubinga, o principal promotor da nova direção foi João Adão Möhler
(1796-1838).69 O douto professor, também chamado “o pai do despertar da Eclesiologia mo-
derna”, atingindo largamente as fontes reveladas e patrísticas, vê no mistério da Igreja o pro-
longamento do mistério da encarnação redentora. Em sua obra de Eclesiologia, Die Einheit
(1825), mostra o princípio divino da Igreja, onde acontece uma verdadeira relação entre o ser
humano e Deus. Ele afirma que a Igreja é a comunidade dos fiéis, realizada pelo Espírito de
amor após Pentecostes, e que a sua constituição externa é a manifestação de sua essência, ou o
“amor corporificado”. Assim, ele ressalta a unidade entre o invisível e o visível na Igreja, no
sentido de que as formas exteriores ressaltam sua dimensão espiritual interior. Outro ponto
fundamental de sua Eclesiologia, expresso na obra Symbolik (1832), é a perspectiva cristológi-
ca com a qual ele aborda a realidade eclesial. Ele vê a união do humano e do divino na Igreja
como uma continuação do mistério da encarnação, em uma clara alusão ao Verbo encarnado.
Dessarte, ele abre a Igreja a uma abordagem verdadeiramente teológica e espiritual.70

Essa intuição fundamental encontrou acolhida junto aos professores do Colégio Ro-
mano, cujos representantes mais significativos são apontados a seguir.

João Perrone (1794-1876) foi o primeiro a inserir nas Praelectiones theologicae


(1841) uma breve mas explícita abordagem do aspecto espiritual da Igreja. Ele defende tam-
bém aqueles que tinham descoberto nela uma realidade humano-divina, como continuação da
encarnação do Verbo, perspectivas estas vindas de Möhler. A Igreja, desse modo, é uma epi-
fania de Cristo, e Perrone defende, embora analogamente, a aplicação das expressões continu-
atio incarnationis e corpus Christi mysticum para a Igreja. Ele, segundo W. Kasper, é o pri-
meiro a defender a prioridade da Igreja sobre a Escritura e a Tradição, ao incorporar o seu
tratado De Ecclesia como primeira parte do de locis theologicis de sua dogmática71, apesar de
entendê-los como princípios subjetivos da fé, e não como regula fidei, conforme M. Cano. Ele
defende, por isso, a infalibilidade do Papa e seu primado, entendendo-o como mediador entre
a Igreja docente e a discente e como cabeça do Corpo de Cristo, a Igreja. Com essa visão, si-
tua-se no ponto de transição entre a Teologia pós-tridentina e a nova corrente eclesiológica de

69
Cf. MONDIN, op. cit., p. 119-123.
70
CONGAR, op. cit., p. 419-423; ANTÓN, El misterio de la Iglesia II, p. 237-257.
71
ANTÓN, El misterio de la Iglesia II, p. 290.
43

Tubinga e de seus colegas Passaglia e Schrader, e também porque a sua Eclesiologia responde
às exigências do ideal de restauração católica do século XIX, ou seja, o restabelecimento da
unidade nos níveis interno e externo, que, para ele, se constitui na lei fundamental da Igreja.72
A novidade introduzida por Perrone teve mais amplo relevo nos escritos de Carlos
Passaglia (1812-1887), o mais genial teólogo da Escola romana. Depois de ter analisado, a
exemplo de Möhler, as imagens bíblicas e patrísticas relativas à Igreja, estuda a analogia que
decorre entre a união hipostática em Cristo e a união de Cristo com a sua Igreja, harmonizando
numa feliz síntese esses componentes e concluindo que se aplica à Igreja o título de Corpo
místico de Cristo. Seu pensamento eclesiológico, apesar das três fases evolutivas, está expres-
so em sua principal obra, De Ecclesia Christi (1853 e 1856), onde estuda as imagens bíblicas
de Povo de Deus e da Antiga e Nova Alianças, destacando o aspecto da communio na Igreja.
Ela é a continuação da obra de Cristo por meio da ação do Espírito, aludindo ao princípio da
analogia entre o mysterium Christi e o mysterium Ecclesiae e fugindo de qualquer monofisis-
mo eclesiológico. A união de Cristo com a natureza humana é de ordem de reciprocidade. Em
seus últimos escritos, ele enfoca o primado e o episcopado de maneira mais teológica do que
jurídica, sem, contudo, desvalorizá-los, apesar de não interpretar o primado petrino de forma
maximalista.73
Clemente Schrader (1820-1875), aluno de Passaglia, teve sua vida e atividade aca-
dêmica ligadas à trajetória de seu mestre. Seu pensamento eclesiológico está formulado nas
suas Theses de Ecclesia e na obra De Unitate Romana Commentarius (2 v., 1862-1866), com
a qual polemiza com as ideias do mestre, expressas em seus últimos escritos. Ele defende um
montanismo74 do Papa ao aplicá-lo ao esquema da Teologia de Christo capite, mostrando-o
como o princípio supremo da unidade dos bispos e, por meio deles, de toda a Igreja, tornando-
o garantia da estabilidade e da firmeza da Igreja. Ele ensina a infalibilidade papal, definida
pelo Vaticano I em 1870, pois o Papa, como mestre supremo da verdade e garantia da ordem
social, deve estar imune de erro e possuir uma autoridade soberana no exercício de sua missão

72
Ibid., p. 289-297.
73
Ibid., p. 297-308.
74
O montanismo é um movimento entusiasta originado com Montano, sacerdote pagão convertido ao cristia-
nismo, no século II, na Frígia. Ele anunciava o fim próximo do mundo e via na atividade das profetisas e
profetas estáticos um sinal do fim iminente. O movimento pregava uma ascese rigorosa, proibia novas núpcias
após a morte de um dos cônjuges, exigia jejum rigoroso e nutria aversão a qualquer forma de instituição,
administrando os sacramentos de forma independente. Terminou por ser condenado pela Igreja (DS 211; 478)
(cf. Montanismo. In: O’COLLINS e FARRIGIA, op. cit., p. 233).
44

na Igreja e no mundo. Suas ideias tornaram-no um dos teólogos mais influentes na preparação
e nas discussões do Vaticano I, além de contribuir para o dogma da Imaculada Conceição
(1854) e da promulgação do Syllabus.75
Essas ideias foram retomadas e sistematizadas numa construção ponderada e livre de
qualquer exagero por João Batista Franzelin (1816-1886) nas suas Theses de Ecclesia Christi,
publicação póstuma de 1887. Com maior precisão e lógica, ele avançou muito mais do que
seus mestres, através de uma análise mais crítica dos textos. Descreve a Igreja como uma en-
carnação continuada, qual esposa de Cristo e seu Corpo místico, guiada por uma hierarquia de
instituição divina. Isso não significa que exista uma Igreja visível sobreposta a uma Igreja in-
visível, pois única é a Igreja que, analogamente ao Verbo encarnado, apresenta dois aspectos:
o humano e o divino, intimamente coligados. Ele dá um enfoque histórico-salvífico à Igreja.
Considera sua fundação pelo Jesus histórico e explica sua relação com Cristo por meio das
imagens bíblicas de Esposa e Corpo de Cristo. Defende o princípio de que as decisões da auto-
ridade docente da Igreja são um verdadeiro ato de jurisdição, vinculando a fé de todos os bati-
zados. O poder de ensinar é uma forma derivada da jurisdição eclesiástica em geral, mas dis-
tinta da jurisdição exercida pela hierarquia em ordem disciplinar. Mantém, portanto, a divisão
entre potestas docendi e potestas iurisdictionis, mas insiste no elemento específico da função
do Magistério eclesiástico. A doutrina sobre a Tradição e sua relação com a Escritura e a Igre-
ja parte da Revelação como a palavra formal e dos acontecimentos da história da salvação
como comunicação de Deus aos homens.76
Mathias José Scheeben (1835-1888) é considerado o maior teólogo do século XIX,
devido ao seu genial talento especulativo, ao investigar os Santos Padres e os teólogos medie-
vais, especialmente Santo Tomás e São Boaventura. Seu pensamento eclesiológico está espa-
lhado em toda a sua obra teológica. Ele situa a Igreja no conjunto dos mistérios cristãos (Trin-
dade e Encarnação), entendendo-a como mistério sacramental do Corpo de Cristo, realizado
nele próprio e na Eucaristia. Considera a Igreja como o Corpo místico de Cristo, nas suas di-
mensões visível e invisível, por meio do sacramentum et res, que é o caráter, da graça santifi-
cante, que confere a adoção divina, e da Eucaristia. Entende que ordem e jurisdição se comple-
tam por meio do Espírito Santo, que vivifica o organismo da Igreja mediante seus carismas.

75
Apud ANTÓN, El misterio de la Iglesia II, p. 308-313.
76
Ibid., p. 308-317.
45

Ao fazer uma certa ontologia dos mistérios, mostra a maternidade da Igreja por intermédio do
sacerdócio e da autoridade do sucessor de Pedro. Assim, a Igreja é um organismo ao mesmo
tempo social e individual.77

1.8 O Eclesiologia do Concílio Ecumênico Vaticano I

Esse surto renovador chegou ao Vaticano I, convocado pelo Papa Pio IX, no dia 29
de junho de 1869, iniciando a 08 de dezembro e terminando no ano de 1870. No entanto, não
conseguiu trazer os frutos esperados, porque foi um Concílio inacabado, devido à guerra fran-
co-prussiana, que culminou com a invasão dos Estados pontifícios em Roma, o que exigiu a
retirada imediata dos bispos. Por esse motivo, seu objetivo foi unificar o mundo católico, de-
monstrar a verdade, combater os erros do tempo e adaptar a disciplina da Igreja à época. Dois
foram os documentos do Concílio: a Dei Filius (DS 3000-3045), contra os múltiplos erros
derivados do racionalismo, e a Pastor Aeternus (DS 3050-3075), sobre a instituição do prima-
do de verdadeira e própria jurisdição em Pedro, da parte de Cristo, a perpetuação do mesmo
nos Pontífices Romanos, a natureza e o valor do primado do Romano Pontífice e a sua infali-
bilidade pessoal em matéria de fé e de moral.
O esquema do Concílio era bem amplo, no qual estavam presentes as novas perspec-
tivas eclesiológicas, amadurecidas no Colégio Romano. O esquema De Ecclesia Christi teve
como redator principal Clemente Schrader, além de Franzelin e Perrone, e foi examinado pe-
los Padres conciliares no dia 21 de janeiro de 1870. Compreendia quinze capítulos e vinte câ-
nones, acompanhados de abundantes notas explicativas. A ordem dos capítulos era a seguinte:
1- a Igreja é o Corpo místico de Cristo; 2- a verdadeira religião pode ser praticada só e pela
Igreja fundada por Cristo; 3- a Igreja é uma sociedade verdadeira, perfeita, espiritual e sobre-
natural; 4- a Igreja é uma sociedade visível; 5- unicidade da Igreja visível; 6- necessidade da
Igreja para a salvação; 7- impossibilidade da salvação fora da Igreja; 8- indefectibilidade da
Igreja; 9- infalibilidade da Igreja; 10- poder da Igreja; 11- primado do Romano Pontífice; 12-
domínio temporal da Santa Sé; 13- concórdia entre a Igreja e a sociedade civil; 14- direito e
uso do poder segundo a doutrina católica da Igreja; 15- especiais direitos da Igreja em ordem à

77
CONGAR, op. cit., p. 433-435. Maiores detalhes sobre este autor em ANTÓN, El misterio de la Iglesia II,
p. 428-447.
46

sociedade civil. Com aprovação de Pio IX, no dia 27 de abril de 1870, foi separado o capítulo
11 para a discussão.
A Eclesiologia do Vaticano I está na Pastor Aeternus, mas já antecipada na Dei Fi-
lius, ao apresentar a Igreja como sinal entre as nações e mestra da palavra revelada. Ela é o
Corpo místico de Cristo e a sociedade perfeita, mas destacando sua comunhão, com uma ori-
gem trinitária, que também é visível. Nesse contexto está situada a doutrina do episcopado, do
primado do Papa e de sua infalibilidade em questões de fé e moral.78

A contribuição mais significativa para a Eclesiologia encontra-se, portanto, nos dois


documentos citados. A Constituição dogmática Pastor Aeternus define a infalibilidade papal,
vinculando-a à Igreja e pretendendo salvaguardar a unidade da Igreja mediante a unidade do
episcopado. Na Dei Filius, também uma Constituição Dogmática, que versa sobre a fé e a
razão, a Igreja é apresentada como uma ajuda de Deus para que o ser humano possa cumprir a
sua obrigação de receber a fé e nela perseverar, sem desprezá-la como dom interior de Deus,
visto que ela deve apresentar as verdades reveladas. A Igreja se torna, assim, “um grande e
perpétuo motivo de credibilidade, de tal forma que ela é como ‘um sinal erguido entre as na-
ções’ (cf. Is 11,12)”.79
Y. Congar observa que a definição da infalibilidade papal teve um lugar preponde-
rante na época, pois a mentalidade da sociedade de então estava dominada pelo racionalismo,
o que trouxe discussão em torno da palavra magisterium, repetida frequentemente no Concí-
lio.80 As ideias eclesiológicas gestadas no século XIX chegam ao século seguinte, aflorando de
diversas maneiras. O modernismo provoca uma reação, por parte da Igreja, quando o Papa Pio
X intensifica a prática eucarística e confirma o movimento litúrgico, que redescobriu a Igreja
como mistério de Cristo, conforme a Tradição.81 Não se pode esquecer de que, desde o início
de seu pontificado, Pio X incentivou os leigos a participarem do apostolado da Igreja, o que
aconteceu especialmente com a Ação Católica, à qual dedicou uma de suas primeiras encícli-
cas, intitulada Il fermo proposito, de 04 de outubro de 1903.82

78
ANTÓN, op. cit., p. 333-400.
79
PIÉ-NINOT, Introdução à eclesiologia, p. 19s.
80
CONGAR, op. cit., p. 446.
81
Ibid., p. 461s.
82
Maiores detalhes sobre a Ação Católica no tempo de Pio X encontram-se em ANTÓN, El misterio de la
Iglesia II, p. 499s.
47

Pio XII continua a obra de Pio X e convida os leigos a tomarem a sua parte na mis-
são da Igreja. O apostolado laico se funda na ontologia sobrenatural dos leigos, por isso convi-
da estes a participarem do apostolado hierárquico. Sua encíclica Mystici corporis, de 29 de
junho de 1943, colocou a ideia do Corpo místico de Cristo no seio da Igreja. A Encíclica se
situa na linha da visão espiritual da Escola romana e da Encíclica Satis cognitum, de Leão
XIII, publicada a 26 de junho de 1896, que ensinava que a Igreja é o Corpo de Cristo, na qual
se unem os elementos da visibilidade e da invisibilidade. Pio XII exalta a responsabilidade
missionária universal e assume o conceito paulino de Corpo de Cristo como realidade socio-
corporativa orgânica, afirmação da identidade entre o Corpo místico de Cristo e a Igreja Cató-
lica romana (n. 13), e a pertença à Igreja, por meio do conceito de reapse. Essa Encíclica cons-
titui uma etapa decisiva na Eclesiologia pela profundidade de sua doutrina e de sua autorida-
de.83
Uma virada decisiva na história da Eclesiologia aconteceu logo depois do primeiro
quarto do século XX. Trata-se de uma dupla virada: de valor e de impostação. A Eclesiologia
deixa de ser dependente e reflexo de vários tratados teológicos e começa a assumir o papel de
rainha. Por isso, Dibelius, nos anos 30, de certa forma profetiza, ao afirmar que o século XX
seria o século da Igreja, o que realmente aconteceu. Diversos autores reconhecem o século XX
como o século da Eclesiologia. A partir do Vaticano I, os teólogos, mesmo protestantes, dedi-
cam muita atenção à Igreja, que ocupa o centro da reflexão teológica. No final do século pas-
sado, o interesse em torno do mistério da Igreja propiciou trazê-la para o centro da reflexão
teológica, ainda mais com o Vaticano II, considerado por K. Rahner o “Concílio da Igreja so-
bre a Igreja”.

1.9 A Eclesiologia do Concílio Ecumênico Vaticano II

Essa nova impostação da Eclesiologia resultou no acento de aspectos menos objeti-


vantes do que os da era escolástica pós-tridentina. As novas prospectivas consideravam a Igre-
ja como Corpo místico, sacramento de salvação, povo messiânico, comunidade de amor, pes-

83
CONGAR, op. cit., p. 469-472. Também ANTÓN, El misterio de la Iglesia II, p. 563-653 (especialmente
612-640) e FAYNEL, op. cit., p. 215s.
48

soa mística e arca da aliança. Todas essas ideias novas encontraram guarida na época imedia-
tamente anterior ao Vaticano II, começando a produzir os frutos tão desejados. A imagem de
Corpo de Cristo e a analogia da encarnação do Verbo aplicadas à Igreja vêm completar a
compreensão da Igreja dos primeiros tratados de Eclesiologia, que acentuavam muito mais o
lado institucional.
Entre os movimentos precursores do Vaticano II, podem-se citar o movimento ecu-
mênico e a consciência social e comunitária das novas gerações como fatores externos e a
renovação dos estudos bíblicos e patrísticos, que revelam a verdadeira natureza da Igreja, o
movimento litúrgico, a espiritualidade cristocêntrica, a promoção do laicato, especialmente a
Ação Católica, e o despertar do apostolado missionário como fatores internos.84
O Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965) foi convocado pelo Papa João XXIII
no dia 05 de junho de 1960, com o Motu Proprio Superno Dei Nutu, que também instituía 14
organismos pré-conciliares, encarregados de estudar os temas a serem debatidos durante o
Concílio. No dia 14 de novembro de 1960, iniciaram-se os trabalhos dessas comissões. O
Concílio começou a ocupar-se do tema eclesiológico na primeira semana de dezembro de
1962, para, finalmente, aprovar o documento Lumen Gentium a 19 de novembro de 1964, sen-
do promulgado dois dias após por Paulo VI.85 A discussão em torno do esquema De Ecclesia,
o esquema 13, não foi simples, pois este implicava uma nova visão eclesiológica.
Desse modo, a renovação da Eclesiologia, iniciada no princípio do século passado,
propicia uma nova visão de Igreja, agora unitária: o visível e o invisível numa simultaneidade,
conforme expressa claramente o número 8 da Lumen Gentium, demonstrando a importância da

84
Ver, a propósito, comentário sobre o desembocar dos movimentos renovadores, especialmente dos estudos
bíblicos e patrísticos, na Lumen Gentium, em ROUSSEAU, O. A constituição no quadro dos movimentos
renovadores de teologia e de pastoral nas últimas décadas. In: BARAÚNA, G. (Org.). A Igreja do Vaticano II.
Petrópolis: Vozes, 1965, p. 116-134.
85
Entre os pontos relevantes da Lumen Gentium, podem-se citar os seguintes: do Capítulo I (O mistério da
Igreja): n. 1 (O que é a Igreja), n. 6 (Imagens da Igreja), n. 8 (“subsistit in”); do Capítulo II (O Povo de Deus):
n. 10 (sacerdócio comum dos fiéis e diferença), n. 12 (sensus fidei), n. 13 (quem constitui o Povo de Deus), n.
14 (fiéis católicos), n. 15 (cristãos não católicos), n. 16 (não cristãos), n. 17 (Igreja missionária); do Capítulo
III (Hierarquia): n. 18 (missão dos Bispos), n. 20 (princípio da sucessão apostólica), n. 21 (Episcopado como
sacramento), n. 22 e 23 (colegialidade), n. 24 a 27 (tríplice múnus), n. 28 (presbitério), n. 29 (diaconato per-
manente); do Capítulo IV (Leigos): n. 31 (quem são e características), n. 32 (igualdade fundamental), n. 33
(apostolado), n. 34 (múnus sacerdotal – sacerdócio comum), n. 35 (múnus profético), n. 36 (múnus régio), n.
37 (relação com a hierarquia); do Capítulo V (A vocação à santidade): n. 39 e 40 (o que é), n. 41 (exercício),
n. 42 (caminhos e meios); do Capítulo VI (Os Religiosos): n. 43 e 44 (natureza e importância), n. 45 (em
dependência da autoridade), n. 46 (estima), n. 47 (perseverança e cultivo); do Capítulo VII (Índole escatológi-
ca): n. 48 (o que é), n. 49 (comunhão entre Igreja terrestre e celeste), n. 50 (relações), n. 51 (disposições pas-
torais).
49

redescoberta do mistério da Igreja para a sua autocompreensão.86 Dessarte, ela inicia com o
capítulo sobre o mistério da Igreja, não o definindo, mas compreendendo-o como um aconte-
cimento da história salvífica.87 Esse título indica que a Igreja é muito mais do que se pode ver
e perceber empiricamente, muito mais do que o visível e historicamente manifestado pela sua
organização estrutural. Ele indica uma dimensão espiritual, interior, sobrenatural e divina. E
esses dois aspectos – o visível e o invisível, ou o exterior e o interior – formam uma única rea-
lidade.88
A propósito, C. Möller, procurando ressaltar a unidade dinâmica presente na Lumen
Gentium, vê uma divisão binária dupla ou por pares de capítulos no documento: o mistério da
Igreja (I e II); a estrutura da Igreja: hierarquia e laicato (III e IV); a finalidade da Igreja, no
campo da santidade, à qual todos são chamados, com ou sem a profissão pública dos conse-
lhos evangélicos (V e VI); a consumação da Igreja na escatologia (VII e VIII).89 Por isso, G.
B. Mondin avalia, de forma perspicaz, a importância do Vaticano II para a autoconsciência da
Igreja:
Evento de importância capital no que concerne à evolução da autoconsciência da
Igreja foi o concílio Vaticano II, concílio eminentemente eclesiológico. Graças à
ação poderosa e vivificadora de um novo Pentecostes, ele fez com que a autoconsci-
ência da Igreja desse um salto qualitativo, que pode muito bem ser comparado à pas-
sagem da juventude à maturidade. Os textos do concílio traçam um panorama mais
vasto, completo e profundo da autoconsciência da Igreja: eles documentam uma
compreensão mais plena do ser da Igreja, misterioso e sacramental, da sua missão
salvífica e da sua vocação missionária, dos papéis e tarefas dos próprios membros
(leigos e hierarquia), de suas relações com os fiéis de outras religiões e com o mun-
do90.

E a falta de visão da unidade desses dois elementos inerentes ao mistério da Igreja


acarreta uma má compreensão da natureza da Igreja. Daí decorre, também, a necessária unida-
de entre o mistério da Igreja (primeiro capítulo) e o Povo de Deus (segundo capítulo), que
supera uma visão fechada e estática da Igreja como simples entidade externa, fazendo aparecer

86
“A discussão conciliar em torno desse primeiro capítulo foi relativamente (comparada com os estilos dos
debates da I Sessão) rápida, em três Congregações Gerais (parte da 38a., 39a., 40a. e parte da 41a., nos dias 1 a 4
de outubro de 1963). O novo texto já era uma reação positiva contra um conceito excessivamente jurídico, social,
externo, institucional, clerical e triunfalista da Igreja” (cf. KLOPPENBURG, B. As vicissitudes da “Lumen
Gentium”. In: BARAÚNA, op. cit., p. 202).
87
Cf. PHILIPS, G. La Chiesa e il suo mistero. Storia, testo e commento della Lumen Gentium. Milano: Jaca
Book, 1989, p. 76.
88
PHILIPS, loc. cit.
89
Cf. MOELLER, C. O fermento das idéias na elaboração da Constituição. In: BARAÚNA, op. cit., p. 190.
90
Cf. MONDIN, op. cit., p. 192.
50

seu caráter dinâmico, expresso na imagem do Povo de Deus em marcha e em busca da escato-
logia.91
R. Coffy, num magnífico artigo, por ocasião dos vinte anos do término do Vaticano
II, observa que a leitura pós-conciliar da Lumen Gentium esqueceu o capítulo primeiro e inici-
ou apenas no segundo, acarretando uma compreensão parcial e sociológica da Igreja. Por isso,
muitas tentativas de dar à Igreja uma nova maneira de ser simplesmente inverteram a pirâmi-
de, transferindo os ocupantes da base para o vértice e vice-versa, desnaturando, desta feita, a
natureza da Igreja. Não era esse o sentido, lembra o mesmo autor, da Constituição Dogmática
sobre a Igreja do Vaticano II, que visava a uma mudança de perspectiva, numa nova relação
entre o mistério e a instituição, e não entre o vértice e a base.92 E essa visão falseada nega toda
a evolução da Eclesiologia, instaurando uma unilateralidade prejudicial para a Igreja.
A partir da dupla estrutura da Igreja, a divina e a humana, simultaneamente, a Eclesi-
ologia pode partir ou do divino ou do humano, adquirindo, assim, diferente enfoque. O Vati-
cano II, ao partir do mistério, parte de dentro para fora. Anteriormente, a Eclesiologia partia da
sociedade perfeita. Como a Igreja não está em estado de salvação definitiva, pode haver difi-
culdade em harmonizar adequadamente essas duas dimensões. Preocupados com essa possibi-
lidade, por vezes ocorrida no período pós-conciliar, os participantes do Sínodo de 1985 assim
se expressam:
Toda a importância da Igreja deriva da sua conexão com Cristo. O Concílio descre-
veu de diversos modos a Igreja como Povo de Deus, Corpo de Cristo, Esposa de
Cristo, templo do Espírito Santo, família de Deus. Estas descrições da Igreja comple-
tam-se mutuamente e devem ser compreendidas à luz do mistério de Cristo ou da
Igreja em Cristo. Não podemos substituir uma falsa visão unilateral da Igreja como
puramente hierárquica com uma nova concepção sociológica também ela unilateral.
Jesus Cristo está sempre presente na sua Igreja e nela vive como ressuscitado (Rela-
tio Finalis II, A, 3).

Além da Lumen Gentium, a Eclesiologia do Vaticano II encontra-se nas outras três


Constituições: a Sacrosanctum Concilium, sobre a Liturgia, a Dei Verbum, sobre a Revelação,
e a Gaudium et Spes, sobre a Igreja no mundo. Além destas, ainda podem ser citados os De-
cretos Ad Gentes, sobre a atividade missionária da Igreja, Christus Dominus, sobre o ministé-
rio dos bispos, Presbyterorum Ordinis, sobre a vida e o ministério dos presbíteros, Apostoli-
cam Actuositatem, sobre o apostolado dos leigos, e Unitatis Redintegratio, sobre o ecumenis-

91
ROUSSEAU, op. cit., p. 119s.
92
Cf. COFFY, op. cit., p. 162-164.
51

mo. Em todos esses documentos observa-se uma mudança de visão de Igreja: do acento da
perspectiva de sociedade passam a valer seus aspectos de mistério e bíblicos, atendendo a sua
missionariedade, enquanto sacramento de salvação.

Concluindo estas linhas, descobre-se que o tratado de Eclesiologia passou por um


longo processo de elaboração, para, finalmente, chegar a uma fase de síntese com o Vaticano
II. Os primeiros tratados, elaborados a partir de acentos opostos das múltiplas dimensões da
Igreja, mas que responderam aos problemas da época, foram sendo, paulatinamente, substituí-
dos pela corrente renovadora, que teve na imagem do Corpo de Cristo o seu ponto de partida.
À luz dessa imagem, acrescida da analogia com a encarnação e somada a outros fatores, os
eclesiólogos encontraram inspiração para redescobrir o mistério da Igreja.
Por isso, hoje, é preciso sempre de novo voltar à Eclesiologia do Vaticano II, para
não se perder a riqueza que ela pôs à luz. Quando se procura responder aos novos desafios,
frutos da busca de continuar, nos dias de hoje, a missão evangelizadora de Cristo, percebe-se
que o último Concílio ecumênico não perdeu sua atualidade e continua como autêntica fonte
inspiradora, pois significou o desembocar do processo secular de reflexão da Igreja sobre si
mesma.

1.10 A situação atual da Eclesiologia

A situação do pós-Concílio trouxe uma crise de identidade da Igreja. O Papa Paulo


VI escreve a Carta Apostólica Evangelii Nuntiandi em 1975, mostrando que a identidade pró-
pria da Igreja, seu ser e missão, é a evangelização. Esse documento, resultado do Sínodo dos
Bispos de 1974 sobre a evangelização no mundo de hoje, influenciou a Conferência de Puebla
(1979) de tal forma que seu documento intitula-se, por isso, “A evangelização no presente e no
futuro da América Latina”.
A Eclesiologia também é influenciada pela situação eclesial do período seguinte ao
término do Vaticano II. Inicialmente, há aceitação e acolhida do impulso conciliar à reno-
vação, ao pluralismo e à abertura ao mundo. Os teólogos iniciam uma série de pesquisas sobre
as imagens e fórmulas utilizadas pelo Concílio para falar sobre a Igreja, a partir das fontes
bíblicas e patrísticas. Depois, aos poucos parece prevalecer a ideia de sacramento, possibili-
52

tando sua definição a partir de sua sacramentalidade. Porém, outras ideias conciliares sobre a
Igreja aparecem: comunhão, comunidade, serviço e serva do mundo. O Sínodo de 1985 e o
Papa João Paulo II, em diversos escritos (cf. Christifideles Laici), sublinham a Eclesiologia de
comunhão como a ideia eclesiológica chave do Concílio. O mesmo transparece na Carta aos
Bispos sobre alguns aspectos da Igreja entendida como comunhão, da Congregação para a
Doutrina da Fé, publicada em 28 de maio de 1992, com a aprovação do Papa.
Apesar de já se terem passado mais de 45 anos do término do Vaticano II, ainda res-
tam questões abertas como, por exemplo:

 a colegialidade: o que é e como implantar universalmente;


 a relação entre Igreja Universal e as Igrejas Particulares: autonomia, identidade
cultural e respeito às peculiaridades;
 a integração da análise sociológica da Igreja com a perspectiva eclesiológica co-
munitária, a tal ponto que o Sínodo Extraordinário dos Bispos de 1985 chama a
atenção ao perigo de uma visão unilateral da Igreja, seja só a entendendo como
instituição ou apenas sociologicamente.

A perspectiva comunitária não produziu uma reestruturação do relacionamento entre


Igreja e ministério hierárquico. Qual é o fundamento do ministério? Alguns respondem que é o
fundamento cristológico, e outros, o eclesiológico, ou seja, a comunidade. Na perspectiva
eclesiológica, o ministério presbiteral passa a ser uma extensão da comunidade, da qual recebe
o mandato, e cessa quando não mais exerce este.93 A dimensão trinitária, conforme refletem
recentemente a Teologia94 e o Magistério95, parece ser a via conciliadora.
Hoje, a Eclesiologia caminha entre duas possibilidades, com variações, permanecen-
do, no entanto, a questão do ponto de partida para se entender a Igreja.

93
HACKMANN, G.L.B. O presbítero diocesano no limiar de um novo milênio. In: Teocomunicação, v. 27
(Setembro de 1997), p. 317-324.
94
Ver, por exemplo, GRESHAKE, G. Essere preti. Teologia e spiritualità del ministero sacerdotale. Brescia:
Queriniana, 1984.
95
Ver, como exemplo, a Exortação Apostólica Pós-Sinodal sobre a formação dos sacerdotes, Pastores dabo
Vobis, de João Paulo II, publicada em 29 de março de 1992, e o Diretório para o Ministério e a Vida do Pres-
bítero, da Congregação para o Clero, de 31 de janeiro de 1994.
53

A primeira possibilidade é a que parte da dimensão interna da Igreja (ad intra), que
acentua a Igreja como sacramento. Em abril de 1980, em Bologna (Itália), realizou-se um se-
minário em que foi acentuada a estruturação interna da Igreja após o Vaticano II.
A segunda define a Igreja a partir de fora (ad extra), isto é, de sua missão. Em feve-
reiro de 1980, foi celebrado um encontro de Igrejas do Terceiro Mundo, em São Paulo. As
conferências foram publicadas no livro A Igreja que surge da base (São Paulo: Paulinas,
1982). Essa visão eclesiológica reproduz as experiências eclesiais do Terceiro Mundo.
A problemática atual está em buscar um equilíbrio entre essas duas perspectivas
eclesiológicas. O caminho para tal passa pela recuperação da dimensão pneumatológica da
Igreja. Essa dimensão tem condições de enriquecer e articular com dinamicidade a estrutura
interna eclesiástica e de firmar o acontecimento cristológico como central na Igreja. Além
disso, dá condições para compreender com maior profundidade a natureza da Igreja e sua mis-
são na história. Só a partir da história trinitária de Deus no mundo e com o mundo pode emer-
gir na Igreja a consciência de estar crucificada junto com os excluídos da terra e ser, ao mesmo
tempo, a força de sua ressurreição e fermento futuro do mundo.96
G. Battista Mondin97 elabora a seguinte classificação das Eclesiologias pós-
conciliares:

 Tendência teândrica: Journet, Beni, Gherardini;


 Eclesiologia querigmática: Barth e Bultmann;
 Eclesiologia de comunhão: Brunner, Hamer e Dianich;
 Eclesiologia ecumênica: Congar, Hamer e Florovski;
 Eclesiologia sacramental: Semmelroth, Rahner, Schillebeeckx, Ratzinger e U. von
Balthasar;
 Eclesiologia pneumatológica: Küng, Mühlen, Moltmann, Tillich e Afanassiev;
 Eclesiologia histórica: De Lubac, Parente e Boyer.

1.11 A Eclesiologia na América Latina

96
Sobre a conjuntura eclesial, no momento, ver LORSCHEIDER, A. A atual conjuntura eclesial neste início
de Novo Milênio. In: Teologia em questão, ano I (2002/1), p. 71-87.
54

Para finalizar o estudo da história da Eclesiologia feito até aqui, convém apresentar
um breve panorama da situação da Eclesiologia na América latina, por dizer respeito direto ao
lugar onde se efetua este estudo. Daqui em diante, passa-se a expor as três Conferências do
Episcopado da América latina, por caracterizarem a situação da Igreja em cada um desses três
momentos.

1.11.1 A Conferência de Medellín

a) Histórico

A Segunda Conferência Geral do Episcopado da América Latina aconteceu em Me-


dellín, na Colômbia; foi iniciada no dia 26 de agosto e concluída no dia 08 de setembro de
1968. Nela ocorreu a convergência de duas séries de acontecimentos: um da Igreja Universal e
Latino-Americana e outro do chamado “movimento cristão”.
Entre os acontecimentos marcantes para a Igreja Universal e Latino-Americana, e
que diretamente influenciaram Medellín, podem-se apontar os seguintes:
- Havia acabado de acontecer o Concílio Ecumênico Vaticano II, que deflagrou
um processo renovador em toda a Igreja, e a América Latina não ficou alheia a
essa situação. Repercutiram, especialmente, os documentos Lumen Gentium e
Gaudium et Spes, ambos eclesiológicos;
- As últimas Encíclicas papais, notadamente Mater et Magistra (15 de maio de
1961), Pacem in Terris (11 de abril de 1963), ambas de João XXIII, e Populorum
Progressio (26 de março de 1967), de Paulo VI;
- A fundação do CELAM, em 1956, e seu desenvolvimento, especialmente a partir
da VII Assembleia Ordinária (5 a 27 de novembro de 1966), na qual foi abordado
o tema “Reflexão teológica sobre o desenvolvimento”;
- A proclamação da “Mensagem dos Bispos do Terceiro Mundo”, de 15 de agosto
de 1967.

97
Cf. MONDIN, G.B. Le nuove ecclesiologie. Un’immagine attuale della Chiesa. Roma: Paoline, 1980.
55

Outro fator marcante foi o “movimento cristão”, surgido das comunidades cristãs de
base da América Latina. Esse movimento foi gerado por dois processos históricos, a partir da
década de 1960: de um lado, a crise econômica, política e ideológica do sistema capitalista
dependente e subdesenvolvido da América latina, e, de outro, a ascensão do movimento popu-
lar latino-americano, fruto da mobilização de intelectuais revolucionários e das revoltas estu-
dantis, de setores urbanos marginalizados, do proletariado e dos camponeses. A mobilização
desses diversos setores da sociedade gerou a “questão política”, na qual atuaram minorias pro-
féticas, como Dom Hélder Câmara e Mons. Manuel Larraín, do Chile, que souberam interpre-
tar o momento histórico e reinterpretar os documentos da Igreja.98
A difusão e a interpretação de Medellín aconteceram no interior do “movimento cris-
tão”, que, após 1968, não é mais minoria profética, mas amplo e profundo movimento de Igre-
ja, na qual surge a chamada “Igreja popular”99, que se destaca pela consciência do compromis-
so político dos cristãos e pela Teologia da Libertação. No Brasil, os movimentos populares
começaram na década de 1970, culminando com a realização do primeiro encontro de Comu-
nidades Eclesiais de Base, nos dias 6 a 8 de janeiro de 1975, em Vitória (ES), com o tema
“Uma Igreja que nasce do povo”.100

b) O documento

Medellín é a aplicação do Vaticano II para a América Latina. Em coerência com a


sua gênese histórica, a Conferência faz a Igreja ver a realidade da América Latina, que se ca-
racteriza pela dependência, miséria e subdesenvolvimento, entendida como situação de peca-
do. E o acento do documento se encontra no tema do desenvolvimento. Por essa razão, nele se
lê: “Não basta refletir, obter maior clareza. É preciso agir. Esta não deixou de ser a hora da
palavra, mas tornou-se, com dramática urgência, a hora da ação” (Introdução às conclusões
3).

Dessa constatação, surgem compromissos por parte da Igreja do Continente:

98
Essas ideias encontram-se em RICHARD, P. A Igreja latino-americana entre o temor e a esperança. Apon-
tamentos teológicos para a década de 80. São Paulo: Paulinas, 1982, p. 52-58.
99
Crítica à Igreja popular encontra-se em KLOPPENBURG, B. Iglesia Popular. Edição do autor.
100
O relatório do encontro acha-se em SEDOC, v. 7, maio de 1975.
56

- conversão e serviço;
- verdadeira pobreza bíblica;
- nova ordem de justiça;
- família;
- educação;
- trabalhadores;
- nova evangelização e catequese;
- renovação e criação de novas estruturas na Igreja;
- ecumenismo (cf. Mensagem aos povos da América Latina).

O documento está dividido em três partes: promoção humana, evangelização e cres-


cimento na fé e a Igreja visível e suas estruturas. Os temas abordados são dezesseis: justiça,
paz, família e demografia, educação, juventude (da primeira parte), pastoral popular, pastoral
de elites, catequese, liturgia (da segunda parte), movimentos de leigos, sacerdotes, religiosos,
formação do clero, pobreza da Igreja, pastoral de conjunto e meios de comunicação social (da
terceira parte).

c) A repercussão de Medellín na América Latina

O impacto histórico de Medellín é indiscutível, pois impulsionou o desenvolvimento


de uma extensa rede de comunidades que funcionam como meio eficaz de comunicação e
difusão de ideias. No Brasil, as CEBs se consolidaram. Nelas havia uma clara e profética posi-
ção sociopolítica, embora não comungada por todos os setores da Igreja, tanto por parte da
hierarquia quanto do laicato.
A consciência eclesial cresceu, máxime entre os leigos. Os acontecimentos eclesiais
começam, progressivamente, a apresentar muito mais interesse por parte da comunidade ecle-
sial. A Igreja passa a ser alvo, ao mesmo tempo, de apoio e de críticas. É exigido testemunho
dela, de modo especial através dos meios de comunicação social.
57

A irrupção de um novo espírito eclesial, fruto do Vaticano II, levou ao surgimento e


à difusão da Teologia da Libertação, com acento no Jesus histórico e na Bíblia, como fonte de
espiritualidade e de conscientização.101
Medellín também foi o caminho para uma pastoral latino-americana, pois seu docu-
mento abrange a maioria dos setores pastorais de então, reconhecendo seu pluralismo e dando
orientações significativas frente ao presente e ao futuro.102

1.11.2 A Conferência de Puebla

A terceira Conferência Geral do Episcopado da América Latina aconteceu em Pue-


bla, de 27 de janeiro a 13 de fevereiro de 1979. Deveria ter sido celebrada um ano antes, para
comemorar os dez anos de término de Medellín, mas não foi possível devido às mortes dos
Papas Paulo VI e João Paulo I. João Paulo II, recém-eleito, pediu que fosse adiada, para que
ele pudesse estudar e conhecer a nova Conferência do CELAM.

a) O documento

Puebla é a aplicação da Evangelii Nuntiandi para a América Latina. Por essa razão, o
documento chama-se “A evangelização no presente e no futuro da América Latina”. Aborda o
tema da evangelização, acrescido do da libertação, relacionado com o tema da cultura e da
religiosidade popular. Nota-se que a identidade latino-americana recebe um enfoque histórico,
cultural e antropológico.
O documento pode ser compreendido a partir do método ver, julgar e agir. A parte I
apresenta a visão pastoral da realidade latino-americana, como desafio inicial. A parte II é a
seção doutrinária, onde está afirmada a identidade da Igreja, também da Igreja latino-
americana, destacando-se o tema da evangelização da cultura, que é o ponto de contato com o
que a segue. As partes seguintes, a III, intitulada “A evangelização da Igreja da América lati-
na: comunhão e participação”, acentuando os centros de comunhão e participação, a IV, “Igre-
ja missionária a serviço da evangelização da América Latina”, onde se encontram as opções

101
ALESSANDRI, H. O futuro de Puebla. Repercussão social e eclesial. São Paulo: Paulinas, 1982, p. 37-39.
102
GALILEA, S. A mensagem de Puebla. São Paulo: Paulinas, 1979, p. 21.
58

preferenciais, e a V, “Sob o dinamismo do Espírito: as opções pastorais”, constituem o agir. O


desafio inicial é respondido nos pontos seguintes, oferecendo uma resposta própria e criativa,
na ótica cristã.
Quanto ao aspecto doutrinário, os fios condutores do documento são a evangeliza-
ção, como o tema central, a comunhão e participação, como a meta, a libertação, como o ca-
minho pelo qual a evangelização impulsiona tudo e todos em direção a sua meta, e os pobres,
como os sujeitos preferenciais.103
As suas linhas de força e as grandes orientações são a realidade; o primado da evan-
gelização; a constatação da violação dos direitos humanos no continente, seguida de uma re-
flexão antropológica e de uma fundamentação bíblica, que mostram a dignidade humana; a
opção pelos pobres e por uma evangelização libertadora; a cultura e as culturas na América
Latina e a sua evangelização; e a necessidade de espiritualidade própria para a evangelização e
os evangelizadores da América Latina.104 Destacam-se a busca e a vontade de fazer da Igreja
da América Latina uma Igreja identificada com a evangelização missionária, no sentido de
entender a Igreja em estado de missão, de acordo com a Evangelii Nuntiandi, que significa
promover a dignidade humana, de acordo com uma evangelização libertadora, conforme os
números 15, 470 e 491 do documento.

b) A Eclesiologia de Puebla

A análise da Eclesiologia de Puebla tem dois enfoques diversos, descritos a seguir.

O primeiro é do Pe. Jesus Hortal, que vê a convivência de duas correntes eclesiológi-


cas no documento de Puebla em justaposição: 1ª - corrente essencialista, que acentua o ser da
Igreja e pontos doutrinais, como, por exemplo, a origem divina da Igreja, o seu caráter hierár-
quico e o Magistério. Encontra-se nos números 22, 223, 225 e 262; 2ª - corrente existencialis-
ta, que dá ênfase ao agir da Igreja, destacando, entre outros temas, o seu caráter histórico, o
sacerdócio comum dos fiéis, a igualdade fundamental de todos os batizados e a sua dimensão
encarnacional. Encontra-se, por exemplo, nos números 1140-1145 e nas opções pastorais. Ele

103
ALESSANDRI, op. cit., p. 30-33.
104
GALILEA, op. cit., p. 30-33.
59

afirma que houve confronto dialético entre essas duas mentalidades nos últimos dez anos, mas,
em Puebla, elas conviveram pacificamente, pois são duas realidades eclesiais complementares
e, por isso, não se pode escolher entre uma delas.105
O segundo afirma que a identidade da Igreja foi o centro da síntese que ocorreu em
Puebla, pois o tempo entre Medellín e Puebla foi marcado pela busca da identidade eclesial.
Contribuíram para tal a Evangelii Nuntiandi, de Paulo VI, e, principalmente, o discurso inau-
gural da Conferência, proferido pelo Papa João Paulo II. Nesse discurso, o Papa mostra que a
evangelização é a vocação própria da Igreja, a sua mais profunda identidade, de acordo com
Evangelii Nuntiandi 14. E assim a Igreja recupera o seu centro e se abre para o mundo, unindo
o histórico ao ontológico, ou a essência da Igreja com a sua existência. É uma visão integrada,
especialmente conseguida pela influência de João Paulo II. A identidade e a vocação da Igreja
são a evangelização. Essa situação segue a abertura e busca de identidade da Igreja, que carac-
terizaram o período após Medellín.106
A identidade cristã acontece em torno de três verdades: a verdade sobre Jesus Cristo,
a verdade sobre a Igreja e a verdade sobre o homem. Daí brota a identidade da Igreja, que se
apresenta como sacramento da unidade, pois ela está a serviço da defesa e promoção da digni-
dade humana e libertação dos pobres. Isso está no discurso inaugural do Papa e será assumido
pela Conferência.
Entretanto, podem-se perceber algumas características da Eclesiologia de Puebla: a)
apesar de constituir a segunda verdade, é uma Eclesiologia não formulada sistematicamente,
pois não houve preocupação de fazer uma exposição doutrinal sistemática sobre a Igreja, en-
contrando-se ao longo de todo o documento, especialmente no ponto dedicado a expor a ver-
dade sobre a Igreja e nas opções pastorais; b) cristocêntrica, apesar de não separar a pessoa
humana de Jesus Cristo, o que é percebido mais claramente na opção preferencial pelos po-
bres, que é, em última análise, uma opção cristocêntrica e antropocêntrica, pois ambas com-
põem o cristianismo; c) antropocêntrica, especialmente nas opções pastorais; d) o núcleo da
exposição sobre a Igreja está centrado na ideia de Povo de Deus (números 238-269); e) a Igre-
ja é povo a serviço da comunhão (nº 270s), pois todos estão a serviço do Evangelho na Igreja
(nº 271).107

105
HORTAL, J. As eclesiologias de Puebla. In: Teocomunicação 1978, p. 194-200.
106
ALESSANDRI, op. cit., p. 26-30.
107
HORTAL, op. cit., p. 197-200.
60

O documento, nas opções pastorais, assim caracteriza a opção eclesiológica dos bis-
pos: a) uma Igreja sacramento de comunhão; b) uma Igreja servidora; c) uma Igreja missioná-
ria (cf. 1302-1304).

c) A continuidade entre Medellín e Puebla

As duas Conferências constituem a mesma intencionalidade, pois são dois momentos


diferentes de uma única vontade eclesial. Os conteúdos são os mesmos: o amor de Cristo e a
opção pela pessoa humana, caracterizados pelo mesmo estilo profético, que permitiu a Medel-
lín e a Puebla concretizar os seus objetivos, especialmente nas CEBs.
Em Puebla há muito mais informação do que em Medellín, por isso Puebla é mais
conhecida e, inclusive, torna Medellín conhecida. Isso porque a situação eclesial é diferente
em 1979, mas graças a Medellín. Além disso, a situação política está mudada, pois a repressão
política não existe mais. A Doutrina de Segurança Nacional108, que existia no tempo de Me-
dellín, foi substituída pela distensão política.

1.11.3 A Conferência de Santo Domingo

A quarta Conferência Geral do Episcopado da América Latina aconteceu na cidade


de Santo Domingo, capital da República Dominicana. O motivo da Conferência foi a celebra-
ção dos quinhentos anos de evangelização da América latina. Após longa e controvertida pre-
paração, os bispos reuniram-se em outubro de 1992, para “fazer com que a verdade sobre Cris-
to, a Igreja e o homem penetre mais profundamente em todos os estratos da sociedade, bus-
cando sua progressiva transformação” (Apresentação 3). A Nova Evangelização foi a ideia
central de todos os trabalhos.

a) O documento

108
Sobre esse tema, ver TABORDA, F. Puebla e as Ideologias. In: Teocomunicação, n. 44, ano IX, (1979/2),
p. 233-235.
61

A Conferência decidiu abandonar o documento de trabalho e iniciar a partir do dis-


curso inaugural do Papa João Paulo II, que propôs três temas: nova evangelização, promoção
humana e cultura cristã. Essa atitude gerou muitas críticas, daí tanto o documento quanto a sua
recepção serem muito controvertidos.109
O documento está dividido em três partes: a primeira é intitulada “Jesus Cristo,
Evangelho do Pai”; a segunda, “Jesus Cristo Evangelizador vivo em sua Igreja”; e a terceira,
“Jesus Cristo, vida e esperança da América Latina e do Caribe”. A segunda parte é a mais de-
senvolvida, pois está composta por três capítulos, cada um deles abordando os três temas pro-
postos pelo Santo Padre e debatidos durante os trabalhos da Conferência. A frase bíblica de
Hb 13,8 (“Jesus Cristo ontem, hoje e sempre”) serviu de inspiração.
Os trabalhos não obedeceram ao método ver, julgar e agir, o que ocasionou reações
negativas. O método adotado foi diverso: exposição do assunto, desafios pastorais e linhas
pastorais. Outro foco de críticas foi a opção preferencial pelos pobres, que, para muitos, foi
abandonada, além do vocábulo “libertação” ser praticamente pouco utilizado, trazendo o en-
fraquecimento do compromisso social. Também mereceram críticas a pouca fundamentação
bíblica, com o consequente esquecimento do Jesus histórico, e as demasiadas citações do Ma-
gistério de João Paulo II.110

b) A Eclesiologia de Santo Domingo

A Eclesiologia de Santo Domingo, assim como o conjunto do documento, não tem


uma leitura unânime. A. Antoniazzi não se agrada da Eclesiologia de Santo Domingo e cita
um teólogo que, ao final da Conferência, declara que a Cristologia é recuperável, mas a Ecle-
siologia está perdida.111 Entretanto, pode-se entender presente uma Eclesiologia de comu-
nhão.112
A exposição sobre a Igreja está inserida na segunda parte do documento, sob o título
“Jesus Cristo, Evangelizador vivo em sua Igreja”. Nesta, insere-se o capítulo primeiro, intitu-

109
Por exemplo: IRMÃO NERY. Como vi e vivi Santo Domingo. Um diário. Petrópolis: Vozes, 1993.
110
BOFF, C. O “Evangelho” de Santo Domingo. Os dez temas-eixos do Documento da IV CELAM. Petrópo-
lis: Vozes, 1994, p. 27 e 38.
111
ANTONIAZZI, A. A missão da Igreja no documento. In: AAVV. Santo Domingo. Ensaios Teológico-
Pastorais. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 191.
62

lado “A Nova Evangelização”, em que a Igreja vem abordada e, por isso mesmo, encontram-
se os elementos para estabelecer o perfil da Eclesiologia da quarta Conferência. A Eclesiologia
não é sistemática, por faltar uma parte específica em que fosse abordada.
A frase programática, extraída de Hb 13,8, retrata perfeitamente a intenção de toda a
Conferência: centralidade da pessoa, obra e mensagem de Jesus Cristo. Os elementos dessa
centralidade de Cristo transparecem nos aspectos seguintes: a) uma Igreja santa, que haure de
Jesus Cristo a santidade de vida indispensável para poder alimentar e orientar “uma verdadeira
promoção humana e cultura cristã” (Santo Domingo 31); b) a Palavra de Deus convoca essa
comunidade santa, que tem a evangelização como uma das suas principais tarefas; c) a liturgia
como a celebração da Igreja santa e convocada pela Palavra. Por isso, o culto cristão expressa
a vertente da obediência ao Pai (glorificação) e da caridade para com os irmãos (redenção),
adquirindo valor evangelizador, pois convoca, celebra e envia (Santo Domingo 34 e 35).
A Eclesiologia de comunhão transparece com maior evidência na unidade teológico-
pastoral, entendida como unidade da Igreja entre comunhão e missão. A partir dessa compre-
ensão, vê-se a unidade entre os três capítulos da segunda parte do documento: a nova evange-
lização, a promoção humana e a cultura cristã. Só uma comunidade evangelizada pode evan-
gelizar, sendo que a promoção humana é a sua dimensão privilegiada, o que levará à criação
de uma cultura cristã, pois fará com que a fé, adesão radical a Cristo pelo Batismo, se torne
cultura, isto é, quando o “sentir comum de um povo tiver sido penetrado interiormente” pela fé
anunciada, pensada e vivida (Santo Domingo 229).

1.11.4 A Eclesiologia da Teologia da Libertação

Segundo João Batista Libanio, ao escrever sobre os vinte anos de Teologia na Amé-
rica Latina, em 1992, a Eclesiologia da Teologia da Libertação é o terceiro principal eixo-tese
fundamental da Teologia da Libertação.113 Ele assim a anuncia: “De uma Eclesiologia de ex-

112
HACKMANN, G.L.B. A eclesiologia de comunhão em Santo Domingo. In: Teocomunicação, v. 23, n. 100
(1993/2), p. 167-180.
113
Os outros dois eixos-teses fundamentais da Teologia da Libertação são os seguintes: “De uma Cristologia
do Jesus histórico na perspectiva do seguimento e da identificação com o pobre passando por uma Trindade
libertadora até uma pneumatologia incipiente” e “da salvação como libertação passando por mediações na
história até à criação de utopias em referência ao Reino sobretudo na luta pela vida” (LIBANIO, J. B.; AN-
TONIAZZI, A. 20 anos de Teologia na América Latina e no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 39 e 45).
63

periências comunitárias a uma verdadeira eclesiogênese numa reinterpretação radical do poder


e ministério na Igreja em relação com o Reino e com o mundo”.114
Contudo, é necessário ter presente que os autores da Teologia da Libertação tarda-
ram em escrever sobre a Igreja. Além de se ocuparem, em primeiro lugar, com a Cristologia
da libertação, esperavam que as comunidades começassem a elaborar, elas próprias, a sua
Eclesiologia, para apenas auscultarem a Teologia subjacente à vivência e à organização
comunitária e, assim, elaborarem sua Eclesiologia.
Libanio apresenta as seguintes características da Eclesiologia da Libertação115:
a) Crítica interna da Igreja: é uma revisão crítica das estruturas internas da Igreja,
a partir da perspectiva e da presença do pobre como sujeito ativo da comunidade. Com isso,
o acento eclesiológico muda da visão hierárquica tradicional para o acento comunitário
popular.
De fato, a Eclesiologia toma rumos novos e estes vão na direção da opção prefe-
rencial pelos pobres, no sentido de entender a Igreja da América Latina a partir destes. Essa
perspectiva vai se enraizando, a tal ponto de o livro de Jon Sobrino intitular-se “Ressurrei-
ção da verdadeira Igreja. Os pobres, lugar teológico da Eclesiologia”. Este é, portanto, o
novo “lugar teológico” para uma Eclesiologia latino-americana, sem o qual, no entender
desse e de outros autores, a Igreja da América Latina estaria sendo infiel à sua missão.
E essa nova visão passa pela crítica ao modelo tradicional de Igreja, uma vez que
o considera não mais satisfatório, porque não consegue responder aos anseios e às necessi-
dades do povo latino-americano.116 Por isso se faz necessário criar esse modelo novo de
Igreja, a partir dos pobres.

114
Ibid., p. 49.
115
Ibid., p. 49-54.
116
É possível resumir da seguinte forma as principais críticas à Igreja tradicional: a) é uma Igreja piramidal e
monárquica: o poder decisório está no vértice da pirâmide e a base não tem condições de participação. O
mundo clerical (Papa, bispos e padres) está separado da esfera secular (leigos), não havendo por isso mesmo
comunidade. Não há diálogo entre as duas esferas, e os ministérios são apenas exercidos pelo clero; b) é uma
Igreja triunfalista: isso aparece na forma externa, nas construções imensas e bens em abundância, que dão a
impressão de riqueza, e no próprio pensamento, onde a Igreja deve ter a última palavra; c) é uma Igreja com-
prometida com a classe dominante e com a situação vigente, porque ligada ao poder e comprometida na ma-
nutenção do status quo. Foi uma Igreja que se ocupou, em grande parte, com a evangelização das elites e com
uma assistência paternalista aos pobres, dando um acento fatalista diante das injustiças e da pobreza; d) o
linguajar essencialista, desligado da vida. A teologia se ocupa com o “em si” do mistério salvífico, não atin-
gindo o significado “para nós”, por isso é teórica e abstrata (cf. BOFF, L. Eclesiogênese. Petrópolis: Vozes,
1977, p. 47s; Id., Igreja, carisma e poder. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 205-212).
64

b) Igreja dos pobres: assume a forma de Comunidades Eclesiais de Base, onde os


cristãos se alimentam, principalmente, por meio da reflexão da Palavra de Deus. Com efei-
to, o pobre é visto como o novo “lugar teológico”, por isso centro de toda reflexão teológica
e de toda ação da Igreja latino-americana. Essa é uma opção concreta, que leva a uma
“Eclesiologia dos pobres”. Jon Sobrino afirma:

Isso significa que os pobres são o autêntico lugar teológico da compreensão da


verdade e da práxis cristã, e por isso também da constituição da Igreja. Os pobres
são os que levantam para a Igreja o problema teológico fundamental e também a
direção de sua solução, porque os pobres levantam o problema de buscar a Deus,
sem pressupor que a Igreja o possua de uma vez para sempre, e lhe oferece o lu-
gar para encontrá-lo.117

c) Eclesialidade das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs): a eclesialidade é


fruto da vida em comunhão e da existência das notas da Igreja por parte das comunidades,
além da pretensão de surgir como “um novo modo de ser Igreja”. Com efeito, as CEBs tor-
naram-se o primeiro passo dessa Eclesiologia, isto é, o ponto de partida, pois é aí que ela se
faz, começando a ser gerada. O passo seguinte é dado pelo teólogo, que, pouco a pouco, vai
sistematizando o que a reflexão popular vai oferecendo. Victor Codina caracteriza da se-
guinte maneira as Comunidades Eclesiais de Base: a) são comunidades de pobres (campo,
subúrbio, favela). O Evangelho é anunciado aos pobres e estes, por sua vez, se convertem
em anunciadores do Evangelho e evangelizadores de toda a Igreja; b) são comunidades
populares, isto é, constituídas por gente simples, “zé povinho”, “povão”. O povo simples
torna-se o protagonista eclesial. Trata-se de uma Igreja solidária, formada pelas classes ex-
ploradas; c) são comunidades eclesiais, isto é, possuem elementos da verdadeira Igreja e
constituem uma forma de Igreja Particular.118
d) Abertura ecumênica: as comunidades desenvolvem o tipo de ecumenismo de
base, que acontece mediante uma prática libertadora dos pobres.
e) Religiosidade popular: após um período de “impacto secularizante”, foi iniciado
um processo de respeito e de reflexão sobre as formas de piedade do povo, acompanhado
de um processo de “desalienação de algumas dessas formas”.

117
SOBRINO, J. A ressurreição da verdadeira Igreja. Os pobres, lugar teológico da Eclesiologia. São Paulo:
Loyola, 1982, p. 102.
118
Cf. CODINA, V. Eclesiologia latino-americana da libertação. In: Revista Eclesiástica Brasileira v. 42
(março de 1982), p. 66-67.
65

f) Igreja e Reino: o Reino assume uma especial relevância, enquanto realidade que
“antecede e precede à Igreja”, pois esta “existe em vista dele”.
66

CAPÍTULO SEGUNDO

A IGREJA E O MISTÉRIO TRINITÁRIO

Este capítulo visa abordar a dimensão trinitária da Igreja, pois ela é, enquanto termo
ad extra, uma ação de Deus, necessariamente trinitária.119 O projeto salvífico da Igreja implica
a participação das três Pessoas divinas. A sabedoria do Pai, do Filho e do Espírito Santo a con-
cebeu; a bondade do Pai, do Filho e do Espírito Santo a quis; a força do Pai, do Filho e do Es-
pírito Santo a criou.
O Vaticano II, quando se refere à origem da Igreja, sempre o faz como ação das três
Pessoas divinas, revelando sua natureza trinitária. Essa perspectiva encontra, no Concílio Va-
ticano II, sua forma mais elaborada em Ad Gentes 2-4, Lumen Gentium 2-4 e Unitatis Redin-
tegratio 2.

2.1 A Igreja e Deus Pai

Este primeiro ponto abordará a relação existente entre Deus Pai e a Igreja, procu-
rando mostrar que a primeira Pessoa da Santíssima Trindade também é responsável pela
constituição, atuação e continuação da Igreja no tempo, ao longo do percurso da história
humana, visto que ele é o Pai de Jesus Cristo, fundador por excelência da Igreja. Normal-
mente, se mostra, não sem razão, a relação entre a Igreja e Jesus Cristo e o Espírito Santo.
Realmente, a Igreja é obra do Filho e aparece na história por meio da ação do Espírito San-
to, que é o seu cofundador. Assim tem refletido a tradição teológica da Igreja, conforme já
era apontado pela herança patrística120 e, mais recentemente, por diversos teólogos.121

119
Cf. BENI, op. cit., p. 35-38; PHILIPON, M. A Santíssima Trindade e a Igreja. In: BARAÚNA, op. cit., p.
361-383.
120
Por exemplo: AGOSTINHO, De baptismo 6. In: Sources Chrétiennes 35 (1952), p. 75; CIPRIANO, Ora-
tio dominicalis, 23. In: PL 4,553; IRÉNÉE DE LYON, Contre les hérésies. Livre V, 6,1 (Édition critique
67

Entretanto, o itinerário, seguido daqui em diante, quer demonstrar que Deus Pai tem
uma atuação muito particular para com a Igreja. Apesar de ela ser obra de seu Filho, por
meio do Espírito Santo, a Igreja não deixa de refletir a ação do Pai em toda a sua existência.
Mas, para tornar compreensível tal perspectiva, é necessário ter presente a dimensão da
história da salvação. Por essa razão, quando se alude a Deus, não se faz isso apenas pen-
sando no “Deus em si mesmo”, mas também no “Deus para nós”, pois não é suficiente refe-
rir-se a Deus a partir de categorias ônticas e metafísicas; é necessário incluir a categoria
histórico-salvífica.122
E, fundamentado nessa visão, se pode afirmar que a Igreja faz parte do plano de
Deus, e, consequentemente, sem dúvida, a Igreja se constitui em um evento da história da
salvação. Basta lembrar as palavras de Jesus aos discípulos no momento em que se despe-
dia: “Ide, pois, fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do
Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a observar tudo quanto vos mandei. Eis que eu es-
tou convosco, todos os dias, até ao fim do mundo” (Mt 28,19-20). Basta lembrar também o
chamado de Pedro, quando Jesus Cristo lhe deu a missão de apascentar o seu rebanho, co-
mo pedra, sobre a qual ele edifica a Igreja (Mt 16,18-20; Jo 21,15-17).
O Papa Paulo VI expressa essa mesma convicção, ao escrever, recordando as Encí-
clicas Satis Cognitum, de Leão XIII, de 1896 (cf. DS 3301), e Mystici Corporis, de Pio XII,
de 29 de junho de 1943 (cf. DS 3800-3815), na Ecclesiam Suam: “Ambos os documentos
nos oferecem doutrina abundante e luminosa sobre a instituição divina, pela qual Cristo
prolonga no mundo a sua obra de salvação, e sobre a qual recai o nosso discurso” (Ecclesi-
am Suam I).

a) A Igreja nasce de Deus Pai em Jesus Cristo por meio do Espírito Santo

d’après les versions arménienne et latine par A. ROUSSEAU). Paris: Cerf, 1969 (Sources Chrétiennes 153),
p. 73; DÍDIMO DE ALEXANDRIA, Enarratio in Epistolam Secundam S. Petri 3,5. In: PG 39,1774.
121
Entre os teólogos recentes, podem citar-se, por exemplo, CONGAR, Y.M-J. El Espíritu Santo. Barcelona:
Herder, 1991; MOLTMANN, J. O Espírito da vida. Uma pneumatologia integral. Petrópolis: Vozes, 1999.
122
Cf. SCHEFFCZYK, L. Dios. In: RAHNER, K. (Org.). Sacramentum Mundi. Barcelona: Herder, 2:309s.
Aqui está implicitamente presente o problema entre a Trindade imanente e a Trindade econômica, enquanto a
ordem da salvação está estruturada trinitariamente, o que revela Deus em si, de forma imanente. Essa visão da
Santíssima Trindade é resultante de K. Rahner, o qual soube trazer à luz essa perspectiva, que faltava à refle-
xão trinitária precedente, ao criar o axioma “a Trindade econômica é a Trindade imanente e vice-versa” (cf.
RAHNER, K. Escritos de Teología IV. Madrid: Taurus, 1964, p. 117s).
68

Sempre esteve clara, ao longo da tradição oral e teológica da Igreja, conforme ates-
tam os primeiros Símbolos da fé e os Santos Padres, a relação de unidade existente entre o
Espírito Santo e a obra de Jesus Cristo, o que torna a Igreja uma obra do Redentor, levando
a considerar o Espírito Santo como cofundador da Igreja.123 A experiência da Páscoa, cul-
minada no acontecimento de Pentecostes, fez com que os discípulos se entendessem como
uma comunidade messiânica de salvação, continuadora da obra de Jesus Cristo e portadora
da salvação do Filho de Deus ao mundo (cf. At 2,42-47). O Pai envia o Filho, e tudo o que
este faz é feito em nome do Pai, além de ele sempre se comportar como enviado (cf. Mt
10,40; Mc 9,37; Lc 4,43; Jo 4,34). Assim, em todo o acontecimento Jesus Cristo, está pre-
sente o Pai, desde a encarnação até a ressurreição, sendo tudo descrito a partir do Pai como
o agente principal (cf. Gl 4,4; Jo 7,16; 10,18; At 2,23; Rm 10,9; Fl 2,9 e Mc 1,11).124 Nesse
sentido entende-se a afirmação seguinte:
A missão de Cristo e do Espírito Santo realiza-se na Igreja, Corpo de Cristo e
Templo do Espírito Santo. Esta missão conjunta associa a partir de agora os fiéis
de Cristo à sua Comunhão com o Pai no Espírito Santo: o Espírito prepara os
homens, antecipa-se a eles pela sua graça, para atraí-los a Cristo (Catecismo da
Igreja Católica 737).

Entretanto, o intuito, agora, é demonstrar a relação entre a Igreja e Deus Pai, tema
não muito presente na reflexão teológica atual, por isso, verdadeira novidade. A etimologia
da palavra Igreja serve como ponto de partida para tal, ao oportunizar uma reflexão signifi-
cativa. Como já foi aludido no capítulo anterior, a palavra empregada pelos Setenta para
designar a realidade teológica conhecida por Igreja é ekklêsía, que significa a reunião dos
homens convocados por Deus, por isso, a assembleia ou a comunidade convocada pelo Pai.
No uso neotestamentário, a palavra indica a comunidade de salvação, seja a comunidade
universal (2Cor 8,1; 1Ts 2,14), seja a comunidade local (At 2,47; Rm 1,7). O apóstolo Paulo
e o livro dos Atos dos Apóstolos entendem que a assembleia convocada por Deus Pai só
pode subsistir enquanto tem o seu fundamento em Jesus Cristo, pois a Igreja, a assembleia
de homens, é convocada e reunida pelo Pai em Cristo Jesus. Isso porque a Igreja é o grupo

123
É o que será mostrado mais adiante, no terceiro ponto deste capítulo.
124
Para aprofundar essa perspectiva, na qual transparece que a missão salvífica do Filho revela quem é o Pai,
ver SCHULTE, R. L’opera salvifica del Padre in Cristo. In: FEINER, J.; LÖHRER, M. Mysterium Salutis.
Nuovo corso di dogmatica come teologia della storia della salvezza, v. 5. Brescia: Queriniana, 1971, p. 69-
114.
69

de pessoas que Deus chamou para fora do mundo, daí ser a comunidade dos santos enquan-
to Povo de Deus.125
Nesse sentido, pode-se concordar com H. Frankemöle, quando ele afirma que “uma
Igreja cristã pressupõe uma fé na ação de Deus” – daí se constitui a Teologia – “em Jesus
como base e fundamento” – daí se inicia a Cristologia – “do movimento iniciado por Jesus”
– no qual se enraíza a Eclesiologia.126
A pregação de Jesus aponta para a paternidade de Deus, anunciada por ocasião da
chegada da plenitude dos tempos messiânicos, realizada pela encarnação do Verbo (cf. Jo
1,14; Hb 1,1-4), quando ele chama Deus de Pai, seu Abbá (cf. Mt 7,21; 18,10; Mc 14,36; Lc
23,46; Jo 10,29s; Gl 4,6). Porém, o Pai de Jesus não é Pai apenas dele, mas o é, igualmente,
de todas as pessoas (cf. Mt 6,26.32; Jo 14,23). Essa verdade ele demonstra ao ensinar aos
discípulos a oração do Pai-Nosso (Mt 11,1-4), prova de que as pessoas, nele, tornaram-se
verdadeiramente seus filhos: “A nossa filiação não é uma realidade puramente ontológica; o
Espírito Santo, que nos é dado pelo Pai por meio do Verbo feito carne, transforma, inter-
namente, o nosso coração, infundindo-nos confiança e amor filial, para que possamos cha-
mar Deus de ‘Pai’”.127
Como Jesus Cristo é o mediador da graça filial, ele é a porta através da qual o Pai
convida todas as pessoas a entrar para tomarem lugar no banquete trinitário (Jo 14,23),
imagem que expressa a realidade da presença de Deus Pai nos cristãos, tornados seus filhos
mediante o sacramento do Batismo.128
A parábola do banquete nupcial, na qual o pai comemora a festa de casamento do
seu filho (Mt 22,1-14), mostra o banquete faustoso preparado para os da estirpe, mas eles
recusam. Então são convidados os desprezados, e estes enchem a sala do festim. A parábola
mostra que os fariseus e chefes do povo não acreditam no anúncio do Reino de Deus e se
recusam a mudar de vida, enquanto os excluídos e marginalizados acolhem a pregação de

125
Cf. SCHMIDT, K.L. Ekklesía. In: KITTEL, G. Grande Lessico del Nuovo Testamento. Brescia: Paideia,
1968, 4:1490-1580.
126
FRANKEMÖLLE. Iglesia-Eclesiología. In: EICHER, op. cit., p. 500.
127
ALFARO, J. Deus. In: FRIES, H. (Org.). Dicionário de Teologia. Conceitos fundamentais da teologia
atual. São Paulo: Loyola, 1970, p. 411.
128
Cf. DURRWELL, F.X. Il Padre. Dio nel suo mistero. Roma: Città Nuova, 1995, p. 81.
70

Jesus. Quer dizer que o destino das pessoas se decide na tomada de posição diante do con-
vite último e, por isso, definitivo, que Deus Pai – o rei da parábola – lhes dirige.129
A Escritura recorre frequentemente a imagens espaciais, para explicar e descrever a
comunhão que o Pai realiza com os homens e as mulheres em Jesus Cristo. Por exemplo, a
sala do banquete, preparada para os servos fiéis, é a casa do Pai (Mt 22,1; Lc 14,15); a ima-
gem do Templo também indica a casa do Pai (1Cor 3,16), e a compreensão da Igreja como
a reunião “em Deus Pai e no Senhor Jesus Cristo” (1Ts 1,1). Mas a presença de Deus não é
local simplesmente, enquanto circunscrita por um espaço, o que torna a Igreja não uma
simples coletividade, mas uma verdadeira comunidade, com origem no Pai, reunida, por-
tanto, em sua paternidade, e no Filho por ele gerado (Rm 1,7; 1Ts 1,1).
E essa presença é pessoal em cada um dos fiéis (1Cor 6,19) e, como tal, é recíproca
enquanto pessoal. De um lado, a Igreja está em Deus Pai e em Nosso Senhor Jesus Cristo;
de outro lado, o Pai e o Cristo habitam os fiéis: “Mas vem a hora, e já chegou, em que os
verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade; estes são os adoradores
que o Pai deseja” (Jo 14,23). O Espírito Santo está no coração dos fiéis (cf. Rm 5,5), e os
fiéis vivem e se santificam por meio do Espírito Santo (Rm 8,9; 15,16). A inabitação é recí-
proca. Por essa razão, São Paulo transformou a expressão “estais em Cristo Jesus” (cf. 1Cor
1,30) em “o próprio Cristo em vosso meio” (cf. Cl 1,27).
Essa presença é uma comunhão de pessoas. A presença do Pai e do Filho nos fiéis é
em base de amor. É por isso que esta pressupõe nele a presença do Espírito Santo, que é
amor. O Pai, o Filho e o Espírito Santo estão presentes, cada um a seu modo, no fiel, por-
que cada um é uma Pessoa de modo diverso.

b) O amor do Pai santo nos torna filhos e nos chama à santidade na Igreja santa

Deus é amor e santidade: dois atributos que fazem parte de sua essência, mas que,
ao mesmo tempo, atingem profundamente todo ser humano. E esse Deus, amoroso e santo,
tornou-se, em Cristo, verdadeiramente Pai para Jesus e para os homens e mulheres renasci-
dos pela água e pelo Espírito (cf. Jo 3,1-21).130

129
BARBAGLIO, G.; FABRIS, R.; MAGGIONI, B. Os Evangelhos (I). São Paulo: Loyola, 1990, p. 325-328.
130
GRINGS, D. Nosso Deus: Pai, Filho e Espírito Santo. Porto Alegre: [s.n.], 1974, p. 62.
71

Com a expressão “Deus é amor” (1Jo 4,8), o evangelista João explica a fonte da
caridade. Essa é a realidade que salta aos olhos, quando alguém, seja quem for, reflete com
profundidade a história da salvação e tenta penetrar no mistério do Deus que a planeja e a
executa. Necessariamente, o evento da nova aliança coloca a pessoa humana perante o mis-
tério, ao mesmo tempo maravilhoso e insondável, do amor de Deus e de seus caminhos (cf.
Gl 2,2; Rm 11,33).
O amor de Deus chama, gratuitamente, a pessoa a entrar em comunhão com ele. E
esse plano de salvação foi revelado com paciência após longa preparação, até que, ao che-
gar a plenitude dos tempos, foi dado a conhecer em Jesus Cristo (Ef 1,1-10). Desde a cria-
ção, passando pela encarnação, até chegar à redenção, Deus se revela como amor. É por
isso que Jesus estabelece, no amor a Deus e ao próximo, o primeiro dos mandamentos (cf.
Lc 10,25-28). E amar o próximo se torna sinal do amor a Deus (Mt 5,20-26; 1Jo 3,17), por-
que ele “nos amou primeiro e deu sua vida por nós” (1Jo 3,14). E a prova do amor do Pai
pela humanidade é o envio de seu Filho, para realizar a obra da salvação (1Jo 4,9).
A Sagrada Escritura apresenta, em diversos textos, a santidade de Deus como uma
das suas características: “E clamavam uns para os outros: ‘Santo, santo, santo é o Senhor
todo-poderoso, e toda terra está cheia de sua glória’” (Is 6,3). Com efeito, as pessoas, esco-
lhidas por ele, devem manter um novo relacionamento com Deus: “Porque eu sou o Senhor
vosso Deus. Santificai-vos e sede santos, porque eu sou santo. Não vos mancheis, pois, com
nenhum réptil que se arrasta pelo chão” (Lv 11,44; 19,2). E continua: “Sede santos para
mim, porque eu, o Senhor, sou santo. Eu vos separei dos outros povos para serdes meus”
(Lv 20,6). E esse relacionamento novo implica o abandono de qualquer prática estranha,
alheia à confiança radical em Deus: “Serão santos para Deus e não lhe profanarão o nome,
pois são eles que oferecem os sacrifícios pelo fogo ao Senhor, o alimento de Deus. Deverão
ser santos” (Lv 21,6). E ainda mais: “Se alguém recorrer aos médiuns e adivinhos, prosti-
tuindo-se com eles, eu voltarei minha face contra ele e o eliminarei do meio do povo” (Lv
20,6). E Cristo conclui, no sermão da montanha, ao mostrar a nova justiça como superior à
antiga: “Portanto, deveis ser perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48).
Com fundamento nesses textos, pode-se perguntar o que significa a santidade de
Deus. Vislumbra-se uma resposta a partir da seguinte explanação:
72

A bondade ou o poder, a justiça ou a misericórdia, todas as qualidades que atribu-


ímos a Deus conhecemo-las – por experiência – no plano humano. A santidade
está em outra ordem, bem distinta. Se dizemos que um homem é santo, coloca-
mo-lo fora do comum dos mortais, na esfera do divino. A santidade pertence ex-
clusivamente a Deus. É um mistério oculto nele. Um mistério que ele nos reve-
lou. A aclamação solene do tríplice santo provém da liturgia celeste.131

A santidade de Deus aparece como um chamado de sua parte. O Pai chama as pes-
soas para se tornarem seus filhos (cf. Ef 1,5). O verbo chamar, do grego kaleîn, assume uma
relevância particular, pois vem compreendido como vocação. Ao chamar os homens em
Jesus Cristo, Deus Pai convida para todos participarem da história da salvação, aceitando
seu convite amoroso. Daí esse verbo converte-se em palavra técnica, para indicar o chama-
do de Deus para a salvação.132
Nesse sentido, com F.X. Durrwell, pode-se entender que chamado e graça são sinô-
nimos.133 O chamado e a graça têm a origem no Pai (cf. Gl 1,3.6), enquanto o efeito é filial
(cf. Ef 1,5). A graça de Deus quer o intercâmbio e a comunhão 134; por isso, toda a criação
foi feita em vista do Filho, centro e fim do mundo (cf. Cl 1,15-20). Assim, o Pai é a fonte
de todo dom, ou seja, de toda graça, e também o efeito naquele que a recebe.
Por essa razão, as pessoas são chamadas, isto é, vocacionadas para a santidade, que
acontece ao aceitarem participar na obra da salvação. As exigências da lei antiga aparecem
exclusivamente a partir deste princípio: sereis para mim um povo consagrado (cf. Ex 19,4).
A única coisa que se exige é que a pessoa não se agarre desesperadamente à terra. Donde a
exigência de Deus: vós vos santificareis e sereis santos, porque eu sou santo (cf. Lv 11,44).
No Novo Testamento, na narração do episódio da anunciação, Maria canta a santi-
dade de Deus: santo é seu nome (cf. Lc 1,49). O nome de Deus é santificado, e o “santo”
que nascer dela será chamado “Filho de Deus” (cf. Lc 1,35). Nele se realiza a santidade de
Deus e inicia a irradiação da santidade entre os seres humanos, pois ele veio para santificar
o mundo e apontar o caminho da santidade. É como responde o apóstolo Pedro a Jesus:
“Simão Pedro respondeu: ‘Senhor, para quem iríamos? Tu tens palavras de vida eterna. Nós
acreditamos e sabemos que tu és o Santo de Deus’” (Jo 6,68-69).

131
BOISMARD, M.E. Grandes temas bíblicos. Madrid, 1968, p. 79-80. Apud GRINGS, op. cit., p. 53.
132
SCHMIDT, K. L. kaléô. In: KITTEL, op. cit., 4:1453-1464.
133
Cf. DURRWELL, op. cit., p. 75.
134
Cf. GUILLET, J. Graça. In: LÉON-DUFOUR, X. Vocabulário de Teologia Bíblica. Petrópolis: Vozes,
1972, col. 387s.
73

Paulo repete, seguidamente, que os cristãos são santos. Aliás, antes de os seguidores
de Jesus serem conhecidos como cristãos, foram chamados de santos. Com efeito, Deus os
chamou para tal, como escreve Paulo aos romanos: “A vós todos que estais em Roma,
amados de Deus, e chamados à santidade, graça e paz da parte de Deus nosso Pai e do Se-
nhor Jesus Cristo” (Rm 1,7). Convém ressaltar que não se trata de uma atitude meramente
moral, embora a santidade desemboque em uma vida ética correta, segundo os princípios
morais estabelecidos por Deus. Contudo, santidade, para o cristão, significa, antes de tudo,
pertença a Deus. Quem é de Deus é santo, pois Deus chamou para tal (cf. 1Cor 6,11).
Da santidade de Deus brota, portanto, a filiação divina:

Vede que prova de amor nos deu o Pai: sermos chamados filhos de Deus. E nós o
somos! Se o mundo não nos conhece, é porque não o conheceu. Caríssimos, des-
de já somos filhos de Deus, mas o que nós seremos ainda não se manifestou. Sa-
bemos que, por ocasião desta manifestação, seremos semelhantes a ele, porque o
veremos tal como ele é (1Jo 3,1-2).

De modo amplo, pode-se dizer que a filiação divina exprime que o ser humano deve
a vida e a existência a Deus, que reconhece a sua absoluta dependência e submissão total a
ele. Contudo, a pessoa tem direito de dirigir-se a Deus com confiança absoluta.135
Gregório Nazianzeno assim expressa essa realidade:

Convinha que a santidade fosse dada ao homem mediante a humanidade assumi-


da por Deus. Convinha que ele triunfasse desse modo sobre o tirano que nos sub-
jugava, para nos restituir a liberdade e reconduzir-nos a si através de seu Filho,
nosso Mediador; e Cristo realizou, de fato, esta obra redentora para a glória de
seu Pai, que era o objetivo de todas as suas ações.136

E Agostinho acrescenta: “Na verdade, que graça maior Deus poderia nos conceder
do que, tendo um Filho único, fazê-lo Filho do homem e reciprocamente fazer os filhos dos
homens serem filhos de Deus?”137
A expressão “filho de Deus” é tipicamente neotestamentária, pois ela é estranha ao
Antigo Testamento, que não conhece a ideia de uma filiação divina natural do homem. A
expressão é encontrada no Antigo Testamento, mas com significados diversos e nunca para

135
BLINZLER, J. Filho(s) de Deus. In: BAUER, J. Dicionário de Teologia Bíblica. São Paulo: Loyola, 1984,
p. 428.
136
GREGÓRIO NAZIANZENO, Sermões 45,9. In: PG 36,634.
137
AGOSTINHO, Sermo 185. In: PL 38,997-999.
74

indicar o indivíduo como tal.138 A relação pai-filho serve de analogia para indicar a filiação
divina por parte do ser humano. E assim é usada por Cristo, para mostrar a relação do ser
humano com o seu Pai. Isso acontece, quando ele ensina, por exemplo, os discípulos a re-
zar, pois os leva a se dirigirem a Deus como Pai (cf. Mt 6,9; Lc 11,2). Por essa razão, a fili-
ação divina dos cristãos se baseia em que estes foram adotados por Deus como filhos (cf.
Rm 8,15.23; Gl 4,5; Ef 1,5), indicando a nova relação do ser humano para com Deus, surgi-
da através da ação salvífica deste.139
Tornar todos os seres humanos filhos de Deus foi o objetivo do envio de Jesus Cris-
to ao mundo: “Quando, porém, chegou a plenitude do tempo, enviou Deus o seu Filho, nas-
cido de uma mulher, nascido sob a Lei, para remir os que estavam sob a Lei, a fim de que
recebêssemos a adoção filial” (Gl 4,4). Paulo exprime essa verdade com as seguintes ex-
pressões: “Somos filhos de Deus” (Rm 8,16); “vós todos sois filhos de Deus pela fé em
Cristo Jesus” (Gl 3,26); “e porque sois filhos” (Gl 4,6). A pessoa adquire essa qualidade de
filho de Deus através do Batismo, recebido com fé (Gl 3,26s). Mais exatamente: o Espírito
é recebido pelos crentes em Cristo no Batismo e produz a filiação divina: “Todos os que
são conduzidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus” (Rm 8,14s).
Ninguém pode pôr em dúvida a condição de filhos de Deus de todos os batizados,
que acontece por meio da fé na Igreja (Gl 3,26). Ela prossegue a missão de Jesus Cristo, e,
nesse sentido, todos os que recebem o sacramento do Batismo, administrado pela Igreja, em
obediência ao mandato de Jesus Cristo, conforme se encontra em Mt 28,18-20, tornam-se,
verdadeiramente, filhos de Deus, e este, na realidade, Pai de todos os batizados. Por esse
motivo, a paternidade de Deus para com os batizados realiza-se, hoje, na fé e pela Igreja,
formando um só Corpo em Jesus Cristo (cf. 1Cor 12,13.27).
A partir dessa compreensão, pode-se entender que o ministério apostólico da prega-
ção do Evangelho é participação na atividade trinitária, pois tal pregação está enraizada na
apostolicidade da Igreja, visto que proclama a fé recebida de Jesus Cristo por meio dos Do-
ze, como testemunha Paulo, escolhido como apóstolo pelo próprio Cristo, após a ressurrei-
ção: “Paulo, apóstolo – não da parte dos homens nem por intermédio de um homem, mas
por Jesus Cristo e Deus Pai que o ressuscitou dentre os mortos” (Gl 1,1).140

138
BLINZLER, op. cit., p. 429.
139
Ibid., p. 431.
140
Cf. DURRWELL, op. cit., p. 89.
75

E a apostolicidade lembra a catolicidade da Igreja, que a torna uma comunidade


missionária. Com efeito, a missionariedade da Igreja decorre do mandato recebido de Jesus
Cristo, pelo qual ela deve dilatar o Povo de Deus até os confins do mundo e em todos os
tempos, fruto da dinâmica da salvação universal, dirigida a todos os povos e culturas. Afir-
ma o Concílio Ecumênico Vaticano II: “Todos os povos são chamados a pertencer ao novo
Povo de Deus. Por isso este povo, permanecendo uno e único, deve estender-se a todo o
mundo e por todos os tempos, para que se cumpra o desígnio da vontade de Deus” (Lumen
Gentium 13).
E Deus Pai exerce a sua paternidade de modo universal, no sentido de que ele es-
tende o seu paterno amor, bondade e providência a cada pessoa em particular, mesmo aos
pecadores. E isso ele o faz, hoje, por meio da Igreja, que, por esse motivo, se torna sacra-
mento de salvação para a humanidade, uma vez que ela é sinal de Cristo para a humanidade
e realiza a união entre o ser humano e Deus, como expressa o Concílio Ecumênico Vatica-
no II: “E porque a Igreja é em Cristo como que o sacramento ou o sinal e instrumento da
íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano” (Lumen Gentium 1).
O mesmo documento dedica todo o capítulo quinto a explanar a vocação à santidade
na Igreja. G. Philips faz notar que é vocação à santidade na Igreja e não da Igreja, justifi-
cando a nuança, no sentido de que a santidade é um aspecto característico e essencial da
comunidade cristã, embora incompleto.141 A Igreja é santa, no sentido escriturístico, a partir
da compreensão veterotestamentária. Enquanto mistério da efusão divina, a Igreja só pode
ser santa e santificante, em sentido ontológico e dinâmico. Deus só é santo e, como tal,
amou a Igreja e santificou-a, purificando-a (cf. Ef 5,25-26). E cada fiel é chamado a essa
santidade, de acordo com a vontade de Deus: “a nossa purificação” (1Ts 4,1-8).
A cada membro da comunidade cristã compete a busca cotidiana de fazer acontecer
a santidade na Igreja. Com efeito, o cristão realiza sua vocação à santidade como membro
da Igreja santa, à qual todos são chamados, sem distinção, como mostra a mesma Constitui-
ção:
O Senhor Jesus, Mestre e Modelo divino de toda a perfeição, a todos e a cada um
dos discípulos de qualquer condição pregou a santidade de vida da qual Ele mes-
mo é o autor e consumador, dizendo: “Sede, portanto, perfeitos, assim como tam-
bém vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48) (Lumen Gentium 40).

141
PHILIPS, op. cit., p. 391.
76

c) O Pai nos alimenta por meio da Eucaristia...

A Eucaristia, instituída na última Ceia, na noite em que Jesus foi entregue (Mt
26,26-29; Mc 14,22-25; Lc 22,19-20; 1Cor 11,23-27), como memorial de sua morte e res-
surreição, tem também uma dimensão futura, enquanto alimento que prepara e conduz o
cristão para a glória futura:
Na última Ceia, na noite em que foi entregue, nosso Salvador instituiu o Sacrifí-
cio Eucarístico de seu Corpo e Sangue. Por ele, perpetua pelos séculos, até que
volte, o Sacrifício da Cruz, confiando dessarte à Igreja, sua dileta Esposa, o me-
morial de sua Morte e Ressurreição: sacramento de piedade, sinal de unidade,
vínculo de caridade, banquete pascal, em que Cristo nos é comunicado em ali-
mento, o espírito é repleto de graça e nos é dado o penhor da futura glória (Sacro-
sanctum Concilium 47).

Assim, na perspectiva do futuro, a Eucaristia é a antecipação do banquete escatoló-


gico do Messias, preparado pelo Pai: “Em verdade, em verdade, vos digo: não foi Moisés
quem vos deu o pão do céu, mas é meu Pai que vos dá o verdadeiro pão do céu” (Jo 6,32).
Todo aquele que recebe o corpo e o sangue do Senhor Jesus Cristo olha para a casa do Pai,
à qual espera chegar, após as labutas desta vida terrena.142 É como diz o apóstolo Paulo:
“Todas as vezes, pois, que comeis desse pão e bebeis desse cálice, anunciais a morte do
Senhor até que ele venha” (1Cor 11,26).
Como memorial da Páscoa de Cristo, a Eucaristia torna presente a salvação humana,
realizada pela vida, morte e ressurreição de Cristo. E toda vez que a Igreja a celebra, lembra
a promessa feita pelo Filho de Deus: “Eu vos digo: desde agora não beberei deste fruto da
videira até aquele dia em que convosco beberei o vinho novo no Reino do meu Pai” (Mt
26,29). Como tal, a comunidade eclesial, por meio da Eucaristia, se volta para “aquele que
vem” (Ap 1,4), suplicando “Maran atha” (1Cor 11,26), “Vem, Senhor Jesus” (Ap 22,20).
A Igreja sabe que, desde agora, o Senhor vem na sua Eucaristia, e que ali ele está,
no meio de nós. Contudo, esta presença é velada. Por isso, celebramos a Eucaris-
tia “expectantes beatam spem et adventum Salvatoris nostri Jesu Christi – aguar-
dando a bem-aventurada esperança e a vinda de nosso Salvador Jesus Cristo” pe-
dindo “saciar-nos eternamente da vossa glória, quando enxugardes toda lágrima
dos nossos olhos. Então, contemplando-vos como sois, seremos para sempre se-
melhantes a vós e cantaremos sem cessar os vossos louvores, por Cristo, Senhor
nosso”. Desta grande esperança, a dos céus novos e da terra nova nos quais habi-
tará a justiça, não temos penhor mais seguro, sinal mais manifesto do que a Euca-
ristia. Com efeito, toda vez que é celebrado este mistério, “opera-se a obra da
nossa redenção” e nós “partimos um mesmo pão, que é remédio de imortalidade,
antídoto, não para a morte, mas para a vida eterna em Jesus Cristo” (Catecismo
da Igreja Católica 1404-1405).

142
Cf. ZILLES, U. Os sacramentos da Igreja Católica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995, p. 179.
77

A Eucaristia tem a dimensão de ação de graças ao Pai, pois no conceito de Eucaris-


tia se recolhe o pensamento de louvor do Antigo Testamento (berakah; cf. eulogía143), pelas
obras admiráveis do Criador em favor de seu povo – da sua humanidade. Na celebração
eucarística se concentra toda a história da salvação: criação, redenção e santificação, como
ações permanentes de Deus Trino, e não simplesmente como ações isoladas de cada uma
das três Pessoas divinas. Nessa perspectiva, passado, presente e futuro se reúnem na cele-
bração da Eucaristia, que é, no dizer do documento de Lima, n. 4, “o grande sacrifício de
louvor, pelo qual a Igreja fala no nome de toda a criação”.144 A seguir, o mesmo documento
continua, ao realçar que a Eucaristia revela ao mundo aquilo que ele deve tornar-se: “uma
oferta e um louvor ao Criador, uma comunhão universal no Corpo de Cristo, um reino de
justiça, de amor e de paz no Espírito Santo”.145
Enquanto o cristão aguarda o cumprimento da promessa alimentado pela Eucaristia,
Jesus Cristo deixou o sacramento da Penitência, como meio de se conseguir o perdão dos
pecados e purificar-se, preparando-se para gozar as alegrias sem fim da futura casa do Pai.
O capítulo 15 de evangelho de Lucas retrata simbolicamente o amor misericordioso de
Deus Pai. As duas primeiras parábolas, a da ovelha e da dracma perdidas, tratam da procu-
ra, e a terceira, da conversão. Porém, nas três está presente a alegria de Deus pelo reencon-
tro (v. 6, 9 e 32). Mas é, particularmente, a parábola do filho pródigo (Lc 15,11-32) que
mostra o mistério do perdão de Deus e a conversão do pecador, que estava perdido (Lc
15,32). Ainda demonstra que ali se encontram dois elementos: a procura de Deus Pai e a
busca do pecador pela acolhida do Pai, dois aspectos complementares no perdão.146 Portan-
to, Jesus trata de fazer compreender a misericórdia divina do Pai, através da terceira pará-

143
Cf. STOEGER, A. Ação de graças. In: BAUER, op. cit., p. 4-10.
144
CONSELHO MUNDIAL DE IGREJAS. Batismo, Eucaristia e Ministério. Rio de Janeiro: CONIC/CEDI,
1983, p. 26.
145
A partir dessa perspectiva, acontece uma ruptura com uma concepção restrita da Eucaristia à transubstan-
ciação, referida apenas ao pão e ao vinho, que, na verdade, não deixa de sê-lo, mas que não pode conter todo
o sentido profundo da celebração eucarística – o mistério da presença de Deus na Eucaristia (cf. HILBE-
RATH, B. J.; SCHNEIDER, T. Eucaristía. In: EICHER, op. cit., p. 382).
146
GEORGE, A. A leitura do evangelho segundo Lucas (Cadernos Bíblicos – 13). São Paulo: Paulinas, 1982,
p. 81.
78

bola, esclarecedora da exortação de Jesus: “Sede misericordiosos como o vosso Pai é mise-
ricordioso” (Lc 6,36).147
Por essa razão, pode-se afirmar que a Igreja adquire, hoje, uma face misericordiosa,
uma vez que ela deve manifestar ao mundo a misericórdia do Pai, testemunhando seu amor
misericordioso para com os homens e as mulheres, de modo particular para aqueles que
vivem em uma situação de desamparo, sofrimento, dor, doença, solidão, violência, explora-
ção, enfim, de exclusão. São lapidares as palavras de João Paulo II:
A Igreja deve professar e proclamar a misericórdia divina em toda a verdade, tal
como nos é transmitida pela Revelação. [...] A Igreja vive uma vida autêntica
quando professa e proclama a misericórdia, o mais admirável atributo do Criador
e Redentor, e quando aproxima os homens das fontes da misericórdia do Salva-
dor, das quais ela é a depositária e dispensadora (Dives in Misericordia 13, grifos
do autor).

Ecoam ainda as palavras proferidas pelo Papa João Paulo II em sua Mensagem para
a celebração do Dia Mundial da Paz, de 1º de janeiro de 1999, quando ele une a paz com o
respeito aos direitos da pessoa humana:
A fé ensina-nos que toda a pessoa foi criada à imagem e semelhança de Deus. Pe-
rante a recusa do homem, o amor do Pai celeste permanece fiel; o seu amor não
tem fronteiras. Ele enviou o Filho Jesus para redimir toda a pessoa, restituindo-
lhe plenamente a sua dignidade. Diante de tal atitude, como poderemos excluir
alguém de nossos cuidados? Pelo contrário, devemos reconhecer nos mais pobres
e marginalizados que a Eucaristia, comunhão do Corpo e Sangue de Cristo ofere-
cido por nós, nos compromete a servir.148

É nesse sentido que o Papa João Paulo II, ao convocar a Igreja ao triênio preparató-
rio ao ano 2000, alude ao sacramento da Penitência como meio privilegiado de conversão
na sociedade atual, exigência do amor cristão:
Neste terceiro ano, o sentido do “caminho para o Pai” deverá impelir todos a em-
preenderem, na adesão a Cristo Redentor do homem, um caminho de autêntica
conversão, que compreende seja um aspecto “negativo” com a libertação do pe-
cado, seja um aspecto “positivo” com a escolha do bem, expresso pelos valores
éticos contidos na lei natural, confirmada e aprofundada pelo Evangelho. É este o
contexto adequado para a descoberta e a intensa celebração do sacramento da
Penitência, no seu significado mais profundo. O anúncio da conversão, qual exi-
gência imprescindível do amor cristão, é particularmente importante na sociedade
atual, onde tantas vezes parecem perdidos os próprios fundamentos de uma visão
ética da existência humana (Tertio Millennio Adveniente 50, grifos do autor).

147
O Papa João Paulo II desenvolve esse tema em sua Audiência Geral sobre “O Pai”, de 16 de outubro de
1985 (cf. JOÃO PAULO II. Creo en Dios Padre. Catequesis sobre el Credo (I). Madrid: Ediciones Palabra,
1996, p. 148s).
148
PAPA JOÃO PAULO II, “No respeito dos direitos humanos o segredo da verdadeira paz” (Mensagem de
Sua Santidade João Paulo II para a celebração do Dia Mundial da Paz – 1º de janeiro de 1999). L’Osservatore
Romano (Edição Semanal em Português) n. 51, ano XXIX (19 de dezembro de 1998), p. 20.
79

d) O Pai prepara e conduz seus filhos até a sua casa

O Pai, generoso e misericordioso, o Deus de amor e de santidade, alimenta seus


filhos com a Eucaristia, preparando-os para o encontro definitivo com ele em sua casa,
aprontada desde a fundação do mundo (cf. Mt 25,34; Ap 7,9).
A imagem da casa não é estranha ao Novo Testamento, que tem acepções diversas.
Um dos sentidos está em conexão com os Setenta, aplicando ao santuário terreno de Israel o
título honorífico de “casa de Deus”. Entretanto, no Novo Testamento, nenhum edifício sa-
cro ou eclesiástico vem designado como “casa de Deus”, expressão usada para designar a
comunidade cristã, como, por exemplo, em Hb 3,6; 1Pd 4,17 e 1Tm 3,15.
A imagem da comunidade, a Igreja, qual “casa de Deus” está manifestamente cone-
xa com a mensagem antiga do “templo de Deus” (1Cor 3,16; 6,19), da qual se desenvolveu.
Na carta aos Efésios e na primeira de Pedro, vem retomado o motivo do novo templo espi-
ritual (Ef 2,19-22; 1Pd 2,3ss; 4,17; 1Tm 3,15). Os cristãos são inseridos na construção quais
“pedras vivas” (1Pd 2,4s; Ef 2,22), onde se encontram as imagens de templo celeste, sacer-
dócio santo e sacrifício agradável a Deus.149
O uso frequente da expressão “casa” no Novo Testamento também indica a comuni-
dade cristã. As comunidades do cristianismo primitivo foram organizadas em famílias ou
em grupos familiares, que se reuniam nas casas. Estas se converteram em núcleos comuni-
tários e lugares de encontro, constituindo verdadeiras comunidades domésticas cristãs. Fa-
la-se da casa de Estéfanas (1Cor 1,16), de Filêmon (Fl 2), de Cornélio (At 11,14) e de Lídia
(At 16,15), para só citar algumas. Assim, a vida cristã se desenvolve em torno da casa.150
Por outro lado, nos Evangelhos, além de significar a casa como tal (Mt 5,15; 7,24ss;
10,12a) e a família (Mt 10,12b; 12,25; Mc 6,4), pode também significar o Reino de Deus. É
o caso de Jo 8,35, onde se pode ver, veladamente, um sentido de Reino de Deus. Em Jo
14,2s, a expressão “na casa de meu Pai há muitas moradas” pode significar que a casa do
Pai tem um “lugar de repouso” à disposição dos discípulos de Jesus, que são perseguidos,
pois “morada” significa “lugar de repouso”.

149
MICHEL, O. Oîkos. In: KITTEL, op. cit., 8:357-358.
150
Ibid., 8:366. E. Schillebeeckx destaca a importância das reuniões domiciliares das comunidades cristãs
primitivas como a base pastoral de todo o movimento cristão (cf. SCHILLEBEECKX, E. Plaidoyer pour le
peuple de Dieu. Paris: Du Cerf, 1987, p. 55-58).
80

No entanto, os discípulos entrarão na casa do Pai somente na Parusia, pois a expres-


são “casa do Pai” não vem isolada das expressões “casa de Deus” e “templo de Deus”. Em
2 Cor 5,1-10, a imagem da casa, por meio da expressão “morada terrestre”, significa o cor-
po mortal que se tem aqui na terra, opondo-se ao conceito de “habitação celeste”, a ser tida
no futuro, após a morte. Em 1Cor 6,19, a imagem da tenda indica a caducidade do corpo
terreno. No Antigo Testamento, os textos de Is 38,12 e Sb 9,15 oferecem a possibilidade de
também ser interpretada nesse sentido.151
Como o texto precedente abre perspectiva escatológica, é preciso analisar algumas
parábolas de Jesus, para reconhecer a Deus como Pai, o Abbá de Jesus (cf. Gl 4,6), pois “a
pregação escatológica de Jesus revela verdadeiramente a Deus”.152 É o que será feito a se-
guir, a partir da abordagem de duas parábolas.

A primeira parábola é a semente que germina por si só, a qual se encontra em Mc


4,26-29. Inicialmente, é uma parábola sem paralelos nos outros dois sinóticos. Indica a rea-
lidade do Reino de Deus: o homem lança a semente e continua a sua vida normal. Ela ilus-
tra a situação do homem perante o Reino de Deus, estabelecendo um contraste entre a vida
tranquila do agricultor e o misterioso germinar, crescer e amadurecer da semente.
A dimensão escatológica está presente no ponto culminante da parábola, que é a
chegada da colheita, coroamento da espera e do processo de crescimento. Assim acontece
com o Reino de Deus: encaminhado o processo, por meio do anúncio, ele chegará, certa-
mente, ao cumprimento pela força irresistível e misteriosa que o sustenta, a força de Deus, e
não através da ação de pessoa alguma. Contudo, a parábola não é um convite ao quietismo
e à preguiça, mas é uma proposta de esperança, a qual se fundamenta na promessa de eficá-
cia do Reino de Deus, que amadurece, é verdade, independentemente do trabalho humano,
mas, ao mesmo tempo, não dispensando a responsabilidade e liberdade do ser humano e de
suas opções históricas.153

151
MICHEL, O. Oikía. In: KITTEL, op. cit., 8: 368-377.
152
SCHLOSSER, J. Le Dieu de Jésus. Étude exégétique. Paris: Du Cerf, 1987, p. 262.
153
BARBAGLIO; FABRIS; MAGGIONI, op. cit., p. 466-467.
81

A segunda parábola é a dos trabalhadores da vinha154, de Mt 20,1-15, que retrata


muito bem a situação escatológica, por meio do chamado dos trabalhadores e do pagamento
ao final do dia. A trama da parábola é comandada pelo evangelho de Marcos, como contex-
to próximo: Mt 19,16-30 corresponde a Mc 10,17-31, enquanto Mt 20,17-28 corresponde a
Mc 10,32-45. A parábola propicia uma interpretação teológica esclarecedora para o tema da
escatologia. A cena apresenta três elementos: um patrão que recruta para a sua vinha; ope-
rários que trabalham; e uma distribuição de salário. O domínio do econômico é metáfora
para as grandezas de esfera ética e religiosa.
Nessa parábola estão em jogo a questão da retribuição de Deus e a prestação religio-
sa do homem, visto que estão presentes, primeiro, a questão da relação entre Deus e a ideia
da retribuição e, depois, a relação entre a justiça e a bondade. O princípio da igualdade en-
tre trabalho e salário ficou mantido, pois o princípio “tal trabalho, tal salário” não é recusa-
do. Assim, o Deus-Rei se ateve à regra, e a murmuração se revela injustificável. Além do
mérito, ele revela a sua bondade. A parábola mostra a situação concreta de Jesus, que é
acusado por ser amigo dos publicanos e pecadores. Ele é atacado e se defende, evocando o
Deus que o mandou, que não lesa o bom direito do justo, mas vai muito além. Ele se mostra
verdadeiramente bom e faz o bem àqueles que não têm direito para fazer valer seus direitos,
mas apenas apresentam necessidades e deficiências.
Jesus convida seus ouvintes a reconhecer no seu comportamento a forma concreta
que toma a ação salvífica, oferecida por Deus em favor dos pecadores, no momento da che-
gada do Reino. O agir de Jesus é o agir de Deus Pai: “Eis por que Jesus não se pode expli-
car sem colocar Deus em causa”.155 O Reino de Deus vem como evento de graça e de per-
dão. A parábola insere-se no quadro como autodefesa de Cristo contra os ataques dos ad-
versários por ter acolhido os excomungados e rejeitados, causando descontentamento por
parte dos fariseus. Daí, foi constrangido a defender-se.156
Movido por bondade, especialmente para os necessitados e esquecidos, o Pai prepa-
ra o banquete do Reino de Deus, que foi crescendo, aqui na terra, misteriosamente, pela
ação de seu poder, contando com o trabalho humano. Nos Evangelhos, há muitas passagens
em que o tempo messiânico é descrito como festa nupcial (Mt 9,15; 25,1ss; Mc 2,19; Jo

154
Sigo aqui SCHLOSSER, op. cit., p. 213-233.
155
DUPONT, J. Pourquoi des paraboles? Paris, 1977, p. 36 apud SCHLOSSER, op. cit., p. 233.
156
BARBAGLIO; FABRIS; MAGGIONI, op. cit., p. 305-307.
82

3,29). Mas é o livro do Apocalipse que mostra a Igreja como a esposa e Cristo como o es-
poso (cf. Ef 5,27): “As núpcias do Cordeiro se realizarão no fim escatológico, quando ele
aceitará a Igreja, perfeita e purificada” (Ap 19,7-9; 21,2; 22,17).157 Então, todos os que fo-
rem dignos estarão sendo recebidos na casa do Pai. E o tema da possibilidade de admissão
será o amor – conforme Jesus revela no final do discurso escatológico (cf. Mt 25,31-46) –,
que, muito mais do que o juízo, é o mundo em sua realização última, como ação divina ple-
nificadora.158
O Papa João Paulo II expressa muito bem o zelo de Deus Pai ao preparar a Igreja,
em Jesus Cristo e no Espírito Santo, desde toda a eternidade:
Toda a vida cristã é como uma grande peregrinação para a casa do Pai, de quem
se descobre todos os dias o amor incondicional por cada criatura humana e, em
particular, pelo “filho pródigo” (cf. Lc 15,11-32). Tal peregrinação parte do ínti-
mo da pessoa, alargando-se depois à comunidade crente até alcançar a humanida-
de inteira (Tertio Millennio Adveniente 49, grifos do autor).

2.2 A Igreja e Jesus Cristo

A afirmação de que a Igreja deriva, ao menos de algum modo, de Cristo é aceita por
todos hoje, mesmo no meio protestante, embora permaneça aberta a questão sobre o sentido
em que deriva de Cristo.
Alguns escritores defendem a tese de que os apóstolos, após a morte, ressurreição e
ascensão de Cristo, ter-se-iam reunido novamente e ele teria esperado por isso. A Teologia
protestante da atualidade afirma que não corresponderia à sua intenção a constituição, pelos
discípulos, de uma nova comunidade escatológica de salvação, independente da judaica, em
contraposição ao povo de Israel.159 Os argumentos evocados para justificar tal tese são a espe-
rança de Jesus no próximo aparecimento do Reino de Deus, sua consciência de ter sido envia-
do somente aos filhos perdidos da casa de Israel (Mt 10,8) e a negação, por parte de teólogos
evangélicos, da sucessão da primazia do apóstolo Pedro, em quem veem apenas um modelo

157
MCKENZIE, J.L. “Matrimônio”. In: MCKENZIE, J.L. Dicionário Bíblico. São Paulo: Paulinas, 1984, p.
595.
158
Como exemplo, cf. DURRWELL, op. cit., p. 96.
159
Cf. KÜMMEL, W. G. Síntese Teológica do Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1974, p. 142-155.
83

para os dirigentes futuros, diante do texto de Mt 16,18, aduzido como prova da pretensão de
Jesus de fundar uma Igreja.160
O modernismo também nega a intenção de Jesus de fundar a Igreja. A. Loisy, faleci-
do em 1940, afirma que Jesus anunciou o Reino de Deus e o que apareceu foi a Igreja, dando a
entender que a Igreja não é a continuação do Reino de Deus nem querida por Jesus.161
Hoje se pode afirmar, indubitavelmente, que Jesus Cristo é o fundador da Igreja,
sendo ela fruto de sua intenção clara e opção segura. O texto de Mt 16,18-20 não pode ser
apresentado como única prova a favor da fundação da Igreja por parte dele. Decisiva foi a pre-
paração da Igreja durante toda a sua vida terrena, através de sua existência, palavras e ações,
mas ele não a constituiu. Isso foi obra do Espírito Santo no dia de Pentecostes. Essa prepara-
ção significa ter Jesus colocado os elementos que constituíram os alicerces da Igreja.
M. Schmaus afirma que, se o povo de Israel tivesse correspondido à mensagem de
Jesus, ele não teria fundado uma comunidade messiânica de salvação diferente daquela do
Antigo Testamento. Mas isso aconteceu pela dureza dos corações do povo da antiga aliança,
que impediu a renovação da mesma aliança, visto que o povo de Israel não aceitava a sua
mensagem de renovação da antiga aliança.162 Por isso, diante dessa negativa, Jesus foi colo-
cando elementos que prepararam a Igreja. E esses elementos são os seguintes:

1- fundamentos na encarnação: a vida total de Jesus, como o Lógos feito homem, o


Verbo feito carne (Jo 1,14), forma o fundamento para a constituição total da Igreja. Os aconte-
cimentos salvíficos constituem uma unidade de salvação, não podendo ser separados. Alguns
Santos Padres falam de um anteprojeto da Igreja já em tempos antes de Cristo;
2- os acontecimentos salvíficos da encarnação, morte, ressurreição e vinda do Espíri-
to Santo se constituem como origem histórica da Igreja: ela é obra da Trindade – Deus uno e
trino –, criada por ela, por isso a Igreja espelha e reflete a vida de Deus em três Pessoas (cf. Ef
1,1-5; Lumen Gentium 4 e Unitatis Redintegratio 2). A nova humanidade iniciada pelo Lógos
continua hoje presente na Igreja por meio do Espírito Santo;

160
Como exemplo: CULLMANN, O. Pedro. Discípulo – apóstolo – mártir. São Paulo: ASTE, 1964, p. 254-269.
Uma resposta, por parte de um teólogo católico, encontra-se em RATZINGER, J. Compreender a Igreja hoje.
Vocação para a comunhão. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 13-17.
161
LOISY, A. L’Évangile et l’Église. Paris: Du Cerf, 1902, p. 111. H. Frankemölle é de opinião de que essa frase
é normalmente mal interpretada, pois A. Loisy pretendia expressar a impossibilidade de pensar o Reino de Deus
sem estruturas sociais e desenvolvimentos históricos (cf. FRANKEMÖLLE, op. cit., p. 501).
84

3- a última Ceia: foi o ato de maior alcance para a fundação da Igreja, pois sua pre-
sença não é recordação vazia, mas palavra plena de realidade (“Fazei isto em memória de
mim”). O culto antigo é abolido e o novo distingue os cristãos dos não seguidores de Jesus;
4- o chamado dos discípulos e a escolha dos Doze: foi um dos acontecimentos mais
importantes da vida pública de Jesus, preparado por uma noite de oração, como iniciativa ex-
clusiva de Deus. Recorda o chamado dos homens do Antigo Testamento aos quais Deus confi-
ou tarefas especiais (Abraão, Moisés e os profetas). Ele mesmo os chamou e os vinculou a sua
Pessoa, e não a uma tradição rabínica. Os “Doze” aparecem como a prefiguração simbólica do
novo Povo de Deus, como os novos patriarcas da nova comunidade messiânica de salvação;
5- Paulo como apóstolo: os elementos constitutivos do ser apóstolo são o encontro
com o ressuscitado (1), o encargo pessoal dele recebido (2) e a convivência com o Senhor
durante a sua vida terrena (3). A vocação e autorização provenientes da parte de Cristo são
indispensáveis. Paulo não conheceu o Jesus histórico, mas ele tem consciência de estar preso e
atado às palavras de Jesus pela experiência às portas de Damasco. Os outros não contestam o
título de apóstolo que ele se atribui, mas não o introduzem no círculo dos Doze. Ele é designa-
do apóstolo dos gentios no Concílio de Jerusalém;
6- plenitude do poder apostólico: Mt 18,18 é dirigido ao grupo dos Doze, significan-
do o tríplice poder: a) declarar algo como sendo permitido ou proibido; b) impor uma obriga-
ção ou suspendê-la; c) excluir alguém da comunidade e readmiti-lo. Aqui está pressuposta a
unidade entre o poder disciplinar e o poder doutrinal. As decisões dos apóstolos têm alcance
externo e jurídico e interno e espiritual, obrigando no âmbito da consciência;
7- a missão de Pedro, conforme expressam Mt 16,13-19; Lc 22,27-32; Jo 21,15s.
8- a missão do Espírito: é o ponto culminante da ação de Jesus para formar a Igreja.
Em Pentecostes, foi determinada e concretizada a estrutura da Igreja, o Povo de Deus do Novo
Testamento, não apenas pela vontade de Jesus Cristo, mas também pela decisão dos homens
por ele chamados e determinados. O que o Espírito Santo deu aos discípulos foi a compreen-
são correta, que estava faltando, de Jesus Cristo e da sua obra.163

162
Sobre esse argumento ver SCHMAUS, op. cit., p. 26.
163
Cf. SCHMAUS, op. cit., p. 28-49.
85

Portanto, a Igreja é obra de Deus, uno e trino. Não há duas Igrejas: uma, querida e
fundada por ele; outra, a que está aqui e vemos. Única e una é a Igreja, assim como Deus é um
e uno. Não levaríamos a sério a obra de Deus, se não procurássemos compreender por que ele
fundou sua Igreja. A busca da resposta não pode esquecer que a solução encontrada por nós é
sempre fragmentada, pois os planos salvíficos de Deus ultrapassam nossa compreensão. Não
se pode separar o sentido da Igreja de seu ser. Assim explica a Lumen Gentium:
Esta Igreja, constituída e organizada neste mundo como uma sociedade, subsiste na
Igreja Católica governada pelo sucessor de Pedro e pelos Bispos em comunhão com
ele, embora fora da sua visível estrutura se encontrem vários elementos de santifi-
cação e verdade. Estes elementos, como dons próprios à Igreja de Cristo, impelem à
unidade católica. Mas assim como Cristo consumou a obra da redenção na pobreza e
na perseguição, assim a Igreja é chamada a seguir o mesmo caminho a fim de comu-
nicar aos homens os frutos da salvação (n. 8).

Ele, porém, inculcando com palavras expressas a necessidade da fé e do Batismo (cf.


Mc 16,16; Jo 3,5), ao mesmo tempo confirmou a necessidade da Igreja, na qual os
homens entram pelo Batismo como por uma porta (n. 14).

2.3 A Igreja e o Espírito Santo

O objetivo deste terceiro ponto é explicitar a relação entre o Espírito Santo e a Igre-
ja, pois, desde o início, deve-se reconhecer a estreita relação entre ambos. Através dos es-
critos do Novo Testamento, se chega à convicção de que, por meio do Espírito Santo, se
constitui a comunidade de salvação, a Igreja, que nasceu, no tempo, mediante a ação do
Espírito Santo, que o Redentor enviou após a sua ascensão (cf. Lc 24,44-53; At 2,1-13).
A partir dessa afirmação, é necessário, desde logo, apontar para a unidade entre o
Espírito Santo e a obra de Jesus Cristo, o que torna a Igreja uma obra do Redentor, levando
a considerar o Espírito Santo como cofundador da Igreja. Durante a sua vida pública, Jesus
Cristo foi tomando diversas providências para fundar a Igreja, estabelecendo uma nova
comunidade messiânica de salvação e fundando uma nova aliança e um novo Povo de
Deus. Mas é o Espírito Santo quem faz a Igreja acontecer na história, por ocasião da efusão
de seus dons em Pentecostes, quando os apóstolos se reúnem e se entendem como a comu-
nidade de Jesus Cristo, o Messias Redentor, diferente daquela do velho Israel, em virtude
da experiência da Páscoa e da vinda do Espírito Santo (cf. At 2,42-47). É por isso que, para
o evangelista Lucas, o tempo da Igreja é o tempo da manifestação e da ação do Espírito
Santo (At 1,2.5.8.16; 2,4.18).
86

É o que transparece nos Símbolos da fé, desde o início, que sempre apresentam o
Espírito Santo unido à Igreja de Jesus Cristo. O Símbolo de 381 acrescenta ao Símbolo de
Niceia, de 325, “creio no Espírito Santo, Senhor que dá a vida, e procede do Pai e do Filho;
e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado: ele que falou pelos profetas” (DS 150). De-
pois, segue o artigo sobre a “Igreja una, santa, católica e apostólica”.
Os Santos Padres também têm a mesma visão. Santo Agostinho une sempre a santa
Igreja com o Espírito Santo, do qual ela é o Templo.164 Esse era o sentido da confissão de fé
apostólica e batismal, com sua estrutura trinitária. Cipriano usa a expressão “um povo reu-
nido pela unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo” para falar sobre a Igreja165, o que
vem citado pelo Vaticano II, na Lumen Gentium 4, a fim de mostrar a realidade secreta,
reafirmada na fé, de que Deus reúne um povo de todos os povos, que é Povo de Deus. San-
to Ireneu expressa poeticamente, na imagem das duas mãos de Deus, a ideia de que a Igreja
procede de duas missões, a do Verbo e a do Espírito.166 Ele apresenta os apóstolos insti-
tuindo e fundando a Igreja, ao comunicar aos crentes o Espírito que eles tinham recebido do
Senhor.167
Isso significa que o Espírito Santo não vem apenas dar vigor à estrutura da Igreja,
mas é, verdadeiramente, seu cofundador, animando-a por dentro. Portanto, a relação não é
de mera “assistência” à Igreja, mas é essencial a ponto de constituí-la. Dídimo de Alexan-
dria escreve que o Espírito Santo, divino e magnífico, é autor, guia e promotor da Igreja.168
Como exemplo, pode-se recorrer aos sete sacramentos, que foram instituídos por Cristo,
mas a determinação do número e dos sinais sacramentais foi estabelecida pela Igreja, sob a
guia do Espírito Santo.169 Enfim, pode-se dizer que a Igreja é obra do Espírito Santo.

164
AGOSTINHO, De baptismo 6. In: Sources Chrétiennes 35 (1952), p. 75.
165
CIPRIANO, Oratio dominicalis, 23. In: PL 4,553.
166
“Deus será glorificado na sua criatura, conformada e modelada ao seu próprio Filho, pois, pelas mãos do
Pai, isto é, por meio do Filho e do Espírito, o homem, e não uma sua parte, torna-se semelhante a Deus”
(IRENEU DE LIÃO. São Paulo: Paulus, 1995, p. 530). Também em IRÉNÉE DE LYON, Contre les hérésies.
Livre V, 6,1 (Édition critique d’après les versions arménienne et latine par A. ROUSSEAU. Paris: Du Cerf,
1969 (Sources Chrétiennes 153), p. 73.
167
IRÉNÉE DE LYON, Démonstration de la prédication Apostolique 41. Nouvelle traduction de l’Arménien
avec introduction et notes par L. M. FROIDEVAUX. Paris: Du Cerf, 1971 (Sources Chrétiennes 62), p. 96 e
nota 4.
168
DÍDIMO DE ALEXANDRIA, Enarratio in Epistolam Secundam S. Petri 3,5 (PG 39,1774).
169
Sobre esse argumento, acrescido da resposta dada à crítica de Lutero, que só via fundamento escriturístico
para o Batismo, Eucaristia e Penitência, e que, em se falando dos sacramentos, é o Espírito Santo quem guia e
inspira a Igreja na determinação dos sete sacramentos e dos sinais sacramentais, ver Y. CONGAR, El Espíritu
Santo, p. 212s.
87

Nele, ela adquire o seu “eu”, a sua identidade. Assim, ela passa a ser pessoal, uma
verdadeira comunhão na comunidade. Ele foi dado à Igreja e nela permanece pela presença
plenificadora, instruindo-a e guiando-a, dando-lhe vida e movimento. Não se pode esquecer
que o que acontece na Igreja é, ao mesmo tempo, ação das pessoas. Assim, o Espírito Santo
chega a identificar-se com a comunidade. Visto que ele é compreendido como o amor intratri-
nitário divino, a Igreja se torna uma comunidade de amor, não só como associação de pessoas,
mas como uma aliança selada pelo amor de Deus, a exemplo das alianças do Antigo Testamen-
to.
A Lumen Gentium, no capítulo primeiro, dedicado ao mistério da Igreja, expõe a
obra do Espírito Santo. O terceiro parágrafo, todo inteiro, manifesta a sua ação santificado-
ra:
Consumada, pois, a obra que o Pai confiara ao Filho realizar na terra (cf. Jo 17,4),
foi enviado o Espírito Santo no dia de Pentecostes, a fim de santificar perenemen-
te a Igreja, para que assim os crentes pudessem aproximar-se do Pai por Cristo
num mesmo Espírito (cf. Ef 2,18) (Lumen Gentium 4).

Essa frase sintetiza toda a economia da salvação de forma densa. O Concílio, em-
pregando diversos textos de João e Paulo, manifesta o papel do Espírito Santo na vida da
Igreja: ele santifica-a continuamente, com uma ação ao mesmo tempo purificadora e reno-
vadora.170 Ele, pois, santifica, habita, guia na verdade, unifica e rejuvenesce a Igreja. E o
Concílio finaliza a exposição com o emprego da já conhecida expressão de Cipriano: “Des-
ta maneira aparece a Igreja como ‘o povo reunido na unidade do Pai e do Filho e do Espíri-
to Santo” (Lumen Gentium 4).
Por essa razão, também se pode considerar a Igreja como objeto da fé, conforme
retratam os Catecismos de Trento e do Vaticano II. Cremos na Igreja una, santa, católica e
apostólica, relacionando esses atributos com sua causa divina e a ordem da graça. Diz o
Catecismo de Trento:
Quanto à Igreja, porém, usamos outra maneira de exprimir nossa fé, pois que pro-
fessamos crer a santa Igreja, e não na santa [Igreja]. Pela diferença de fórmula,
damos a entender a distinção entre Deus Criador e as coisas criadas, e nos admi-
ráveis dons conferidos à Igreja não vemos senão benefícios da bondade divina.171

O mesmo afirma o atual Catecismo:

170
PHILIPON, M. A Santíssima Trindade e a Igreja. In: BARAÚNA, op. cit., p. 366s.
171
CATECISMO ROMANO, Parte Primeira, artigo 9, n. 20 (ed. Frei LEOPOLDO PIRES MARTINS, Petró-
polis: Vozes, 1951, p. 176s).
88

Crer que a Igreja é “santa’ e “católica”, e que ela é “una” e “apostólica” (como
acrescenta o Símbolo niceno-constantinopolitano), é inseparável da fé em Deus
Pai, Filho e Espírito Santo. No Símbolo dos Apóstolos, fazemos profissão de crer
uma Igreja Santa (“Credo... Ecclesiam”), e não na Igreja, para não confundir
Deus e as suas obras, e para atribuir claramente à bondade de Deus todos os dons
que ele colocou na sua Igreja (Catecismo da Igreja Católica 750).

a) O Espírito Santo é a alma da Igreja

Há uma tradição teológica que emprega a simbologia da relação existente entre a


alma e o corpo humano para exprimir a união íntima entre o Espírito Santo e a Igreja. Os
Santos Padres usam a expressão de que o Espírito Santo é a alma da Igreja, ou a alma do
Corpo de Cristo, para expressar essa união. Essa analogia tem um significado muito pro-
fundo, pois indica a sua ação e a sua missão próprias para com ela. O Espírito Santo anima
a Igreja, suscitando e distribuindo os seus dons. É o que escreve São Paulo: “Há diversida-
de de dons, mas o Espírito é o mesmo” (1Cor 12,4).172
Essa alma, à qual se referem os Santos Padres, não é uma alma que constitua um
todo substancial com o corpo, pois o Espírito Santo é transcendente à Igreja, apesar de ser,
também, imanente a ela, enquanto age nela. Também não é o espírito da Igreja, mas o Espí-
rito de Deus. Nesse sentido, afirma H. Küng:
Neste contexto está-se a pensar no Espírito de Deus, o Espírito Santo que, en-
quanto santo, é rigorosamente diferençado do espírito humano e do mundo. Não
se trata de qualquer fluido mágico, misterioso e sobrenatural, ente dinâmico ou
feitiço do tipo animista; trata-se do próprio Deus na sua doação e entrega pessoal,
ou seja, como poder que se dá, mas de que não se pode dispor, como força cria-
dora da vida que é. É o próprio Deus, enquanto, com misericordioso poder, con-
quista o domínio do interior da pessoa, do coração da pessoa, da pessoa inteira;
enquanto lhe está presente interiormente e se manifesta eficazmente ao espírito
humano.173

O Espírito Santo realiza na Igreja a função que a alma exerce no corpo, ao estar pre-
sente no Corpo de Cristo, que é a Igreja. O mesmo Espírito está presente, ao mesmo tempo,
na cabeça, que é Jesus Cristo, e em seus membros, que são os batizados, os fiéis. Santo
Tomás se pergunta o que une os fiéis entre eles e com Deus. E a resposta aponta para uma
unidade específica: os dons da graça têm uma raiz comum, a caridade – por mais diversos

172
CIRILO DE ALEXANDRIA, Commentarium in Joannis Evangelium XI, 11 (PG 74,561); AGOSTINHO,
Sermo 71,12,18 (PL 38,454); Sermo 267,4,4 (PL 38,1231); Sermo 268,2 (PL 38,1232); IRENEU, Adversus
Haereses III, 24,1 (Sources Chrétiennes 221, p. 470-474); AGOSTINHO, Sermo 267, 4,4 (PL 38,1231); Ser-
mo 268,2 (PL 38,1232); GREGÓRIO MAGNO. In: In septem Psalmos Poenitentiales Expositio, Psal V,1 (PL
79,602).
173
KÜNG, H. A Igreja, v. 1. Lisboa: Moraes Editores, 1969, p. 234, grifos do autor.
89

que sejam –, que tem por base o mesmo Espírito Santo, pessoalmente idêntico em todos e
princípio transcendente de unidade.174
A Lumen Gentium explica muito bem essa função do Espírito Santo em relação à
Igreja:
O Espírito Santo habita na Igreja e nos corações dos fiéis como num templo (cf.
1Cor 3,16; 6,19). Por ele o Pai vivifica os homens mortos pelo pecado, até que
em Cristo ressuscite seus corpos mortais (cf. Rm 8,10-11). Neles ora e dá teste-
munho de que são filhos adotivos (cf. Gl 4,6; Rm 8,15-16 e 26). Leva a Igreja ao
conhecimento da verdade total (cf. Jo 16,13). Unifica-a na comunhão e no minis-
tério. Dota-a e dirige-a mediante os diversos dons hierárquicos e carismáticos. E
adorna-a com seus frutos (cf. Ef 4,11-12; 1Cor 12,4; Gl 5,22). Pela força do
Evangelho, ele rejuvenesce a Igreja, renova-a perpetuamente e leva-a à perfeita
união com seu Esposo. Pois o Espírito e a Esposa dizem ao Senhor Jesus: “Vem”
(cf. Ap 22,17) (Lumen Gentium 4).

b) A vida segundo o Espírito Santo

A moral cristã é motivada e regida pelo próprio Filho de Deus: “A Lei do Espírito
da vida em Cristo Jesus te libertou da lei do pecado e da morte” (Rm 8,2). Mas o Espírito
Santo, fonte da vida cristã, é a norma que regula essa mesma vida. São Paulo exorta: “Se
vivemos pelo Espírito, pelo Espírito pautemos também a nossa conduta” (Gl 5,25). Pois ser
cristão é levar uma vida totalmente dominada por Cristo (cf. Cl 1,27). Portanto, ele realiza,
personaliza e interioriza a vida em Cristo.175
Por essa razão, o apóstolo Paulo contrapõe o velho ao novo homem, convidando-o a
manter a pureza do corpo e das ações, porque todo batizado é templo do Espírito Santo (cf.
1Cor 6,19-20; Cl 3,1-5). É o Espírito Santo quem faz maturar a vida cristã até produzir fru-
to: “Mas o fruto do Espírito é amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade,
fidelidade, mansidão, autodomínio. Contra estas coisas não existe lei. Pois os que são de
Cristo Jesus crucificaram a carne com suas paixões e seus desejos” (Gl 5,22-24).
A moral cristã, no Espírito, torna o cristão livre. É o que recorda o apóstolo Paulo na
carta aos Romanos, em todo o capítulo sétimo, quando fala da nova Lei, iniciada por meio
da morte e da ressurreição de Jesus Cristo (cf. Rm 7,7-13), acentuando que o cristão vive no
Espírito: “A Lei do Espírito da vida em Cristo Jesus te libertou da lei do pecado e da morte.

174
Cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO, Sententiae III, d. 13, q. 12, a. 1 ad 2; q. 2, a. 1 ad 2; q. 2, a.2; De Veri-
tate, q. 29, a. 4; Coração e alma da Igreja: Summa Theologiae III, q. 8, a.1 ad 3; PIO XII, Mystici Corporis 54
e 77; Lumen Gentium 7 (parágrafo 7).
175
Expressões usadas por CONGAR, El Espíritu Santo, p. 305.
90

[...] Pois, se viverdes segundo a carne, morrereis, mas, se pelo Espírito fizerdes morrer as
obras do corpo, vivereis” (Rm 8,2.13).
Toda a moral cristã é aberta para uma verdadeira humanização, construindo comu-
nhão, no Espírito, da qual decorrem as três virtudes teologais:

a) a fé: afirma François-Xavier Durrwell que aqui se manifesta, novamente, a com-


plexa unidade da ação do Espírito e de Cristo. O Espírito conduz a pessoa a acolher a Cristo
na fé, e, ao acolhê-lo, o crente vem submetido à ação ressuscitante e justificante do Espíri-
to. O Espírito é causa e efeito; é o início e o fim: ninguém pode crer em Jesus Cristo a não
ser por meio do Espírito (cf. 1Cor 12,3), pois “pela fé recebemos o Espírito prometido” (Gl
3,14)176;
b) a esperança: a virtude teologal da esperança cria, ao mesmo tempo, uma certeza e
um desejo. A certeza repousa em um encontro atual com Jesus Cristo, porque ele veio e
cumpriu todas as promessas, visto ele ser o Emanuel, o Deus conosco (cf. Mt 1,23), segun-
do as Escrituras. O desejo não é outra coisa que a presença do Espírito no coração dos cris-
tãos, que realiza a comunhão com Deus (2Cor 1,20-22) e traz a esperança da salvação (Rm
8,16s.23-30; Ef 1,13-14). O desejo está ligado diretamente a Cristo, por isso o apóstolo
Paulo recorda a atividade da fé, o esforço da caridade e a perseverança da esperança dos
fiéis em nosso Senhor Jesus Cristo (cf. 1Ts 1,3), que se “converteram dos ídolos”, para
“servirem ao Deus vivo e verdadeiro” (cf. 1Ts 1,9s), e aguardam o encontro definitivo com
ele (cf. 1Cor 1,9; Cl 1,27)177;
c) a caridade: é a virtude que se torna fonte das demais (cf. 1Cor 21,31), porque
sintetiza toda a lei: “Pois toda a lei está contida numa só palavra: Amarás a teu próximo
como a ti mesmo” (Gl 5,14). Também porque é uma virtude escatológica, por colocar o
cristão a caminho da plenitude final: “Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. A
caridade jamais passará. Quanto às profecias, desaparecerão. Quanto às línguas, cessarão.
Quanto à ciência, também desaparecerá” (1Cor 13,7-8).178

176
DURRWELL, op. cit., p. 139.
177
Cf. ibid., p. 141.
178
Cf. ibid., p. 136.
91

Enfim, a vida em Cristo, sob a ação do Espírito Santo na Igreja, é uma vida filial,
que levará à obediência e busca constante, segundo Y. Congar, da conformidade amante e
fiel da vontade de Deus, sem negar a inteligência e a dignidade próprias do ser humano.179
Portanto, o núcleo da vida filial consiste na união com Cristo por meio da oração (cf. Lc
10,21; 11,2; Jo 17,1; Mt 6,9) no Espírito Santo.
Jesus Cristo está presente na Igreja por seu Espírito. O que o Espírito Santo fez para
a constituição da Igreja continua fazendo no decorrer da história. Isso está em Jo 14,15-26;
16,5-15. Testemunho dado pelos Atos: 4,1-22; 6,3.5s; 7,51; 16,7. O Espírito dá testemunho de
Jesus Cristo (Lc 24,44-49; At 1,4-8). Hoje adquire a forma humana, por meio da vida da co-
munidade, ao inspirar os carismas, os efeitos extraordinários e ministérios (cf. 1Cor 12).

2.4 A Igreja como comunhão

“Comunhão” é uma palavra antiga, correspondente ao termo koinonía, que tem um


lugar central no Novo Testamento, onde ocorre dezenove vezes. Mais frequentemente significa
comunicação ou participação (1Cor 10,16), mas também, como consequência da participa-
ção, união comum, comum empenho (cum munus) de todos, segundo o próprio carisma e a
própria vocação particular (Ef 4,12-13.16).
Nesse sentido, a Igreja, Corpo misterioso de Cristo, será verdadeiro “sacramento de
salvação”, sinal significante de Jesus Cristo, na medida em que for “comunhão”. Esse atributo
revela-se como conceito-chave para compreender a Igreja e a devida relação entre esta e Cris-
to, mostrando-se, igualmente, como o processo essencial de existência da Igreja e da existên-
cia na Igreja, enquanto sua missão de ser luz e alma do mundo se constitui em um verdadeiro
programa permanente para os cristãos.
Sua origem e modelo encontram-se na comunhão trinitária (cf. Jo 17; 1Jo 1,1-4),
pois a comunhão vem do amor de Deus por nós e está manifestada em todo o seu desígnio
salvífico, como demonstra a economia da salvação.180 Por isso, a comunhão eclesial é um dom
de Deus, uno e trino, e, como tal, nunca simplesmente humana, não se explicando somente por
razões humanas a permanência da Igreja na unidade. Ela acontece porque Deus Trino dá esse

179
Ibid., p. 312.
180
Sobre a dimensão ecumênica da comunhão, ver CERETI, G. Per un’Ecclesiologia Ecumenica. Dehoniane:
Bologna, 1996, p. 67-96.
92

dom, proveniente do alto, à sua Igreja.181 Depois, segue o esforço operoso do trabalho huma-
no, que leva a corresponder à graça divina.
Esse conceito tem um significado básico de comunhão com Deus da qual se participa
mediante a palavra e os sacramentos, tendo como consequência a comunhão dos cristãos entre
si, que se realiza na communio das Igrejas Locais fundadas mediante a Eucaristia. S. Pié-Ninot
é de opinião de que, desse modo, se chega ao sentido técnico de communio, de acordo com o
conceito e a realidade vivida na Igreja antiga e apreciada pelas Igrejas orientais.182
O esforço de fazer acontecer uma sempre maior comunhão vem acompanhado da
necessária consciência da dimensão escatológica da Igreja. Enquanto ajuda a manter viva a
consciência de sua finalidade supra-histórica e, consequentemente, de cada cristão, auxilia a
manter a Igreja com os pés no chão, no sentido de aceitar as dificuldades inerentes à sua con-
dição humana, que são fruto da tensão entre a graça e o pecado, repudiando qualquer ideali-
zação da Igreja ou a tentação de não reconhecer na Igreja atual aquela fundada por seu Mestre
e Senhor.
Aos poucos se destacou que a visão eclesiológica do Vaticano II implica a ideia de
comunhão, embora a Igreja nunca se tenha definido, até então, desse modo, como provam os
textos de Lumen Gentium 4, 8, 13-15, 18, 21, 24; Dei Verbum 10; Gaudium et Spes 32; Unita-
tis Redintegratio 2-4, 14s, 17-19, 22.
O nível estrutural dessa comunhão encontra-se na fórmula eclesiológica da Lumen
Gentium: “E os Bispos, individualmente, são o princípio visível e o fundamento da unidade
em suas Igrejas Particulares, formadas à imagem da Igreja universal, nas quais e pelas quais
existe a Igreja Católica una e única” (Lumen Gentium 23). S. Pié-Ninot interpreta que, nesse
texto, há uma conjugação entre a Eclesiologia de comunhão do primeiro milênio e a Eclesio-
logia jurídica da unidade do segundo milênio que está bem explicitada na expressão communio

181
Essa Eclesiologia caracteriza-se por fundamentar a comunhão humana a partir da comunhão trinitária.
Assim explica o Sínodo de 1985: “A Eclesiologia de comunhão é a ideia central e fundamental dos documen-
tos do Concílio. Koinonía- comunhão, fundada na Sagrada Escritura, é tida em grande honra na Igreja antiga e
nas Igrejas orientais até nossos dias. Por isso, muito se tem feito desde o Concílio Vaticano II para que a Igre-
ja como comunhão seja entendida de maneira mais clara e traduzida de modo mais concreto na vida” (SÍNO-
DO EXTRAORDINÁRIO DOS BISPOS, Relatio Finalis, ponto II, letra C, n.1).
182
Cf. PIÉ-NINOT, op. cit., p. 30. Ele ainda afirma que esse conceito teve grande influência nos Decretos
sobre as Igrejas orientais (Orientalium Ecclesiarum) e sobre o Ecumenismo (Unitatis Redintegratio).
93

hierarchica, de acordo com Lumen Gentium 22, “com a qual se liga o ministério episcopal à
Igreja universal, concretamente com o Papa e o colégio episcopal”.183
A partir do Sínodo Extraordinário de 1985, foi priorizada a Eclesiologia de comu-
nhão como a mais característica e fundamental do Vaticano II, embora existam outras Ecle-
siologias possíveis. Ao afirmar a centralidade desse conceito nos documentos do último Con-
cílio ecumênico, explica-o da seguinte forma:
Que significa a complexa palavra “comunhão”? Trata-se fundamentalmente de
comunhão com Deus por Jesus Cristo no Espírito Santo. Tem-se essa comunhão
na Palavra de Deus e nos sacramentos. O Batismo é a porta e o fundamento da
comunhão na Igreja. A Eucaristia é a fonte e o ápice de toda a vida cristã (cf. LG
11). A comunhão do corpo de Cristo eucarístico significa e produz, isto é, edifica
a íntima comunhão de todos os fiéis no Corpo de Cristo que é a Igreja (cf. 1Cor
10,16) (Relatio Finalis II, C, n.1).

Tal compreensão acarreta consequências práticas para a vida sinodal da Igreja, no


que tange, por exemplo, à relação colegialidade-primado, ao Sínodo dos Bispos, às Conferên-
cias Episcopais etc. O Sínodo dos Bispos destaca que

a Eclesiologia de comunhão não pode ser reduzida a meras questões organizacionais


ou a problemas que concernem unicamente às questões de poder. Todavia, a Eclesio-
logia de comunhão é também fundamento para a ordem na Igreja e sobretudo para
uma correta relação entre unidade e pluriformidade na Igreja (Relatio Finalis II, C,
n.1).

Sistematicamente, o Papa João Paulo II tem se referido à Eclesiologia de comunhão


cada vez que escreve sobre a Igreja. É o caso, por exemplo, da Exortação Apostólica Chris-
tifideles Laici, sobre a vocação e a missão dos leigos na Igreja e no Mundo. O capítulo se-
gundo parte da Igreja como mistério de comunhão, para justificar a participação dos fiéis
leigos na Igreja.
Ainda mais esta se evidencia, quando, a 28 de maio de 1992, a Congregação para a
Doutrina da Fé publica a Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre alguns aspectos da
Igreja entendida como comunhão, para reforçar a compreensão da Igreja enquanto comu-
nhão integrada ao conceito de Povo de Deus e de Corpo de Cristo e a relação entre a Igreja
como comunhão e a Igreja como sacramento. Assim se expressa sobre a Eclesiologia de
comunhão:

183
PIÉ-NINOT, op. cit., p. 31.
94

O conceito de comunhão está no “coração da autoconsciência da Igreja”, enquan-


to Mistério da união pessoal de cada homem com a Trindade divina e com os ou-
tros homens, iniciada na fé e orientada para a plenitude escatológica na Igreja ce-
leste, embora sendo já desde o início uma realidade na Igreja sobre a terra (Carta
aos Bispos da Igreja Católica sobre alguns aspectos da Igreja entendida como
comunhão n. 3-6).

Inúmeros teólogos têm se dedicado a refletir sobre esse tema. Dentre eles, podem-se
citar Yves Congar184, Jean Zizioulas185, Jean Rigal186, Severino Dianich187 e Jean-Marie
Roger Tillard.188
A Eclesiologia de comunhão revela-se como adequada para unir dois aspectos que,
de per si, tendem a ser entendidos separadamente: o teológico e o pastoral, a comunhão e a
missão, ou seja, a essência e a práxis. O “em si” e o “para nós” da Igreja.189
Assim a Igreja poderá viver a comunhão internamente (ad intra) e promovê-la ex-
ternamente (ad extra), a partir do modelo da unidade trinitária, conforme pede Jesus Cristo
à sua Igreja. O Vaticano II recorda que o amor de Deus não se pode separar do amor ao
próximo e que há certa semelhança entre a unidade das Pessoas divinas e a união dos filhos
de Deus na verdade e caridade (cf. Gaudium et Spes 24).

184
Entre as diversas obras de Y. Congar, podem-se citar Esquisses du mystère de l’Église (Paris: Du Cerf,
1941), Ministères et communion ecclésiale (1971), Diversités et communion (1982) e Parole et le Souffle
(1984).
185
Além de diversos artigos, o referido autor escreveu a obra L’Eucharistie, quelques aspects bibliques dans
l’eucharistie (Tours: Mame, 1970).
186
RIGAL, J. L’ecclésiologie de communion. Son évolution historique et ses fondements. Paris: Du Cerf,
1997, 392p.
187
DIANICH, S. La Chiesa mistero di comunione. Genova: Marietti, 1987, 190p.
188
TILLARD, J-M. R. Église d’Églises. L’ecclésiologie de communion. Paris: Du Cerf, 1987; Chair de
l’Église, chair du Christ. Aux sources de l’ecclésiologie de communion. Paris: Du Cerf, 1992; L’Église
locale. Ecclésiologie de communion et catholicité. Paris: Du Cerf, 1995.
189
Ver comentário a respeito da integração desses dois aspectos em KLOPPENBURG, B. A Igreja entendida
como comunhão. In: Revista do Clero da Arquidiocese do Rio de Janeiro, XXIX (agosto de 1992), p. 17-19.
95

CAPÍTULO TERCEIRO

AS NOTAS DA IGREJA

Os termos “notas, propriedades ou dimensões”190, aplicados à Igreja, exprimem o


que ela é em si mesma e ajudam a entender o seu mistério através da linguagem humana. As
notas afirmam a veracidade da Igreja: por meio das quatro notas sabemos onde se encontra a
verdadeira Igreja, por isso tornam-se “sinais distintivos” da Igreja. Mas o interesse dessas re-
flexões é dogmático, e não apologético, pois seu objeto é a inteligência da Igreja.191 Assim,
elas são, indubitavelmente, propriedades da Igreja reunidas, porque emanam de sua natureza
intrínseca. Também são inseparáveis umas das outras, mas distinguidas apenas para a reflexão
teológica, pois convivem numa correlação interna e presença recíproca.192
As notas (una, santa, católica e apostólica) já estão presentes no Símbolo de Epifânio,
de 374 (DS 42), e se originam de Cirilo de Jerusalém, por volta de 343 (DS 41). Depois vêm
confirmadas pelo Concílio de Constantinopla, em 381 (DS 150), já presentes, anteriormente,
no Símbolo de Niceia (cânon 8 - DS 55).
A história dos termos é longa. Na Idade Média, o mais usado é conditio, que designa
o estado ou a qualidade que fundamenta a verdade de um predicado atribuído a uma dada rea-
lidade. Santo Tomás usa-o no seu comentário ao Símbolo; Jacó de Viterbo, na sua obra De
regimine christiano; Jacó Le Moine e Guido Verani, ao comentar a Unam Sanctam; aparecen-
do, também, nos tratados De Ecclesia contra os seguidores de Huss e o movimento conciliaris-
ta. Nos séculos XV e XVI, encontra-se o termo signa, com significado semelhante ao anterior.
As palavras qualitates, indoles, ratio, praerogativa e proprietates foram empregadas no decor-
rer do século XVI com significado similar a notas. Por fim, prevalece a palavra nota e, tam-

190
Como bibliografia básica: AUER, J. La Iglesia. In: AUER, J.; RATZINGER, J. Curso de Teología
Dogmática, t. VIII. Barcelona: Herder, 1986, p. 342-351; BENI, op. cit., p. 341-378; BOFF, L. Igreja, carisma e
poder. Perópolis: Vozes, 1981, p. 172-195; CONGAR, Y.; ROSSANO, P. Proprietà essenziali della Chiesa. In:
FEINER; LÖHRER. Mysterium Salutis, v. 7, p. 439-707; DIANICH, S. La Chiesa, mistero di communione.
Genova: Marietti, 1987; KÜNG, v. 2, op. cit., p. 9-151; MONDIN, op. cit., p, 271-294; SOBRINO, J. A
ressurreição da verdadeira Igreja. São Paulo: Loyola, 1982, p. 107-129.
191
Cf. AUER, op. cit., p. 342.
192
Ver comentário a respeito desse aspecto em FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 445s.
96

bém, propriedade.193 A distinção entre ambas é tênue, segundo alguns autores: as notas apre-
sentam mais o caráter visível, ao passo que propriedade mais o misterioso.194 H. Küng prefere
a palavra dimensão, por motivos teológicos e ecumênicos.195
O recurso às quatro notas começou a adquirir organicidade na época da controvérsia
com os reformadores, passando a ter, no entanto, uma característica apologética, porque co-
meçaram a ser usadas contra eles, com o intuito de provar a Igreja Católica como a única ver-
dadeira, ao passo que a de Lutero era a falsa. Assim, inicialmente, as quatro notas eram mos-
tradas como sinais escolhidos por Cristo para indicar a verdadeira Igreja, e, em seguida, foi
demonstrado que a Igreja Católica era a única a possuí-las em plenitude, mesmo que estas se
verificassem parcialmente em outras Igrejas. Esse caráter apologético já existia nos tratados
eclesiológicos que refutavam Huss e Wyclef.
No entanto, isso nem sempre se verificou. As primeiras explicações do Símbolo co-
mentavam-nas sem qualquer sentido apologético. Quando começaram a surgir as primeiras
heresias, seus erros eram refutados diretamente. É o caso, por exemplo, de Inácio, que apela
para a comunhão com o bispo, ou de Agostinho, que argumenta com a catolicidade da Igreja
para refutar os donatistas. Assim aconteceu até ao fim da Idade Média.196
Diversos teólogos, na época das controvérsias eclesiológicas dos hussitas e reforma-
dores, apresentam muitas outras, desenvolvendo o chamado “via notarum”: Belarmino enume-
ra 15 notas, o canonista e historiador Tomás Bozio (1548-09.12.1610), 100. No século XVIII,
os catecismos ainda enumeravam 14 ou 19 notas, embora Honoré de Tournély (28.08.1658-
26.12.1729), professor na Universidade de Douai (1692-1716) e, após, na Sorbonne, em 1726,
havia fixado o esquema das quatro notas já por mais de um século. No século XIX, os teólo-
gos foram tomando consciência da dificuldade de argumentar por esse caminho. Por isso, al-
guns passaram a preferir a “via empírica”, isto é, a Igreja como milagre moral devido aos valo-
res cristãos por ela enunciados. Outros, no entanto, consolidaram o uso das notas e acrescenta-
ram a romanidade. É o caso de Perrone, em 1842, e seus seguidores, como também do profes-

193
Cf. ibid., p. 440s.
194
Cf. MONDIN, op. cit., p. 271s, notas 1 e 2.
195
KÜNG, op. cit., p. 18.
196
Cf. ibid., p. 13s., onde se encontram maiores detalhes. Também FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 439-442.
97

sor da Gregoriana, de Roma, desde 1878, Cardeal Camilo Mazzella (10.02.1833-26.03.1900),


em 1890.197
As quatro prerrogativas não são exclusivas. A Igreja de Cristo possui e deve ter ou-
tras propriedades, como, por exemplo, a visibilidade, a imperecibilidade, a infalibilidade etc.
Porém, apenas as quatro foram consideradas como tal, porque são verificadas externamente e
emanam de modo espontâneo da própria natureza da Igreja, servindo, por isso, como meios
eficazes para reconhecer a verdadeira Igreja de Cristo, assim como foi recebida pelos apósto-
los e transmitida até os dias de hoje.
Atualmente, está abandonado definitivamente qualquer caminho apologético, sendo
estudadas no seu significado dogmático, isto é, em si mesmas enquanto propriedades insepa-
ráveis da Igreja e dinamicamente a serem realizadas dia a dia, no devir da vida eclesial, sem-
pre de forma mais plena, tornando-a sempre mais a comunhão de Deus com a humanidade e
capacitando-a, por isso mesmo, a ser sinal salvífico eficaz, na medida em que cresce individu-
al e comunitariamente em adesão a Deus, seguindo as pegadas da Igreja apostólica e inspiran-
do-se no modelo da Igreja primitiva.198 Assim, todas são dom e tarefa vividos no já e no ain-
da-não: foram dadas à Igreja pela Trindade e, ao mesmo tempo, devem tornar-se cada dia
mais, revelando assim a estreita conexão com o mistério de Cristo.199
H. Küng pergunta se essas quatro notas ainda são capazes de identificar a verdadeira
Igreja. Sem responder positivamente à sua própria pergunta, pois pensa que a questão ainda
permanece em aberto, aponta algumas pistas: “Só lhe responderá a Igreja que a tal propósito
forneça provas vivas, cujo ‘discurso’ e ‘pregação’, dum modo semelhante ao do Apóstolo,
consistam ‘não nos raciocínios persuasivos da sabedoria, mas na demonstração do Espírito e
do poder’ (1Cor 2,4)”. Ainda acrescenta que o fundamental é vivê-las “numa Igreja viva, que,
por consequência, as notae Ecclesiae sejam, duma ou doutra forma, notae christianorum!”
Além disso, ele concorda com as duas notas acrescentadas pelos reformadores: “A Igreja está
onde o Evangelho é ensinado em toda a sua pureza e onde os sacramentos são administrados
corretamente”.200

197
Cf. ibid., p. 442s.
198
Cf. BENI, op. cit., p. 342.
199
Cf. KÜNG, op. cit., p. 16.
200
Ibid., p. 14 e 18.
98

O Espírito Santo realiza as notas da Igreja, enquanto a Igreja nasce da Trindade,


particularmente, de Cristo e do Espírito Santo. Nesse sentido, respeitando as ações próprias
de cada uma das Pessoas do Deus Uno e Trino, para fundar e iniciar a Igreja no tempo, Je-
sus Cristo e o Espírito Santo, além de congregarem a Igreja, santificam-na, pois a Igreja é
santa em Jesus Cristo (1Cor 1,2; Fl 1,1).201 O Espírito Santo foi prometido aos apóstolos,
mas em vista do novo Povo de Deus, do qual eles eram as primícias (Jo 14,26; 15,26;
16,12-13). Ele foi enviado, primeiro, aos apóstolos (Jo 20,22) e, depois, à totalidade da
comunidade, no dia de Pentecostes. Assim, a Trindade “fundamenta e torna verdadeiras as
notas da Igreja”202, conforme é professado no Credo: “Creio na Igreja, una, santa, católica e
apostólica” (DS 150).
Y. Congar escreve que “crer no Espírito Santo, que faz una, santa, católica e apostó-
lica a Igreja, é crer na realização e na promessa de Deus na Igreja, nesta realidade concreta
e complexa feita de um elemento duplo, o divino e o humano”.203 Sobre essa realidade se
pronuncia o Vaticano II:
Esta é a única Igreja de Cristo que no Símbolo confessamos una, santa, católica e apostólica;
que nosso Salvador depois de Sua ressurreição entregou a Pedro para apascentar (Jo 21,17)
e confiou a ele e aos demais apóstolos para a propagar e reger (cf. Mt 28,18 ss), levantando-
a para sempre como “coluna e fundamento da verdade” (1Tm 3,15) (Lumen Gentium 8).

3.1 A unidade da Igreja

a) Teologia da unidade

Para bem compreender, é preciso partir da escatologia, ou seja, daquilo que ela deve-
rá ser, quando for, ao fim, perfeitamente ela mesma.
Esse fim perfeito ao qual a Igreja aspira chegar é dado conhecer através da Bíblia:

Vi também descer do céu, de junto de Deus, a Cidade santa, uma Jerusalém nova,
pronta como uma esposa que se enfeitou para seu marido. Nisto ouvi uma voz forte
que, do trono, dizia: “Eis a tenda de Deus com os homens. Ele habitará com eles;
eles serão o seu povo, e ele, Deus-com-eles, será o seu Deus” (Ap 21,2-3).

201
DURRWELL, F-X. Lo Spirito Santo alla luce del mistero pasquale. Roma: Paoline, 1985, p. 87.
202
COMISSÃO TEOLÓGICO-HISTÓRICA DO GRANDE JUBILEU DO ANO 2000. Senhor, a terra está
repleta do teu Espírito. São Paulo: Paulinas, 1997, p. 58.
203
CONGAR, El Espíritu Santo, p. 209.
99

Nesse texto estão reunidas, na maior parte, as imagens pelas quais a Revelação apre-
senta a Igreja: habitação, cidade, Jerusalém, esposa, Povo de Deus. Ainda existem outras ima-
gens além dessas: vinha, plantação de Deus, família de Deus, rebanho e, sobretudo, Corpo de
Cristo. A Lumen Gentium desenvolve essas mesmas imagens, acrescentando a do Reino de
Deus, nos números 5 a 7.
Essas diversas imagens ou noções revelam que o acento principal de todas elas está
em Deus: ele é o fim supremo do referimento, cuja unidade e unicidade se comunicam à Igre-
ja, casa ou templo em que ele habita. Assim, a Igreja é una e única, porque Deus é uno e único
em si mesmo (cf. Ef 4,4-6). Nesse sentido, os Santos Padres apresentam a Igreja como “povo
reunido na unidade do Pai e de Filho e do Espírito Santo”.204 Portanto, o primeiro princípio de
unidade da Igreja e a razão fundamental de sua unicidade encontram-se na unidade e na unici-
dade de Deus.
E esta se reflete na unidade da natureza humana, que deve ser vista já a partir da uni-
dade do mundo. Deus criou o mundo e a humanidade para a comunhão, de tal forma que o
Corpo místico da Igreja é considerado a elevação ao estado sobrenatural da união já existente
entre os seres finitos em relação a seu Criador, devido à encarnação do Filho de Deus.205
Apesar de sua origem transcendente, a unidade, enquanto tarefa dos cristãos na Igre-
ja, deve crescer até a perfeição escatológica. Nesse sentido, Paulo expressa, com a afirmação
de que “Deus será tudo em todos” (cf. 1Cor 15,28), de um lado, a intimidade dessa união e, de
outro, a tarefa dos cristãos. Quando assim se realizar, ela se tornará a unidade perfeita de sujei-
tos que continuam pessoas, isto é, será a comunhão íntima estabelecida de forma pessoal e
comunitária. A cidade de Deus começa e se aperfeiçoa no Povo de Deus ainda em estado itine-
rante na terra, rumo à consumação escatológica.
Essa condição humana se caracteriza por um já e um ainda-não simultâneos. O Povo
de Deus já é aquilo que é chamado a ser (já é filho de Deus) e, no entanto, ainda espera a li-
berdade gloriosa dos filhos de Deus e a libertação plena e total em Deus (cf. Rm 8,21-23). É a
situação paradoxal da Igreja no seu estado de peregrinação: dualidade do já e do ainda-não.
Ela já é, mas ainda deverá realizar plenamente em sua vida o que já está contido nela pela gra-
ça de Deus. Por isso, a Igreja terá sempre de usar os meios instituídos por Cristo para conse-

204
CIPRIANO, De Orat. Dom. 23. In: PL 4,553; JOÃO DAMASCENO, Adv. Iconocl. 12. In: PG 96;
AGOSTINHO, Serm. 71,20.33. In: PL 83,463 ss. Citado em Lumen Gentium 4.
205
Cf. FEIENER e LÖHRER, op. cit., p. 452.
100

guir realizá-la. Não sem motivo, a Eucaristia é considerada o grande sacramento da unidade,
pelo qual ela é significada e realizada (cf. Unitatis Redintegratio 2).
O Espírito Santo é a causa eficiente da unidade da Igreja, pois, como sua alma, faz
acontecer em sua vida e na vida de cada cristão a graça salvífica de Cristo, gerando-a e tor-
nando-a, assim, “sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero
humano” (cf. Lumen Gentium 1), além de distribuir os dons e carismas a cada pessoa (cf. 1Cor
12,7-11).206
Por isso, unidade não é uniformidade. Frequentemente, se encontra a tendência de
confundi-las, pois a uniformidade é bem mais fácil de construir. Mas nem Deus nem a consti-
tuição concreta da Igreja, com a diversidade de culturas, raças, pensamentos e posições, justifi-
cam-na. Mas a superação dessa tentação não está na dispersão ou na ruptura, o que seria con-
figurar a vitória do egoísmo. A Igreja tem necessidade de organização, que deverá ser sempre
sinal de sua unidade. Dessarte, sempre e sem cessar deve-se buscar construir uma Igreja uni-
versal, que viva em comunhão no seu estado peregrinante (cf. Lumen Gentium 13). Daí que a
unidade da Igreja, enquanto unidade na pluralidade, é uma tarefa sempre por ser feita: deve
haver respeito à diversidade dos carismas e à livre iniciativa das pessoas, à variedade cultural e
antropológica. Aí está a dinamicidade do novo Povo de Deus presente na história humana e a
vocação da Igreja para a comunhão.207
Por isso, o Concílio Vaticano II, ao iniciar o capítulo segundo da Lumen Gentium,
dedicado ao Povo de Deus, abordando a nova aliança e o novo povo, reconhece que esse povo
tem uma missão a exercer em relação à humanidade inteira:

Assim este povo messiânico, embora não abranja atualmente todos os povos e por
vezes apareça como um pequeno rebanho, é contudo para todo o gênero humano
germe firmíssimo de unidade, esperança e salvação. Constituído por Cristo para a
comunhão de vida, caridade e verdade, é por ele ainda assumido como instrumento
de redenção de todos, e é enviado ao mundo inteiro como luz do mundo e sal da ter-
ra (cf. Mt 5,13-16) (Lumen Gentium 9).

b) As formas de unidade

As três formas de unidade da Igreja são inspiradas em At 2,42 e 4,32, que a mostram
existindo não apenas no plano sentimental, mas também traduzindo uma estrutura da qual

206
MONDIN, op. cit., p. 275-278.
207
Ibid., p. 275s.
101

Lucas enumera três elementos, segundo certa ordem, que adquiriu em si mesma um valor de
doutrina:

1- unidade pela fé, manifestada pelo acatamento do ensinamento apostólico, graças


ao qual se realiza a unanimidade da fé e de confissão pedida por Paulo (1Cor 1,10; Rm 15,6;
Ef 4,14ss);
2- unidade mediante os sacramentos, de modo especial a Eucaristia. A união da ce-
lebração do culto, que leva à oração (At 2,46; 3,1; 5,12); a celebração da fração do pão, pela
qual se aperfeiçoa a unidade dos fiéis com Cristo e entre eles (1Cor 10,16-17);
3- unidade sob o plano da vida social ou da comunidade fraterna sob os mesmos
pastores, regulada pela caridade. Também se traduzia em alguma vida comum (At 2,44-47),
em colocar os bens espontaneamente em comum (At 4,32-37) e na união profunda de senti-
mentos (At 4,32; Fl 2,2ss).

Os teólogos e o Magistério sempre enunciam essas três formas, embora com certa
diversidade em reagrupá-las.208 Pio XII, na Encíclica Orientalis Ecclesiae, a 09 de abril de
1944, emprega o esquema dos três vínculos: vinculum symbolicum, liturgicum e sociale ou
hierarchicum. Estes já eram encontrados entre os teólogos, como São Bernardo, Tomás de
Aquino e Roberto Belarmino, e, de modo geral, pelos autores até o século XIX.209 São os ele-
mentos de At 2,42. Porém, os documentos do Magistério frequentemente insistem na unidade
externa, mediante a profissão da mesma fé e a submissão ao mesmo regime eclesiástico, con-
forme se encontra na Satis cognitum, de Leão XIII, de 29 de junho de 1896 (cf. DS 3300-
3306).
O Vaticano II segue essa mesma tradição, como se encontra, por exemplo, na Unita-
tis Redintegratio 2. Contudo, ele insiste na necessidade de vivê-las também na dimensão inte-
rior, ou seja, os atos externos devem corresponder às intenções internas. Quer dizer, a Igreja
não pode ser considerada apenas do ponto de vista fenomênico, enquanto realidade objetiva e
organização visível, mas também em sua condição de mistério, visto que os elementos exter-
nos correspondem à sua natureza e origem transcendente. Essa é a posição do Vaticano II,

208
Cf. FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 456-459.
209
Ibid., p. 458.
102

quando a Lumen Gentium, no número 14, afirma claramente: “Não se salva, contudo, embora
incorporado à Igreja, aquele que, não perseverando na caridade, permanece no seio da Igreja
‘com o corpo’, mas não ‘com o coração’”.210
O documento 25 da CNBB, citando literalmente Puebla 641, sobre as Comunidades
Eclesiais de Base, apresenta essas três formas como critérios de eclesialidade, sem os quais
não se pode afirmar que uma Comunidade de Base seja Eclesial.211 O Catecismo da Igreja
Católica, n. 815, apresenta esses três vínculos como sinais visíveis que asseguram a comunhão
da Igreja.
Pode-se afirmar, concluindo este ponto, que as condições de pertença à plena comu-
nhão visível da Igreja, ou a pertença plena à Igreja, acontecem mediante esses três vínculos. O
cânon 205 do Código de Direito Canônico, de 1983, afirma que estão em plena comunhão
com a Igreja Católica aqueles batizados que estão unidos com Cristo por meio visível, através
do tríplice vínculo da profissão de fé, dos sacramentos e do governo eclesiástico. Essa norma
fixa expõe os critérios juridicamente relevantes da pertença visível à Igreja Católica e constitui
o ponto de referência para toda uma série de outras disposições presentes ao longo do Código.
De acordo com o já citado Código, a plena comunhão deve ser verificável visivel-
mente, para que ela possa realizar a sua função de sinal e instrumento de união dos fiéis com
Cristo e deles entre si, como sacramento de salvação que a Igreja é. O sentido da plena perten-
ça à Igreja, como já foi referido, encontra-se na Lumen Gentium 14, na qual há uma distinção
entre os fiéis católicos e os batizados que não pertencem mais a ela ou que nunca fizeram parte
dela e que, por isso, não gozam dos direitos e deveres inerentes a todo batizado.

c) A ruptura da unidade

De duas formas acontece a ruptura da unidade:

210
O Código de Direito Canônico diz o seguinte sobre esse tema: “Neste mundo, estão plenamente na comu-
nhão da Igreja Católica os batizados que se unem a Cristo na estrutura visível, ou seja, pelos vínculos da pro-
fissão de fé, dos sacramentos e do regime eclesiástico” (cânon 205). João Paulo II, na sua Encíclica sobre o
empenho ecumênico, é fiel a essa Tradição: “De fato, essa unidade dada pelo Espírito Santo não consiste
simplesmente na confluência unitária de pessoas que se aglomeram umas às outras. Mas trata-se de uma uni-
dade constituída pelos vínculos da profissão de fé, dos sacramentos e da comunhão hierárquica” (Ut Unum
Sint 9).
103

1 - Através do cisma

O conceito de cisma sofreu uma evolução. Na época patrística, é considerado como


um ato formal contrário à comunhão eclesial em termos de Igreja Particular, em referência,
portanto, ao respectivo bispo, que preside a Eucaristia. Por isso, o ato de cisma é muitas vezes
designado como um “elevar altar contra altar”.212 O altar é o lugar e o sinal da unidade do sa-
crifício eucarístico, que é a fonte visível da união eclesial a Cristo, para formar um só corpo. O
altar, com a cátedra de onde o bispo ensina, é o lugar a partir do qual ele reúne e forma a Igreja
que preside. Assim, se constitui numa ruptura em relação à Igreja como comunidade de ho-
mens (Ecclesia congregata), reunida pelos meios de salvação (instituição - Ecclesia congre-
gans). A partir daí assume o caráter de universalidade, pois os bispos vivem em comunhão
hierárquica pela colegialidade episcopal.213
Para a Teologia escolástica, o cisma passa da perspectiva da Igreja Particular para a
universal, perdendo a alusão à Eucaristia. Santo Tomás o desenvolve a partir de uma visão
sociocorporativa da Igreja, entendendo-o como ruptura da unidade do Povo de Deus e da Igre-
ja enquanto corpo social. Por isso, ele o considera pecado.214
Desde então, o ato de cisma passa a ser visto no âmbito da Igreja universal. Por isso,
pode ser definido como aquele ato mau que tem direta, própria e essencialmente por objeto
uma coisa contrária à comunhão eclesiástica, isto é, aquela unidade que é, entre os fiéis, o efei-
to próprio da caridade. Essa unidade é uma unidade de ordem ou de relação, não uma unidade
substancial.215 Dentro desse mesmo espírito, o Código de Direito Canônico de 1983 define
cisma, no cânon 751, como “a recusa de sujeição ao Sumo Pontífice ou de comunhão com os
membros da Igreja a ele sujeitos”.

2 - Através da heresia

211
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. As Comunidades Eclesiais de Base na Igreja do
Brasil. São Paulo: Paulinas, 1982, p. 13s (número 30).
212
Por exemplo: Cartas de Santo Inácio de Antioquia, op. cit., Carta aos Filadélfios 4 (p. 72) e Carta aos
Magnésios 7,2 (p. 53); CIPRIANO, A unidade da Igreja Católica n. 17, Introdução, tradução e notas por C.
BERALDO, Petrópolis: Vozes, 1973, p. 48.
213
Ver o desenvolvimento desse tema em torno da missão do bispo em RATZINGER, Compreender a Igreja
hoje. Vocação para a comunhão, p. 43-58.
214
SANTO TOMÁS, Summa Theologiae, II-II q. 39, a. I e q. 14, a. 2 ad 4.
104

Também esse conceito passou por um processo evolutivo. Durante o primeiro milê-
nio, heresia era tudo o que contrariava a unidade e a salvação oferecida pela Igreja, portanto,
não restrita ao campo doutrinal. Assim, era considerada mais do ponto de vista eclesiológico
ou dogmático. Com os inquisidores, passa a ser considerada algo contrário à fé. Por isso, de-
pois de G. Occam, sobretudo após a Reforma, a questão é abordada mais de um ponto de vista
noético, quase epistemológico. Para Bañes, por exemplo, é herética somente a negação daqui-
lo que é formalmente de fé. Santo Tomás define heresia como “uma doutrina que se opõe
imediata, direta e contraditoriamente à verdade revelada por Deus e proposta autenticamente
como tal pela Igreja”.216
A definição caracteriza a heresia objetivamente em si, enquanto uma doutrina falsa.
Considerando-a do ponto de vista subjetivo, isto é, da pessoa que se obstina em professá-la,
surge a questão do pecado. Para tal acontecer, é preciso considerar o ato, não só em seu objeto,
mas também em sua motivação: fixação à própria opinião por orgulho. Não basta errar em
matéria de fé para cometer pecado de heresia: é preciso acrescentar o erro da obstinação ou
pertinácia (pertinacitas).217 Dependerá, no caso de pecado ou não, daquele que professa um
erro em matéria doutrinal, na medida em que se recusa a deixar-se instruir e corrigir pela Igre-
ja e se obstina em manter contra ela a sua própria opinião. Também, pelo fato de uma proposi-
ção ser em si falsa ou contrária à fé, não necessariamente será herética em si mesma.218
O Código de Direito Canônico, no cânon 751, define a heresia como “a negação
pertinaz, após a recepção do Batismo, de qualquer verdade que se deva crer com fé divina e
católica, ou a dúvida pertinaz a respeito dela”.
A heresia difere de apostasia, que é “o repúdio total da fé cristã”, segundo o mesmo
cânon 751 do Código de Direito Canônico. Comete-a quem abandona a fé católica. No entan-
to, quem nasceu numa das Igrejas separadas, não pode ser arguido do pecado da separação (cf.
Unitatis Redintegratio 3).
Diante disso, conservar a unidade se apresenta como uma tarefa, pois germe de divi-
são sempre existiu e existe na Igreja. Os apóstolos já a detectaram e previram que o perigo da

215
Cf. FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 509.
216
SANTO TOMÁS, Summa Theologiae II-II, q. II, a. 1.
217
A nota explicativa esclarece que na heresia é fundamental o elemento de pertinácia, que é “a consciência clara
e continuada da culpabilidade na negação ou dúvida de uma verdade de fé”. Cf. CÓDIGO DE DIREITO
CANÔNICO, Tradução oficial da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e Notas e Comentários por J.
Hortal, São Paulo: Loyola, 1983, p. 347.
105

divisão seria ainda maior depois deles. Apesar de sempre ter havido tensões, divisões e diver-
gências na história da vida da Igreja, nunca houve outra concepção interna além daquela que
corresponde a sua unidade de fé, de vida sacramental e de comunhão social sob os mesmos
pastores.
A partir do princípio divino, a unidade não é monolítica, mas é unidade de comunhão
que engloba e assume a livre iniciativa das pessoas. Mas é iniciativa ou projeto de pessoas
finitas, e, com isso, com concepção limitada e fragmentária, e, consequentemente, progressiva.
Por isso, o projeto pessoal sempre é menor do que a Igreja e deve estar sujeito a ela, passando
pela obediência e acatamento humilde das determinações da vontade dela, mesmo que pareça
difícil, e até intransigente, no momento. Os grandes reformadores sempre agiram assim, pro-
vando, desse modo, a presença e a ação do Espírito na Igreja.
Diante disso, a unidade da Igreja se revela dinâmica na sua vida, enquanto dom de
Deus a ser trabalhado cotidianamente: é dom de Deus e tarefa humana, pois cabe aos cristãos
trabalhar para manter a Igreja em comunhão, superando as tensões e possibilidades de divisão.
É preciso aproveitar as tensões para fazer a Igreja crescer. Isso exige conversão cons-
tante, humildade e atitude global de se pôr à escuta da verdade plena, que é Jesus Cristo e que
está no seu Evangelho, a Boa-Nova da paz. E essa atitude deve ser permanente, pois a “Igreja
peregrina é chamada por Cristo a essa reforma perene” (Unitatis Redintegratio 6); por isso
“busca sem cessar a penitência e a renovação” (Lumen Gentium 8).
A unicidade é questão não abordada aqui, pois merece uma análise específica, pró-
pria da dimensão ecumênica e do diálogo inter-religioso, devido à importância do tema na
atualidade. No entanto, convém citar os seguintes meios para reencontrar a unidade de todos
os cristãos conforme o Catecismo da Igreja Católica: renovação permanente da Igreja em uma
fidelidade maior à sua vocação; conversão do coração; oração em comum; conhecimento fra-
terno recíproco; formação ecumênica dos fiéis; diálogo entre teólogos e encontro entre cris-
tãos; e, por último, a colaboração entre os cristãos nos diversos campos de serviço das pessoas
(Catecismo da Igreja Católica 821). Isso até que todos sejam um, a exemplo da Trindade (Jo
17,21).

218
Cf. ibid., p. 518-523.
106

O Papa João Paulo II tem reafirmado o compromisso do Vaticano II com o ecume-


nismo: “O apelo à unidade dos cristãos, que o Concílio Ecumênico Vaticano II repropôs com
tão ardoroso empenho, ressoa com vigor cada vez maior no coração dos crentes [...]” (Ut
Unum Sint 1).

d) O Espírito Santo torna a Igreja una

O Espírito Santo, princípio de unidade, supõe uma primeira unidade, suscitada por
ele, que é a unidade do sentimento de estar juntos e do caminho percorrido. Santo Agosti-
nho denomina esse estado de fraterna caritas, ou caritas unitatis ou pacifica mens, que é o
amor da paz, a concórdia mútua, a unidade. O oposto é o espírito sectário, particularista e
cismático. É preciso estar no Corpo de Cristo para poder ter o espírito de Cristo e para po-
der viver verdadeiramente dele.219
A Igreja, como sacramento de salvação (cf. Lumen Gentium 1), é mistério de comu-
nhão. Por isso, Cipriano usa sua conhecida expressão, já aludida anteriormente e citada em
Lumen Gentium 4, na qual afirma a Igreja como “um povo reunido pela unidade do Pai e do
Filho e do Espírito Santo”. E Tertuliano, por volta do ano 200, escrevia: “Onde estão os
Três, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, aí se encontra a Igreja, a qual é o Corpo dos Três”.220
O Espírito Santo é o princípio de comunhão: “E a esperança não decepciona, porque
o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado”
(Rm 5,5). E o Catecismo da Igreja Católica acrescenta:

A missão de Cristo e do Espírito Santo realiza-se na Igreja, Corpo de Cristo e


Templo do Espírito Santo. Esta missão conjunta associa a partir de agora os fiéis
de Cristo à sua Comunhão com o Pai no Espírito Santo: o Espírito prepara os
homens, antecipa-se a eles pela sua graça, para atraí-los a Cristo (Catecismo da
Igreja Católica 737).

219
AGOSTINHO, In Joan tr. XXVII, 6,6 (PL 35, 1618); Epist 185, 9, 42 e 11,50 (PL 33, 811 e 815). In Joan
tr. XXVI 6,13 (PL 345,1612-1613). ORÍGENES, Commentaria in Evangelium secundum Mathaeum XIV, 1
(PG 13,1188).
220
TERTULIANO, De baptismo 6. J. Quasten situa essa obra no primeiro período da vida de Tertuliano,
sendo composta, talvez, entre 198 e 200 (QUASTEN, J. Patrologia. I primi due secoli (II-III), v. 1. Casale
Monferrato: Marietti, 1980, p. 522).
107

Assim, só se recebe o Espírito Santo quando se está junto. Não porque há um só


Espírito, há um só corpo, e sim há um só corpo porque há um só Espírito.221 Há um só cor-
po, que é o Corpo de Cristo. O Espírito é dado ao corpo e neste se recebe o dom: “Pois fo-
mos todos batizados num só Espírito para ser um só corpo, judeus e gregos, escravos e li-
vres, e todos bebemos de um só Espírito” (1Cor 12,13; cf. Ef 4,4). Os capítulos 14 e 16 de
João mostram que o Espírito Santo é dado à comunidade e às pessoas, quando Jesus reza
pelos seus e promete o envio do Espírito (cf. Jo 17).
Dessarte, a Igreja não é uma soma de indivíduos e o sistema resultante desta, mas
uma comunhão, uma fraternidade de pessoas, ou seja, koinonía. Isso resulta de dois princí-
pios, ambos presentes de forma igual nela: um princípio pessoal e um princípio de unidade.
A harmonização de ambos é obra do Espírito Santo.222 Por isso, a Igreja não é soma nem
divisão, mas comunhão. Assim se compreendem esses dois princípios:

a) o princípio pessoal: diz a riqueza da variedade de pessoas, que desejam ser sujei-
tos das ações na Igreja. Conduz à unidade, e não à uniformidade, ou à multiplicidade na
unidade;
b) o princípio da unidade: o Espírito Santo leva à unidade, respeitando a diversida-
de.223 A unidade promovida pelo Espírito Santo não violenta ninguém, mas penetra delica-
damente o coração de cada pessoa (Gl 4,4-6), pois a comunhão do Espírito Santo com o
espírito humano é imediata e direta (1Cor 2,10s), fazendo com que o corpo de cada fiel
batizado se converta em seu tabernáculo (1Cor 6,19; cf. 3,16).

O Espírito Santo consegue fazer com que todos sejam um e a unidade seja diversi-
dade. A Igreja está em cada um e em todos os cristãos, que a formam por meio da comu-
nhão operada pelo Espírito Santo, que não produz uma confusão de pessoas ou a elimina-
ção da individualidade de cada pessoa, mas respeita cada uma, fazendo com que permaneça
como é. Daí surgem os carismas, que agem na vida concreta e cotidiana dos fiéis e são dis-
tribuídos para o benefício e a edificação de todo o Corpo de Cristo, que é a Igreja (cf. 1Cor
14,12).

221
Cf. CONGAR, El Espíritu Santo, p. 219.
222
Sobre os dois princípios: ibid., p. 219s.
223
IRENEU DE LIÃO, op. cit., p. 61-64 (Adversus Haereses I,10,1-3).
108

Como consequência, deve-se apontar a abertura para o diálogo com o mundo e para
o pluralismo. E isso acontece em cada uma das Igrejas Particulares, em relação com a única
Igreja universal. Daí a importância do caráter colegial da Igreja, conforme ensina o Vatica-
no II, na Lumen Gentium 22 e Nota Prévia. A colegialidade brotou dos Doze, que Jesus
Cristo constituiu “sob a forma de colégio, isto é, de grupo estável, cuja presidência entre-
gou a Pedro, escolhido dentre eles” (Lumen Gentium 19). E é nesse sentido que a Comissão
Teológico-Histórica do Jubileu do ano 2000 escreve:

É na comunhão com o Papa, Bispo de Roma e sucessor de S. Pedro, e com o co-


légio episcopal, expressão da unidade e da diversidade da Igreja, que cada Igreja
Local, “porção do Povo de Deus”, encontra a sua identidade constitutiva; assim
como é graças à Eucaristia que cada Igreja Local é plenamente Igreja e é Igreja
una, Igreja em comunhão com as outras que professam a mesma Eucaristia.224

3.2 A santidade da Igreja

a) História

A santidade foi o primeiro atributo acrescentado à Igreja. Já é encontrada no início


do século II, na fórmula de saudação da carta de Inácio de Antioquia aos Tralianos225, em
Mysterium Policarpi, em Pastor de Ermas, na Carta dos Apóstolos (DS 1), no Símbolo batis-
mal de Jerusalém, por volta de 348 (DS 41), no de Epifânio (DS 42), em Niceia e na fórmula
de Constantinopla em 381 (DS 150).

b) Origem

As origens dessa expressão são bíblicas, como também seu sentido e conteúdo fun-
damental. Do uso da palavra “santo” na Bíblia resulta o seguinte:
– o conceito e o uso no Novo Testamento estão apoiados no Antigo Testamento e
devem ser compreendidos através deste;

224
COMISSÃO TEOLÓGICO-HISTÓRICA DO GRANDE JUBILEU DO ANO 2000, p. 60.
225
INÁCIO DE ANTIOQUIA, Carta aos Tralianos. In: Cartas de Santo Inácio de Antioquia, op. cit., p. 57.
109

– se é verdade que no Antigo Testamento significa separação e pureza, contudo esse


sentido deve ser superado, pois mais profundamente significa “propriedade de Deus”. Deus é
santo (Is 6,3): a santidade é a ordem própria de sua existência, de seu mistério. Uma realidade
é santa somente na medida em que referida a Deus, vinda dele e pertencente a ele. Assim, o
povo é santo, forma uma nação santa (Êx 19,6), porque é de Deus e está em Deus. Do mesmo
modo, a terra é santa, o templo é santo;
– essas afirmações foram transmitidas no Novo Testamento à Igreja, mas mediante as
realidades novas que constituem precisamente o Povo de Deus na sua novidade: o Cristo e o
Espírito Santo enquanto comunicados à Igreja. Jesus é o “santo de Deus” (Mc 1,24; Lc 1,35).
Ele é toda a realidade da vinda de Deus até nós. Ele é a verdade de todas as realidades santas.
Por isso, ele torna-se a origem e o centro de um novo povo consagrado e santo. Este se iniciou
em Jerusalém e na comunidade da Judeia, cujos membros são chamados “santos” (1Cor
14,33; 16,1; 2Cor 8,4; 9,1ss; Rm 15,26.31); “santos por vocação” (Rm 1,7). Aquele que res-
ponde pela fé torna-se membro da santa Jerusalém (Is 4,3) e da cidade celeste (Cl 1,12; Ef
2,19), tendo parte com os santos na herança celeste (At 20,32; Ef 1,18). A santidade da Igreja é
compreendida, assim, entre o Batismo, que a funda, e sua plenificação escatológica (Ef 5,25-
27).226

c) Sentido

Seu sentido vem da imagem da casa de Deus, compreendida como elevação, voca-
ção, aliança, consagração, habitação, pois a Igreja é o lugar onde se rende culto a Deus. Vista
como consagração ao culto a Deus, a santidade exige fundamentalmente o exercício de uma
vida santa (Lv 11,44-45). Toda a vida do cristão é vista como um culto cuja lei é a pureza
(1Cor 5,5).
A Igreja é também a Igreja dos santos, isto é, dos homens que se esforçam por viver
fiel e generosamente a sua consagração batismal e a sua qualidade de membros do Corpo de
Cristo. Contudo, ela é a Igreja dos pecadores e reconhece definitivamente tal realidade, apesar
de ter havido muitas tentativas de conservá-la somente como Igreja dos santos.227

226
Cf. essas ideias em FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 553-556.
227
Por exemplo: na Antiguidade, os novacianos, donatistas e montanistas; na Idade Média, os cátaros; na Idade
Moderna, certas seitas de iluminados: ver, a propósito desse tema, KÜNG, op. cit., p. 96s.
110

Para superar a tensão entre essas duas realidades, é preciso torná-la cada vez mais de
Deus, pois ela necessita de conversão e reforma constantes. Isso porque há a livre resposta que
os “santos por vocação” dão ao chamado de Deus e à oferta da sua graça, o que faz surgir uma
certa dialética entre aquilo que é dado por Deus e aquilo que é recebido e realizado pelas pes-
soas. Em outras palavras, é a aplicação do já e do ainda-não, que constitui o estatuto da exis-
tência da Igreja no seu estado itinerante. Isso é o que introduz a tensão da Igreja, em virtude da
qual ela deve buscar sem trégua ser adequada ao dom de Deus e impede de distinguir ou sepa-
rar o que pertence ao santo ou ao pecador, pois são inseparáveis, devido à dimensão teândri-
ca.228
A Igreja é santa naquilo que recebeu e recebe de Deus para se constituir em princípio
universal de salvação (cf. Lumen Gentium 1), que forma seus princípios formais. Tais são o
depósito da fé, os sacramentos, a fé, o Evangelho e os ministérios correspondentes. Essas rea-
lidades são santas em si mesmas, pois são provenientes de Deus em vista da santidade. É a
santidade objetiva, que não está baseada nas pessoas, mas nos instrumentos pelos quais Deus
santifica a comunidade eclesial.229
A causa transcendente da santidade é o Espírito Santo. Ele é a alma da Igreja, por
isso nela habita e a torna seu templo santo. Por ele, o Cristo opera nela a santidade e os meios
de santificação. Por isso, escreve H. Küng: “A Igreja, é, portanto, santa, na medida em que foi
chamada por Deus em Cristo, como comunidade dos crentes, e se pôs ao seu serviço, separada
do mundo e ao mesmo tempo amparada e transportada pela sua graça”.230
A santidade é serviço e meio de santificação num corpo em que todos são solidários
e são chamados a crescer juntos até constituir aquele homem perfeito e maduro que realiza o
pleroma de Cristo (Ef 4,13). Assim, atinge, também, toda a criação, não as pessoas enquanto
indivíduos.
A Igreja real é santa e pecadora, enquanto a Igreja só de santos é a idealizada. O Car-
deal Charles Journet reconhece essa realidade, ao afirmar que a Igreja é santa, mas ela não
existe sem os pecadores.231 A Igreja, como tal, é sem pecado; os pecados pertencem aos mem-

228
Cf. FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 558s.
229
Ibid., p. 361; KÜNG, op. cit., p. 97.
230
Cf. ibid., p. 101.
231
É como ele intitula sua obra seguinte: JOURNET, C. L’Église sainte mais non sans pécheurs. Com-
pléments inédits de l’Église du Verbe Incarné. La cause finale et la sainteté de l’Église. Saint Maur: Parole et
111

bros da Igreja e enquanto conservam em si algo que não é Igreja. Estamos, assim, como que
divididos em dois, verticalmente, segundo aquilo que em nós é Igreja e aquilo que ainda é
mundo. A existência cristã na comunidade eclesial é que constitui os cristãos na communio
sanctorum, isto é, numa santidade absolutamente pessoal.232
Em virtude de seus membros, a Igreja é levada a realizações históricas e concretas
imperfeitas daquilo mesmo que ela é fundamentalmente e aspira a ser. Por isso, a Igreja “reu-
nindo em seu próprio seio os pecadores, ao mesmo tempo santa e sempre necessitando de pu-
rificar-se, busca sem cessar a penitência e a renovação” (Lumen Gentium 8). Assim, a vida da
Igreja está marcada pelos movimentos de reforma, que entram na penitência da Igreja, pois as
vicissitudes e misérias que os provocam estão conexas aos pecados de seus membros. Por isso,
a sua renovação consiste numa fidelidade maior à própria vocação (cf. Unitatis Redintegratio
6). Portanto, a Igreja é feita por homens que se convertem diariamente ao Evangelho (cf. Lu-
men Gentium 9). A renovação é obra difícil, exige paciência e caridade perseverantes. A Igreja
real, nesse sentido, vive a santidade em situação de pecado e em estado permanente de perdão
e de renovação.

d) O Espírito Santo é o princípio de santidade da Igreja

A Igreja é santa, porque Deus é santo e comunica a sua santidade à Igreja. E é o


Espírito Santo quem a torna santa, pois “não existe santidade sem o Espírito Santo”.233 Não
se trata, primeiramente, de uma santidade moral, mas de uma santidade em relação ao ser,
ou seja, de pertença a Deus. Como já foi aludido anteriormente, isso quer dizer que ser san-
to significa ser de Deus. Já no Antigo Testamento está presente essa compreensão, quando
mostra que Deus chamou um povo e o constituiu uma “propriedade peculiar entre todos os
povos” e uma “nação santa” (Êx 19,5-6). E essa mesma compreensão passa para o Novo
Testamento, a tal ponto de os cristãos serem conhecidos, inicialmente, como “santos” (cf.
1Cor 14,33; 16,1; 2Cor 8,4; 9,1s; Rm 15,26.31). A conduta ética brota como consequência

Silence, 1999. A mesma ideia encontra-se em JOURNET, C. O caráter teândrico da Igreja, fonte de tensão
permanente. In: BARÚNA, op. cit., p. 393.
232
MONDIN, op. cit., p. 280.
233
BASÍLIO, O Espírito Santo XVI, 38 apud COMISSÃO TEOLÓGICO-HISTÓRICA DO GRANDE JU-
BILEU DO ANO 2000, p. 61.
112

natural da vida de quem é de Deus, pois todos os batizados são por vocação “chamados à
santidade” (Rm 1,7).234
Cirilo de Alexandria afirma: “Como o Espírito santificou a humanidade de Cristo,
assim continua santificando o seu Corpo místico, isto é, a Igreja”.235 E o mesmo autor con-
tinua, ao escrever que ao Espírito Santo, sendo “santo por natureza, cabe santificar”.236 Essa
realidade é expressa, significativamente, pelas imagens bíblicas de esposa de Cristo e tem-
plo. A Igreja é templo santo de Deus: “Não sabeis que sois um templo de Deus e que o Es-
pírito de Deus habita em vós?” (1Cor 3,16). Os fiéis são “edifício espiritual e sacerdócio
santo” (cf. 1Pd 2,5). E Paulo mostra que o Espírito Santo habita na pessoa batizada como
em um templo, transformando-a por dentro e consagrando-a. Se alguém destrói o templo de
Deus, Deus o destruirá. Pois o templo de Deus é santo e esse templo sois vós” (1Cor 3,16-
17; cf. Jo 14,15-17; 1Jo 4,12-13). A imagem da Igreja como esposa revela que ela ainda
não alcançou a plenitude da pureza inaugurada pelo Batismo: “Não sabeis que vossos cor-
pos são membros de Cristo? [...] aquele que se une ao Senhor constitui com ele um só espí-
rito” (1Cor 6, 15-17; cf. Ap 19,6-8; 21,2; 22,17).
E essa santidade se realiza nos fiéis, por meio da participação nos sacramentos, na
leitura e meditação da Palavra de Deus, na recepção dos carismas, enfim, através de todos
os meios de salvação e santificação que Cristo colocou à disposição na sua Igreja quando a
constituiu. Contudo, a Igreja santa é formada por pecadores, uma vez que seus membros
realizam de forma imperfeita a essência da Igreja, apesar do esforço permanente de conver-
são. É como escreve H. Küng: “O pecado não nasce da santidade da Igreja; introduz-se
nela”.237 Nesse sentido, o Concílio Ecumênico Vaticano II afirma, com muita lucidez, a
necessidade de conversão permanente por parte da Igreja:

Mas enquanto Cristo, ‘santo, inocente, imaculado’ (Hb 7,26), não conheceu o pe-
cado (2Cor 5,21), porém veio para expiar apenas os pecados do povo (cf. Hb
2,17), a Igreja, reunindo em seu próprio seio os pecadores, ao mesmo tempo santa
e sempre na necessidade de purificar-se, busca sem cessar a penitência e a reno-
vação (Lumen Gentium 8).

234
Para a compreensão bíblica de santidade, ver FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 554-558.
235
CIRILO DE ALEXANDRIA, Comentário ao Evangelho de João XI, 11 apud COMISSÃO TEOLÓGICO-
HISTÓRICA DO GRANDE JUBILEU DO ANO 2000, p. 61.
236
Id., A Trindade VI apud COMISSÃO TEOLÓGICO-HISTÓRICA DO GRANDE JUBILEU DO ANO
2000, p. 61.
237
KÜNG, v. 1, op. cit., p. 105.
113

Assim, entende-se a expressão communio sanctorum, aplicada à Igreja. Pois a pre-


sença do Espírito Santo na Igreja une os cristãos entre si com laços de fraternidade, visto
que a pertença a Deus no amor implica amar os irmãos (cf. 1Jo 4,12), o que é fruto da co-
munhão na santidade de vida.
A expresão “comunhão dos santos” provém do Símbolo dos Apóstolos (DS 26, 27,
30 e 60), só atestado pouco antes do ano 400. Não é uma oposição a sanctam Ecclesiam.
“Santos” significa, segundo a primeira explicação, a comunidade dos bem-aventurados an-
tecipada na Igreja, indicando, concretamente, os mártires. Mais tarde, na Idade Média espe-
cialmente, entendeu-se como a participação nas coisas santas, nos sacramentos, máxime na
Eucaristia. No Símbolo niceno-constantinopolitano (DS 150) encontra-se o Batismo no
lugar onde, no Símbolo dos Apóstolos, está a comunhão dos santos. No entanto, como a
palavra latina communio traduz a palavra grega koinonía, é necessário entender a “comu-
nhão dos santos” como o direito de participar dos bens da comunidade de salvação, solida-
riamente com os membros dessa mesma comunidade.238
A presença do Espírito Santo não apenas torna o coração filial, mas une as pessoas
entre si por meio de um laço de fraternidade. Desde o princípio da criação do mundo, as
pessoas sentem a necessidade de conviver, quase como reflexo do Espírito Santo presente
no coração humano. Mas é no clímax da história salvífica, acontecido no momento da mor-
te e ressurreição de Cristo, que a vontade criadora do Espírito Santo se torna imperiosa:
realiza uma plenitude de comunhão que se chama salvação.
Desde o início, a Igreja tem consciência de uma unidade misteriosa que une os fiéis
entre si. São Paulo assim a expressa: “O cálice da bênção que abençoamos não é comunhão
com o sangue de Cristo? O pão que partimos não é comunhão com o corpo de Cristo?” (1
Cor 10,16s). A unidade constituída desse modo não é só de espírito, mas de comunhão que
une uns com os outros na Igreja. Santo Agostinho afirma-a assim: “A unidade assim consti-
tuída não é só de espírito, mas do Espírito Santo, na qual todos são fundidos em um só Es-
pírito pelo fogo da caridade”.239 É Deus, ao mesmo tempo, dentro e fora de cada pessoa.

238
Cf. CONGAR, op. cit., p. 267.
239
AGOSTINHO, De Trinitate 4,9.
114

O Vaticano II avança mais, ao afirmar: “Em vista disso, a união dos que estão na
terra com os irmãos que descansam na paz de Cristo de maneira nenhuma se interrompe, ao
contrário, conforme a fé perene da Igreja, vê-se fortalecida pela comunicação dos bens es-
pirituais” (Lumen Gentium 49). Portanto, essa comunhão espiritual se estende ao ponto de
existir entre os vivos e falecidos, pois ela transcende o tempo e o espaço. Deriva de sua
condição de dom escatológico, prometido como extrema comunicação de Deus mesmo,
visto que é graça.

3.3 A catolicidade da Igreja

a) História e sentido da expressão

A palavra “católico” não se encontra nem nos LXX nem no Novo Testamento. Em At
4,18 tem sentido de “inteiramente”, “absolutamente”. No seu sentido etimológico, em geral, é
aplicada a “proposições universais”, conforme Aristóteles e Zenão, em oposição a particulares.
Portanto, são “católicos” os princípios universais.240
Aplicada à Igreja, pela primeira vez, aparece em Inácio de Antioquia, por volta de
110: “Onde quer que se apresente o bispo, ali também esteja a comunidade, assim como a
presença de Cristo Jesus também nos assegura a presença da Igreja Católica”.241 Há divergên-
cias de interpretação do sentido dessa frase: a) uns consideram-na como paralelismo entre a
Igreja Local, presidida pelo bispo, e a Igreja Católica, cujo chefe é Cristo, entendendo-a no
sentido de universal, de totalidade da Igreja (H. De Lubac, P. Th. Camelot, W. Beinert); b)
outros a interpretam no sentido de que o autor quer afirmar que sem o bispo não há verdadeira
Igreja, não há legitimidade, num sentido de continuidade entre a Igreja terrestre e a celeste;
aqui, “católica” adquire um sentido de verdade e autenticidade, isto é, de Igreja verdadeira.
Contudo, os autores, hoje, pensam que a frase de Inácio de Antioquia deva ser entendida no
sentido de Igreja total, perfeita; enquanto permanece na verdade e na união com Cristo, é, de

240
KÜNG, op. cit., p. 60.
241
Cf. INÁCIO DE ANTIOQUIA, Carta aos Esmirnenses 8,2. In: Cartas de Santo Inácio de Antioquia.
Comunidades Eclesiais em Formação. Introdução, tradução do original grego e notas por Dom Paulo Evaristo
Arns. Petrópolis: Vozes, 1970, p. 81
115

fato, única verdadeira.242 A partir do século II, encontra-se frequentemente no sentido de Igre-
ja verdadeira. A dualidade de interpretações persistiu, o que demonstra que uma não pode ser
excluída da outra.
Depois de Inácio, a palavra “católica” encontra-se quatro vezes em Martyrium
Polycarpi (após 156): na fórmula de despedida (XIX,2) pode significar “universal”, mas em
XVI,2 significa “verdadeira”, em oposição a outros grupos que se dizem Igreja mas não o são.
Em Clemente de Alexandria tem o sentido de “verdadeira” Igreja, oposta às igrejas heréticas.
O mesmo em Tertuliano. A partir do século III, o sentido se estabelece: “católica” designa a
Igreja verdadeira no mundo, ou uma comunidade local que se encontra em comunhão com
ela.243
A expressão não foi assumida imediatamente nos Símbolos: no Oriente, não se en-
contra ainda em Niceia, mas no Símbolo batismal das constituições egípcias (Baptismum
unum in sancta Ecclesia catholica et apostolica). No decorrer do século IV, aparece clara-
mente no Símbolo comentado por Cirilo de Jerusalém, por volta de 343 (DS 41), e no Símbolo
de Epifânio, de 374, (DS 42 e 44), texto próximo ao Niceno-Constantinopolitano (DS 150). No
Ocidente, aparece no século V com Niceta, Bispo de Ramesiana, em 374 (DS 19).244

Embora os cristãos fossem um pequeno grupo disperso, tiveram, desde o início, o


sentido de pertença a um corpo único com extensão universal: eram irmãos em todo o univer-
so e formavam um mesmo povo, uma única família numa mesma comunhão.245 Quando a fé
alcançou as partes mais distantes, os cristãos tinham vivo o sentimento da maravilha que era a
Igreja estendida até os confins do mundo, que conservava a sua unidade nos povos mais diver-
sos. Por isso, os Padres, já no século III, viram no caráter “universal” da comunhão da mesma
fé um sinal distintivo da verdadeira Igreja, em oposição às heresias, sempre particulares. Esse
foi o grande argumento de Agostinho contra os donatistas: ele não cessa de opor à pars Donati
a catholica. Ele cita e reagrupa os textos bíblicos que anunciavam a expansão universal da
Igreja: se esta se chama “católica” é porque se espalhou por toda a Terra. Os donatistas opu-

242
Cf. FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 578. H. Küng é de opinião de que o sentido seja de Igreja inteira,
universal (KÜNG, op. cit., p. 61).
243
H. Küng afirma que isso aconteceu por causa de várias correntes e grupos heréticos, condicionado pelo caráter
polêmico inevitável das controvérsias: cf. KÜNG, op. cit., p. 62.
244
Cf. FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 577-580; AUER, op. cit., p. 416s.
116

nham a essa concepção geográfica uma concepção qualitativa e sacramental: “católica” é a


Igreja que se conservou na pureza das origens e celebra verdadeiros sacramentos. Assim, des-
de o início do século V, se manifesta a dualidade permanente: “universal” e “verdadeira” ou
“ortodoxa”.246
Na Idade Média, permaneceu o valor da universalidade e ortodoxia. A primeira e
grande Escolástica ligou à ideia da fé a da catolicidade. Assim, Boécio em De Trinitate. Abe-
lardo, referindo-se a Boécio, fala da fides catholica como caracterizada por esses dois títulos
de universalidade: ela se impõe a todos e está difusa por toda parte. Para Tomás e Alberto
Magno, significa não um valor de ordem quantitativa ou numérica, mas a plenitude do pão da
vida, que é Cristo e que a Igreja comunica mediante a fé e os sacramentos. Está na essência da
Igreja, antes de tudo, pois ela e a fé têm nisso a mesma propriedade, já que a Igreja é a con-
gregatio fidelium. Ora, a fé é universal, assimilada pela totalidade. Por isso, durante esse perí-
odo, a Igreja é a ecclesia universalis, isto é, uma única Igreja com destinação universal, pois é
um só povo e uma mesma fé.247
Nos séculos XIV e XV, com Occam, esses temas são tratados mais no quadro da
epistemologia teológica das veritates catholicae do que no eclesiológico, isto é, das verdades
nas quais é universalmente necessário crer e cuja negação implicaria separação ou heresia. O
conceito de catolicidade tornou-se mais eclesiológico na apologética antiprotestante e no ensi-
no escolástico daí derivado. Os primeiros apologetas insistiam sobre a universalidade local,
junto à massa dos fiéis, a transcendência defronte a particularidades nacionais e a perenidade
do tempo. No início do século XX, há o retorno a uma concepção mais essencial e qualitativa
da propriedade da catolicidade. Isso por exigência de uma Teologia mais cristológica e eclesi-
ológica.248

b) Sentido teológico249

245
Por exemplo: DIDAQUÉ IX,4 e X,5 (Didaqué. Catecismo dos primeiros cristãos. Introdução, tradução do
original grego e comentário de U. Zilles. Petrópolis: Vozes, 1970, p. 20 e 21).
246
Cf. FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 580s.
247
Ibid., p. 584s.
248
Ibid., op. cit., p. 586s; KÜNG, op. cit., p. 63-65; MONDIN, op. cit., p. 285s.
249
Ideias extraídas de FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 587-593.
117

A catolicidade constitui-se num verdadeiro predicado da Igreja, proveniente de sua


natureza divina. Por isso, a Trindade é a fonte da catolicidade:

1- Deus Pai, em seu projeto salvífico universal, quer que todos permaneçam em sua
vida e sejam redimidos (2Pd 3,9);
2- Jesus Cristo como princípio universal de salvação, ao resgatar do pecado a nature-
za humana pela graça (Rm 8,19-23). A Igreja se constitui na comunhão das pessoas que estão
unidas ao Corpo de Cristo, oferecido e glorificado pela morte e ressurreição, mediante o Ba-
tismo e, sobretudo, a Eucaristia. Em e por Jesus Cristo, Deus se empenha definitivamente em
procurar a totalidade das criaturas e do mundo, apesar do pecado, e apresentar a graça da sal-
vação (Cl 1,19-20; Ef 1,9 e 10);
3- O Espírito Santo, enviado à Igreja como sua alma, faz a obra de Cristo no interior
de cada pessoa, de tal modo que os dons e as iniciativas de cada um concorram à unidade e à
construção de todo o corpo, por meio da comunicação da riqueza de Cristo. Assim, por ele, a
catolicidade inclui as particularidades sem destruí-las, pois assume os frutos da pluralidade dos
sujeitos pessoais, pela via da comunhão.
A plenitude de Cristo se comunica a toda natureza humana. Os indivíduos, com seus
sentimentos e valores, os grupos étnicos, linguísticos e culturais são criadores e sujeitos de
valores, constituindo uma totalidade pela comunhão (koinonía).250 A humanidade é cósmica,
isto é, ligada ao universo total, e histórica, enquanto perpétuo dinamismo de busca e realiza-
ção. Assim, Cristo plenifica o cosmo e a história, por meio da Igreja Católica (cf. Ef 4,8; 3,8-
12). Por isso, o novo Povo de Deus é necessariamente um povo católico.251
H. Küng afirma que a catolicidade consiste na “identidade totalizante”, cuja conse-
quência é a universalidade:

A Igreja não é católica, senão em virtude duma identidade totalizante: não obstante
todas as mudanças de tempos e de formas - mudanças perpétuas e necessárias -, não
obstante a sua imperfeição e fragilidade, a Igreja é, deve ser e quer ser, sempre, em
toda a parte e em todos os tempos, essencialmente idêntica a si mesma; deste modo,
a única e mesma essência da Igreja é conservada, confirmada e manifestada com
credibilidade “por todos, sempre e em toda a parte”.252

250
Lembrar o que se refletiu sobre a Igreja como comunhão, no ponto 2.4.
251
MONDIN, op. cit., p. 286; FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 587-595.
118

E ele continua, dizendo o que não é catolicidade: a extensão espacial, que seria mero
conceito geográfico; a quantidade numérica não é suficiente para tornar a Igreja católica, pois
seria um conceito estático; a variedade sociocultural seria um conceito sociológico; a conti-
nuidade temporal, mero conceito histórico. Por isso, a catolicidade consiste numa totalidade,
cujo fundamento é a identidade e cuja consequência é a universalidade.

c) Realização da catolicidade

A catolicidade acontece através do encontro entre a plenitude das energias dadas em


Cristo e operantes na Igreja e a plenitude potencial contida na pessoa humana, que, por sua
vez, é inseparável do cosmo, visto que Jesus Cristo é a cabeça. Daí resulta que a fé e a conse-
cratio mundi, que é o pleno uso do mundo, segundo Jesus Cristo, tornam-se sua possibilidade.
A Igreja é católica e ainda não o é, pois está entre o já e o ainda-não, que assinalam
toda a vida itinerante da Igreja. “Já”, em virtude de sua instituição, de seus princípios formais
como Ecclesia congregans, enquanto princípio universal de salvação, pela covocação divina
(cf. Lumen Gentium 1); “ainda-não”, porque deve tornar-se universal na sua vida histórica,
cada dia, enquanto comunidade dos convocados, como Ecclesia congregata. Por isso, é uma
propriedade ao mesmo tempo atual e virtual, revelando-se sempre dinâmica, pois foi dada
como dom de Deus a ser efetuado como tarefa humana e eclesial (cf. Lumen Gentium 9).253
A catolicidade é um atributo de toda a Igreja, também da Local. Cada fiel é, por sua
vez, também católico. É essa relação com o universal que distingue a Igreja da seita. O que faz
a seita não é o pequeno número, mas a falta da referência à totalidade. Por isso, afirma H.
Küng, as Igrejas Locais devem realizar, manifestar e representar a Igreja única total, universal,
assim, católica.254

252
Cf. KÜNG, op. cit., p. 67, grifos do autor. O que segue encontra-se nas p. 68 a 71.
253
Cf. FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 595-597.
254
“A Igreja total é constituída por todas as Igrejas Locais, não enquanto adicionadas e associadas exteriormente,
mas enquanto unidas interiormente no mesmo Deus, no mesmo Senhor e no mesmo Espírito, pelo mesmo
Evangelho e mesmo Batismo, mesma Eucaristia e mesma fé. O conjunto da Igreja é a Igreja manifestada,
representada e realizada nas Igrejas Locais. Na medida em que a Igreja, como Igreja universal, é a Igreja total,
pode, no sentido original do termo, chamar-se católica, isto é, Igreja total, universal, totalizante. A catolicidade
consiste essencialmente na integridade. Mas na medida em que a Igreja Local torna presente esta Igreja total, tem
também o direito de ser chamada católica” (KÜNG, op. cit., p. 65, grifos do autor). O mesmo espírito encontra-se
na Christus Dominus 11 e no Código de Direito Canônico cânon 369.
119

À catolicidade pela comunhão deve ser acrescentada a catolicidade pela extensão ou


expansão entre todos os povos, que foi prometida nos anúncios proféticos do Antigo Testa-
mento (Gn 22,18) e que é tarefa de toda a Igreja, pois foi dada como tarefa pelo Senhor Res-
suscitado (cf. Mt 28,18-20). Por isso, como opina H. Küng, não é suficiente restringir a catoli-
cidade à extensão espacial, à questão númerica de fiéis, variedade sociocultural ou continuida-
de temporal. Assim, a catolicidade qualitativa e quantitativa são inseparáveis.255
Da catolicidade também deriva, diretamente, a missionariedade da Igreja, pois a sal-
vação universal deve atingir todas as pessoas, através do esforço missionário dos cristãos. As-
sim como a Igreja é chamada e convocada, isto é, reunida como ekklésia, ela é enviada como
mensageira e anunciadora da Boa-Nova da salvação (cf. Ad gentes 2-8).
Em Lumen Gentium 13, lê-se que todos os povos da Terra são chamados a fazer par-
te do novo Povo de Deus, que é a Igreja. A união de todos os cristãos, buscada pelo ecume-
nismo, se constitui, dessarte, na realização da plena catolicidade da única Igreja do Senhor, em
vista de a atual divisão dos cristãos não diminuir a realização da Igreja católica. Por isso, afir-
ma o Vaticano II:

Todavia, a divisão dos cristãos impede a Igreja de realizar a plenitude da catolicida-


de, que lhe é própria, naqueles filhos que, embora lhe sejam acrescentados pelo Ba-
tismo, estão separados de sua plena comunhão. Não só isso, mas também para a pró-
pria Igreja se torna tanto mais difícil exprimir, na realidade da sua vida, a plena cato-
licidade sob todos os aspectos (Unitatis Redintegratio 4).

d) O Espírito Santo é princípio de catolicidade

Como consequência da unidade, a Igreja é católica, pois a salvação trazida pelo Se-
nhor Jesus se destina e deve atingir todos os povos, pois ele é Luz e Senhor para todos e
para todo o tempo (cf. Jo 8,12; 12,32). E nesse sentido de catolicidade encontra-se o Espíri-
to Santo, que a estende a todos os fiéis e a cada uma das Igrejas Particulares (cf. Lumen
Gentium 23). Assim, o Espírito Santo assegura tanto a catolicidade interna, quanto a exter-
na da Igreja:

255
KÜNG, op. cit., p. 67s; MONDIN, op. cit., p. 286.
120

Ela é católica porque nela Cristo está presente. “Onde está Cristo Jesus, está a
Igreja Católica”. Nela subsiste a plenitude do Corpo de Cristo unido a sua cabeça,
o que implica que ela recebe dele “a plenitude dos meios de salvação” que ele
quis: confissão de fé correta e completa, vida sacramental integral e ministério
ordenado na sucessão apostólica. Neste sentido fundamental, a Igreja era católica
no dia de Pentecostes, e o será sempre, até à Parusia (Catecismo da Igreja Católi-
ca 830).

E a Igreja reúne em um só corpo homens e mulheres das mais diversas raças e lín-
guas. Diz Máximo, o Confessor:

Homens, mulheres, jovens profundamente divididos no que diz respeito à raça,


nação, língua, classe social, trabalho, ciência e dignidade, bens [...], todos eles a
Igreja os recria no Espírito. Ela imprime uma forma divina igualmente em todos.
Todos recebem dela uma única natureza impossível de ser rompida, uma natureza
que não mais permite que se leve [sic] em conta as múltiplas e profundas diferen-
ças que há entre eles. Daí deriva que todos somos unidos de maneira verdadeira-
mente católica. Na Igreja, ninguém está separado da comunidade, todos se fun-
dem, por assim dizer, uns nos outros, pela força indivisível da fé. Assim, Cristo é
tudo em todos, ele que assume tudo nele segundo a sua força infinita e a todos
comunica a sua bondade. Ele é como um centro para o qual convergem todas as
linhas. Desse modo, não acontece que as criaturas do Deus único fiquem mais es-
tranhas e inimigas umas das outras, por falta de um lugar comum onde possam
manifestar a sua amizade e a sua paz.256

O envio missionário dos apóstolos, feito por Jesus após a Páscoa (cf. Mt 28,18-20;
Mc 6,15-18; Gl 1,16), é corroborado pela ação do Espírito Santo, cuja vinda é princípio de
missão e testemunho apostólicos (Lc 24,46-49; At 1,6-11; Jo 20,21). Tudo isso comporta o
encontro de povos, línguas, culturas e, até, religiões diversas, tendo iniciado com o mundo
greco-romano e se expandido por todos os povos do mundo, até os dias de hoje.257 E atual-
mente o tema da evangelização da cultura está tão em voga, devido à valorização das parti-
cularidades, que estas não podem ser esquecidas em detrimento da maioria. Nesse sentido,
afirma Y. Congar que Pentecostes lançou a Igreja e a colocou no mundo com uma vocação
de universalidade.258 Portanto, a Igreja não pode ficar fechada sobre si mesma, aprisionan-
do o Espírito.
E o Espírito Santo distribui seus carismas, que também contribuem para realizar a
catolicidade, pois, como são dons dados a cada pessoa em particular, são dados para o pro-

256
MÁXIMO, O CONFESSOR, Mystagogia I apud COMISSÃO TEOLÓGICO-HISTÓRICA DO GRANDE
JUBILEU DO ANO 2000, p. 64.
257
J. Auer faz uma apresentação interessante do encontro do Evangelho com as diversas culturas, ao esboçar
o desenvolvimento da concepção da catolicidade: AUER, op. cit., p. 67-81.
121

veito e utilidade comum (cf. 1Cor 12,7). E o apóstolo Paulo usa, logo a seguir, a simbolo-
gia do Corpo de Cristo, para expressar a necessidade de cada um contribuir para o bem de
todos (1Cor 12,12-30). Assim, não existe problema de relação entre a Igreja Local e a Igre-
ja universal, pois o Espírito Santo faz com que as Igrejas Locais sejam, verdadeiramente,
Igreja universal.
O Espírito Santo torna católica a Igreja no decorrer do tempo, pois a catolicidade
vai-se fazendo no decurso da história, enquanto a Igreja vai realizando a tarefa de evangeli-
zar, visto que o Espírito Santo é o “agente principal da nova evangelização” (cf. Tertio Mil-
lennio Adveniente 45) e “nunca será possível haver evangelização sem a ação do Espírito
Santo” (Evangelii Nuntiandi 75). Somente no fim, quando Cristo “for tudo em todos” (cf.
1Cor 15,28), é que a Igreja será, realmente, católica. Para tal, concorrem todos os movi-
mentos, pastorais e iniciativas diversas, que visam propagar o Evangelho a todos os lugares
e povos. Por isso, mais do que nunca, hoje, é preciso superar o medo e o respeito humanos,
pois o cristão, guiado e motivado pelo Espírito Santo, torna-se o baluarte da esperança e da
coragem por excelência. É o que o próprio Mestre recomenda aos seus apóstolos, depois da
Páscoa: “Não tenhais medo” (cf. Lc 24,36).
É pela força do Espírito Santo que os cristãos serão, hoje, a alma do mundo, como
sal e luz (cf. Mt 5,13-16). E o Papa João Paulo II afirma:

A Igreja oferece aos homens o Evangelho, documento profético, capaz de corres-


ponder às exigências e aspirações do coração humano: é e será sempre a “Boa-
Nova”. A Igreja não pode deixar de proclamar que Jesus veio revelar a face de
Deus e merecer, pela cruz e ressurreição, a salvação para todos os homens (Re-
demptoris Missio 11).

3.4 A apostolicidade da Igreja

a) História

O conceito “apóstolo” vem sendo estudado muito nos últimos anos, com diversidade
de opiniões. A constatação mais aceita é que não se pode simplesmente identificar “apóstolos”

258
CONGAR, op. cit., p. 230.
122

com os “Doze”.259 Por isso, a Igreja não é una, santa e católica de qualquer modo, mas relaci-
onada com os “Doze” e, nesse sentido, apostólica. O adjetivo “apostólico” surge com o uso
cristão, sempre relacionado com os “Doze”.
A ideia encontra-se no Novo Testamento, bem antes de Ireneu e Tertuliano, com a
noção fundamental de continuidade da missão, surgida do Pai e chegando à Igreja, através de
Cristo e dos apóstolos (cf. Jo 17,7ss; Mt 28,18-20; Rm 10,13-17; 2Tm 2,2 e Tt 1,5). Mais tarde,
encontra-se em Clemente Romano e, implicitamente, em Inácio de Antioquia, antes de apare-
cer em Tertuliano.260 Eles testemunham que as Igrejas apostólicas tinham consciência de que a
garantia da continuidade com os apóstolos acontecia por meio dos bispos, que os sucederam,
desde a sua fundação, na chefia destas. Isso é comprovado pela redação das listas episco-
pais.261
Assim, o princípio da apostolicidade existia, desde a origem, na concepção de uma
Igreja como comunidade iniciada com os apóstolos e destinada a uma extensão e uma duração
indefinidas, de modo que não era outra senão a dilatação ou prolongamento, se assim pode ser
dito, do primeiro núcleo apostólico.262 Essa concepção está clara nos Atos dos Apóstolos, que
mostram novos crentes se associando à primeira comunidade (cf. At 2,41.47; 5,14; 11,24;
17,4).
A palavra foi, primeiramente, usada no sentido moral: à maneira dos apóstolos.263
Ireneu, contra os gnósticos, expressou sistematicamente a ideia já esboçada por Clemente
Romano, segundo a qual a verdadeira doutrina deveria ser procurada na tradição recebida dos
apóstolos, através dos bispos e presbíteros instituídos por eles, que a transmitiram aos seus

259
Cf. FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 639-642; VIDAL, M. Sucession apostolique et apostolicité de l’Église.
In: AAVV. Le ministère et les ministères selon le Nouveau Testament. Paris: Seuil, 1974, p. 464-469. Também H.
Küng apresenta longa argumentação em torno dessa questão em KÜNG, op. cit., p. 131-144.
260
CLEMENTE ROMANO, Carta aos Coríntios XLII,1-2 (In: Carta de São Clemente Romano aos Coríntios.
Introdução, tradução do original grego e notas por Dom Paulo Evaristo Arns. Petrópolis: Vozes, 1973); INÁCIO
DE ANTIOQUIA, Carta aos Magnésios 6 e Carta aos Efésios 3 e 4 (In: Cartas de Santo Inácio de Antioquia.
Petrópolis: Vozes, 1970); TERTULIANO, De praescriptione haereticorum 22,4.
261
Cf. FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 643.
262
Cipriano expressa bem essa concepção: “Uma só ordem episcopal e cada um de nós participa dela
completamente. Mas a Igreja também é uma, embora, em seu fecundo crescimento, se vá dilatando numa
multidão sempre maior” (CIPRIANO, A unidade da Igreja Católica 5,2. Introdução, tradução e notas por Carlos
Beraldo. Petrópolis: Vozes, 1973, p. 34).
263
INÁCIO DE ANTIOQUIA, Carta aos Tralianos, Introdução.
123

sucessores até a época presente. A ideia foi retomada por Tertuliano, Cipriano e, finalmente,
pelos Padres dos séculos IV e V.264
Somente então a palavra “apostólico” aparece nos Símbolos como uma das quatro
propriedades da Igreja. Está em Epifânio e no Símbolo que Calcedônia (451) atribui ao Concí-
lio de Constantinopla (381). O fato de o Símbolo dos apóstolos não fazer menção da apostoli-
cidade permite, provavelmente, explicar por que, primeiro na Idade Média e depois nos refor-
madores do século XVI, assim como nos apologetas e nos catecismos dessa mesma época,
fala-se relativamente pouco dessa propriedade.
A Idade Média tem ideia daquilo que é chamado apostolicidade: Tomás expressa-a
com o nome firmitas, que é a permanência e a solidez da Igreja constituída, mediante a fé, pelo
fato de que ela ensina a mesma doutrina dos apóstolos. Também há insistência sobre a aposto-
licidade de ministério, apresentada como a continuação na Igreja do ministério.
No século XII, firma-se um argumento em favor da Igreja católica, apoiado sobre a
nota da apostolicidade contra as seitas antieclesiásticas: é a argumentação apologética da vera
Ecclesia. Os apologetas católicos, inicialmente com timidez e depois de modo decisivo e sis-
temático, encontraram na apostolicidade um argumento fortíssimo contra as Igrejas oriundas
da Reforma. Distinguiam-se três aspectos: apostolicidade de origem, de doutrina e de sucessão
hierárquica. Deixa-se, com o tempo, a primeira; a de doutrina continua, mas de forma negati-
va; na última insiste-se na sucessão romana.265

b) Conceito

Apostolicidade, segundo Y. Congar, é a propriedade graças à qual a Igreja conserva,


através dos tempos, a identidade dos seus princípios de unidade como ela os recebeu de Cristo
na pessoa dos apóstolos, isto é, aqueles que encontramos indicados em Mt 28,19-20 e At 2,42:
unidade mediante a comunhão de doutrina, sacramentos, vida comunitária na Igreja, sob a
guia dos pastores, que receberam seu ministério apostólico.266 O novo Catecismo da Igreja

264
Cf. MONDIN, op. cit., p. 290.
265
Para a história do conceito, além das ideias aqui desenvolvidas, procurar, com mais detalhes: FEINER e
LÖHRER, op. cit., p. 642-648; KÜNG, op. cit., p. 130-144.
266
Cf. FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 639. H. Küng considera importante unir o testemunho apostólico e a
adesão ao serviço apostólico para compreender bem a apostolicidade enquanto sucessão (Nachfolge) dos
apóstolos (cf. KÜNG, op. cit., p. 147).
124

Católica explica que a Igreja é apostólica, porque está fundada sobre os apóstolos, em três
sentidos: a) ela foi e continua sendo construída sobre o fundamento dos apóstolos (Ef 2,20 e At
21,14); b) ela conserva e transmite, com a ajuda do Espírito, o depósito e as palavras ouvidas
dos apóstolos; c) ela continua a ser ensinada, santificada e dirigida pelos apóstolos até a volta
de Cristo (cf. Catecismo da Igreja Católica 857).

c) Sentido teológico

Trata-se de conservar através do espaço (que uma mesma presença corpórea não
pode preencher) e do tempo (que a caducidade humana não domina) a identidade da missão
apostólica, isto é, da missão acompanhada pelos poderes e carismas necessários para exercê-la
que foram dados, por isso, aos apóstolos (Mt 28,18-20; At 1,8). Aqueles que foram enviados
podem e devem enviar outros após eles, porque a missão deve permanecer, embora os apósto-
los morram. Se a missão estivesse limitada à pessoa dos apóstolos, não se poderia nem mesmo
batizar. Aqui está presente, portanto, o princípio da sucessão apostólica.267
Aquilo que foi confiado aos apóstolos deve ser exercido, mediante um ministério
recebido ou derivado deles. Constitui-se, assim, um só corpo, uma só realidade, uma só pessoa
moral de missão e de poderes sacros, uma hierarquia. A ideia de um único sujeito de direito,
que dura através das séries de anos, muitas vezes é expressa em termos de herança. De fato,
dizemos uma “sucessão” para designar uma herança, um legado. É o princípio de identidade e
de missão, cuja autoridade passa daquele que envia àquele que é enviado. Assim, a sucessão é
ao mesmo tempo histórica e real.
A economia salvífica quer que os fatos acontecidos uma vez, num ponto definido da
Terra e da história, sejam comunicados a todas as pessoas humanas, pelas quais eles são graça
e verdade em vista da salvação, que consiste na comunhão com Deus. A comunhão com Deus
acontece, mediante Jesus Cristo, e com Jesus Cristo, mediante os apóstolos (1Jo 1,1-3): aqui
acontece a comunicação da missão, por meio do anúncio da palavra, pois o Evangelho anunci-
ado é aquele recebido dos apóstolos. A missão dos sucessores é idêntica à dos apóstolos.

267
As ideias até aqui desenvolvidas encontram-se em FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 672-679; KÜNG, op. cit.,
p. 144-151; MONDIN, op. cit., p. 289-292.
125

A apostolicidade é como a estrutura do edifício, a espinha dorsal do corpo. O seu


papel consiste em coligar o Alfa e o Ômega, o Cristo como princípio de tudo, que tudo fez por
nós, ao Cristo “que plenifica tudo em tudo” (Ef 1,23). Daí assume um valor escatológico: é
necessário conservar aquilo que foi recebido de Cristo até a sua volta ou, como dizem as pas-
torais, até a sua aparição (1Tm 6,14; 2Tm 1,10-13; 4,1). Conservar não significa enterrar ou
deixar estéril. Biblicamente é fazer ou agir (Mt 28,20; Jo 8,51). Assim, se constitui um pro-
grama: recapitular todas as coisas no Cristo, reunir todos os momentos de tempo para reunir
tudo em Cristo, Alfa e Ômega da história humana.

d) O Espírito Santo conserva a apostolicidade da Igreja

É o Espírito Santo quem assegura a fidelidade da Igreja à fé recebida dos apóstolos,


mantendo a conformidade com as origens e, ao mesmo tempo, a referência à escatologia,
que nunca a Igreja pode perder. Desse modo, mantém-se a proximidade entre catolicidade e
apostolicidade, como entre catolicidade e unidade. João apresenta a missão do Espírito San-
to como a de dar testemunho da verdade do que foi recebido de Cristo (cf. Jo 14,16.26;
15,26) e a projeção para o futuro (cf. Jo 15,26-27; Lc 24,48-49; At 1,8; 5,32).
Convém lembrar os elementos essenciais, que constituem a apostolicidade da Igreja:
a palavra, os sacramentos e o ministério dos Doze. Por essa razão, fala-se hoje em apostoli-
cidade de palavra e de ministério. Pois é o Espírito Santo quem atualiza a Palavra na Igreja,
enquanto essa deve ser proclamada de tal forma que as pessoas de hoje possam não apenas
a receber, mas entendê-la e aplicá-la às suas vidas. Daí que a Igreja foge de ser unicamente
uma questão sociológica, visto estarem realçados os seus elementos espirituais, que a tor-
nam, em primeiro lugar, uma questão de fé.
Nessa tarefa de atualizar a palavra, o Espírito Santo torna a Igreja infalível. É nesse
sentido que se compreende a afirmação, do Vaticano II, de que o Povo de Deus goza do
“sentido sobrenatural da fé” (cf. Lumen Gentium 12). Também o Magistério exerce a sua
missão própria, que é a de zelar, transmitir, interpretar, definir, proclamar, salvaguardar a
verdade confiada por Jesus Cristo à Igreja, hoje presente no depósito da fé.268 É o Espírito
Santo quem afirma e precisa a fé, mantendo a infalibilidade e a fidelidade da Igreja à Reve-

268
Cf. MONDIN, op. cit., p. 346.
126

lação. E essa tarefa de atualização da palavra por meio do Espírito Santo é exercida no de-
curso da história.
A missão, dada uma vez, é total, pois todo cristão é enviado para evangelizar, a
exemplo de Jesus Cristo, que foi consagrado e enviado ao mundo em missão (cf. Jo
17,3.18). Assim, ele enviou os Doze (cf. Mt 28,18-20), e estes, por sua vez, enviam a todos,
com a finalidade exclusiva de evangelizar todos os povos e nações. Assim, ao mesmo tem-
po que enviados, o Filho e o Espírito Santo foram dados a todos os evangelizadores, não
havendo uma separação entre a obra do Filho e a obra do Espírito Santo269, a tal ponto que
os enviados pregam o querigma sob a “ação do Espírito Santo” (1Pd 1,12) e sua palavra é
poderosa “por ação do Espírito Santo” (1Ts 1,5; At 4,31.33; Hb 2,3-4). Mas eles mesmos
foram fortalecidos por ele na verdade (Jo 16,8-13; 1Jo 5,6). A Igreja nasce e se fortalece
graças à ação e ao apoio do Espírito Santo (At 6,7; 4,33; 9,31). O ministério apostólico é
um “ministério” do Espírito (2Cor 3,4-18): o Espírito Santo faz acontecer no coração de
cada batizado a palavra e os sacramentos celebrados externamente. Todavia, não se pode
esquecer que a “tradição-transmissão”, que assegura a Igreja na fidelidade e na unidade de
sua fé, está ligada aos bispos, como sucessores dos Doze.270

3.5 A romanidade

Quando se aborda este tema, a questão a ser posta, indiscutivelmente, é se a romani-


dade é ou não uma nota ou propriedade da Igreja de Jesus Cristo. Para elucidar a questão, é
preciso dar os passos seguintes.

269
Joaquim De Fiore ensinava uma separação entre a “era de Jesus Cristo” e a “era do Paráclito”, ao distinguir
três eras na história, cada uma correspondendo a uma das três Pessoas da Trindade, instituindo, com isso,
forte acento escatológico ao antecipar a escatologia no horizonte da história, resultando no milenarismo (cf.
LAMBIASI, F. Lo Spirito Santo: mistero e presenza. Per una sintesi di pneumatologia. In: ROCHETTA, C.
(Org.). Corso di Teologia Sistematica. v. 5. Bologna: Dehoniane, 1987, p. 130-132).
270
SANTO IRENEU, Adversus Haereses IV, 26,2 (Sources Chrétiennes 100, p. 719). “Eis por que se devem
escutar os presbíteros que estão na Igreja, que são os sucessores dos apóstolos, como o demonstramos, e que
com a sucessão no episcopado receberam o carisma seguro da verdade segundo o beneplácito do Pai” (IRE-
NEU DE LIÃO. São Paulo: Paulus, 1995, p. 450). Ver comentário sobre a palavra carisma, deste texto de
Ireneu, em CONGAR, op. cit., p. 250, nota 22.
127

Inicialmente, faz-se a constatação de que o título “Igreja católica romana” é encon-


trado frequentemente, pois a Tradição emprega ora “Igreja romana” ora “Igreja católica roma-
na”. O uso também é diverso, conforme comprovam os seguintes casos:
1. Decreto Gelasiano (13/08/520): “Item gesta sanctorum martyrum [...] Sed
secundum [...] singulari cautela in Sancta Romana Ecclesia non leguntur” (DS
353). Também: “verum [...] Romana catholica et apostolica Ecclesia” (DS 354).
2. Contra os Valdenses (18/12/1208): na Carta Eius exemplo (DS 792).
3. Concílio de Constança, na sessão XV (06/07/1415) contra Huss e Wyclif: “nec
Romanus Pontifex et caput Romanae Ecclesiae” (DS 1210); “Ecclesiae sanctae
catholicae” (DS 1207).
4. Concílio de Florença:
a) no Decreto pro Armenis (22/11/1439): “et Romana Ecclesia” (DS 1328
e 1330);
b) no Decretum pro Iacobitis (04/02/1442): “Sacrosancta Romana Eccle-
sia” (DS 1352).
5. Concílio de Trento (13/12/1545 a 04/12/1563):
a) na sessão VI (13/01/1547): DS 1579;
b) na sessão VII (03/03/1547): DS 1616
c) a 13/11/1564: DS 1862, 1868 - Fé Tridentina, Bula “Iniunctum nobis”.
6. Vaticano I (08/12/1869-20/10/1870)
a) na sessão II (24/04/1870) Dei Filius (DS 3001): “Sancta catholica apos-
tolica Romana Ecclesia”;
b) no decreto, inicialmente, havia “sancta, romana, catholica Ecclesia
credit”, mas, diante da reação (por medo do papalismo e da expressão,
segundo os bispos ingleses), resolveu-se o impasse intercalando a pala-
vra “apostólica” entre “católica” e “romana”, compreendendo como um
complemento descritivo de católica.
7. Carta do Santo Ofício aos bispos da Inglaterra (16/09/1864): DS 2886: “partim
ex Romana Ecclesia per universum orbem diffusa et propagata” (DS 861, 855 e
3456).
128

Após essa análise, conclui-se que a palavra “romana” é de uso tradicional na Igreja,
acentuado na época das controvérsias eclesiológicas e da Reforma. Nesse sentido, Y. Congar
divide o seu uso em três grupos: a) contra os Valdenses (DS 792); b) no contexto da união
com os gregos no Concílio de Florença; c) durante a Contrarreforma.
Era usada antes do Vaticano II, para dizer que a verdadeira Igreja, a Igreja Católica,
se encontra em Roma. Após, o seu uso foi abandonado por motivos ecumênicos, também pela
valorização das Igrejas Particulares e, enfim, por se entender que o sucessor de Pedro é Bispo
de uma Igreja Particular, que possui um carisma especial, e, por essa razão, Pastor da Igreja
universal. Contudo, não pode ser entendido que a Igreja Particular de Roma constitua a totali-
dade da Igreja, isto é, que ela abranja todas as Igrejas Particulares na Igreja universal.
Isso significa que pode ser entendido com um sentido positivo, ou seja, como uma
precisão da apostolicidade, pois indica o lugar onde Pedro deu testemunho de Cristo e onde
está seu túmulo, e, além disso, que Cristo estruturou a Igreja a partir da missão pastoral deri-
vada de Pedro, constituindo-se em uma referência à cátedra de Pedro.
129

CAPÍTULO QUARTO

A IGREJA COMO MISTÉRIO-SACRAMENTO DE SALVAÇÃO

Este capítulo visa abordar a sacramentalidade da Igreja, própria de seu mistério,


compreendendo-a a partir de uma comunhão orgânica, que implica a necessária visão unitária
entre os elementos divino e humano, simultaneamente presentes. A imagem bíblica é a de
Corpo de Cristo, que expressa a imprescindível unidade entre a Cabeça, Jesus Cristo, e os
membros da Igreja, todos os batizados.

4.1 A redescoberta do mistério da Igreja

A história da Eclesiologia, estudada no primeiro capítulo, demonstra a importância


da redescoberta do mistério da Igreja para a sua autocompreensão. A imagem de Corpo de
Cristo e da analogia da encarnação do Verbo aplicada à Igreja vem completar a compreensão
da Igreja dos primeiros tratados de Eclesiologia, que acentuavam muito mais o lado institucio-
nal.271 Assim, a renovação da Eclesiologia, iniciada no princípio do século retrasado, propicia
uma nova visão de Igreja, agora unitária, presente no Concílio Ecumênico Vaticano II, particu-
larmente na Constituição Dogmática Lumen Gentium: o visível e o invisível numa simultanei-
dade, conforme expressa claramente o número 8 do documento citado.272
A Igreja não pode ter outra compreensão de si mesma do que aquela querida e prepa-
rada pelo Pai, como expressão máxima de seu amor, oculto e misterioso, pela humanidade. É o
que afirma a Lumen Gentium: “O Pai eterno, por libérrimo e arcano desígnio de sua sabedoria
e bondade, criou todo o universo. Decretou elevar os homens à participação de sua vida divi-

271
Ver, a propósito, comentário sobre o desembocar dos movimentos renovadores, especialmente dos estudos
bíblicos e patrísticos, na Lumen Gentium, em O. ROUSSEAU, A Constituição no quadro dos movimentos
renovadores de teologia e de pastoral nas últimas décadas. In: BARAÚNA, op. cit., p. 116-134.
272
“A discussão conciliar em torno deste primeiro capítulo foi relativamente (comparada com os estilos dos
debates da I Sessão) rápida, em três Congregações Gerais (parte da 38ª, 39ª, 40ª e parte da 41ª, nos dias 1º a 4 de
outubro de 1963). O novo texto já era uma reação positiva contra um conceito excessivamente jurídico, social,
externo, institucional, clerical e triunfalista da Igreja” (cf. KLOPPENBURG, As vicissitudes da ‘Lumen
Gentium’. In: BARAÚNA, op. cit., p. 202).
130

na” (Lumen Gentium 2). Por isso, a Igreja se vê e se compreende dentro do maravilhoso e pro-
digioso desígnio que a Santíssima Trindade concebeu para tornar a humanidade participante
da intimidade de sua vida divina.
Daí decorre, também, a já referida necessária unidade entre os dois primeiros capítu-
los da Lumen Gentium, o mistério da Igreja (primeiro capítulo) e o Povo de Deus (segundo
capítulo), que supera uma visão fechada e estática da Igreja-entidade, fazendo aparecer seu
caráter dinâmico, como Povo de Deus em marcha, buscando sua realização definitiva e plena
na escatologia.273
A palavra “mistério” provém do grego mystêrion, que significa coisa arcana, secreta,
especialmente sacra. Fílon de Alexandria divide os mistérios em dois tipos: os grandes e os
pequenos. Os grandes dizem respeito a Deus e a seus atributos; os pequenos, aos sinais e às
potências.
No entanto, no Novo Testamento não há referência nenhuma aos mistérios da Anti-
guidade, tanto do ponto de vista de sua definição quanto do conteúdo. Na maioria das vezes,
significa o desígnio salvífico divino, concebido e escondido desde todos os séculos, mas reve-
lado agora, na plenitude dos tempos, por Jesus Cristo, o Salvador de todos os homens. O mis-
tério constitui-se, portanto, no mistério de Cristo: Mc 4,11; 1Cor 2,6-10; Rm 15,25-27; Ef
1,27; 2,2; 4,3; Cl 1,27.
Quando a Lumen Gentium intitula seu primeiro capítulo “O mistério da Igreja” (n. 1-
8), quer indicar não simplesmente algo irracional ou absurdo, incognoscível ou obstrutor, di-
ante do qual a pessoa deve renunciar a todo esforço intelectual, mas, como já reconhecem
muitos, atualmente, designar uma realidade divina, transcendente e salvífica, que se revela e se
manifesta de alguma maneira visível. Daí o vocábulo, absolutamente bíblico, mostrar-se muito
apto para qualificar a Igreja.
Segundo o Concílio, a expressão “A Igreja é um mistério” significa que a Igreja é
uma realidade divina transcendente e salvífica visivelmente presente entre os homens. Na par-
te externa e visível da Igreja, ao mesmo tempo, se esconde e se revela sua realidade divina e
invisível. G. Philips define assim:

273
ROUSSEAU, op. cit., p. 119s.
131

O “mistério”, simples transcrição do equivalente grego, é o decreto divino com o


qual o Pai realiza em Cristo a sua vontade salvífica, e no mesmo tempo a revela por
meio de uma realidade temporal que conserva toda a sua transparência.274

Portanto, o mistério da Igreja evoca o desígnio de Deus sobre a humanidade em Je-


sus Cristo. Se é verdade que está fora do alcance do ser humano, porque é qualitativamente
diferente de qualquer objeto da ciência humana, contudo, atinge e age na pessoa, e sua revela-
ção esclarece a respeito dela mesma. A Igreja é mistério, porque, vindo de Deus e estando a
serviço de seu desígnio, é organismo de salvação, relacionado inteiramente com Cristo. Por
isso, o mistério da Igreja, isto é, a salvação de Cristo, que eclode e age no ser humano, revela-
lhe a sua condição de filho de Deus salvo pelo sangue de Jesus Cristo.
E todos quantos se incorporam a essa vida misteriosa em Deus Trino são associados,
assumidos e configurados “aos mistérios da vida de Cristo” (Lumen Gentium 7), que é seu
chefe e Cabeça. Vivem, assim, em Cristo e por Cristo e, na medida em que assim vivem, “re-
velam seu mistério ao mundo de maneira fiel, embora em sombras, até que no fim dos tempos
se manifeste em plena luz” (Lumen Gentium 8).
A tradição expressa o mistério da Igreja como mysterium lunae. Nessa imagem apa-
rece de modo plástico a relação entre Cristo e a Igreja, que vive de Cristo. Ele é o sol de justi-
ça, única fonte de luz. A Igreja, como a lua, dele recebe, a todo instante, todo o seu clarão. A
Igreja não vive e resplandece a luz própria, mas por meio de Cristo, que é a luz. A Igreja é luz
da luz; luz reflexa nas trevas do tempo para mostrar o caminho da salvação. Ela passa por dife-
rentes fases, tanto externamente quanto no seu fervor íntimo, porque ela não cessa de enfrentar
as relações das vicissitudes humanas.
Diante disso, é necessário fazer três observações:
a) a salvação invisível de Jesus Cristo acontece por meio da Igreja visível. Ela é me-
diadora da salvação por meios concretos, como o são a instituição e a organização;
b) a Igreja é, ao mesmo tempo, divina e humana. A salvação acontece por mediação
humana. Cristo assim quis: quando chamou os Doze, os constituiu como colégio e deu-lhes a
plenitude do poder. Por isso, ela é peregrina na história e está em dependência da história até a
consumação dos tempos. Nesse sentido, as imagens que melhor expressam o mistério da Igre-
ja são a de Corpo de Cristo e a de Povo de Deus;

274
Cf. PHILIPS, op. cit., p. 71.
132

c) a Igreja não é somente uma comunidade de pessoas que creem em Deus e em sua
ação salvífica na história. Ela mesma é uma parte dessa atividade salvífica; portanto, ela mes-
ma é objeto e mistério da fé. Nos antigos Símbolos de fé encontra-se o artigo Credo Ecclesi-
am, que quer expressar a aceitação da Igreja como sujeito da fé do cristão.

Clodovis Boff afirma não se dizer Credo in Ecclesiam da mesma forma como Credo
in Deum, porque a Igreja não é Deus. Contudo, se crê em Deus e que a sua Igreja existe. É por
essa razão que os escolásticos diziam: “Creio a santa Igreja Católica”. Como a fé se refere
essencial e diretamente a Deus, a Igreja é o espaço onde essa se processa. Mais do que objeto,
ela é sujeito da fé: é a Igreja que crê. Por isso, ele conclui: “Enfim, se se pode crer na Igreja (in
Ecclesiam) é somente porque referida a Deus, isto é, como sua graça, como sacramento de sua
salvação”.275 Portanto, afirma-se creio a Igreja, porque ela se forma através da fé, que vem da
graça de Deus, através da Igreja, e porque ela é sujeito da fé.
O Sínodo Extraordinário dos Bispos de 1985, em Roma, lembra esse argumento.
Não se pode esquecer o mistério da Igreja sem correr o risco de adotar uma visão unilateral da
Igreja, seja uma puramente hierárquica, seja uma nova concepção sociológica. A falta de visão
dessa unidade acarreta uma má compreensão da natureza da Igreja. Preocupados com essa
possibilidade, por vezes ocorrida no período pós-conciliar, os participantes do Sínodo de 1985
lembram que toda a importância da Igreja deriva da sua conexão com Cristo (Relatio Finalis
II, A, 3).

4.2 A Igreja como mistério-sacramento de salvação

O Vaticano II designa a Igreja como “sacramento universal de salvação” (Sacrosanc-


tum Concilium 26; Lumen Gentium 1, 48 e 59; Ad Gentes 1, 5; Gaudium et Spes 45). Tal qua-
lificação276, se bem que formulada em termos essenciais, quer ser também uma afirmação
funcional277 sobre a Igreja: “E porque a Igreja é em Cristo como que o sacramento ou o sinal e

275
Cf. BOFF, C. Comunidade eclesial - comunidade política. Ensaios de Eclesiologia política. Petrópolis: Vozes,
1978, p. 21.
276
Bibliografia básica: AUER, op. cit., p. 101-115; BENI, op. cit., p. 161-167; MONDIN, op. cit., p. 295-317.
277
MONDIN, op. cit., p. 295.
133

instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano” (cf. Lumen
Gentium 1).
A palavra sacramento, desde o final do século XI, sofreu um isolamento conceitual e
uma restrição às sete ações sacramentais. Esse sentido foi consagrado pelo Magistério, sobre-
tudo pela definição de Trento, que declara, em primeiro lugar, que Cristo instituiu os sete sa-
cramentos e, em segundo lugar, que o número dos sacramentos é “sete nem mais nem menos”
(DS 1601). Mas essa fixação não torna ilegítima a aplicação, embora análoga, do conceito de
sacramento à Igreja. A definição de Trento não impede de afirmar a Igreja como verdadeiro
sacramento, porque, ao entender por sacramento aquelas ações que garantem e exprimem a
presença eficaz de Cristo, no momento em que se efetuam (cf. DS 1606), é possível reconhe-
cê-la como o sacramento primordial desse agir, cuja validade consiste no fato de que é um agir
sacramental da Igreja, e percorre toda a história, atualizando-a nas sete ações sacramentais.

a) Histórico278

Quando o Novo Testamento se refere ao “antigo Povo de Deus como um éon novo”,
sempre o faz harmonizando uma visão histórico-salvífica e mística, como é o caso da carta aos
Efésios, com uma visão cósmica, conforme a carta aos Colossenses. Assim, os elementos ter-
reno-histórico e místico ficam claros. Por isso, a Igreja é considerada como Ecclesia ab Adam
ou ab initio mundi, levando em conta suas dimensões histórica, cósmica e cristocêntrica. Es-
pecialmente São Paulo, com a imagem do Corpo de Cristo, favorece uma visão de conjunto
das dimensões mística e histórica, da Igreja universal e das Igrejas Particulares, do institucio-
nal e do carismático, tornando o mistério da encarnação a imagem primordial da compreensão
da Igreja, como, aliás, retoma a renovação da Eclesiologia propiciada pelas Escolas teológicas
de Roma e de Tubinga. Com isso, está clara a possibilidade de entender a Igreja como sacra-
mento, muito embora a Escritura não empregue explicitamente essa palavra para a Igreja.
Orígenes († 254) foi o primeiro a desenvolver o conceito da sacramentalidade da
Igreja como modelo teológico em seu pensamento simbólico, ao afirmar que o Lógos oculto
de Deus se revela na Igreja, por meio dos sacramentos e dos ministérios, além da encarnação e
da Palavra.

278
O que segue nesse ponto é um resumo de AUER, op. cit., p. 102-107.
134

Cipriano († 258), seguindo Ef 5,32 e 4,4ss, vê a Igreja como sacramentum unitatis, a


una mater Ecclesia, que, embora seja uma Igreja celestial, foi trazida para a Terra por Jesus
Cristo e confiada a Pedro e aos apóstolos.279
Ticônio, no livro Liber regularum, diz que Cristo, como Cabeça, forma um só com a
Igreja, que é seu Corpo. Por isso, tudo o que a Escritura diz a respeito de Cristo, Cabeça da
Igreja, pode referir-se, igualmente, a ela, seu Corpo.
Agostinho († 431) diz o mesmo, quando chama a Igreja de totus Christus (Cabeça e
Corpo) e vê a Igreja como o sacramento da salvação desde o princípio do mundo.
O Papa Leão I († 461) considera a Igreja como sacramentum salutis na história da
humanidade desde seu começo. Essa concepção de Igreja segue sendo decisiva no Ocidente
até a alta Idade Média, definindo-se sempre pela visão conjunta do divino e do humano, do
visível e do invisível, do histórico e do supra-histórico.280
Essa visão não muda até aos séculos XII e XIII, quando prevaleceram o pensamento
jurídico-romano e a metafísica aristotélica, respectivamente, acarretando o desaparecimento
dessa visão, embora os grandes escolásticos continuassem abordando o tema da Igreja como
sacramento, graças ao fundamento cristológico, da doutrina geral dos sacramentos e da gratia
capitis Christi. Assim, Santo Tomás († 1274) ensina que a Igreja é o corpo e o sacramento de
Cristo sobre a terra. Posteriormente, a partir de R. Belarmino († 1621), essa doutrina é comple-
tamente abandonada, pois a realidade exterior (sacramentum tantum) e a realidade interna da
Igreja (res sacramenti) estavam muito separadas no pensamento teológico de então.
A compreensão da Igreja como sacramento está ausente da Teologia medieval, que
reserva essa palavra para as sete ações sacramentais. A explicação é o fato de a Teologia me-
dieval não conhecer nenhum tratado sistemático de Eclesiologia. Os mistérios salvíficos, ou
melhor, o mistério da salvação de Deus em Jesus Cristo, vinham expostos pela Teologia sis-
temática medieval no contexto da doutrina sobre Deus e da sua obra na criação e na redenção.
A Igreja era o instrumento e o lugar nos quais e através dos quais os mistérios divinos de sal-
vação, operados uma vez por todas, vinham atualizados.
Só a Escola Francesa do Pe. Bérulle († 1629), por influência da nova visão das rela-
ções do cristão com Cristo e da natureza humana de Cristo com o Lógos divino, possibilitou

279
CIPRIANO, A unidade da Igreja católica 5-7.
280
Sermo 23,4; 307; PL 54,206; 230ss (apud AUER, op. cit., p. 103).
135

que Louis de Thomassin († 1695) voltasse a designar a Igreja como sacramento de Cristo, ao
afirmar que Jesus Cristo “levava e revelava em si toda a Igreja como sacramento”.281
O Concílio Vaticano I ignorou o conceito de sacramento aplicado à Igreja, apesar de
afirmá-la como signum levatum in nationibus (DS 3014). Faltou a visão histórica para esse
Concílio, o que só virá mais tarde. O movimento litúrgico, surgido na França após esse Concí-
lio, e o movimento juvenil, surgido na Alemanha, em torno da primeira guerra mundial, fo-
mentaram a retomada da noção da Igreja como sacramento, claramente presente nas obras
teológicas, sobretudo, de Karl Adam, Romano Guardini e Odo Casel.
A encíclica Mystici Corporis (1943) expressa adequadamente a noção da Igreja co-
mo sacramento de Cristo. A exposição direta e explícita da Igreja, segundo a categoria sacra-
mental, foi afirmada de modo sempre mais decisivo no período seguinte à Segunda Guerra
Mundial, no âmbito da reflexão da Teologia alemã. Diversos teólogos continuaram nessa linha
de pensamento. Entre eles estão Mathias Scheeben, J. Fellermeier, Otto Semmelroth, Karl
Rahner, Edward Schillebeeckx, Yves Congar e Henri de Lubac. Esse último teólogo foi quem
abriu caminho para o Vaticano II apresentar de forma clara e precisa esse ensinamento. Esses
autores ilustram a diferença entre a Igreja e as ações sacramentais com os seguintes termos,
entre outros:
– sacramento primordial (Ur-Sakrament);
– sacramento radical (Wurzelsakrament);
– sacramento fundamental (Grundsakrament);
– sacramento da humanidade (Sakrament der Menschlichkeit).

Após a Segunda Guerra Mundial, essa qualificação se firmou, embora, no século


XIX, se encontre algum teólogo que emprega esse termo para a Igreja, mas com titubeação.
Na época preparatória ao Vaticano II, G. Tyrrel é seu porta-voz. O Vaticano II demonstrou
largueza de horizontes, quando empregou tal conceito para qualificar a Igreja.

b) Reflexão sistemática

281
“Sacramentum universale ecclesiae circumgestabat Christus et in ipso demonstrabat”: Dogm. Theol II, Paris,
1684, p. 243, 250 (apud AUER, op. cit., p. 104).
136

A definição de Agostinho – “forma visível da graça invisível” (DS 1629) – vale tam-
bém para o mysterium da Igreja. Ela é o sacramento, não só porque contém a graça do Espírito
do Senhor glorificado na sua forma social e visível, mas também porque a comunica, enquanto
a torna possível, por meio das ações particulares de cada uma das sete ações específicas e,
portanto, sacramentais, aqui e agora, às pessoas dispostas a aceitá-las pela fé. Mas somente
agora, com o Magistério do Vaticano II (cf. Lumen Gentium 1), foi começado o emprego da
qualificação da Igreja como sacramento, indicando uma realidade terrena na qual, ao mesmo
tempo, se esconde e se manifesta a realidade divina e a sua eficácia. A realidade divina encon-
tra, portanto, nela um reflexo, que em cada caso só pode ser percebido pela fé.
O conceito de sacramento já está presente nos primeiros séculos, se bem que precisa-
do só no primeiro milênio. O elemento mais importante na aplicação da sacramentalidade à
Igreja é a dimensão de mistério. A palavra grega mystêrion foi traduzida pela palavra latina
sacramentum. No plano religioso, mistério é o plano de salvação estabelecido por Deus e re-
velado em Jesus Cristo. A realidade, que, em certo sentido, vem oferecida ao conhecimento da
experiência humana no mystêrion – que é acontecimento da história da salvação e assim reali-
dade endereçada às pessoas e pelas pessoas –, está subtraída na sua mais profunda interiorida-
de ao conhecimento humano.
O mystêrion oferece, portanto, à pessoa o mistério de Deus sob o véu da realidade
humana perceptível, mas não em termos tais que os conteúdos humanos de experiência pos-
sam vir a ser utilizados como uma espécie de semelhança ou de ajuda prestada ao conheci-
mento. A experiência humana canaliza o pressentimento de que a criatura encontra Deus no
mistério divino da salvação. A pessoa, em Jesus Cristo, pode encontrar a Deus, porque nele
Deus está visível entre os seres humanos sob a forma corpórea, tornando possível um encontro
humano com ele.
Na Igreja está presente e atuando o mistério salvífico de Deus, que é designado com
o conceito de sacramento. Aí está presente um reconhecimento e uma afirmação do caráter
“encarnacional” da graça, que é autocomunicação de Deus para a santificação e a salvação do
ser humano. A sacramentalidade é, pois, a forma que Deus assume para aproximar-se da pes-
soa como graça, e é a forma pela qual ele pode ser encontrado. Essa qualidade é inerente à
Igreja, porque ela é sacramento primordial e global, que inclui toda a forma sacramental. As-
137

sim, não é a Igreja que produz a salvação, mas ela transmite e proclama a salvação recebida de
Jesus Cristo e presente nela como prolongamento da sacramentalidade dele próprio.282
A sacramentalidade da Igreja é o lugar onde se afronta o problema da relação entre
Igreja visível e a salvação invisível e escatológica. Por isso, afirmar a Igreja como sacramento
de salvação significa ultrapassar o seu puro e simples “em si”, além de afirmar a unidade entre
o seu ser e a sua missão. E isso é mostrar o que a Igreja é para o mundo, ou seja, o significado
que ela assume para a salvação humana, indicando, igualmente, o seu aspecto funcional. Nela
se opera a unidade entre o mundo visível e o invísível, o humano e o divino. Portanto, ela é
sinal de salvação.
Diante do que foi exposto até aqui, convém frisar o que segue:

a) enquanto os sete sacramentos indicam a salvação do ser humano em cada caso


(Batismo, Matrimônio, p. ex.), a sacramentalidade da Igreja diz a salvação em sua totalidade,
porque nela estão compreendidas todas as realidades, quando se fala em salvação;
b) assim, como cada um dos sete sacramentos é sinal de Cristo, a Igreja também o é
para o mundo. Por isso, a Igreja deve entender-se ao mesmo tempo como Corpo de Cristo e
Povo de Deus, analogamente à unidade das duas naturezas (a humana e a divina) em Jesus
Cristo, pelo recurso ao conceito de união hipostática, definida pelo Concílio de Calcedônia
(451);
c) como sacramento universal de salvação, a contribuição salvífica da Igreja se es-
tende a todas as pessoas, de todos os tempos e lugares, não apenas para quem já se confessa
membro da mesma, pois ela é um povo aberto, isto é, católico (cf. Lumen Gentium 13);
d) a Igreja se mostra como sacramento unitatis, pois, tendo como fundamento Deus
Trino, realiza a unidade de todos os seres humanos, integrando o universo e o cosmo. É a sa-
cramentalidade de “forma aberta”, que leva a Igreja a realizar a comunhão (koinonía) plena da
humanidade e do cosmo.283

4.3 A Igreja, Corpo de Cristo

282
MONDIN, op. cit., p. 303.
283
Cf. AUER, op. cit., p. 111-115.
138

A imagem de Corpo de Cristo passou por diversas fases ao longo da história da Igre-
ja, independentemente de sua importância nos escritos paulinos e para os Santos Padres. Dei-
xada na sombra durante uma parte do segundo milênio e redescoberta no século XIX, com
Moehler e os teólogos da Escola romana, J. B. Franzelin, M. J. Scheeben, J. Perrone, C. Pas-
saglia e C. Schrader, conheceu um grande reflorescimento durante a primeira metade do sécu-
lo XX. A síntese dessa imagem, encontrada na Encíclica Mystici Corporis, significou o coro-
amento e a consagração do imenso trabalho eclesiológico feito nos últimos tempos.284
A expressão Corpo de Cristo é tipicamente paulina. Ao inspirar-se na cultura grega,
Paulo, com essa imagem, põe a questão teológica da relação de Cristo com o seu corpo, para a
qual o corpo designava não somente o corpo humano, mas também o organismo social, no
qual os membros são solidários. Assim, a imagem mostra a relação indissolúvel entre o corpo
ressuscitado de Jesus Cristo e o Corpo eclesial, pois o corpo glorioso de Cristo tem sua exten-
são no Corpo eclesial, devido a uma identidade, ao mesmo tempo misteriosa e real, na qual
acontece o mistério salvífico de Deus. É como mostram os dois textos seguintes: “Não sabeis
que os vossos corpos são membros de Cristo? Tomarei então os membros de Cristo para fazê-
los membros de uma prostituta? Por certo, não!” (1Cor 6, 15); “Pois fomos batizados num só
Espírito para ser um só corpo, judeus e gregos, escravos e livres, e todos bebemos de um só
espírito!” (1Cor 12,13).
Nas cartas aos Colossenses e aos Efésios a reflexão sobre essa relação se aprofunda.
Os textos precisam a distinção entre Cristo e a Igreja e mostram o seu papel para com a comu-
nidade de fé, como Cabeça da Igreja (cf. Cl 1,18; Ef 1,22; 4,15; 5,23). É como expressa Paulo
aos cristãos de Éfeso:

Mas, seguindo a verdade em amor, cresceremos em tudo em direção àquele que é a


Cabeça, Cristo, cujo Corpo, em sua inteireza, bem-ajustado e unido por meio de toda
junta e ligadura, com a operação harmoniosa de cada uma das suas partes, realiza o
seu crescimento para a sua própria edificação no amor (Ef 4,15-16).

Essa imagem faz superar a compreensão da Igreja enquanto sociedade ou a de um


grupo que se reúne para conservar a memória de Jesus Cristo e seguir seus ensinamentos. Ho-
je, a Igreja é entendida como comunidade de fé, testemunhada no Batismo (congregatio fide-
lium) e continuada na comunhão do mesmo pão eucarístico, que une os fiéis com o corpo res-

284
Ver o significado dessa imagem para a renovação da Eclesiologia, no primeiro capítulo.
139

suscitado do Senhor, como extensão dele próprio. Desse modo, essa imagem é adequada para
expressar o mistério da Igreja, porquanto afirma, principalmente, conforme A. Aranda, que
nela se torna realidade histórica e operativa o mistério da salvação, estabelecido por Deus Pai
e realizado por Jesus Cristo, Cabeça do corpo, que é a Igreja.285 Por isso, escreve Paulo: “Tudo
ele pôs debaixo de seus pés, e o pôs, acima de tudo, como Cabeça da Igreja” (Ef 1,22).
Os Padres da era apostólica empregam a doutrina paulina do Corpo de Cristo, mas a
exprimem, frequentemente, através do tema da unidade da Igreja, que preocupou muito toda a
Patrística por causa do contexto das heresias e das divisões internas. Tanto os Padres gregos
quanto os latinos insistem sobre essa temática, os primeiros mais sobre a unidade invisível da
Igreja, e os outros sobre sua unidade visível, mas ambos acentuam a relação intrínseca entre
essas duas dimensões da unidade da Igreja. Como exemplo, podem-se citar a Didaqué286, Iná-
cio de Antioquia287, Ireneu de Lião, com o tema da recapitulação288, e Cipriano.289
Para Agostinho, Cristo e a Igreja formam “uma só coisa, uma só alma, um só ho-
mem, uma só pessoa, um só justo, um só Cristo, um só Filho de Deus”. Contra os donatistas,
usa este mesmo argumento: “Nosso Senhor Jesus Cristo, como um homem completo e perfei-
to, tem cabeça e corpo. Seu corpo, que é a Igreja; não a Igreja que está aqui somente, mas
aquela que está aqui e aquela que está por toda a Terra [...]. É o Cristo, aquele, total e univer-
sal, unido à Igreja”.290
Assim, a unidade eclesial é absolutamente original, pois é espiritual e visível simul-
taneamente, porque inclui o corpo mesmo, e dá um claro testemunho da união entre Eucaristia
e Igreja. Por isso, a realidade escatológica da Igreja se torna apreensível na incorporação a

285
Cf. ARANDA, A. Cristo y la Iglesia. El significado trinitario del misterio de la Iglesia como Cuerpo de
Cristo. In: RODRÍGUEZ, P. (Org.). Eclesiología 30 años después de “Lumen Gentium”. Madrid: RIALP,
1994, p. 92.
286
“Da mesma maneira como este pão quebrado primeiro fora semeado sobre as colinas e depois recolhido
para tornar-se um, assim das extremidades da Terra seja unida a ti tua Igreja (assembleia) em teu reino; pois
tua é a glória e o poder pelos séculos! Amém” (DIDAQUÉ, IX,4).
287
“[...] em benefício de seus santos fiéis, tanto judeus, como gentios, no único corpo de sua Igreja” (INÁCIO
DE ANTIOQUIA, Carta aos Esmirnenses 1,2); “Não pode uma cabeça nascer sem membros, uma vez que
Deus nos promete a unidade que é ele próprio” (Id., Carta aos Tralianos 11,2).
288
“Com efeito, demonstramos que a existência do Filho de Deus não teve início naquele momento, existindo
desde sempre junto do Pai; mas, quando se encarnou e se fez homem, recapitulou em si toda a longa série dos
homens, dando-nos em resumo a salvação, de forma que o que tínhamos perdido em Adão, isto é, a imagem e
a semelhança de Deus, o recuperássemos em Jesus Cristo” (IRENEU DE LIÃO, Adversus Haereses III,18,1.
São Paulo: Paulus, 1995, p. 328s).
289
“Deus é um, Cristo é um, uma é a sua Igreja, uma a fé, e o povo (cristão) é também um, aglutinado pela
concórdia como na compacta unidade de um corpo” (CIPRIANO, A unidade da Igreja Católica 23,4).
290
Ps 90, Sermo 2 (In: PL 37, 1159).
140

Cristo, que é o Senhor de seu corpo, e no Espírito Santo, o princípio vital da união orgânica do
todo. É também corpo visível, que no Espírito Santo está formado de pessoas (Lumen Gentium
7 e 48; Orientalium Ecclesiarum 2). Por força dos ofícios e carismas instituídos por Cristo, a
Igreja, em sua peregrinação (Ef 4,11-16), aspira à perfeita unidade espiritual no Cristo escato-
lógico, pois ela tem os meios para completar a edificação em si mesma.
O fundamento da Igreja, tanto como comunidade quanto como instituição, é o Espíri-
to Santo. O segundo parágrafo do número 7 da Lumen Gentium expõe essa doutrina, em que
sobressai a unidade interna, invisível, sacramental e sobrenatural. Sem esta, nada vale a unida-
de externa, visível, social e ritual, jurídica ou canônica. Essa unidade interna significa, em
primeiro lugar, a união com Cristo, a conformação ou configuração com Cristo: “Pelo Batismo
configuramo-nos com Cristo”.
E a união com Jesus Cristo é iniciada no Batismo. A unidade interna e sobrenatural,
iniciada pelo Batismo, é mantida, alimentada, aumentada e maravilhosamente realizada pela
Eucaristia. É a comunhão, a communio, a koinonía, acontecendo na Igreja e realizada pela
Igreja como realidade e sinal ao mesmo tempo. Por isso, a Eucaristia faz a Igreja. Ela é “sinal
de unidade” (Sacrosanctum Concilium 47), que “significa e realiza a unidade” (Lumen Gen-
tium 3; Unitatis Redintegratio 3), fonte e ápice de toda a vida cristã (Lumen Gentium 11), que
“continuamente vive e cresce” (primeiro parágrafo de Lumen Gentium 26). Essa união vital e
sobrenatural se faz com Cristo, em Cristo e por Cristo com todos os batizados, de modo a se-
rem todos “um só em Jesus Cristo”. Esse é, propriamente, o cerne de todo o “mistério da Igre-
ja”,291 pois, “participando realmente do Corpo do Senhor, na fração do pão eucarístico, somos
elevados à comunhão com ele e entre nós” (segundo parágrafo de Lumen Gentium 26).
Portanto, a imagem bíblica de Corpo de Cristo apresenta o seguinte significado:

- Cristo é a Cabeça, isto é, o princípio vital, motor e nutritivo da Igreja;


- a multiplicidade de membros indica que a Igreja é constituída por todos os fiéis
do mundo todo e de todos os tempos, com diversidade de funções;
- a unidade na Igreja, que é una e indivisa (1Cor 12,12-14; Rm 12,4-5), é constituí-
da por Jesus Cristo, mediante o Espírito Santo;

291
Cf. BENI, op. cit., p. 147-158.
141

- a dimensão sacramental da união entre Jesus Cristo e as pessoas é a união da Ca-


beça com os membros;
- a Igreja é o Corpo de Cristo, no qual o de indica a pertença, ou seja, a quem a
Igreja pertence, de quem ela recebe o nome. Ela é o instrumento visível com o
qual pode continuar sua missão. Nesse sentido, ela é instrumento de Cristo.

Assim, a Teologia da Igreja-Corpo de Cristo destaca o aspecto mais original e o cará-


ter incomparável da noção cristã de Igreja. Tudo se une estreitamente, de uma forma ou outra,
ao mistério de Cristo.292

4.4 A Igreja, realidade simultaneamente visível e espiritual

Diversos autores apresentam como a virada copernicana, feita pela Eclesiologia do


Vaticano II, conforme se encontra na Lumen Gentium, não as relações internas dentro da
própria Igreja, entre hierarquia e laicato, mas a recuperação da visão da Igreja como misté-
rio.
Isso acontece pela visão do mistério da Igreja, com a qual a Lumen Gentium faz
preceder o capítulo sobre o Povo de Deus e, assim, afirmar a simultaneidade ou a insepara-
bilidade dos dois elementos, o invisível e o visível, o divino e o humano. Não sem razão,
portanto, o último ponto do primeiro capítulo (n. 8) foi intitulado “A Igreja simultaneamen-
te visível e espiritual”. Assim, através dessa afirmação, acontece a passagem para o segun-
do capítulo, sobre o Povo de Deus:

O único Mediador Cristo constitui e incessantemente sustenta aqui na Terra sua


santa Igreja, comunidade de fé, esperança e caridade, como organismo visível pe-
lo qual difunde a verdade e a graça a todos. Mas a sociedade provida de órgãos
hierárquicos e o Corpo místico de Cristo, a assembleia visível e a comunidade es-
piritual, a Igreja terrestre e a Igreja enriquecida de bens celestes, não devem ser
consideradas duas coisas, mas formam uma só realidade complexa em que se
funde o elemento humano e o divino. É por isso, mediante uma não medíocre
analogia, comparada ao mistério do Verbo encarnado (Lumen Gentium 8).

A Igreja é um mistério, é assembleia “em Deus e no Senhor” (1Tm 1,1). É neste


mundo que ela mostra o aspecto de uma sociedade visível e organizada. A unidade desses

292
RIGAL, op. cit., p. 162.
142

dois elementos é comparada com a da Eucaristia, que é constituída de duas coisas, uma
terrena e a outra celeste, segundo Ireneu.293 Como já foi visto, a renovação da Eclesiologia,
iniciada no final do século XIX, partiu da relação do mistério da Igreja com o da encarna-
ção de Jesus Cristo e da redescoberta da imagem bíblica de Corpo de Cristo.
Esse texto expressa o caráter teândrico da Igreja294, que se constitui em fonte perma-
nente de tensão, assim como o foi a união pessoal, em Cristo, da natureza divina e da natureza
humana. Mas essa situação é intrínseca à Igreja e não apenas fruto de circunstâncias históri-
cas.295 Hoje, continua havendo tensões, pois, como ela não está em estado de salvação defini-
tiva, sempre haverá certa dificuldade em harmonizar adequadamente essas duas dimensões.
Os problemas históricos que aconteceram, no que tange à compreensão da pessoa e das natu-
rezas de Cristo, analogamente, acontecem com a Igreja. Assim, o docetismo ensinava a pre-
dominância da divindade em detrimento da humanidade, e o adocionismo, o contrário. Contu-
do, ambos destroem a verdadeira compreensão da Pessoa de Jesus Cristo, de acordo com o
ensinamento feito pelo Concílio de Calcedônia, em 451 (DS 302). Por essas tentações passa
também a compreensão da Igreja. Com efeito, podem-se citar as seguintes:
a) primeira tentação: a Igreja é só de Deus, e as pessoas são meros pecadores. Por
isso, ela é espiritual e invisível e pertence aos predestinados, escolhidos por Deus e desconhe-
cidos por nós;
b) segunda tentação: a Igreja é só dos homens, constituindo-se em uma realidade
meramente sociológica. É a sociedade mais perfeita que existe há dois mil anos, sem nada
mudar essencialmente;
c) terceira tentação: suprimir a união. Esta aparece depois do Vaticano II, quando
surgem binômios do tipo essencialismo-pastoralismo e sacramento-missão.

A propósito, vale citar a advertência da Comissão Teológica Internacional:

293
IRENEU DE LIÃO, Adversus Haereses IV, 18,4: “Pois lhe oferecemos o que já é seu, proclamando, como
é justo, a comunhão e a unidade da carne e do Espírito. Assim como o pão que vem da terra, ao receber a
invocação de Deus, já não é pão comum, mas a Eucaristia, feita de dois elementos, o terreno e o celeste, do
mesmo modo os nossos corpos, por receberem a Eucaristia, já não são corruptíveis por terem a esperança da
ressurreição” (in: IRENEU DE LIÃO, op. cit., p. 424).
294
JOURNET, C. O caráter teândrico da Igreja, fonte de tensão permanente. In: BARAÚNA, op. cit., p. 384-395.
295
A partir da dupla estrutura da Igreja, a divina e a humana, simultaneamente, a Eclesiologia pode partir ou do
divino ou do humano, dando, assim, diferente enfoque. O Vaticano II parte de dentro para fora, ou seja, do misté-
rio. Antigamente, a Eclesiologia tinha como ponto de partida a sociedade perfeita.
143

A analogia com o Verbo encarnado permite afirmar que este “instrumento de salva-
ção” que é a Igreja deve ser entendido de modo tal que se evitem dois excessos típi-
cos das heresias cristológicas da Antiguidade. Assim, deve-se descartar, de um lado,
uma espécie de “nestorianismo” eclesial, de acordo com o qual não haveria nenhuma
relação substancial entre o elemento divino e o elemento humano. Inversamente, se-
ria possível guardar-se, também, de um “monofisismo” eclesial, de acordo com o
qual tudo na Igreja seria “divinizado” e, portanto, sem os limites, as deficiências e os
erros da organização, fruto dos pecados e da ignorância das pessoas.296

A dupla natureza da Igreja aparece em uma única e una Igreja, só compreensível no


mistério. As tensões, inerentes ao ser próprio da Igreja, só desaparecerão totalmente na Paru-
sia. Nossa atitude é de assumi-las, sabendo que fazem parte da nossa vida cristã eclesial, e
caminhar em meio a elas. É por isso que se fala da lei da encarnação da Igreja, à semelhança
de Cristo. Em toda a sua vida, a Igreja apresenta essa dupla realidade, que deve ser vivida, não
ignorada nem suprimida. Daí decorre a necessidade de reforma permanente da Igreja, confor-
me expressa o Vaticano II: “[...] a Igreja, reunindo em seu próprio seio os pecadores, ao mes-
mo tempo santa e sempre na necessidade de purificar-se, busca sem cessar a penitência e a
renovação” (cf. Lumen Gentium 8).
Há também a tensão escatológica, exercida pela graça e pela vida divina sobre a na-
tureza humana em Cristo e na Igreja. É a já referida estrutura humano-divina, própria da Igre-
já, na qual acontece a tensão entre o ideal e a concreção do ideal, fruto da diferença entre Cris-
to, que é a Cabeça, e a Igreja, seu Corpo. Cristo é Deus, e a Igreja é constituída por pessoas
humanas. Conforme a imagem do corpo, a vida da cabeça passa para o corpo, mas com um
radical desnivelamento. Entretanto, a Igreja é chamada a imitar Cristo e a unir-se a ele (Fl 2,5-
7), sabendo que, ao mesmo tempo, isso é possível e impossível, obrigando-se, contudo, a es-
forçar-se para caminhar em direção a ele. É a tensão “assintótica”, no dizer de Charles Journet,
para indicar a tendência para o infinito.297
Essa nova visão contribui, para superar as concepções unilaterais de uma Igreja me-
ramente hierárquica ou sociológica, conforme declara o Sínodo de 1985, embora já lembra-
do anteriormente:

Toda a importância da Igreja deriva de sua conexão com Cristo. O Concílio des-
creveu de diversos modos a Igreja como Povo de Deus, Corpo de Cristo, Esposa
de Cristo, templo do Espírito Santo, família de Deus. Estas descrições da Igreja
completam-se mutuamente e devem ser compreendidas à luz do mistério de Cris-

296
COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, Temas seletos de Eclesiologia (1984), n. 6,1.
297
Cf. JOURNET, op. cit., p. 385.
144

to ou da Igreja em Cristo. Não podemos substituir uma falsa visão unilateral da


Igreja como puramente hierárquica com uma nova concepção sociológica tam-
bém ela unilateral. Jesus Cristo está sempre presente na sua Igreja e nela vive
como ressuscitado (Relatio Finalis II, A, 3).

Excurso: Há salvação fora da Igreja?

A abordagem deste tema leva, em primeiro lugar, à constatação básica de que a Igre-
ja é sinal eficaz e universal de salvação para o mundo, o que significa que ninguém poderá
salvar-se sem a eficácia desse sinal. Como sacramento universal de salvação, a Igreja transmi-
te efetivamente, de forma invisível, o que ela representa visivelmente: a salvação de todos, sob
todos os aspectos.
O ponto de partida é o axioma de Cipriano – “Extra Ecclesiam nulla salus”298 –,
proferido no contexto do perigo que o cisma representava para a unidade da Igreja. Ao longo
da história, o Magistério fez duas séries de declarações, aparentemente opostas: uma, sobre a
necessidade de pertencer à Igreja para salvar-se; outra, em que afasta a doutrina de quem
afirma que a graça reduz sua operação salvífica aos limites visíveis da Igreja.
Como exemplo da primeira série de afirmações, pode-se citar Inocêncio II, na profis-
são de fé imposta aos Valdenses: “[...] extra quam neminem salvari credimus” (DS 792), que
assume o axioma de Cipriano. O Papa Bonifácio VIII (18/11/1302) a repete na bula Unam
Sanctam: “Unam sanctam Ecclesiam catholicam [...] extra quam nec salus est [...]” (DS 870).
A segunda série de afirmações mostra que a operação da graça não se reduz aos limi-
tes visíveis da Igreja. Essa ideia vem afirmada pelo Concílio de Florença (DS 1305) e na cen-
sura aos erros de Paschasius Quesnel, de 08/09/1713, que ensinava: “Extra Ecclesiam nulla
conceditur gratia” (DS 2429). Também está presente no combate aos erros de Jansênio, que
afirmava a graça de Cristo ser concedida somente aos fiéis (cf. DS 2304 e 2305).
A principal afirmação é proveniente da Carta do Santo Ofício ao Cardeal de Boston,
de 08/08/1949 (DS 3866-3873), que ressalta: “A incorporação pelo Batismo ao Corpo de Cris-
to, que é a Igreja, constitui um estrito mandamento de Jesus Cristo” (DS 3867). Mas distingue
entre a necessidade de preceito e a necessidade de meio. A afirmação básica é a seguinte: “O
Salvador não só mandou que todos os homens e povos se façam membros da Igreja, mas tam-
145

bém dispôs que a Igreja é o meio de salvação sem o qual ninguém poderá entrar no reino da
glória” (DS 3868).
Daí se deduz que a Igreja é uma necessidade de preceito, baseada numa disposição
positiva. Mas ela não é necessidade de meio, resultante da natureza interna da Igreja, ou seja,
não é necessário o estrito uso real da Igreja. Assim, o fim para o qual está mandado o meio se
pode alcançar, também, quando não é possível usá-lo efetivamente. Não é necessário, portan-
to, pertencer efetivamente (reapse) à Igreja, mas basta o desejo ou o voto: “Para alcançar a
salvação eterna nem sempre se requer a pertença efetiva (reapse) à Igreja como membro seu;
mas a pessoa há de estar unida com a Igreja, pelo menos, mediante o desejo ou o voto” (DS
3870).

O Vaticano II

Na Lumen Gentium, no número 8, a palavra “subsistit in” é preferida ao “est Ecclesia


catholica” por ser uma expressão que está mais de acordo (expressio melius concordet). Isso
quer dizer claramente que fora da Igreja católica se encontram elementos da única Igreja de
Cristo. Definitivamente é abandonada a identificação absoluta ou exclusiva entre a Igreja Ca-
tólica e a Igreja de Cristo. Não que não se reconheça a Igreja Católica como a verdadeira Igre-
ja ou que ela não seja a sociedade concreta onde está presente a Igreja de Cristo.

Significado

Entende-se uma atitude nova, a partir dos seguintes motivos:

1 - fora da Igreja Católica existem diversos elementos de santificação e de verdade,


que realmente pertencem à ordem e à graça da salvação. Mas a plenitude dos meios de salva-
ção se encontra na Igreja Católica (cf. Unitatis Redintegratio 3 e 5). São as “sementes da ver-
dade” fora da Igreja;

298
CIPRIANO DE CARTAGO, De unitate Ecclesiae 6.
146

2 - o histórico, porque o Concílio se refere à Igreja histórica, real e concreta do Novo


Testamento, fundada por Jesus Cristo. Essa, desde o primeiro século, subsiste na Igreja Católi-
ca. Outros textos comprovam esse sentido histórico (cf. Unitatis Redintegratio 3 e 13).
A continuidade histórica tem por primeiro fundamento o papado e o episcopado, a
partir de Pedro e dos Doze. O segundo fundamento é o colégio episcopal, ao qual Cristo con-
fiou a missão de ensinar, governar e santificar, que continua na Igreja Católica, como sucessor
do colégio apostólico;
3 - o sentido filosófico, porque a única Igreja de Cristo é um conceito que é realizado
plena e perfeitamente só na Igreja Católica e em outras, na medida em que realizam o mesmo
que a Católica (cf. Lumen Gentium 10).
Concluindo, afirma-se que a Igreja de Cristo está presente (subsiste) na Igreja Católi-
ca pelos fundamentos da continuidade histórica, pela unidade colegial e pela plenitude dos
meios, não excluindo, porém, os elementos de salvação presentes em outras Igrejas separadas.
Portanto, o axioma “fora da Igreja não há salvação” indica a verdade eclesiológica de
que a Igreja é sacramento de salvação, isto é, o sinal eficaz e universal de salvação para o
mundo. E nenhuma pessoa poderá salvar-se sem a eficácia desse sinal. As graças ou bens sal-
víficos fora da Igreja derivam da “própria plenitude de graça e verdade confiada à Igreja Cató-
lica” (cf. Unitatis Redintegratio 3), pois “somente através da Igreja Católica de Cristo, auxílio
geral de salvação, pode ser atingida toda a plenitude dos meios de salvação” (cf. Unitatis Re-
dintegratio 3).
Assim, a Igreja é sacramento de salvação, porque:

1 - a Igreja visível exerce um serviço de ação e eficácia em ordem à salvação da hu-


manidade, ela é o lugar do encontro entre o Deus que se revela, interpelando, e o homem que
crê. Como tal a Igreja foi instituída por Cristo e inserida na história;
2 - ela é necessária para a salvação, porque na Igreja visível a pessoa deve formular
sua vontade de entrega e fé em Deus. A Igreja é, de um lado, a visibilização da vontade salví-
fica de Deus e, de outro, a visibilização do desejo humano de aceitar a salvação. Daí o sentido
de a Igreja ser sinal sacramental de salvação: nela a pessoa realiza seu encontro com Deus. À
margem de Cristo e à margem da Igreja não existe um encontro verdadeiro com Deus, enquan-
147

to fora do meio posto por ele. Por essa razão, a Igreja conserva a palavra e as estruturas fun-
damentais recebidas por Cristo: ela é sinal manifesto desse encontro, disposto por Deus;
3 - por isso, a Igreja é povo organizado, pois, no tempo e no espaço, ela vai realizar a
salvação. No entanto, nela está presente também o carisma, necessário para a Igreja (cf. Lumen
Gentium 12).
Portanto,

há possibilidade de salvação para quem não pertence à Igreja. Em virtude de seu pa-
pel universal na história e na criação, Cristo é para todos o mediador da salvação. Ele
é o centro de onde a dinâmica da salvação se irradia em todas as direções. E já que
vive como Cabeça da Igreja, é evidente que também esta é mediadora, com relação
aos que não lhe pertencem, ainda que, externamente, não lhes chegue com algum si-
nal ou palavra. De acordo com esse raciocínio, os homens que vivem em conformi-
dade com sua consciência e procuram a Deus, com esforço sincero, aspiram a Deus
implicitamente (votum implicitum), tendo, por conseguinte, uma fé salvadora ativa,
uma fides qua, mesmo sem realizarem a fides quae; desta maneira, apesar de ligados
a religiões não cristãs, chegam à salvação.299

299
Cf. SCHMAUS, v. 1, op. cit., p. 110.
148

CAPÍTULO QUINTO

A IGREJA, POVO DE DEUS

A categoria Povo de Deus tornou-se dominante na autocompreensão da Igreja so-


mente com o Vaticano II. Por isso, ela não é, apenas, uma metáfora aplicada à Igreja, mas ex-
pressa seu ser, sua realidade mais profunda e íntima, porquanto a Igreja é o Povo de Deus da
nova e da eterna aliança. Embora a Encíclica de Pio XII, Mystici Corporis, a renovação da
Eclesiologia iniciada no século anterior e a primeira redação do esquema conciliar do Vatica-
no II sobre a Igreja procurassem interpretar o sentido da Igreja a partir da imagem bíblica
Corpo de Cristo, a Lumen Gentium destaca e valoriza esta outra imagem, também bíblica, a do
Povo de Deus, que, aliás, já vinha se impondo na pesquisa teológica, na época preparatória ao
Segundo Concílio Ecumênico.300 Pedro Rodríguez aponta como causa para a escolha dessa
categoria pelo último Concílio a certeza de que o patrimônio eclesiológico adquirido com a
imagem de Corpo de Cristo estava assumido e aprofundado por ela. Além disso, ela favorece o
retorno de um estilo de pensamento bíblico e constrói uma Teologia histórica e concreta, colo-
cando a Igreja em uma linha histórico-salvífica, que, por sua vez, atua hoje na história huma-
na.301 Importa, por isso, refletir sobre seu conteúdo bíblico, com a finalidade de encontrar seu
significado fundamental e descobrir sua aplicação à Igreja, visto que ela expressa sua realidade
misteriosa própria. É o que será feito neste capítulo.

5.1 Povo de Deus no Antigo e Novo Testamentos

Como já foi explicado no primeiro capítulo, a realidade “Igreja” não aparece como
tal no Antigo Testamento, mas apenas se encontram manifestações diversas indicativas daque-
la realidade, posteriormente chamada “Igreja”, assim como é conhecida da época neotesta-

300
Cf. SEMMELROTH, O. A Igreja, o novo Povo de Deus. In: BARAÚNA, op. cit., p. 472.
301
Cf. RODRÍGUEZ, P. El pueblo de Dios. Bases para su consideración cristológica y pneumatológica. In:
Id., Eclesiología 30 años después de “Lumen Gentium”, p. 177.
149

mentária em diante. A categoria Povo de Deus constitui-se em uma dessas manifestações, pela
qual se pode descobrir o seu significado profundo.
Na realidade, a expressão literal Povo de Deus é rara no Antigo Testamento, onde é
encontrada em Nm 11,29; 17,6; Jz 5,11; 1Sm 1,12; 6,21; 14,13; 2Rs 9,6; Sb 2,10. No Novo
Testamento ainda mais, onde é empregada apenas uma só vez, aplicada a toda a Igreja, no
texto de 1Pd 2,10: “Vós que outrora não éreis povo, mas agora sois povo de Deus, que não
tínheis alcançado misericórdia, mas agora a alcançastes”. Entretanto, o termo “povo” é empre-
gado inúmeras vezes, tanto no Antigo Testamento quanto no Novo Testamento302, com diver-
sos equivalentes, tais como “meu povo”, quando Deus fala com Israel, ou “nós somos um po-
vo”, quando Israel repele sua eleição e sua pertença ao Senhor.
A origem da expressão Povo de Deus encontra-se na promessa de Deus em Ex 19,5:
“Agora, se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, sereis para mim uma proprie-
dade peculiar entre todos os povos, porque toda a Terra é minha”. Isso quer dizer que Javé é o
Deus de Israel e Israel é o povo de Javé. A palavra laós, escolhida pelos tradutores gregos para
indicar o “povo de Javé”, passa a ser termo técnico empregado para diferenciar Israel dos de-
mais povos303, que são “os pagãos” (éthne) ou “as nações”. Corresponde ao termo hebraico
am, também reservado para Israel, distinguindo dos gojîm, termo indicativo dos pagãos. Israel
é o povo peregrino de Deus, como povo (am) de seu Deus, que o guia e estimula, inclusive na
guerra (cf. Js 5,13.23).

Seu conteúdo, muito significativo por sinal, é o seguinte:


a) o conceito de povo, enquanto diz respeito ao termo grego, que pertence à antiga
linguagem poética e solene, exprime o sentido de um contraste, com base religiosa, em relação
aos outros povos não israelitas e indica um relacionamento particular de Israel com Javé, in-
comparável ao com os outros povos não israelitas;
b) contém a ideia de comunhão de vida e de destino de um mesmo povo, pois o ter-
mo am inclui a noção de parentesco, de ligação tribal, por parte de pai; daí que o compatriota
(conacional, nativo) é irmão, enquanto membro de uma grande família, formada pelo mesmo

302
J. Rigal afirma que o termo “povo” é usado 360 vezes no Antigo Testamento e 104 vezes no Novo Testa-
mento (RIGAL, op. cit., p. 113).
150

povo, pois todos são irmãos e filhos do mesmo pai. De uma simples nação, deve ser feita uma
comunhão, um verdadeiro am, em que cada um participa, na justiça e no amor, da vida do
outro;
c) o relacionamento particular com Javé, superior e sem comparação com os deuses
dos outros povos, pois ele é um Deus dos vivos, e não dos mortos (cf. Ez 37,11-14), um Deus
próximo (Dt 4,7), que guia o seu povo em todas as circunstâncias, inclusive na guerra (Is 54,1;
Os 11,1-4);
d) a união de todos os membros do povo em uma comunhão em torno de um centro
divino, que é Javé (Gn 11,6);
e) enfim, diz respeito a duas grandezas – filiação divina e fraternidade – que são ca-
tegorias do Reino de Deus.

Convém lembrar que essa imagem é muito mais uma categoria teológica do que pro-
priamente uma realidade histórica, pois é um ideal mais do que propriamente um fato históri-
co. No entanto, de uma simples nação, de uma unidade histórico-biológica, deve acontecer
uma verdadeira comunhão, isto é, um real am, cujos membros não estão unidos entre si uni-
camente em virtude da descendência e da sorte, mas também pela participação na justiça e no
amor, da vida do outro, fruto do mesmo centro divino de unidade. Por isso, am elohim, povo
de Deus, expressa que todos os membros estão unidos entre si por um mesmo centro divino de
comunhão.
A promessa em Am 9, 11-15 foi realizada plenamente no Novo Testamento, confor-
me interpreta At 15,14: “[...] escolher dentre os gentios (éthne) um povo (laós) reservado ao
seu nome” (isto é, para si). Em todos os textos do Novo Testamento, onde há referência ao
“novo Povo de Deus” (cf. At 15,14ss; 2Cor 6,16; 1Pd 2,9), chamam a atenção dois aspectos:
a) trata-se sempre de citações do Antigo Testamento, indicando que tudo aquilo que foi dito ao
antigo Israel é, agora, aplicado ao povo da nova aliança; b) o termo laós no Novo Testamento é
o mesmo do Antigo Testamento, sempre empregado para distinguir Israel, enquanto povo de
Javé, dos povos pagãos ou das nações. Assim a Igreja do Novo Testamento, a da nova aliança,
é vista como cumprimento das promessas feitas ao povo do Antigo Testamento, como novo

303
Hubert Frankemölle diz que o conceito de fé como pertença ao Povo de Deus já estava presente no Antigo
Testamento, pois o termo laós é superado nos profetas, que passam a incluir também os pagãos (cf. FRAN-
KEMÖLLE, Iglesia-Eclesiología. In: EICHER, op. cit., p. 500).
151

Povo de Deus, embora o termo “Israel” não venha aplicado, de forma direta, à Igreja do Novo
Testamento. Apenas Paulo, em Gl 6,16, utiliza a expressão “Israel de Deus”.304
O Novo Testamento mostra que os discípulos se compreendem como verdadeiro Is-
rael, novo Povo de Deus. O fundamento desse entendimento é a fé, fundada e iniciada na ex-
periência pessoal do ressuscitado, que apareceu aos Doze, escolhidos como testemunhas quali-
ficadas das maravilhas salvíficas de Deus em favor de seu povo. Para a comunidade cristã, as
promessas veterotestamentárias estavam cumpridas e nelas constava a esperança na futura
realização em plenitude do Reino de Deus, iniciado pelo Messias (cf. Mc 1,15), que é aquele
que veio, anunciado por João Batista e crido como tal pelos seus discípulos.
O Vaticano II proclama, em Lumen Gentium 9, que a nova aliança, instituída por
Jesus Cristo, é o novo Povo de Deus. E essa contém três elementos essenciais e indissociáveis:
o enraizamento da Igreja no Antigo Testamento, sua novidade radical em Jesus Cristo e sua
abertura para todas as pessoas, tanto judeus quanto gentios.305
Todavia, a comunidade primitiva cria formas próprias, independentes da comunidade
judaica, ainda capazes de evolução posterior:

a) o batismo de conversão e de purificação dos pecados, em ordem ao Reino de


Deus, administrado em nome de Jesus (cf. At 2,38.41; 8,12.16.36.38; 9,18);
b) o serviço divino da oração, quando toda a comunidade se encontra reunida ou
quando está em pequenos grupos nas casas particulares (cf. At 2,46; 12,13);
c) a refeição escatológica, a Eucaristia, tomada em comum pela comunidade, prova-
velmente celebrada em ligação com um simples serviço divino de oração, mas sempre relacio-
nada com a refeição comunitária de Jesus, a última ceia;
d) a condução da comunidade (direção - governo), sempre com a cooperação da co-
munidade, inicialmente assumida pelos Doze, como representantes das doze tribos do Israel
do fim dos tempos, entre os quais Pedro tinha a posição predominante;
e) a comunidade vivia da caridade, expressa pela koinonía (At 2,42), a qual unia de
tal forma seus membros que os constituía numa comunidade fraterna de amor, afirmando-se

304
FEINER e LÖHRER, op. cit., p. 28.
305
Cf. RIGAL, op. cit., p. 112.
152

na ajuda mútua, no padecer em comum e, também, em parte, na posse coletiva dos bens (At
2,45; 4,32-36).

Assim, a comunidade cristã não se converteu em uma seita judaica, mas, com o pas-
sar do tempo, libertou-se completamente dos judeus. De início, pela formação de um cristia-
nismo gentio, livre da lei judaica, que obteve reconhecimento da comunidade primitiva no
concílio dos apóstolos (Gl 2,1-10 e At 15,21.25). Depois, a destruição da cidade de Jerusalém
e a cessação do culto no Templo alteraram a situação, de tal forma que Jerusalém, ao deixar de
ser o centro do culto pela destruição do Templo, também deixou de ser o centro eclesial. Des-
sarte, a chefia transitou de Jerusalém para Roma, trazendo a novidade de comunidades mistas,
formadas por judeus e não judeus, fora do primeiro centro. Com o repúdio da Igreja por parte
dos judeus, a história passa a ser de uma Igreja cristã, formada por gentios, os éthne. Por isso,
é possível resumir esse processo da seguinte maneira: 1º- só judeus; 2º- judeus e gentios (pa-
gãos); 3º- só gentios.
Com efeito, a Igreja se realiza, agora, em âmbito espiritual, contrapondo-se não mais
aos outros povos, mas somente àqueles indivíduos ou coletividades que expressamente não
querem manter nenhum relacionamento salvífico com Jesus Cristo. A diferença não está mais
na raça (etnia judaica), mas na opção por Cristo pela fé, que conduz à recepção do Batismo, o
que corresponde ao conteúdo da realidade denominada “Igreja”, enquanto é o mistério da au-
tocomunicação de Deus por Jesus Cristo, realizada em benefício da comunidade humana e,
por ela, em benefício de cada pessoa, na forma humana do falar e do agir.306
É o que demonstra o estudo etimológico da palavra Igreja. A ekklesía, da língua gre-
ga, ou a ecclesia, palavra usual das línguas latinas, é a denominação mais importante e mais
frequente nos escritos neotestamentários. A Igreja primitiva quer indicar, com essa palavra, o
Povo de Deus. Paulo fala de “ekklesía de Deus” para indicar a comunidade convocada por
Deus (cf. 1Ts 2,14; 2Ts 1,4; 1Cor 1,1; 10,32). Essa terminologia não é criada pela comunidade
primitiva, mas herdada do judaísmo.

5.2 A Igreja, novo Povo de Deus

306
SCHMAUS, op. cit., p. 21.
153

a) Histórico307
Na primeira época da Igreja, ao menos até o ano 70, ela se vê como o “Povo de Deus
da nova aliança”. Até ao século IV, o termo “povo” é empregado pelos Padres apostólicos
para a Igreja, apesar de não constituir uma temática eclesiológica propriamente dita, apesar de
eles ignorarem a conexão entre o povo de Deus do Antigo Testamento e Novo Testamento,
porque, para eles, o povo judeu representava o tipo de apostasia que, por isso, a exemplo de
Esaú, havia perdido o direito de progenitura, e a Igreja é um povo novo.308 Também, porque a
Eclesiologia da época privilegiava a dimensão cristológica da Igreja, e a noção de “povo” não
nutria sua reflexão. Clemente, em sua segunda carta309, afirma que o verdadeiro povo estava
oculto até Cristo. Inácio não usa a expressão “Povo de Deus”, mas fala da “Igreja universal”,
que é o cristianismo, isto é, a comunhão com o Senhor glorificado.310 Marcião desconhece a
continuidade entre o Deus do Antigo Testamento e o Deus do Novo Testamento.
O desenvolvimento de uma “Teologia da palavra revelada” conduz à substituição,
cada vez maior, do conceito histórico de povo para uma concepção teológico-salvífica. Apesar
de Rm 9,11, Israel já não aparece mais como o povo eleito, mas como povo rejeitado, confor-
me expõem tanto Justino, nos seus Diálogos311, como Ireneu.312 Os justos do Antigo Testa-
mento eram vistos como pré-cristãos que se salvaram graças à sua fé, e não por meio de Israel,
segundo Orígenes, Atanásio e, inclusive, Agostinho.313
Deve-se sobretudo a Agostinho a passagem do conceito de Igreja do plano histórico
ao espiritual, no qual se assenta, também, a Civitas Dei frente à Civitas terrena. Se antes da
controvérsia donatista, para a pertença à Igreja, determinante era a fé intelectual, depois, era
determinante quem possuía a caritas. Caim e Abel são, respectivamente, tipos do judaísmo e
do cristianismo, da sinagoga e da Igreja. Sua Eclesiologia estava centrada na imagem de Cor-
po de Cristo.314

307
Sigo, aqui, as ideias encontradas em AUER, op. cit., 1986, p. 85-88 e RIGAL, op. cit., p. 122-129.
308
Epístola de Barnabé 5,7; 7,5; 13,2.5-6.
309
CLEMENTE, Carta II, 28.
310
INÁCIO DE ANTIOQUIA, Carta aos Esmirnenses 8,2. (Introdução, tradução e notas por Paulo Evaristo
Arns). Petrópolis: Vozes, 1970, p. 81.
311
JUSTINO, Diálogos 135ss (PG 6,788).
312
IRENEU, Epídeixis 93-95.
313
ORÍGENES, PG 13,134; ATANÁSIO, Contra Ar IV, 29 (PG 26,513); AGOSTINHO, Ecclesia ab Abel.
In: Ps 118 Sermo 29, n. 9 (PL 37,1589).
314
AGOSTINHO, Cidade de Deus, livro XVIII, cap. XLVII.
154

Simultaneamente, a partir de Agostinho, o conceito jurídico-romano de populus


substitui o conceito histórico-salvífico de Povo de Deus: a Igreja é a Igreja de todos os povos
compreendidos pelo Império Romano.315 Por isso, já no século IV, o conceito Povo de Deus
representa cada vez mais os leigos frente aos bispos. Isso se deve ao desenvolvimento da hie-
rarquia eclesiástica, a partir de Inácio e Cipriano, e, especialmente, por obra de Optato de Mi-
leve († 365).
Assim, no século V, desaparece, quase por completo, o genuíno conceito histórico-
salvífico de Povo de Deus, não havendo mais a preocupação de relacionar a comunidade cristã
com o povo eleito do Antigo Testamento. Seu lugar é ocupado, progressivamente, pelo concei-
to agostiniano de congregatio fidelium316, entendido, na Idade Média, tanto a partir da repre-
sentação familiar quanto da concepção política de nação.317 Particularmente as cruzadas, a
partir de 1096, e o juízo negativo contra os judeus impediram a mentalidade histórico-salvífi-
ca, não considerando como uma continuidade o Povo de Deus do Antigo e do Novo Testamen-
tos, conforme o espírito da Bíblia. A Teologia escolástica da Idade Média também não utiliza
a expressão Povo de Deus, porque parece muito vaga, por não sublinhar a distinção entre Isra-
el e a Igreja.
Os reformadores voltam a empregar a expressão “povo cristão e santo”, mais especi-
almente para referir-se a certos elementos dessa imagem, tal como a Igreja Particular. Contu-
do, ainda não retorna o pensamento histórico-salvífico da Escritura. O mesmo acontece com o
Concílio de Trento e com o Catecismo Romano.
No século XIX, com a ideia do Corpo Místico de Cristo, desenvolvida pelas Escolas
teológicas de Tubinga (Möhler) e, especialmente, pela Romana (Perrone, Franzelin e Schra-
der), começa a reaparecer a ideia da Igreja como Povo de Deus. Entretanto, ela não se impõe.
No período posterior à primeira grande guerra, há um novo começo. Muitos viam na
Igreja, nesse período, uma rocha de salvação, em meio à enorme conflagração mundial. A
redescoberta da íntima comunidade humana, propiciada pelo impulso do romantismo, exerceu
forte influência no movimento juvenil. A ideia do sacerdócio universal dos batizados levou à
superação da imagem de uma Igreja clerical. Aí acontece a redescoberta da imagem Povo de
Deus.

315
AGOSTINHO, Ps 47,2 (PL 36,353s).
316
AGOSTINHO, Qev 1,2, cap. 40 (PL 35,1355).
317
TOMÁS DE AQUINO, Suppl. III, q. 60, a. 1, ad 4.
155

J. H. Newman318 (21.02.1801, Londres - 11.08.1890, Birmingham) traz à luz a ideia


do Povo de Deus que, graças ao sensus fidelium, conserva a reta doutrina contra o erro da épo-
ca, que foi a luta contra o arianismo, no século IV. A união de cada cristão com Cristo (perso-
nalismo) fundamenta essa força preservadora. O campo católico volta a colocar em relevo a
conexão histórica entre Povo de Deus do Antigo Testamento e Novo Testamento, com R. Gro-
sehe, H. de Lubac e Y. Congar. A crítica à imagem do Corpo de Cristo conduz à de Povo de
Deus, porque lhe faltava o elemento histórico-salvífico. Em 1940, Mennes D. Koster, O.P.,
rejeita a definição da Igreja como Corpo Místico de Cristo e desenvolve, em seu lugar, a ideia
da Igreja como Povo de Deus.319
A Teologia protestante desenvolve, nessa época, a doutrina de uma Igreja histórica
visível, na qual está presente a Igreja invisível como Reino de Deus no Reino de Cristo. A
causa se deve, sobretudo, a partir da década de 40, aos estudos exegéticos, que conduzem a
uma nova compreensão da dimensão histórica do Povo de Deus. Graças a um melhor escla-
recimento do conceito escatológico, inclusive do lado católico, se põem as bases para o con-
ceito histórico-salvífico de Povo de Deus, que será decisivo para a Lumen Gentium, na qual
aparecerá com uma dimensão eclesial histórico-salvífica.

b) Na Lumen Gentium

Só com o Vaticano II, essa imagem tornou-se dominante para a autocompreensão da


Igreja. Encontra-se nos números 9 a 17 da Lumen Gentium. É o capítulo II dessa Constituição
Dogmática.320 Contudo, não se pode esquecer a estreita conexão com o primeiro capítulo, com
o qual forma uma unidade indissolúvel.321 O emprego dessa imagem bíblica para a Igreja pode
ser caracterizado da seguinte forma:

318
BECKER, W. Newman, John Henry, Kard. In: Lexikon für Theologie und Kirche, VII:932-936.
319
SEMMELROTH, op. cit., p. 475.
320
Sobre a qualificação teológica da Constituição, ver BETTI, U. Qualificação teológica da Constituição. In:
BARAÚNA, op. cit., p. 300-307.
321
C. Moeller vê uma divisão binária dupla ou por pares de capítulos na Lumen Gentium: o mistério da Igreja (I,
II); a estrutura da Igreja: hierarquia e laicato (III, IV); a finalidade da Igreja, no campo da santidade, à qual todos
são chamados, com ou sem a profissão pública dos conselhos evangélicos (V, VI); a consumação da Igreja na
escatologia (VII, VIII) (cf. MOELLER, C. O fermento das idéias na elaboração da Constituição. In: BARAÚNA,
op. cit., p. 190).
156

a) sinal no mundo: está presente neste mundo e para este mundo. Mas é, ao mesmo
tempo, estranha pelo modo de se apresentar e agir. Ela deve ser estranha, porque lhe incumbe
testemunhar ao mundo a salvação escatológica e que o mundo não é definitivo. Mas, ao mes-
mo tempo, está presente na história humana, nas transformações históricas. É sinal de salva-
ção, tornando inteligível o invisível;
b) povo peregrino, enquanto a caminho entre a promessa e o cumprimento; entre a
certeza e a incerteza; entre o claro e o escuro. Também é transitória, porque caminha em dire-
ção a um fim. No entanto, vai crescendo, pois a marcha da história leva ao crescimento. Ela
deverá esforçar-se para realizar a salvação para si e para a história, visto que o crescimento da
Igreja significa crescimento para a história;
c) todos os membros deste povo vivem em unidade, igualdade e comunitariamente
(Lumen Gentium 10 e 12). A igualdade comum é fruto do mesmo Batismo, pois, antes de ser
hierarquia ou leigo, todos são cristãos batizados e participam do múnus de Cristo. A unidade
deve excluir o clericalismo e o laicismo, visto não haver oposição interna entre grupos eclesi-
ais. A fronteira é externa, ou seja, entre os que são membros do Povo de Deus e os que não o
são;
d) a participação se dá pelo Batismo. Por isso não abrange todas as pessoas (Lumen
Gentium 15), pois é um “pequeno rebanho” (cf. Lumen Gentium 9 e 5), figura apta para de-
terminar a relação hodierna da Igreja com o mundo, a exemplo de seus primeiros tempos.
Contudo, ela é germe de unidade, esperança e salvação para toda a humanidade;
e) povo aberto para todos, universal e, por isso, católico (Lumen Gentium 13). A in-
corporação a esse Povo está afirmada em Lumen Gentium 14, que, além dos três vínculos
(vínculo simbólico, vínculo sacramental e vínculo hierárquico), acrescenta a adesão com o
coração.322

c) Reflexão sistemática

322
O documento de Puebla toma a imagem do Vaticano II e a aborda na dimensão de comunhão, em dois pris-
mas: a) vive em mistério de comunhão (232-269); b) está a serviço da comunhão (270-281). O documento de
Santo Domingo não aborda explicitamente o tema do Povo de Deus, mas considera a Igreja um povo santo ou
“comunidade santa”, pois “somente a santidade de vida alimenta e orienta uma verdadeira promoção humana e
cultura cristã” (Santo Domingo 31).
157

O emprego dessa imagem mostra que o verdadeiro sentido da Igreja não se deixa
confinar em uma única definição lógica. Daí é natural que variem, conforme a época, os as-
pectos empregados para explicar a natureza da Igreja. “Essa dialética do relevo na apreciação
da obra da redenção e, com isto, da Igreja, constitui um dos momentos que lembram com in-
sistência que a Igreja não tem a posse total de sua existência nem no conjunto de todas as suas
verdades em cada seção de tempo de sua passagem pela História”.323
A conceituação da Igreja como Povo de Deus comporta uma interpretação histórica
da obra da redenção. Por faltar a adequada visão da interpretação histórica, para o método es-
colástico medieval, essa imagem não foi valorizada, no período medieval, para entender a na-
tureza da Igreja. Entendê-la desse modo, implica, em primeiro lugar, situar a Igreja na linha
sucessória da obra redentora de Deus, no sentido de que a Igreja realiza a consumação defini-
tiva e final da aliança com seu povo eleito, enquanto sacramento de salvação. Em segundo
lugar, destaca que a Igreja está inserida no fluir da história humana em busca da cidade celes-
te, mostrando que ela antecipa já no presente, através de seu compromisso com a história hu-
mana, o que ela será definitivamente, no futuro, quando chegar o final dos tempos.324
Assim, a categoria Povo de Deus não é outra coisa do que a manifestação do mistério
da Igreja. A Igreja, portanto, se apresenta como o Povo em marcha, através do espaço e do
tempo, em direção da glória. O novo Povo de Deus busca a nova pátria, a Jerusalém celeste,
inserido, no entanto, na história presente. Por isso, entre as duas alianças, há uma ruptura e
uma continuidade: a Igreja se encontra no tempo intermediário entre a ascensão de Cristo e
sua segunda vinda na glória. Nesse ínterim, o Povo caminha guiado pelo Espírito Santo: é um
Povo peregrino, o Povo de Deus em marcha.325
Mas, para ser Povo de Deus, é preciso ser chamado, pois a eleição é seu traço maior,
fundado na escolha de Deus. Já Israel demonstrava essa consciência:

Se Javé se afeiçoou a vós e vos escolheu, não é por serdes o mais numeroso de todos
os povos – pelo contrário: sois o menor dentre os povos! – e sim porque Javé vos
ama, e para manter a promessa que ele tinha jurado aos vossos pais; por isso Javé
vos fez sair com mão forte e vos resgatou da casa da escravidão, da mão do Faraó,
rei do Egito (Dt 7,7-8).

323
Cf. SEMMELROTH, op. cit., p. 472.
324
Ibid., p. 474.
325
Cf. PHILIPS, op. cit., p. 119-122.
158

E essa iniciativa de Deus caracteriza também o novo Povo de Deus e, assim, o dis-
tingue de outros povos. Essa ideia é desenvolvida, fundamentalmente, por Paulo, ao conside-
rar a Igreja como a assembleia dos “chamados” (cf. Rm 1,6; 8,28; 1Cor 1,2.24; Cl 1,24; 1Ts
2,12). Essa escolha é gratuita da parte de Deus, que chama a quem o mundo considera loucura
e fraqueza (cf. 1Cor 1,25), acolhendo os pagãos no seio da Igreja: “Simeão expôs como, desde
o começo, Deus cuidou de tirar dentre os gentios um povo para seu Nome” (At 15,14). Por
isso, Paulo aplica à Igreja a profecia de Oseias, não só no sentido de que laós e éthne não se
opõem mais, mas tira o laós dos éthne: “Chamarei meu povo àquele que não é meu povo e
amada àquela que não é amada” (At 9,25). Tudo isso acontece porque Deus ama de uma forma
incondicional a humanidade. Esse amor ultrapassa a ordem natural, pois é um desígnio de
salvação, pertencente à história da salvação.
Deus chama para formar um povo. Israel, a partir da escolha de Deus, se constituiu
um povo, tanto do ponto de vista histórico quanto religioso. A formação do povo e eleição se
confundem (cf. Dt 7,6). O mesmo vale para o novo Povo de Deus: “Mas vós sois a raça eleita,
o sacerdócio real, a nação santa, o povo de sua particular propriedade, a fim de que proclameis
as excelências daquele que vos chamou das trevas para a sua luz maravilhosa” (1Pd 2,9). É
um povo, portanto, que vem de Deus e a ele pertence.
E é um povo aberto para todos. Embora seja um povo pequeno entre outros povos,
ele representa a todos, pois Deus chamou-o de todas as nações para serem seus discípulos (cf.
Mt 28,19) e formarem um só povo. Tal é o sentido da catolicidade da Igreja.
O Povo de Deus é um povo salvo, pois eleição e salvação constituem duas realidades
sucessivas. Israel é escolhido para ser salvo, desde sempre, mas tal convicção vem reforçada
por meio da experiência da saída do Egito: “Quanto a vós, porém, Javé vos tomou e vos fez
sair do Egito, daquela fornalha de ferro, para que fôsseis o povo da sua herança, como hoje se
vê” (Dt 4,20).
Da mesma forma que a eleição, a salvação é uma iniciativa exclusiva de Deus, mani-
festada ao longo da história do povo, na superação das tendências à idolatria e à injustiça. As-
sim, o mistério da salvação se apresenta com duas faces indissociáveis: a opressão e a liberta-
ção, por iniciativa de Deus, e aquilo que ele dá, que é a sua vida. As diversas etapas da história
do povo são uma demonstração dessa constatação. Enquanto se manifestam a debilidade e o
pecado do povo, Deus se mostra fiel. E Deus chama a atenção, por meio dos profetas, julgan-
159

do e salvando. E tudo isso tem seu cumprimento no povo da nova aliança, quando Deus adqui-
re a Igreja, através do sangue de seu Filho Jesus Cristo, “o qual se entregou a si mesmo por
nós, para remir-nos de toda iniquidade, e para purificar um povo que lhe pertence, zeloso no
bom procedimento” (Tt 2,14). E diz Paulo aos anciãos de Éfeso: “[...] apascentar a Igreja de
Deus, que ele adquiriu para si pelo sangue de seu próprio Filho” (At 20,28). E essa salvação
não é apenas tirar do mal, mas é, também, participar da vida e da intimidade de Deus, pois a
salvação fez da pessoa humana uma nova criatura e filhos seus (cf. Rm 8,14-17).326
Da história de Israel emerge uma nova característica da imagem Povo de Deus: Israel
é um povo em marcha, pois foi escolhido e salvo. A relação do povo com Deus está marcada
pela promessa para o futuro. Apesar das infidelidades do povo, Deus continua chamando-o de
seu povo, que tem um caminho a percorrer, até chegar ao termo fixado por ele. E isso vai
acontecendo ao longo da história desse povo, sempre advertido pelos profetas.
A Igreja tem consciência de que é um povo em marcha desde o tempo apostólico:
“Porque não temos aqui embaixo cidade permanente, mas estamos à procura da cidade que
está para vir” (Hb 13,14). Numerosas passagens do Novo Testamento demonstram a consciên-
cia de que a Igreja é Povo de Deus escatológico, baseadas na experiência do povo de Israel,
principalmente, no deserto, que, se é o caminho em busca da terra prometida, também foi um
tempo de tentação.
O Povo de Deus é, também, um povo sacerdotal, fruto da consciência da grandeza de
Deus e da indignidade humana. No Novo Testamento, a primeira carta de Pedro é prova dessa
consciência, ao combinar e relacionar diversas passagens do Antigo Testamento com a Igreja:
“Mas vós sois a raça eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo de sua particular proprie-
dade, a fim de que proclameis as excelências daqule que vos chamou das trevas para a sua luz
maravilhosa” (1Pd 2,9). Portanto, o novo Povo de Deus é um povo eleito e peregrino, no qual
acontece a salvação escatológica, pois nele se cumprem as promessas feitas ao povo de Isra-
el.327
O Vaticano II assume essa perspectiva, quando declara:

Como o Israel segundo a carne, que peregrinava no deserto, já é chamado Igreja de


Deus (2Esd 13,1; cf. Nm 20,4; Dt 23,1ss), assim o novo Israel que, caminhando no

326
RIGAL, op. cit., p. 116-120.
327
Ibid., p. 120-122.
160

presente tempo, busca a futura cidade perene (cf. Hb 13,14), também é chamado
Igreja de Cristo (cf. Mt 16,18). Pois o próprio Cristo adquiriu-a com o seu sangue
(cf. At 20,28), encheu-a de seu Espírito e dotou-a de meios aptos de união visível e
social. Deus convocou e constituiu a Igreja – comunidade congregada daqueles que,
crendo, voltam seu olhar a Jesus, autor da salvação e princípio da unidade e da paz –
a fim de que ela seja para todos e para cada um o sacramento visível desta salutífera
unidade. Devendo estender-se a todas as regiões da Terra, ela entra na história dos
homens, enquanto simultaneamente transcende os tempos e os limites dos povos.
Andando, porém, através das tentações e tribulações, a Igreja é confortada pela força
da graça de Deus prometida pelo Senhor, para que na fraqueza da carne não decaia
da perfeita fidelidade, mas permaneça digna esposa de seu Senhor e, sob a ação do
Espírito Santo, não deixe de renovar-se a si mesma, até que pela cruz chegue à luz
que não conhece ocaso (Lumen Gentium 9).

Por isso, ser Povo de Deus hoje implica:

a) entendê-lo como a unidade de todos aqueles que têm fé e receberam o Batismo,


com a consequente exclusão do clericalismo e do laicismo;
b) todos os cristãos são Povo de Deus por chamado divino, fruto da graça, com a
consequente exclusão do individualismo e de uma concepção individualista da Igreja, viven-
do-a na comunhão (koinonía);
c) o participar desse povo unicamente por decisão humana, com a consequente ex-
clusão de uma divinização e voluntarismo (ativismo);
d) o reconhecimento prático de sua historicidade, com a consequente exclusão da
idealização e do abstracionismo da Igreja.

Os membros do Povo de Deus participam, igualmente, dos três múnus de Jesus Cris-
to. Os números 13 e 14 da Lumen Gentium apresentam a Igreja como um povo católico, isto é,
universal, do qual se participa pelo Batismo. O número 13 serve de elo, pois a unidade dá base
à catolicidade, não apenas através da perspectiva do espaço e do tempo, mas também pela
diversidade, no que diz respeito a cada indivíduo e às comunidades na Igreja.328
E esse Povo de Deus goza do senso da fé, de acordo com a seguinte proposição da
Lumen Gentium:

O conjunto dos fiéis, ungidos que são pela unção do santo (cf. 1Jo 2,20 e 27), não
pode enganar-se no ato de fé. E manifesta esta sua peculiar propriedade mediante o
senso sobrenatural da fé de todo o povo, quando, “desde os Bispos até aos últimos
fiéis leigos”, apresenta um consenso universal sobre questões de fé e costumes. Por

328
Cf. PHILIPS, op. cit., p. 120.
161

esse senso da fé, excitado e sustentado pelo Espírito da verdade, o Povo de Deus –
sob a direção do sagrado Magistério, a quem fielmente respeita – não já recebe a pa-
lavra de homens, mas verdadeiramente a palavra de Deus (cf. 1Ts 2,13); apega-se
indefectivelmente à fé uma vez para sempre transmitida aos santos (cf. Jd 3); e, com
reto juízo, penetra-a mais profundamente e mais plenamente a aplica na vida (cf.
Lumen Gentium 12).

E o seu sentido é o seguinte:

1 – o estabelecimento de uma ligação entre o sacerdócio comum e a missão profética


de Cristo. Profeta é o enviado por Deus para anunciar a sua Palavra. Daí é necessário aderir a
Cristo e testemunhá-lo;
2 – o sentido da fé exerce o seu influxo na comunidade, graças à ação do Espírito
Santo. A Igreja, no seu conjunto, movida pelo Espírito Santo para a verdade, não pode desvi-
ar-se do caminho. Enquanto totalidade, é infalível em matéria de fé;
3 – o Espírito Santo suscita o sentido da fé, pois a sustém continuamente com o dom
do discernimento entre a verdade revelada e o erro, em harmonia com o Magistério;
4 – não é uma questão de puro entusiasmo, mas um conhecimento do coração pela
adesão da fé, por assimilação, adaptação e conformidade. A infalibilidade in credendo é a do
“Povo de Deus; a infalibilidade in docendo é a do Magistério”329;
5 – o senso da fé engloba o conteúdo da fé, ou a fides quae creditur, e o ato de crer,
ou a fides qua creditur, com a capacidade de operar o discernimento de fé.

5.3 A Igreja e o Reino de Deus

A Teologia clássica identificava Reino de Deus e Igreja. Essa identificação tem um


certo sentido, se, como ponto de partida, tomam-se as palavras de Jesus Cristo dirigidas a Pe-
dro, em Mt 16,18-19, em que ele é constituído fundamento visível da Igreja e do Reino dos
céus. E aqui, é necessário compreender, em se falando da relação entre a Igreja e o Reino de
Deus, o termo Igreja em sentido amplo. Neste, ela abrange todos aqueles que já estão no Para-
íso (Igreja triunfante), na purificação (Igreja padecente) e a caminho na Terra (Igreja militan-
te).330

329
Ibid., p. 154-159.
330
A teologia clássica denominava ecclesia triumphans, ecclesia patiens e ecclesia militans.
162

Tomada em sentido estrito, a Igreja é sinônimo da comunidade fundada por Cristo e,


assim, não se identifica com o Reino de Deus. Porém, a Igreja terá apenas uma fase, a da Ter-
ra, ao passo que o Reino de Deus terá duas fases: uma, a da preparação na Terra, e a outra, a
da realização plena no céu. Com efeito, o Reino de Deus estará completo, apenas, no além, ou
seja, na eternidade. Na Terra, a Igreja está em condição de peregrinação, pois está no tempo
intermediário, entre a Terra e o céu, e, por essa razão, é possível dizer “algo de provisório”.
A Igreja não se identifica com o Reino, mas também não está dissociada dele. A
Igreja anuncia o Reino e o constrói no mundo. Jesus Cristo ressuscitado é garantia da vitória
do Reino, enquanto o Espírito Santo o confirma no seu amor. Há um compromisso com a
construção do Reino de Deus que não deve ser esquecido (cf. Gaudium et Spes 39). Não se
pode esquecer tanto a transcendência e o dom de Deus, que é seu Reino, quanto a parte do ser
humano na construção do mesmo, para evitar o clericalismo e o secularismo da justiça e real-
çar o compromisso com a construção do Reino de Deus.
K. Rahner explica da seguinte maneira a distinção entre Igreja e Reino de Deus:

A Igreja não se identifica com o Reino de Deus, mas é o instrumento histórico-


salvífico do Reino de Deus na sua fase escatológica, inaugurado em Cristo, da histó-
ria da salvação e, como tal, faz acontecer o Reino de Deus. Enquanto dura a história,
a Igreja nunca se identifica com o Reino de Deus. Este Reino só chegará definitiva-
mente com o fim da história, com a segunda vinda de Cristo e o juízo universal.
Tampouco é simplesmente o que está pendente, e que mais tarde ocupará o lugar do
mundo, de sua história e do resultado dessa história. O Reino de Deus se faz presente
na história do mundo (não só na Igreja) ali onde acontece a obediência na graça co-
mo aceitação da comunicação de Deus mesmo. [...] Por isso, este Reino de Deus no
mundo, que jamais poderá ser identificado em sentido absoluto com uma determina-
da objetividade mundana, a Igreja é uma parte (porque ela mesma está no mundo e
faz história do mundo em seus membros) e, sobretudo, é o particular sacramento
fundamental, ou seja, a manifestação histórico-salvífica, escatológica e eficaz (sinal)
de que está chegando o Reino de Deus na unidade, na ação, na fraternidade, etc., do
mundo; de tal modo que também aqui, como em cada um dos sacramentos, não se
pode separar o sinal da realidade significada, mas, muito menos, podem identificar-
se.331

A Lumen Gentium assim desenvolve esse tema:

Por isso a Igreja, enriquecida com os dons de seu Fundador e observando fielmente
seus preceitos de caridade, humildade e abnegação, recebeu a missão de anunciar o
Reino de Cristo e de Deus, de estabelecê-lo em todos os povos e deste Reino consti-
tuiu na Terra o germe e o início. Entrementes, ela, enquanto cresce paulatinamente,
anela pelo Reino consumado e com todas as suas forças espera e suspira por unir-se
ao seu Reino na glória (Lumen Gentium 5).

331
RAHNER, K. Chiesa e mondo. In: Sacramentum Mundi, II: 755-757.
163

5.4 A dimensão escatológica da Igreja

O Vaticano II dedica todo o capítulo sétimo da Lumen Gentium à exposição da dou-


trina católica sobre a índole escatológica da Igreja. G. Philips é de opinião de que, provavel-
mente, o primeiro esboço desse capítulo deve sua origem à preocupação de conservar e pro-
mover o culto dos santos na Igreja Católica atual, apresentando-a na sua verdadeira luz. Con-
tudo, no texto atual constitui a passagem para a exposição mariana, exposta no capítulo se-
guinte.
De fato, uma alusão à escatologia332 não poderia faltar no documento sobre a Igreja,
porque não se pode compreender o progresso histórico do Povo de Deus, se falta a ideia da
plenitude celeste dessa história e vice-versa, porquanto não é possível entender a preocupação
escatológica sem levar em conta a história da salvação. O judaísmo é o primeiro povo a ter
uma concepção linear de história, distinguindo-se dos demais povos, que conservavam uma
visão circular. Isso aconteceu graças à ação de Deus na sua história, trazendo uma nova com-
preensão, ao mostrar o fim (télos) para o qual caminhava a história.
Desta forma explica o Vaticano II a índole escatológica da vocação da Igreja:

Por isso a prometida restauração em Cristo é levada adiante na missão do Espírito


Santo e por ele continua na Igreja, na qual pela fé somos instruídos também sobre o
sentido da nossa vida temporal, enquanto, com esperança dos bens futuros, levamos
a termo a obra entregue a nós no mundo pelo Pai e efetuamos a nossa salvação (cf.
Fl 2,12). Portanto, a era final do mundo já chegou até nós (cf. 1Cor 10,11), e a reno-
vação do mundo foi irrevogavelmente decretada e de um certo modo real já é anteci-
pada nesta Terra (Lumen Gentium 48).

A Igreja é, por força de sua natureza intrínseca, escatológica, uma vez que ela nasce
do desígnio salvífico de Deus e tem por missão levar a humanidade para a casa de Deus. Por
isso, a salvação de Deus, já presente nela, irá realizar-se paulatinamente, visto que a Igreja
caminha na história até a consumação definitiva no final dos tempos. Com efeito, ela já realiza
a obra da salvação no hoje da história humana, como Corpo de Cristo, Povo de Deus, mas não
de forma definitiva, o que acontecerá apenas na consumação dos tempos, no fim da história.333

332
A palavra “escatologia”, de origem grega, significa o estudo (logía) das realidades últimas (éschata), ou
seja, das realidades definitivas da fé cristã.
333
MONDIN, op. cit., p. 389.
164

É que o Reino de Deus já está presente, mas não definitivamente, porque, ao mesmo
tempo, ainda deverá vir e, portanto, não está aqui. Vive-se no tempo intermédio, entre a as-
censão e a segunda vinda de Cristo à Parusia. O último dia põe luz na atual escuridão do mun-
do. Dessarte, a história humana presente não é compreensível sem a tensão escatológica. Co-
mo afirma o segundo parágrafo do n. 48 da Lumen Gentium, o futuro já está presente na Terra,
visto que Jesus Cristo realizou sua missão e voltou para junto do Pai, mas continua presente na
sua Igreja, mediante a luz do Espírito Santo, que faz da Igreja o Corpo de Cristo e o instru-
mento universal de salvação.
Mas o parágrafo anterior do número 48 da Lumen Gentium mostra que o tema prin-
cipal desse capítulo do citado documento é a realização da Igreja, ou seja, a realização plena
da comunidade. Jesus Cristo convida todos a participarem dela e nela ele comunica sua santi-
dade, destinada a florescer na felicidade final.334
Também está presente a noção de comunhão dos santos, expressa no n. 49 da Lumen
Gentium, com a terminologia “Igreja celeste” e “Igreja na Terra”, e significa a unidade de to-
dos aqueles que pertencem a Cristo. Por meio dela, acontece a troca de bens espirituais, de
acordo com o primeiro parágrafo do n. 50 da Lumen Gentium, o que leva à imitação dos san-
tos, conforme o segundo parágrafo do mesmo número da Lumen Gentium.335

334
Cf. PHILIPS, op. cit., p. 476 e 478.
335
Ibid., p. 478.
165

CAPÍTULO SEXTO

A ORGANIZAÇÃO DA IGREJA

Este capítulo visa explicitar a organização da Igreja, tendo como pano de fundo a
sua dupla estrutura, o divino e o humano, conforme a Lumen Gentium 8, que a torna uma
comunhão orgânica, de acordo com a perspectiva adotada por esta obra. Inicia-se por fun-
damentar a necessária organização da Igreja, para, depois, explicitá-la de acordo com seus
princípios organizativos, conforme ela os recebeu de Jesus Cristo e a evolução histórica
acontecida ao longo do tempo.

6.1 Seus fundamentos

Quando se fala em organização de uma comunidade ou um grupo, logo surge a per-


gunta pelo motivo e necessidade de tal organização. E a pergunta se torna mais crucial
quando se trata da Igreja, visto existir uma concepção que considera desnecessária uma
organização para a Igreja por causa de sua natureza divina. Por isso, alguns desejariam uma
Igreja puramente espiritual, sem nenhum princípio organizativo.

A resposta a esse questionamento encontra-se na estrutura sacramental própria da


Igreja. Como já foi referido, ela é sacramento de salvação e, como tal, vai tornar visível a
graça de Deus, o que só será possível por meio de uma estrutura.

E a Igreja se estrutura, em primeiro lugar, a partir do encontro entre o ser humano


com a palavra de Deus, da qual brota a fé. Daí acontece o encontro salvífico e, por isso, se
afirma ser a Igreja uma comunidade messiânica de salvação. E esse encontro salvífico faz a
Igreja se organizar a partir de um princípio pessoal e não objetivo, pois Deus dá seus dons e
carismas diretamente às pessoas. No entanto, esse pessoal é, de certo modo, institucional,
166

visto que os dons e carismas se institucionalizam ao serem reconhecidos pela Igreja. E essa
estrutura é, desse modo, sem paralelo fora da Igreja.336
Essa doutrina já está presente no ensinamento do Papa Leão XIII, em sua Encíclica
Satis Cognitum, de 29 de junho de 1896, quando escreve:

E é por isso que frequentemente as Escrituras indicam a Igreja ora “corpo” ora
“Corpo de Cristo” (1Cor 12,27). Como corpo ela é visível, e enquanto é [o Cor-
po] de Cristo, é um corpo vivo, operoso e vital, pois [Cristo] a guarda e a susten-
ta. Assim como nos animais o princípio vital é invisível e permanece totalmente
oculto, mas se revela e se manifesta no movimento e na atividade de seus mem-
bros, assim também na Igreja o princípio da vida sobrenatural se manifesta cla-
ramente através das obras que realiza. De onde segue que está em um grave e pe-
rigoso erro quem forja uma Igreja oculta e totalmente invisível, assim como quem
a considera como qualquer outra instituição humana com uma espécie de disci-
plina exterior e de culto externo [...] sem aqueles sinais que diariamente provam
de maneira patente que a Igreja toma a sua vida de Deus (DS 3300s).

Essa mesma ideia é retomada e aprofundada por Pio XII, tanto na Mystici Corporis
(29 de junho de 1943) quanto na Humani Generis (12 de agosto de 1950), que expressam o
caráter sacramental de toda a Igreja e, por meio dela, a nova concepção básica de sua visibi-
lidade. O mesmo faz o Vaticano II, que, ao afirmar a já citada relação entre o humano e o
divino na Igreja, conforme expressa a Lumen Gentium 8, mostra toda a visibilidade da Igre-
ja como “visibilidade sacramental”, ou seja, que o visível pretende mostrar e garantir o in-
visível. Com efeito, mediante o visível, o invisível tem o seu lugar e o seu sentido na Igreja.
Assim se expressa o documento conciliar, ao indicar que a organização da Igreja deve ser
entendida dentro dessa perspectiva sacramental:

O único Mediador Cristo constituiu e incessantemente sustenta aqui na Terra sua


santa Igreja, comunidade de fé, esperança e caridade, como organismo visível pe-
lo qual difunde a verdade e a graça a todos. Mas a sociedade provida de órgãos
hierárquicos e o Corpo místico de Cristo, a assembleia visível e a comunidade es-
piritual, a Igreja terrestre e a Igreja enriquecida de bens celestes, não devem ser
considerados duas coisas, mas formam uma só realidade complexa em que se
funde o elemento humano e divino. É por isso, mediante uma não medíocre ana-
logia, comparada ao mistério do Verbo encarnado. Pois, como a natureza assumi-
da indissoluvelmente unida a ele serve ao Verbo divino como órgão vivo de sal-
vação, de modo semelhante o organismo social da Igreja serve ao Espírito de
Cristo que o vivifica para aumento do Corpo (cf. Ef 4,16) (Lumen Gentium 8).

336
Cf. SCHMAUS, op. cit., p. 139.
167

Além da lei sociológica da necessidade de uma organização, por parte dos grupos,
acrescente-se a constatação da presença de elementos jurídicos na Igreja, desde o início de
sua vida histórica. Seria ingenuidade querer uma Igreja desprovida totalmente de uma or-
ganização, pois já no Antigo Testamento há a presença de elementos jurídicos: a aliança é
sempre celebrada de forma jurídica. Com Abraão, por exemplo, o compromisso entre as
partes é assumido pelo simbolismo do fogo de Deus que passa pelo meio dos animais parti-
dos (Gn 15,17-20). O mesmo acontece no Novo Testamento, quando Jesus Cristo põe ele-
mentos jurídicos na nova comunidade messiânica de salvação, que é a Igreja, ao dar a ple-
nitude da autoridade a Pedro (cf. Mt 16,18-19).
Assim, a organização da Igreja e de seus ministérios tem sua origem em Jesus Cristo
e na sua primeira instituição, que é a comunidade dos discípulos de Jesus, entre os quais os
Doze formavam um grupo especial. Jesus teve, desde o início, discípulos, assim como os
profetas (Samuel e Elias, por exemplo), João Batista e os fariseus, de acordo com o costu-
me judaico, também os tiveram (Mt 22,16; Mc 2,18). Mas as relações foram distintas: Jesus
escolheu pessoalmente seus discípulos (Jo 15,15) e foi o elo entre eles. Lucas menciona os
setenta e dois (Lc 10,1-24), número que recorda os setenta anciãos, que assistiam Moisés
(Nm 11,16.24).
Todavia, um grupo especial dentre os discípulos foi constituído pelos Doze.337 Esco-
lhidos pessoalmente por Jesus, conviveram com ele durante sua vida terrena (At 1,21s),
tiveram um encontro pessoal com o ressuscitado e receberam a missão diretamente dele (Lc
24,48; At 2,32; 3,15; 4,20; 5,32; 10,39; 13,31). Esses são os três elementos necessários para
alguém ser reconhecido como apóstolo, ou mais especificamente, como membro do grupo
dos Doze.338 É que a palavra apóstolo significa mensageiro de Deus ou missionário. O no-
me, primeiro, genérico, passa, depois, a indicar os Doze, a partir da distinção feita, nos úl-
timos tempos, pela reflexão teológica.339
Contudo, Jesus chama todos os cristãos ao seguimento, que se tornou um tema-
chave dos evangelhos. E esses seus seguidores, na Igreja primitiva, eram chamados “discí-
pulos de Cristo” (At 6,1.7). Tertuliano, referindo-se à perseguição e morte dos cristãos, di-

337
DELORME, J. II. Les disciples et les douze. In: DELORME, J. (Org.). Le ministère et les ministères selon
le Nouveau Testament. Paris: Seuil, 1974, p. 164-180.
338
Cf. SCHMAUS, op. cit., p. 35-37.
168

zia que o sangue dos mártires é semente de novos cristãos340, aludindo ao convite do Mes-
tre: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz cada dia e siga-
me” (Lc 9,23).
É por isso que a Igreja do Novo Testamento, o povo da nova aliança, ou o novo Po-
vo de Deus, vai se constituindo na herança de Jesus Cristo, transmitida pelo grupo dos Do-
ze. Com efeito, a comunidade da nova aliança é apostólica, isto é, fundada na missão e no
ministério dos Doze. Assim, o ministério apostólico se constitui no ministério central da
nova aliança.
Pois aí se verifica o princípio da encarnação, aplicado analogamente à Igreja, por-
que, por meio dela, acontece a salvação de Jesus Cristo, que a torna sacramento de salva-
ção. E nisso se manifesta o respeito divino pela estrutura antropológica do ser humano: a
pessoa necessita ver e sentir também visivelmente o que passa e acontece na sua interiori-
dade. Os sete sacramentos expressam estrutura idêntica, pois sempre o sinal visível está
indicando a graça invisível operada por Deus, através daquele sacramento particular.
Esse princípio é aplicado, validamente, à organização da Igreja, como também ao
primado e ao episcopado. Aí se manifestam uma forma e uma essência. A essência é a ori-
gem divina do poder da Igreja, proveniente da autoridade de Jesus Cristo, e a forma é a
historicização dessa essência. O divino se historiciza de acordo com as situações sociais,
culturais e políticas de cada época. A essência se apresenta sempre na forma histórica. Não
se encontra, todavia, uma essência pura, isto é, desprovida da situação histórica. Portanto,
não se pode esquecer que o elemento divino (a origem divina da organização da Igreja)
sofre a influência das situações históricas de cada época, enquanto seu rosto visível se
transforma, com a consciência de que “passa a figura deste mundo” (1Cor 7,31).
Como exemplo, considerando os séculos passados, do ponto de vista histórico, po-
der-se-ia dizer que o papado poderia ter-se desenvolvido de modo diferente do que se de-
senvolveu. Mas isso não pode conduzir à afirmação de que o primado, hoje existente na
Igreja, é um desvio do conteúdo proveniente de Jesus Cristo. A verdade é que cada sucessor
de Pedro vive seu ministério petrino conforme suas características próprias, de acordo com

339
DELORME, Diversité et unité des ministères d’après le Nouveau Testament. In: DELORME, J. (Org.). Le
ministère et les ministères selon le Nouveau Testament, p. 288-297.
340
TERTULIANO, Apologeticum 50. In: PL 1,534. O Papa João Paulo II usa esta expressão na Carta Apostó-
lica Novo Millennio Ineunte 41: “Sanguis martyrum semen christianorum”.
169

sua personalidade, cultura e formação, dando-lhe um cunho pessoal.341 Por mais original
que seja a forma dada por um Papa ao seu desempenho do primado, no entanto, em seu
âmago está sempre o poder supremo recebido de Cristo, vivido sob a assistência do Espírito
Santo, no tempo.
Na verdade, a forma visível que a Igreja toma em sua feição histórica é um meio, e
não um fim. Embora o sinal externo possa e deva mudar, sempre deverá ser sinal de salva-
ção, porque Deus continua salvando por meio da caducidade e transitoriedade dos sinais
externos, usados como meios de salvação.342 Pio XI já manifestava essa consciência, ao
declarar, a 28 de fevereiro de 1927, que “os homens não são para a Igreja, mas é a Igreja
que está para os homens”.
Nesse particular, a Igreja enfrenta tentações, seja a de suprimir um dos dois elemen-
tos, seja a de desconsiderar a união de ambos. Assim, a tentação de considerar a Igreja ape-
nas como instituição leva em conta somente o dado sociológico, enquanto a de considerar
tão só o seu lado espiritual nega a sua organização. Não levar em conta a união dessas duas
dimensões esquece a sacramentalidade da Igreja.
O Sínodo de 1985 chama a atenção para essas tentações descritas acima e, também,
hoje presentes: “Por outro lado, por causa de uma leitura parcial do Concílio, foi feita uma
apresentação unilateral da Igreja como estrutura puramente institucional, despojada de seu
mistério” (Relatio Finalis I, 4). E o mesmo Sínodo continua, como já foi citado anterior-
mente: “Não podemos substituir uma falsa visão unilateral da Igreja como puramente hie-
rárquica com uma nova concepção sociológica também unilateral” (Relatio Finalis II, A,
3).

6.2 A estrutura fundamental da Igreja

Quando se propõe a questão da estrutura fundamental da Igreja, o problema é saber


qual é, apesar de o primeiro impulso ser o de apontar para a distinção entre hierarquia e

341
Assim, os elementos profanos foram introduzidos desde o tempo do Imperador Constantino, mas particular-
mente desde Gregório Magno. Os Papas Gregório VII, Inocêncio III e Bonifácio VIII deram esplendor externo ao
primado. Quiçá, foram introduzidos elementos que aprofundaram o ministério papal e até elementos que o onera-
ram negativamente. Uma pesquisa histórica poderá revelar esse fato.
170

laicato. No entanto, uma análise mais aprofundada leva a indicar a estrutura fundamental da
Igreja, ou a sua organização básica, como a dimensão carismático-institucional, que lhe é
própria. Em outras palavras, novamente deve-se acenar para a dimensão divino-humana da
Igreja, de acordo com a reflexão já feita anteriormente, pois aquela é consequência desta,
sem esquecer que a unidade entre as duas dimensões acontece por obra do Espírito Santo,
conforme também já foi referido.
Com G. Ghirlanda, pode-se defender a posição de que a estrutura fundamental da
Igreja não pode ser reduzida à determinação de sua distinção, embora essencial, entre leigos
e clérigos, visto que laicato e ministério ordenado são carismas na Igreja, dentro de uma
muito mais ampla variedade de carismas. Isso leva a entender a Igreja com uma estrutura de
comunhão e, ao mesmo tempo, de missão, pois ela se torna comunhão de todos os partici-
pantes da mesma missão, que brota da unidade da missão de salvação que a Igreja recebeu
de Cristo. Participam dessa única missão só aqueles que estão unidos pelo vínculo da co-
munhão na fé e na caridade criada pelo Espírito Santo.343 Daí entender-se a Igreja como
uma comunhão orgânica.
Ultimamente houve uma consagração de uma certa oposição entre o carisma e o
poder, entendendo-os como duas estruturas de todo opostas e o poder como um desvirtua-
mento da intenção de Cristo, que pensava numa Igreja meramente carismática. Ainda mais,
a instituição seria fruto da ação de Pedro, ao passo que o carisma seria fruto de Paulo, resul-
tando no que foi convencionado chamar linha petrina e paulina na Igreja. Outros ainda
afirmam que a mais tradicional seria a carismática, suplantada pela institucional, quando as
comunidades carismáticas desapareceram totalmente.
No entanto, a tese da oposição entre “instituição e carisma” carece de fundamento
bíblico. Ela não corresponde à mentalidade judaica nem à cristã, porque todo ministério é
um carisma, um dom recebido de Deus.344 O que existe é unidade na diversidade, pois insti-
tuição e carisma são complementares.

342
Cf. AUER, op. cit., p. 137-139.
343
Cf. GHIRLANDA, G. Chiesa universale, particolare e locale nel Vaticano II e nel Nuovo Codice di Diritto
Canonico. In: LATOURELLE, R. (a cura), Vaticano II: Bilancio e prospettive venticinque anni dopo (1962-
1987). Roma e Assisi: Pontificia Università Gregoriana e Cittadella, 1987, p. 855, 866s.
344
LEMAIRE, Les ministères aux origines de l’Église, p. 191. Ele vê, nessa posição, a tese de Harnack, que
foi severamente criticada (cf. nota 1 e 2, p. 191, da obra citada).
171

O estudo do sentido desses dois termos, sujeitos a variadas interpretações, mostra


que os carismas são um dom de Deus, mas discernidos e reconhecidos pela comunidade. É
o que ensina o texto de 1Cor 12: a ação divina e o ato comunitário se unem quando Paulo e
a comunidade reconhecem os carismas, dons de Deus dados pelo Espírito para alguém, e
permitem, conforme mostra 1Tm 5,19-21, seu exercício.345 Portanto, o dilema “instituição
ou carisma” não está de acordo com o sentido da Igreja. O que existe é unidade na diversi-
dade.346
Os Atos dos Apóstolos (1,15.26; 6,1-6; 8,14-17 e 13,1-3) e as epístolas pastorais
(1Tm 1,18; 2Tm 1,6 e Tt 1,6-7) mostram o mesmo. No caso dos bispos, presbíteros e diáco-
nos, a imposição das mãos (1Tm 4,14 e Tt 1,6) expressa a investidura divina, manifestada
institucionalmente na comunidade.347 Ou seja, a imposição das mãos é que torna alguém
apto para exercer um determinado serviço na comunidade eclesial.
Contudo, essa estrutura carismático-institucional é fonte de tensões, próprias da vida
da Igreja, que não podem ser ignoradas, mas, pelo contrário, hão que ser superadas pela
atitude permanente de seguimento obediente e dócil da vontade de Deus, descoberta na
única estrutura eclesial, por meio da inspiração do Espírito Santo.348 Também que os caris-
mas e os ministérios manifestam a presença do Espírito Santo na Igreja. Sem dúvida, a or-
ganização da Igreja é querida por Cristo e é, em virtude da instituição dele, sem similar
humano.
Diante dessa reflexão, pode-se, acertadamente, falar em Eclesiologia de comunhão
orgânica. A Igreja vive, em si mesma, uma unidade inseparável entre os elementos divino e
humano, invisível e visível. Isso inclui a aceitação do princípio de organização da Igreja

345
DELORME, J. Diversité et unité des ministères d’après le Nouveau Testament. In: DELORME, op. cit., p.
336.
346
DELORME, op. cit, p. 341. A Comisão Internacional de Teologia diz: “Assim, é uma projeção indevida
dos nossos problemas modernos ver na Igreja do final do primeiro século e início do segundo uma luta entre
os carismáticos e os ministérios institucionalizados. Os ‘homens do Espírito’ são os ‘epískopoi’, como Inácio
de Antioquia, o ‘théophore’ (Ad. Eph. 9,2); é Policarpo de Esmirna, a didascalia apostólica, como diz o autor
de seu Martírio (XVI,2). A Didaché nos faz assistir à passagem de uma etapa a outra, sem que houvesse um
conflito. A polêmica, ao contrário, cai sobre os novidadeiros” (COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIO-
NAL, Le ministère sacerdotal. Paris: Seuil, 1971, p. 68).
347
Ibid., p. 341. LEMAIRE, A. “Les épitrês pastorales. B: Les ministères dans l’Église”. In: DELORME, Le
ministère et les ministères dans le Nouveau Testament, p. 104s.
348
G. Martelet considera erro falar de “dupla” estrutura da Igreja dos primórdios ou de uma pluralidade de
estruturas, pois, a rigor, havia só uma estrutura para São Paulo: a que vem do Espírito Santo por meio dos
apóstolos (cf. MARTELET, G. Teologia del sacerdozio. Duemilla anni di Chiesa in questione. Brescia: Que-
riniana, 1986, p. 301).
172

como algo que faz parte intrínseca de seu ser e de sua missão, o que significa, igualmente,
aceitar que ela está sujeita à influência da história, visto ela estar realizando sua missão no
mundo, o que não lhe tolhe, de um lado, sua identidade, e, por outro, não a torna imper-
meável à época histórica na qual está inserida. A propósito, vale a recomendação de Paulo:
“[...] aqueles que usam deste mundo, como se de fato não o usassem. Pois passa a figura
deste mundo” (1Cor 7,31).

6.3 A diferenciação: hierarquia e laicato

Aqui estão presentes o mistério da Igreja e o Povo de Deus em comunhão orgânica,


conforme a unidade dos dois primeiros capítulos da Lumen Gentium. A Igreja, como Povo de
Deus, se divide em leigos e clérigos. Com isso, supera-se o clericalismo e o laicismo, ambos,
como já foi mostrado, funestos para a vida eclesial.
Convém lembrar, antes de tudo, que, em primeiro lugar, deve-se levar em conta a
unidade e a igualdade fundamental de todos os batizados na Igreja. Unidade, porque a Igre-
ja é uma comunhão (koinonía), fruto da mesma fé e do mesmo batismo, recebido por todos
igualmente, que, por sua vez, fundamenta a igualdade.
Em segundo lugar, vem a diferenciação, pois, primeiro, todo o cristão é fiel na Igre-
ja, para, só depois, acontecer a diferenciação, fruto da missão ou ministério diferente ocu-
pado na comunidade eclesial. Por isso, como também já foi explicitado, a Igreja não é, em
primeiro lugar, o Papa, os bispos, os padres, aos quais os fiéis se unem, mas ela, antes de
tudo, é a comunidade de iguais, pois todos recebem o mesmo batismo como fruto da mes-
ma fé professada no mesmo Deus Uno e Trino.
A diferenciação tem suas raízes nos tempos apostólicos, tornando-se mais clara no
decorrer do século II. A estrutura fundamental, oriunda de Jesus Cristo, foi adquirindo nova
feição com o passar do tempo. A estrutura da Igreja é determinada pelo fato de nela existir
um “estado”349 de leigos e outro de clérigos. Estado significa um grupo determinado de

349
Essa distinção é questionada por alguns teólogos, que a julgam fruto de um processo de discriminação
histórica ocorrido a partir do século III, quando os clérigos foram se separando dos leigos. Ver, por exemplo:
FORTE, B. A missão dos leigos. São Paulo: Paulinas, 1987, p. 30-37; SCHILLEBEECKX, Plaidoyer pour le
peuple de Dieu, p. 162ss.
173

batizados que exercem uma função ou um ministério determinado na Igreja. Contudo, todos
os cristãos, em virtude do sacramento do Batismo, são chamados à mesma vocação à santi-
dade, mas exercendo diferentes funções e serviços na Igreja. A diferença não está na di-
mensão antropológica nem nas capacidades diferentes, dotes ou inclinações pessoais, mas
na esfera teológica. As tarefas diferentes procedem da participação diferente na missão,
fundamentada na essência sacramental da Igreja. A diferença na comunidade dos batizados
é fruto do sacramento da Ordem. Por isso, a comunidade eclesial é formada por pessoas
batizadas ordenadas e não ordenadas, conforme os capítulos terceiro e quarto da Lumen
Gentium, em decorrência dos capítulos primeiro e segundo, que destacam a pertença de
todos os batizados ao mesmo e único Povo de Deus.

6.4 O princípio da sucessão apostólica

A sucessão apostólica é um princípio próprio da Igreja Católica, embora comparti-


lhado por outras Confissões cristãs.350 Esse afirma que os bispos são sucessores dos Doze
apóstolos. Tal afirmação procede da Tradição e do Magistério e de que, por isso, se impõe
como um dado da fé.
Mas o princípio da sucessão apostólica não aconteceu por acaso. Ele surgiu, em
primeiro lugar, na vida prática da comunidade eclesial e, depois, foi formulado teologica-
mente. Assim, a formulação teórica é um processo segundo, antecedido pela prática eclesi-
al. Tal princípio foi sendo elaborado como resposta às necessidades do momento e, ao me-
mo tempo, como esclarecimento da verdade de Jesus Cristo recebida pela Igreja.
O Antigo Testamento vê a sucessão no ministério central do sacerdócio, que aconte-
cia pela pertença à tribo de Levi, mais especificamente, da família de Aarão.
O Novo Testamento oferece duas fases: a primeira, em que o retorno do Senhor é
esperado para breve e, por isso, não há uma preocupação de organizar a Igreja, pois os
apóstolos são a Igreja, no sentido de que eles é que mantêm a Igreja; a segunda, quando os
Doze compreendem que vão morrer em breve e existem ameaças de divisão e de doutrinas
falsas, aí começam a organizar a Igreja. A providência dos Doze é instituir ministérios, a

350
Ministério, n. 37. In: CONSELHO MUNDIAL DE IGREJAS. COMISSÃO DE FÉ E CONSTITUIÇÃO.
Batismo. Eucaristia. Ministério. Convergência da fé. Rio de Janeiro: CONIC/CEDI, 1983, p. 49.
174

fim de assegurar a continuidade e a permanência da missão e do ministério, com a conse-


quente continuidade da atividade apostólica.
Os textos que indicam a instituição de colaboradores, por parte dos Doze, escritos
ainda quando eles estavam vivos, são Mt 28,18-20 e At 1,8, que traduzem a consciência de
que a Igreja tinha de realizar uma missão recebida por um mandato do Senhor, por meio
dos Doze (mais tarde, de modo particular, em Paulo).
O texto de Mt 28,18-20 é o texto mais importante, por ser o último legado de Cristo,
e aponta quatro elementos decisivos para a sucessão no ministério: a) envio pessoal com a
tarefa de fazer discípulos de Jesus todos os povos; b) ação sacramental pelo rito do Batis-
mo, sem o qual ninguém pode ser cristão; c) ensinar a observar o Evangelho como conver-
são e remissão dos pecados; d) a presença permanente de Jesus Cristo, que acompanha a
atividade missionária, a tal ponto de ele estar em ação, quando o apóstolo atua com seu
envio e missão sacramental na Igreja, enquanto “servidor de Cristo e administrador dos
mistérios de Deus” (cf. 1Cor 4,1).351
O mandato ou a missão comporta uma função de absolver, acompanhada dos meios
necessários para a sua realização. Tais meios estão fundados no poder de Cristo e na sua
presença no círculo dos Doze. Essa presença durará até o fim, pois a missão supera o espa-
ço e o tempo, conforme indica a apostolicidade da Igreja.
Os Doze tomam providências, para que a missão continue após eles, estabelecendo
presbíteros. O texto de Jo 20,21 (“Assim como o Pai me enviou, assim também eu vos en-
vio”) indica bem essa situação. Paulo faz isso nas comunidades fundadas por ele: Listra,
Icônio, Antioquia (cf. At 14,23), talvez em Éfeso (At 20,17-23). Alguns ministros, delega-
dos por eles, vigiam o caminhar da comunidade: Tíquico, Épafra, Tito, em Creta, e Timó-
teo, em Éfeso. Há o colégio dos presbíteros (2Tm 1,6; 1Tm 4,14), que devia conservar a sã
doutrina, preservando o depósito recebido dos Doze, assegurar a continuação da obra apos-
tólica, instituindo presbíteros locais (Tt 1,5) e usando uma autoridade superior a eles (1Tm
5,17-22), e transmitir a doutrina (2Tm 2,2), escolhendo os capazes, por sua vez, de bem
transmiti-la (Tt 1,9; 2,1-15). A sucessão dos Doze se dá pela imposição das mãos, conforme
eles faziam (At 6,6; 13,3; 14,23; 1Tm 4,14; 5,22; 2Tm 1,6; Tt 1,5).

351
AUER, op. cit., p. 213s.
175

a) Os Santos Padres

Clemente de Roma, como Paulo na espístola aos Filipenses, cita dois grupos de mi-
nistros: os bispos e os diáconos, seus auxiliares.352 Esses bispos foram instituídos pelos
apóstolos, agindo em nome de Jesus Cristo. E os apóstolos deixam instruções para que os
bispos, por sua vez, instituam outros homens comprovados, para que a missão continue. O
texto de Hb 13,7.17.24 refere-se a tal.
A Doutrina dos Apóstolos ou Didaqué, provavelmente compilada entre os anos 90-
100 d.C., testemunha a eleição de diáconos e bispos, no capítulo XV.353 A comunidade reu-
nida é quem escolhia esses guias. A epístola a Policarpo, em meados do século II, escrita
por Inácio de Antioquia, dá testemunho idêntico.354
Inácio de Antioquia († 126), no final do século I, nomeia três grupos: bispos, presbí-
teros e diáconos. O bispo está em nível superior, pois preside a comunidade, assistido pelo
colégio dos presbíteros, além dos diáconos. Em todas as suas seis cartas, Inácio afirma a
existência de um bispo, um colégio de presbíteros e outro de diáconos nas Igrejas. O bispo
é o chefe; os presbíteros formam o conselho e colaboram com ele. Os diáconos são minis-
tros da Igreja.355 Isso também está testemunhado nas epístolas pastorais, embora nestas nem
sempre apareça tão claramente distinta a posição do presbítero daquela do bispo.356 No de-
correr do século II, os três graus do sacerdócio tornam-se a forma geral de organização da
Igreja.
Entre outros testemunhos, pode-se citar Pastor de Hermas, em que os presbíteros
são chamados chefes das comunidades e presidentes das mesmas. Ireneu de Lião (140-202)
diz que a tradição apostólica se preservou mediante a sucessão dos presbíteros na Igreja,
para contrapor-se à doutrina gnóstica. Ele também cita a lista dos bispos de Roma como
exemplo da sucessão apostólica, que para ele é a garantia da reta tradição apostólica.357
Também Tertuliano, de forma análoga, vê na sucessão ininterrupta dos apóstolos a garantia

352
Cf. Primeira Carta de Clemente 42,2 e 42,4.
353
DIDAQUÉ OU DOUTRINA DOS APÓSTOLOS. Introdução, tradução e comentário de U. ZILLES. Petró-
polis: Vozes, 1970, p. 28 e 67-69.
354
CARTAS DE SANTO INÁCIO DE ANTIOQUIA. Carta a Policarpo 6,1. Introdução, tradução e notas de
Paulo Evaristo Arns. Petrópolis: Vozes, p. 87.
355
Inácio de Antioquia, em suas cartas, nomeia 60 vezes os bispos, 22 vezes os presbíteros e 15 vezes os
diáconos (cf. CARTAS DE SANTO INÁCIO DE ANTIOQUIA, op. cit., p. 19).
356
Ver sobre esse tema, por exemplo, LEMAIRE, op. cit., p. 102-117.
176

da permanência na apostolicidade das Igrejas, porque é dessa maneira que as Igrejas apos-
tólicas demonstram sua origem.358 Em Cipriano († 258) a sucessão no ministério apostólico
se confirma e se referenda mediante o reconhecimento dos bispos vizinhos, por meio do
qual se expressa a colegialidade dos verdadeiros bispos e com o qual se estabelece a unida-
de dos bispos verdadeiros, diante de numerosos falsos na época, e se assegura a verdade da
doutrina apostólica.359 Ainda podem ser citados Clemente de Alexandria, Orígenes, Hipóli-
to de Roma e Crisóstomo, que testemunham, no tempo do Concílio de Niceia (325), os três
graus do ministério em todas as comunidades cristãs.360
Até o Vaticano I, as afirmações do Magistério se restringem a asseverar a existência
dos bispos e a regular as relações entre bispos e presbíteros. Por exemplo, contra Abelardo,
no Concílio de Sens, em 1140 (DS 732); no Concílio de Florença, em 1431, no Decreto
para os Armênios (DS 1318). Também nas declarações contra Lutero, quando ele dizia que
os apóstolos não tiveram sucessores. O Concílio de Trento, na sessão XXIII, no cânon 6,
declara e define solenemente que a constituição hierárquica da Igreja é um dogma de fé:
“Se alguém diz que na Igreja Católica não há hierarquia instituída por uma disposição divi-
na, que se compõe de bispos, presbíteros e ministros, seja anátema” (DS 1776). Anterior-
mente, já Leão X afirmara a sucessão dos Doze (DS 1476). Ainda, Trento afirma a diferen-
ça entre bispo e presbítero, no poder de consagrar e confirmar (DS 1777).
O Vaticano I ensina a “ordinaria et immediata jurisdictionis potestas” dos bispos
em suas dioceses (DS 3061). O mesmo faz, mais tarde, Leão XIII, em 1896 (DS 3307); Pio
XII, ao referir-se à Primeira Carta de Clemente, ensina que os bispos são “divina instituti-
one sucessores apostolorum” (DS 3804).
O Vaticano II afirma, claramente, na Lumen Gentium 20 a 24, o episcopado como
autêntico sacramento, apesar de não falar, explicitamente, da doutrina da sucessão apostóli-
ca, porque considerou desnecessário, diante da evidência desta na consciência e na vida da
Igreja universal a partir do século III.361

357
Cf. IRENEU, Adversus Haereses III 2,2 e 3,1.
358
TERTULIANO, De praescriptione 32.
359
CIPRIANO, Epistola 45,3 68,3s.
360
A respeito da evolução histórica dos ministérios, ver HACKMANN, G. L. B. Servir a Cristo na comuni-
dade. O ministério presbiteral em Edward Schillebeeckx. São Paulo: Loyola, 1993, p. 109-157.
361
Cf. AUER, op. cit., p. 219.
177

b) O princípio da sucessão apostólica

Esse princípio afirma, portanto, que os bispos são sucessores dos Doze apóstolos.
Isso acontece por uma ação deles em obediência a um mandato missionário recebido de
Jesus Cristo, no qual está incluído, embora não formulado expressamente. A sucessão acon-
tece tanto no ministério da palavra quanto na função ministerial: é a chamada apostolicida-
de de ministério e apostolicidade de doutrina. Esta se opera mediante a imposição das mãos
e da consagração.362
Embora não se encontre, em nenhum lugar da Escritura, uma palavra explícita em
que Cristo tenha ordenado instituir sucessores, essa providência dos apóstolos estava inclu-
ída na própria tarefa confiada a eles. Assim, a Igreja é apostólica e a missão perdura através
do espaço e do tempo. A doutrina eclesial da sucessão deve ser vista da seguinte maneira:
a) a partir da compreensão da Igreja em sua totalidade, pois erraria quem a
pensasse unicamente como transmissão individual de alguns poderes ministeriais do consa-
grante ao consagrado;
b) o lugar especial dessa doutrina deve ser visto exclusivamente na conexão
entre o ministério apostólico e o ministério episcopal, pois a cátedra é o espaço vital no
qual se preserva e garante a identidade de palavra, sacramento e ministério na Igreja, atra-
vés de todos os tempos e lugares;
c) a favor de que só conta a fórmula apóstolo-bispo, podem-se aduzir as se-
guintes doutrinas, já estabelecidas desde o século III: 1 – a doutrina da diferença decisiva
de graus entre episcopado e presbiterato; 2 – só os bispos são consagrados por vários ou
todos os bispos presentes, manifestando, desse modo, que eles formam entre si um verda-
deiro collegium episcoporum; 3 – só o bispo possui o poder de ordenar, por meio do qual
consagra sacerdotes para as suas dioceses como colaboradores, pois só ele possui a força
geradora espiritual que mantém vivo o ministério apostólico em todos os tempos e lugares.
Assim, como afirma J. Auer, “esta função vital é um genuíno lugar teológico da sucessão
apostólica na Igreja”.363

362
Cf. ibid., p. 220.
363
Cf. ibid., p. 220.
178

6.5 A colegialidade episcopal

Esse é um ensinamento do Vaticano II, resgatado por ele da tradição eclesial antiga.
A doutrina da colegialidade episcopal encontra-se no número 22 da Lumen Gentium e na
Nota Prévia, inserida no final do texto oficial do mesmo documento conciliar. Também se
encontra na Christus Dominus n. 4. Além da palavra colégio, a Lumen Gentium emprega as
expressões ordo, corpus ou communio episcoporum (cf. Lumen Gentium 22). O fundamen-
to teológico é muito simples: o caráter vicário e representativo do ministério episcopal, pois
ele é exercido em nome de Cristo, do qual deve refletir a unidade dos objetivos e ações na
Igreja. Por meio dos bispos, é Cristo mesmo quem prega o Evangelho, santifica e guia o
Povo de Deus, sendo, portanto, os ofícios de ensinar, santificar e reger exercidos colegial-
mente.
A origem desse conceito é o colégio dos Doze apóstolos, cujo fundamento encontra-
se nas instruções dadas por Cristo a eles (cf. Mt 18,18; 28,19; Jo 20,21; At 2,42s; 4,33ss;
6,1s; 8,14; 15; Gl 1,17.19; 1Cor 9,1.2.5; 15,7.9; Ef 2,20; 3,5).
O termo colégio deve ser entendido no sentido de que os bispos formam uma comu-
nidade ou “grupo estável”. Não deve ser entendido num sentido meramente técnico ou es-
tritamente jurídico, pois poderia indicar igualdade de direitos. Isso acontece por causa do
Papa: ele não é um entre iguais, visto que o primado o diferencia dos demais bispos (cf.
Nota Prévia 1). Portanto, para o colégio episcopal, não vale o princípio do “inter pares”,
mas o “primus inter pares”, porquanto o Papa, como chefe, se distingue dos demais bispos
do mundo inteiro, sendo o primeiro dentre iguais.
O colégio episcopal sempre é entendido como os bispos do mundo inteiro sob a
chefia do Papa, em verdadeira comunhão hierárquica. Sem isso não há colégio episcopal.
Isso significa que cada bispo é sinal e garantia da unidade da Igreja e torna presente a única
Igreja universal em sua Igreja particular.364 E a colegialidade se torna visível no concílio
ecumênico, quando é exercido o poder supremo que o colégio tem sobre toda a Igreja. Essa
doutrina encontra-se na Nota Prévia n. 3.

364
Cf. ibid., p. 224.
179

A colegialidade requer comunhão hierárquica com a cabeça e os membros da Igreja.


Comunhão, no sentido de uma realidade orgânica, que exige uma forma jurídica animada
pela caridade. Daí brota a solicitude por toda a Igreja e a negação de um autoritarismo ab-
solutista ou totalitário na Igreja, porquanto o Papa guia a Igreja com o colégio episcopal em
uma comunhão de fé e de serviço ministerial em ordem à salvação.
Os organismos colegiais de que a Igreja dispõe hoje são os seguintes: estrutura da
Sé Apostólica (cf. Christus Dominus 9; Constituição Apostólica Regimini Ecclesiae Uni-
versae, de Paulo VI, datada de 15 de agosto de 1967, reformulada pela Constituição Apos-
tólica Pastor Bonus, de João Paulo II, datada 29 de junho de 1988) e os Sínodos períodicos,
celebrados em Roma (cf. Christus Dominus 5). Também pode ser incluída a organização
nacional dos bispos de um país em conferência episcopal (cf. Christus Dominus 37 e 38),
como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), para o Brasil, e organizações
mais amplas, como é o caso do CELAM, para a América Latina. Os leigos também devem
participar, de acordo com o espírito dos documentos magisteriais recentes (cf. Lumen Gen-
tium 32 e 33).
Deve-se discordar de G. B. Mondin, quando ele afirma que no vértice da Igreja não
existe uma autoridade, mas duas: o Papa e o colégio episcopal. Ele assume essa posição por
questões ecumênicas e porque ele pensa que a colegialidade faz voltar a Cristo.365 No en-
tanto, como esclarece a Nota Prévia,

o Papa, como Pastor Supremo da Igreja, pode exercer o seu poder em qualquer
tempo, à sua vontade, como é exigido pelo cargo. Ao contrário, o colégio, embora
sempre existindo, nem por isso age permanentemente com ação estritamente co-
legial, como atesta aliás a Tradição da Igreja (cf. Nota Prévia 4).

6.6 Formas de colegialidade

Neste ponto, serão abordadas, mais detalhadamente, algumas formas de colegialida-


de, embora já citadas acima, que são os Sínodos de Roma, as Conferências Episcopais e os
Conselhos.
180

6.6.1 Os Sínodos dos bispos

Os Sínodos dos bispos, celebrados periodicamente em Roma, são fruto da renova-


ção eclesial e eclesiológica pós-conciliar e estão estreitamente relacionados com a doutrina
do primado, da natureza e do ofício pastoral dos bispos e da comunhão hierárquica. Esses
Sínodos, enquanto representam o episcopado católico, significam “que todos os Bispos em
comunhão hierárquica participam da solicitude pela Igreja Universal” (Christus Dominus
5). Eles foram estruturados e configurados juridicamente pelo Motu Proprio Apostolica
Sollicitudo, de 15 de dezembro de 1965, pelo Motu Proprio Ordo Synodi Episcoporum ce-
lebrandae, de 08 de dezembro de 1966, pelos cânones 342-348 do Código de Direito Ca-
nônico, de 1983, e pelas adaptações posteriores.366 Após o Vaticano II, realizaram-se os
seguintes Sínodos em Roma:

ANO TIPO TEMA DOCUMENTO FINAL


29.09- 1ª Ordinária Princípios a observar na revi- Principia quae
29.19.1967 são do CIC; opiniões perigo-
sas e ateísmo; renovação dos
seminários; matrimônios
mistos e reforma litúrgica
11-28.10.1969 1ª Extraordinária Conferência Episcopal e Prima de concludere
Santa Sé e Relações entre as
Conferências
30.09- 2ª Ordinária O sacerdócio ministerial e a Ultimis temporibus (sacerdócio
06.11.1971 justiça no mundo ministerial) e Convenientes ex
universo (justiça) (30.11.1971)
27.09- 3ª Ordinária A evangelização no mundo Evangelii nuntiandi (18.12.1975)
26.11.1974 contemporâneo
30.09- 4ª Ordinária A catequese no nosso tempo Catechesi tradendae (16.10.1979)
29.10.1977
26.09- 5ª Ordinária A missão da família cristã no Familiaris consortio (22.11.1981)
25.10.1980 mundo atual
29.09- 6ª Ordinária A penitência e a reconciliação Reconciliatio et paenitentia
29.10.1983 na missão da Igreja (02.12.1984)
25.11- 2ª Extraordinária Celebrar, verificar e promo- Ecclesia sub Verbo Dei mysteria
08.12.1985 ver o Concílio Vaticano II no Christi celebrans pro salute mundi
XX aniversário de sua con-
clusão
1-30.10.1987 7ª Ordinária A vocação e a missão dos Christifideles laici (30.12.1988)
leigos na Igreja e no mundo a

365
MONDIN, op. cit., p. 324 e 326.
366
Um estudo sobre instituição, finalidades e natureza dos Sínodos dos bispos encontra-se na seguinte tese de
doutorado: MAURIZIO CLAUDIO BRAVI, Il sinodo dei vescovi. Istituzione, fini e natura. Indagine
teologico-giuridica. Roma: Pontificia Università Gregoriana, 1995, 397p.
181

vinte anos da conclusão do


Concílio Vaticano II
30.09- 8ª Ordinária A formação dos sacerdotes Pastores dabo vobis (25.03.1992)
28.10.1990 nas circunstâncias atuais
2-29.10.1994 9ª Ordinária A vida consagrada e a sua Vita consecrata (25.03.1996)
missão na Igreja e no mundo
30.09- 10ª Ordinária O ministério episcopal no Pastores gregis (16.10.2003)
27.10.2001 hoje da Igreja e do mundo
02.10- 11ª Ordinária A Eucaristia: fonte e ápice da Sacramentum caritatis
23.10.2005 vida e da missão da Igreja (22.02.2007)
05.10- 12ª Ordinária A Palavra de Deus na vida e Verbum domini (30.09.2010)
26.10.2008 na missão da Igreja
07.10- 13ª Ordinária A nova evangelização para a
28.10.2012 transmissão da fé cristã

O Papa João Paulo II convocou algumas Assembleias Especiais do Sínodo com fi-
nalidade particular. São as seguintes:

14-31.01.1980 Sínodo particular A situação pastoral nos Países Reconnaissants envers Dieu
para os Países Baixos (31.01.1980)
Baixos
28.11- I Assembleia Para que sejamos testemu- Tertio millennio iam (13.12.1991)
14.12.1991 Especial para a nhas de Cristo que nos liber-
Europa tou
10.04- Assembleia Es- A Igreja na África e a sua Ecclesia in Africa (14.09.1995)
08.05.1994 pecial para a missão evangelizadora peran-
África te o ano 2000: “Sereis minhas
testemunhas” (At 1,8)
26.11- Assembleia Es- Cristo é a nossa esperança, Uma esperança nova para o Líbano
14.12.1995 pecial para o renovados pelo seu espírito, (10.05.1997)
Líbano solidários testemunhamos o
seu amor
12.11- Assembleia Es- Encontro com Jesus Cristo Ecclesia in America (22.01.1999)
11.12.1997 pecial para a vivo: o caminho para a con-
América versão, a comunhão e a soli-
dariedade na América
19.04- Assembleia Es- Jesus Cristo, o Salvador, e a Ecclesia in Asia (06.11.1999)
14.05.1998 pecial para a sua missão de amor e de
Ásia serviço na Ásia: “Eu vim para
que tenham vida e vida em
abundância” (Jo 10.10)
22.11- Assembleia Es- Jesus Cristo: seguir o seu Ecclesia in Oceania (22.11.2001)
12.12.1998 pecial para a caminho, proclamar a sua
Oceania Verdade, viver a sua Vida:
um chamado para o povo da
Oceania
1-23.10.1999 II Assembleia Jesus Cristo, vivo na sua Ecclesia in Europa (28.06.2003)
Especial para a Igreja, fonte de esperança
Europa para a Europa
04.10- II Assembleia A Igreja na África ao serviço Africae Munus (19.11.2011)
25.10.2008 Especial para a da reconciliação, da paz e da
África justiça
10.10- Assembleia Es- Oriente Médio: comunhão e Ecclesia in Medio Oriente
182

24.10.2010 pecial para o testemunho (14.09.2012)


Oriente Médio

6.6.2 As Conferências Episcopais

Depois do estudo feito anteriormente, cabe, neste momento, iluminar a situação das
Conferências após o Código de Direito Canônico de 1983. É o que se pretende fazer a se-
guir em dois momentos. Inicia-se pela análise do Sínodo de 1985, pois faz uma referência
explícita às Conferências Episcopais. Em seguida, aborda-se a Carta Apostólica Apostolos
Suos, sob a forma de Motu Proprio, sobre a natureza teológica e jurídica das Conferências
Episcopais, procurando dar uma resposta ao pedido e às proposições feitas pelo Sínodo de
1985. Por fim, algumas questões que podem ser colocadas nos dias de hoje.

6.6.2.1 O Sínodo de 1985

Entre os temas abordados pelo Sínodo Extraordinário de 1985, convocado pelo Papa
João Paulo II, para celebrar, verificar e promover o Concílio Ecumênico Vaticano II367,
encontra-se o das Conferências Episcopais. Apesar de o relatório introdutório aos trabalhos,
elaborado pelo Cardeal Danneels com base nas respostas dadas pelas Conferências ao ques-
tionário368, ter dado pouco relevo ao tema, os debates demostraram uma tendência diferen-
te, pois tanto as intervenções quanto as discussões por grupos linguísticos deram um lugar
de destaque às Conferências Episcopais.

a) As intervenções

367
Este é o argumento central do Sínodo Extraordinário de 1985.
368
O questionário, com nove perguntas, foi enviado, a 1º de abril de 1985, para todos os membros com direito
de participar do Sínodo (cf. ANTÓN, A. Le conferenze episcopali. Instanze intermedie? Lo stato teologico
della questione. Pauline: Cinisello Balsamo, 1992, p. 163).
183

A. Antón sublinha alguns pontos de convergência que transparecem nas interven-


ções durante os trabalhos do Sínodo sobre as Conferências Episcopais369:

- o tema ocupou um lugar relevante nos debates sinodais;


- há unanimidade em reconhecer a utilidade e a necessidade das Conferências
Episcopais para a Igreja de nosso tempo;
- as referências às Conferências Episcopais estão no contexto das relações entre
primado e episcopado, da Igreja universal com as Igrejas Particulares e a missão
evangelizadora da Igreja;
- as Conferências Episcopais devem ser situadas no âmbito da comunhão eclesial
das Igrejas e de seus pastores, como indicação de um caminho hermenêutico pa-
ra entender a sua realidade teológica e eclesial;
- estão a serviço da missão evangelizadora da Igreja;
- as intervenções supõem uma necessária interdependência entre coetus Ecclesi-
arum e coetus episcoporum e vice-versa. O bispo representa a própria Igreja di-
ocesana no seio da própria Conferência Episcopal, e o coetus episcoporum de
cada Conferência representa o respectivo grupo de Igrejas na communio univer-
sal das Igrejas;
- necessidade de inculturação do Evangelho;
- foram poucas as referências sobre a organização interna das Conferências Epis-
copais e critérios para garantir seu melhor funcionamento;
- alguns invocaram o princípio da subsidiariedade como regulador das relações
das Conferências com os bispos diocesanos e com a Santa Sé;
- súplica de ajuda, por parte de diversos presidentes de Conferências Episcopais
do Terceiro Mundo, para que as Conferências Episcopais do Primeiro Mundo
fossem eco de suas vozes na communio eclesiástica, devido à falta de pessoas e
recursos que as tornassem audíveis.

b) A “Relatio Finalis”

369
Cf. ibid., p. 173-174.
184

O Relatório Final dos trabalhos do Sínodo, publicados assim como foram entregues
ao Santo Padre, acolheu os tópicos mais significativos sobre o tema das Conferências Epis-
copais, que afloraram durante os debates.
Em primeiro lugar, a Eclesiologia de comunhão aparece como o horizonte no qual
deve ser colocada a Conferência Episcopal. A. Antón é de opinião de que essa escolha ad-
quire um valor hermenêutico para o teólogo e para o canonista na busca de compreender a
sua natureza teológica e a sua competência jurídica.370 Não poderia ser diferente, pois o
Sínodo afirma que a Eclesiologia de comunhão “é a ideia central e fundamental” dos do-
cumentos do Concílio Vaticano II (cf. Relatio Finalis II, c, 1).
Em segundo lugar, as Conferências Episcopais aparecem como “realizações parciais
da colegialidade, entendida em sentido estrito”. O n. 4 da Relatio Finalis aborda o tema da
colegialidade, que tem seu fundamento sacramental na Eclesiologia de comunhão:

A Eclesiologia de comunhão oferece o fundamento sacramental da colegialidade.


Por isso, a Teologia da colegialidade estende-se muito mais além do aspecto pu-
ramente jurídico. O afeto colegial é mais amplo que a colegialidade efetiva en-
tendida de maneira apenas jurídica. O afeto colegial é a alma da colaboração en-
tre os bispos, quer no campo regional, quer no campo nacional ou internacional.
A ação colegial tomada em sentido estrito implica a atividade de todo o Colégio,
juntamente com a sua cabeça, sobre a Igreja toda; tem-se a sua expressão nítida
no Concílio ecumênico. Em toda a questão teológica sobre a relação entre o pri-
mado e o Colégio dos bispos, não pode fazer-se a distinção entre o Romano Pon-
tífice e os bispos tomados coletivamente, mas entre o Romano Pontífice separa-
damente e o Romano Pontífice juntamente com os bispos (cf. LG nota explic. 3),
porque o Colégio, juntamente com a sua cabeça, e nunca sem ela, é sujeito de po-
der supremo e pleno sobre a Igreja universal (cf. LG 22).
Dessa primeira colegialidade, entendida em sentido estrito, é preciso distinguir as
diversas realizações parciais, que são verdadeiramente sinal e instrumento de afe-
to colegial: o Sínodo dos Bispos, as Conferências Episcopais, a Cúria Romana, as
visitas ad limina, etc. Todas essas realizações não podem deduzir-se diretamente
do princípio teológico da colegialidade; mas são reguladas pelo direito eclesiásti-
co. Contudo, estas e outras formas, como as viagens pastorais do Sumo Pontífice,
são um serviço de grande importância para todo o Colégio dos bispos juntamente
com o Papa, e também para cada um dos bispos, que o Espírito pôs para reger a
Igreja de Deus (cf. At 20,28) (Relatio Finalis II, C, 4).

Desse texto, vê-se que a Relatio indica diversos graus da atividade colegial. Inicial-
mente, mostra que o afeto colegial, ou o espírito colegial (cf. Lumen Gentium 23), vai além

370
Ibid., p. 183.
185

da “colegialidade efetiva”, entendida só no aspecto jurídico, pois é a “alma da colaboração


entre os bispos, quer no campo regional, quer no campo nacional ou internacional” (cf. Re-
latio Finalis II, 4). Antón observa que é difícil compreender como se possa falar em colegi-
alidade no aspecto jurídico sem introduzir uma dualidade eclesiológica, pois a esvaziaria de
sua realidade teológica.371
Se a Conferência Episcopal é uma “forma de colaboração a nível regional, nacional
e internacional”, não se pode dizer que nela não acontece o espírito colegial. Pelo menos,
fica aberta a questão se a atividade da Conferência, a qual a Relatio evitou denominar de
colegial, é uma expressão e realização da colegialidade parcial, como é afirmado, mas ver-
dadeira.
Depois, a Relatio Finalis afirma que a ação colegial, em sentido estrito, “implica a
atividade de todo o Colégio, juntamente com a sua cabeça, sobre a Igreja toda” (cf. Relatio
Finalis II,4), de acordo com a doutrina contida na Lumen Gentium 22 e Nota Prévia 3. Em
seguida, distingue as diversas realizações parciais da colegialidade:

Dessa primeira colegialidade, entendida em sentido estrito, é preciso distinguir as di-


versas realizações parciais, que são verdadeiramente sinal e instrumento do afeto co-
legial: o Sínodo dos Bispos, as Conferências Episcopais, a Cúria Romana, as visitas
ad limina, etc. Todas essas realizações não podem deduzir-se diretamente do princí-
pio teológico da colegialidade; mas são reguladas pelo direito eclesiástico. Contudo,
estas e outras formas, como as viagens pastorais do Sumo Pontífice, são um serviço
de grande importância para todo o Colégio dos Bispos juntamente com o Papa, e
também para cada um dos bispos, que o Espírito pôs para reger a Igreja de Deus (cf.
At 20,28) (Relatio Finalis II, 4).

Desse texto, podem-se tirar alguns pontos, a título de análise:

– primeiro: é positivo que a Relatio Finalis distinga as diversas realizações parciais da


colegialidade, fugindo daqueles que queriam ou tudo ou nada. Assim, as Conferências Epis-
copais situam-se nas realizações imperfeitas da colegialidade, embora a Relatio as tenha situa-
do apenas no plano da colaboração entre os bispos;
– segundo: é inexplicável teologicamente que a Relatio Finalis afirme que essas
realizações imperfeitas não derivem de nenhum modo do princípio teológico da colegiali-
dade. Por serem realizações imperfeitas, são instituições eclesiásticas e, como tal, reguladas

371
Ibid., p. 185.
186

pelo direito, não se pode afirmar que as Conferências Eclesiásticas sejam só de direito ecle-
siástico. Mesmo que fossem, de tal tese não se pode concluir que não derivem do princípio
teológico da colegialidade, pois nesse princípio se fundamentam;
– terceiro: a Conferência Episcopal é uma aplicação concreta do afeto colegial (af-
fectus collegialis) e, por isso, deve buscar o bem e a unidade da Igreja:

Por meio das Conferências Episcopais o afeto colegial é levado à aplicação con-
creta (cf. LG 23). Ninguém duvida da sua utilidade pastoral, e, mais ainda, da sua
necessidade nas circunstâncias atuais. [...] No seu modo de proceder, as Confe-
rências Episcopais devem ter presente o bem da Igreja, a saber, o serviço da uni-
dade, e a responsabilidade inalienável de cada bispo para com a Igreja universal e
a sua Igreja Particular (cf. Relatio Finalis II, C, 5);

– quarto: o Sínodo deseja que se estude o status teológico das Conferências Episco-
pais:
Porque as Conferências Episcopais são tão úteis, antes, necessárias no trabalho
pastoral atual da Igreja, deseja-se que o estudo de seu status teológico e, sobretu-
do, a questão da sua autoridade doutrinal sejam explicitados de modo mais claro e
mais profundo, tendo-se em consideração o que é apresentado pelo Concílio no
Decreto Christus Dominus, n. 38, e pelo Código de Direito Canônico nos câno-
nes 447 e 753 (Relatio Finalis II, C,8,b).

O Papa João Paulo II assim também quer, conforme expressou em seu discurso à
Cúria Romana, de 28 de junho de 1986, ao recomendar que os estudos pedidos pelo Sínodo
sejam realizados, diante das esperanças e temores suscitados pelas Conferências Episco-
pais;
– quinto: o Sínodo também recomenda que se estude em que medida aplicar o prin-
cípio de subsidiariedade para a Igreja: “Recomenda-se um estudo que considere se o prin-
cípio da subsidiariedade, vigente na sociedade humana, se pode aplicar na Igreja, e em que
grau e sentido se possa ou deva fazer tal aplicação (cf. Pio XII, AAS 38, 1946, p. 144)” (cf.
Relatio Finalis II, C, 8, c).

6.6.2.2 A Carta Apostólica Apostolos Suos

a) Histórico

Procurando dar uma resposta ao Sínodo de 1985, a Carta Apostólica se propõe res-
ponder aos desejos da Assembleia Sinodal, conforme vem expresso na Relatio Finalis. Esse
187

desejo referia-se a esclarecer, em primeiro lugar, o status teológico das Conferências Epis-
copais, em relação com o munus docendi, e, em segundo lugar, seu estatuto jurídico, de tal
forma a “estabelecer uma práxis das referidas Conferências que seja teologicamente funda-
da e juridicamente segura” (Apostolos Suos 7).
A Carta Apostólica foi publicada treze anos após a conclusão do Sínodo. A explica-
ção para tão grande distância entre a conclusão do Sínodo e a publicação do documento
deve-se ao longo percurso de preparação que antecedeu a elaboração definitiva do mesmo.
Ele passou por várias redações, nas quais se procurou incorporar os pareceres das 47 Con-
ferências Episcopais e o parecer individual de 63 bispos, que responderam ao primeiro Ins-
trumentum Laboris.372
O primeiro Instrumentum Laboris, intitulado “Status teológico e jurídico das Confe-
rências Episcopais”, datado de 1º de julho de 1987373, foi elaborado por um grupo interdi-
casterial de estudo e enviado em janeiro de 1988. Dom Francesco Monterisi, na apresenta-
ção da Apostolos Suos, foi muito sincero ao dizer que as respostas foram tão críticas que
não restou outra alternativa a não ser redigir um documento completamente novo.
O segundo texto-base foi elaborado, no ano de 1990, por uma comissão composta
por bispos e especialistas em Teologia e Direito Canônico, sendo discutido no decorrer des-
se ano. De 1991 a 1996, o texto foi objeto de exame e discussão. Atendendo a sugestão da
Congregação dos Bispos, o Papa confiou o documento aos cuidados da Congregação para a
Doutrina da Fé para um novo e definitivo exame. Por fim, o texto foi assinado pelo Papa
João Paulo II, no dia 21 de maio de 1998, publicado em forma de Motu Proprio.374

b) O documento

O objetivo do documento deve ser entendido dentro da proposta apresentada pelo


Sínodo de 1985. Por essa razão, os objetivos são, em primeiro lugar, oferecer os princípios

372
ANTÓN, A. La carta apostólica MP ‘Apostolos Suos’ de Juan Pablo II: Se reafirman algunos puntos cla-
ves, mientras muchos otros quedan abiertos a la investigación teológica y canónica. In: Gregorianum 80, 2
(1999), p. 264.
373
O texto do Instrumentum Laboris encontra-se em Enchiridion Vaticanum. Documenti ufficiali della Santa
Sede (1986-1987), vol. X. Dehoniane: Bologna, 1991, p. 1286-1305. O instrumento de trabalho, após a intro-
dução, é composto por duas partes: a primeira, sobre o status teológico das Conferências Episcopais; a segun-
da, sobre o status jurídico das Conferências Episcopais.
374
Cf. ANTÓN, La carta apostólica..., p. 266s.
188

teológicos e jurídicos básicos das Conferências Episcopais e, em segundo lugar, assegurar


uma práxis normativa eficaz, a fim de assegurar que a sua práxis seja teologicamente fun-
dada e juridicamente segura. Assim se expressa o texto:

Propõe-se explicitar, com estreita aderência aos documentos do Concílio Vatica-


no II, os princípios teológicos e jurídicos basilares das Conferências Episcopais e
oferecer o enquadramento normativo necessário, para ajudar a estabelecer uma
práxis das referidas Conferências que seja teologicamente fundada e juridicamen-
te segura (Apostolos Suos 7).

O documento, portanto, tem um alcance bem preciso: não pretende abordar toda a
questão das Conferências Episcopais. O Cardeal J. Ratzinger comenta, na apresentação da
Carta Apostólica, que ela não pretende abordar toda a problemática inerente à relação entre
a Igreja universal e a Igreja Particular, em cujo horizonte deve ser situada a natureza das
Conferências Episcopais. Muito menos responder às inúmeras questões postas pelos teólo-
gos, nos últimos anos, sobre o fundamento teológico das Conferências Episcopais. Por essa
razão, o Cardeal Ratzinger esclarece que o objetivo do documento não é pôr um fim a apro-
fundamentos teológicos ulteriores, “no quadro da fidelidade e continuidade doutrinal em
sintonia com os ensinamentos do Magistério”.375
A. Antón pensa que o tipo de documento, um Motu Proprio, que é a forma ordinária
de emitir decisões com valor legislativo, por parte de Pastor supremo da Igreja376, sugere
que o centro de gravitação da Apostolos Suos se situa nas normas complementares sobre as
Conferências Episcopais. Isso significa que convém situá-la no âmbito disciplinar e não no
doutrinal, embora esta parte seja a mais extensa. Contudo, os pontos doutrinais têm por
finalidade assegurar teológica e juridicamente as novas normas (a última parte do documen-
to) e garantir a eficácia da ação pastoral das Conferências Episcopais. Essa interpretação
está de acordo com a finalidade específica da Carta Apostólica, conforme foi comentado
anteriormente.377

c) Os pontos-chaves reafirmados na Apostolos Suos

375
RATZINGER, J. La presentazione del Card. Joseph Ratzinger. In: L’Osservatore Romano (24.07.1998), p.
6, col. 1 (apud ANTÓN, op. cit., p. 267).
376
Cf. CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO, cânon 29.
377
ANTÓN, La carta apostólica..., p. 267.
189

1. O documento situa as Conferências Episcopais no horizonte da unidade da Igreja,


de acordo com a Eclesiologia de comunhão, conforme havia assinalado o Sínodo de 1985.
De fato, não haveria outro ponto de partida em coerência com a Lumen Gentium, senão
apontar o mistério da Igreja e a relação entre a Igreja universal e as Igrejas Particulares
(cap. I e III) na communio ecclesiarum como base teológica para as Conferências Episco-
pais. O Concílio afirma que as Igrejas Particulares estão “formadas à imagem da Igreja uni-
versal, nas quais e pelas quais (in quibus et ex quibus) subsiste a Igreja Católica una e úni-
ca” (Lumen Gentium 23).
De acordo com esse princípio, o agrupamento de várias Igrejas Particulares demons-
tra a catolicidade da Igreja, assim como as Conferências Episcopais, além de contribuir
para a aplicação concreta do afeto colegial (cf. Lumen Gentium 23). Assim, a Igreja univer-
sal não é a soma nem a federação de Igrejas Particulares, mas a comunhão de Igrejas, pela
qual está presente e se realiza a Ecclesia mysterium. Aqui se encontra o nexo de ordem on-
tológico-sacramental para a comunhão hierárquica e, por consequência, a colegialidade dos
bispos, visto que o Colégio Episcopal é “uma realidade prévia ao múnus da presidência da
Igreja Particular” (cf. Apostolos Suos 12)378; além disso, “a unidade do Episcopado é um
dos elementos constitutivos da Igreja” (id., 8).

2. Isso abre perspectiva para entender a atividade da Conferência Episcopal como


aplicação dinâmica do princípio de colegialidade, embora seja de índole parcial, enquanto a
colegialidade, em sentido estrito, é só um ato de todo o Colégio Episcopal (cf. Apostolos
Suos 12), pois a Conferência Episcopal não exerce a sua atividade pastoral “com atos cole-
giais iguais aos do Colégio Episcopal” (Apostolos Suos 10). Assim, em coerência com o
Sínodo de 1985, a atividade da Conferência Episcopal é expressão do afeto colegial, como
afirma o documento: “Quando os bispos de determinado território realizam conjuntamente
algumas funções pastorais para utilidade dos seus fiéis, um tal exercício conjunto do minis-
tério episcopal traduz em aplicações concretas o espírito colegial (affectus collegialis)”
(Apostolos Suos 12).

378
H. Legrand afirma que essa é a “afirmação mais paradoxal” da Apostolos Suos, porque retrata uma com-
preensão de colegialidade que isola o Colégio Episcopal das outras instituições presentes no Vaticano II (cf.
LEGRAND, H. O ministério do Papa. Primado e colegialidade no Vaticano II. In: DOS ANJOS, M. FABRI
190

É interessante notar que a Apostolos Suos fala da finalidade das Conferências Epis-
copais em termos de “colaboração”, “consulta”, “apoio”, “ajuda fraterna”, “intercâmbio de
pontos de vista”, “união de esforços e intentos” e “promover o bem comum” (5; 6; 13; 15 e
17). Assim, está reconhecida a importância delas como ajuda subsidiária aos bispos no
exercício do ministério episcopal em suas Igrejas Particulares. Igualmente, para o docu-
mento, não há dúvida de que as Conferências Episcopais se constituem em uma instância
legislativa decisória, dentro dos limites previstos e sob as condições determinadas pelo di-
reito universal, pelos próprios estatutos e em conformidade com as normas estabelecidas
por ele mesmo.
A dinamicidade da colegialidade está no fato de que o exercício da colegialidade
leva a buscar formas de atuação que melhor respondam aos postulados de cada situação
histórica. Em virtude desse fundamento ontológico-sacramental, comum a todas as realiza-
ções da colegialidade, é preciso reconhecer a índole dinâmica da mesma.379 Aqui se descor-
tina um sem-fim de iniciativas pastorais a serem tomadas pelas Conferências Episcopais,
com a finalidade de realizar a missão evangelizadora da Igreja.

3. O documento, ao afirmar que a atividade da Conferência Episcopal é uma forma


parcial da colegialidade episcopal, distingue a ação colegial estrita e verdadeira, conforme
expressa na Lumen Gentium e Christus Dominus, da ação colegial expressa com os termos
de “afeto colegial”, “união colegial” e “solicitude por todas as Igrejas” (Lumen Gentium 23;
Christus Dominus 5-6, 36-38).
Sem dúvida, são duas realidades diferentes, embora a segunda seja decorrência da pri-
meira e esta reforce sua eficácia e se difunda através daquela. Ambas têm a mesma raiz sa-
cramental: a ordenação episcopal. A. Antón já usou, como relator do Sínodo de 1969, as ex-
pressões “colegialidade efetiva” e “colegialidade afetiva” para designar esses dois concei-
tos.380
Com isso, positivamente, a atividade colegial “parcial” das Conferências Episcopais,
como expressão do “afeto colegial”, vem reconhecida como derivação do mesmo princípio

(Org.). Bispos para a esperança do mundo. Uma leitura crítica sobre os caminhos de Igreja. Paulinas: São
Paulo, 2000, p. 107.
379
Cf. ibid., p. 277.
191

ontológico-sacramental. Sujeito do afeto colegial é cada bispo, ao reger a sua Igreja Particular
como uma “porção” da Igreja universal (cf. Lumen Gentium 23), e com consciência de que
deve estendê-lo ao bem de toda a Igreja e a grupos de bispos reunidos em Conferências de
nação ou território, que exercem em conjunto o seu múnus pastoral (cf. Christus Dominus 38).
Dessa forma, o documento situa a pista para declarar o estatuto teológico das Confe-
rências Episcopais com base na atividade verdadeiramente colegial, embora parcial, exercida
por elas.

4. Assim como o documento insiste na responsabilidade e na legítima autonomia de


cada bispo no exercício de seu ministério pastoral na Igreja que lhe foi confiada, com poder
próprio, ordinário e imediato (cf. Apostolos Suos 19 e 20), mostra também que a Conferência
Episcopal foi instituída como ajuda subsidiária aos bispos que a compõem. Dessarte, as Con-
ferências Episcopais

estão chamadas a favorecer, com um serviço sempre maior, “a responsabilidade


inalienável de cada um dos bispos para com a Igreja universal e a sua Igreja Par-
ticular”, e não a dificultá-la, ocupando indevidamente o seu lugar em âmbitos on-
de a legislação canônica não prevê uma limitação do seu poder episcopal em pro-
veito da Conferência Episcopal, ou então agindo como filtro ou estorvo nas rela-
ções diretas de cada bispo com a Sé Apostólica (Apostolos Suos 23).

Resulta aberta a questão para precisões posteriores: o lugar da Conferência Episco-


pal em relação com o Colégio Episcopal e do bispo com sua Igreja Particular. O Cardeal
Ratzinger sublinha que as Conferências não são realidades substitutivas ou paralelas do
bispo considerado singularmente.381
Não se pode esquecer que a Conferência, em determinados casos, é também uma
“instância decisória”, a tal ponto que pode fazer “decretos gerais” vinculantes, tanto no
âmbito disciplinar quanto no doutrinal. Fica aberta a questão da obrigatoriedade dessas de-
cisões, enquanto se possa considerar uma “instância intermediária” entre o Colégio Episco-
pal e o bispo. A expressão “instância intermediária” é usada em sentido restrito aos casos
em que ela emane decretos gerais, de acordo com as normas vigentes. Não se trata de pôr

380
Cf. ibid., p. 277, nota 32 e 34.
381
Apud ANTÓN, La carta apostólica..., p. 285.
192

outro pilar na Igreja além dos dois já existentes: o Colégio Episcopal com o sucessor de
Pedro como cabeça e o bispo em sua Igreja Particular.

d) Importância e amplo desenvolvimento da atividade das Conferências Episcopais

O documento destacou pouco a importância capital e a necessidade das Conferên-


cias Episcopais em nossos dias como um meio adequado de responder às necessidades ur-
gentes do nosso tempo. É verdade que se refere à importância e à utilidade das Conferên-
cias, mas dentro do quadro já posto pelo Vaticano II (cf. Christus Dominus 37) e pelos Sí-
nodos de 1969 e 1985.
O documento aponta a importância, a necessidade da Conferência Episcopal no
exercício do ministério episcopal, em todos os níveis, além de destacar as atividades desen-
volvidas pelas Conferências, apesar de não fazer um balanço exaustivo delas:

A necessidade, nos nossos tempos, de conjugar forças, graças ao intercâmbio de


prudência e experiência no seio da Conferência Episcopal, foi posta bem em evi-
dência pelo Concílio ao afirmar que “não é raro verem-se os bispos impedidos de
cumprir, de maneira apta e frutuosa, o seu múnus, se não tornam cada vez mais
íntima e harmônica a colaboração com os outros bispos”. Não é possível compilar
um elenco completo dos setores que requerem tal cooperação, mas é claro para
todos que a promoção e salvaguarda da fé e dos costumes, a tradução dos livros
litúrgicos, o impulso e formação das vocações sacerdotais, a preparação de mate-
rial didático para a catequese, o fomento e tutela das universidades católicas e ou-
tras instituições educativas, o empenho ecumênico, as relações com as autorida-
des civis, a defesa da vida humana, da paz, dos direitos humanos, procurando que
sejam tutelados também pela legislação civil, a promoção da justiça social, o uso
dos meios de comunicação social, etc., são setores que atualmente recomendam
uma ação conjunta dos bispos (Apostolos Suos 15).

De acordo com o seu estatuto teológico, as Conferências Episcopais devem assegu-


rar a unidade entre bispos e reforçar a unidade da Igreja e a comunhão eclesial (cf. Aposto-
los Suos 6). Essa constatação aponta para uma tarefa essencial das Conferências Episco-
pais: reforçar a comunhão e/ou a colegialidade entre os pastores de uma determinada regi-
ão, agrupados em coetus episcoporum.
Essa tarefa é exercida em meio a tensões, o que é normal dentro da caminhada da
Igreja. O n. 6, na última frase, aponta para essa questão: “Todavia, a evolução de sua ativi-
dade, sempre mais vasta, suscitou alguns problemas de natureza teológica e pastoral, sobre-
tudo no que diz respeito à sua relação com cada um dos bispos diocesanos” (Apostolos Suos
193

6). Sempre foi uma tarefa difícil harmonizar a unidade com a diversidade, além da dificul-
dade de trabalhar os conflitos, em uma Igreja acostumada a viver e a prezar a unidade.

e) As normas complementares

As quatro normas complementares estão direcionadas a assegurar a unidade e a co-


munhão entre os bispos de uma mesma Conferência e destes com o Colégio e o Papa, cabe-
ça do mesmo.
A exigência da aprovação unânime para as declarações doutrinais (artigo 1) se com-
preende a partir do princípio da colegialidade. A norma da necessidade da recognitio, por
parte da Sé Apostólica, quando as declarações doutrinais forem aprovadas por menos de
dois terços dos bispos, com voto deliberativo da Conferência, não é nova, já que o Código
de Direito Canônico, no cânon 455, a exige para os decretos gerais (cf. Apostolos Suos 20).
Essa última exigência está em consonância com a fundamentação teológico-
eclesiológica estabelecida pela Carta Apostólica. É um reforço da comunhão eclesial, que
as Conferências devem favorecer e não prejudicar, conforme recomenda o n. 22.
Essas exigências, ainda, dizem respeito à práxis da Conferência, do ponto de vista
de sua organização interna e do exercício de sua função doutrinal. Assim, o exercício do
ministério episcopal deve ser visto no conjunto de suas funções, e não só por sua atividade
docente.

f) Algumas questões a aprofundar

A Apostolos Suos deixa algumas questões para o aprofundamento posterior, diante


do seu objetivo e do que foi proposto ao longo do documento. Entre estas, podem-se citar:

1. o alcance da vinculação de cada bispo com a Conferência Episcopal na ação con-


junta da mesma. É correto afirmar que a autoridade da Conferência não é “por si” superior
à do bispo. Contudo, é preciso analisar o alcance, pois poderia parecer que a atividade da
Conferência torna-se a soma da atividade de cada bispo em particular382;

382
Cf. ibid., p. 293.
194

2. a dificuldade da “unanimidade” a ser alcançada em relação com a recepção dife-


renciada, que acontece nas diversas Igrejas Particulares, pois a Igreja é uma “comunidade
de recepção” do depósito da fé.383 Assim já acontecia nos Concílios, de acordo com a tradi-
ção secular da Igreja. Desse modo, a eficácia do ensino da Conferência Episcopal (cf. Apos-
tolos Suos 22b) depende de sua capacidade de receber a fé das comunidades representadas
pelos bispos que a compõem.384 A prática conciliar mostra que a votação foi um dos crité-
rios para avaliar o consenso da assembleia.

6.6.2.3 Algumas questões

a) Analogia entre Concílios particulares e as Conferências Episcopais a partir da sinoda-


lidade

A revolução copernicana na Eclesiologia operada pelo Vaticano II, ao compreender


a Igreja como comunhão e não mais como sociedade perfeita, trouxe, entre outros ganhos,
um maior equilíbrio entre as dimensões universal e local da própria Igreja. Nesse panorama
inserem-se as Conferências Episcopais, que se tornaram ponto de referência para a vida da
Igreja, no período posterior ao Vaticano II, a tal ponto que se discutem sua natureza teoló-
gica e jurídica e suas atividades, além de haver unanimidade quanto à sua importância nos
dias de hoje.
Assim se expressa G. Alberigo a propósito desse assunto:

De fato, nas Conferências os bispos expressam e alimentam a comunhão entre


suas comunidades, realizando uma sintonia com a cultura e a situação local em
que estão vivendo. Ao mesmo tempo, são ocasião de superação dos excessos tan-
to da centralização romana como da passividade de muitos bispos.385

383
A propósito, ver CONGAR, Y. La ‘réception’ comme réalité ecclésiologique. In: Revue des Sciences Phi-
losophiques et Théologiques 56 (1972), p. 369-403. Há uma publicação abreviada do mesmo artigo em Conci-
lium 1972/7, p. 886-907.
384
DENZLER, G. Autoridade e recepção das conclusões conciliares na cristandade. In: Concilium 187
(1983/7), p. 22s; ROUTHIER, G. La réception d’un concile. Paris: Du Cerf, 1993, p. 57s.
385
ALBERIGO, G. A sinodalidade após o Vaticano II. In: DOS ANJOS, op. cit., p. 132s.
195

Se a Eclesiologia de comunhão é o conceito-chave para compreender a natureza


teológica da Conferência Episcopal, como foi refletido anteriormente, deve-se abordar o
tema da participação e corresponsabilidade na Igreja. O Sínodo de 1985 já assim pedia:
“Porque a Igreja é comunhão, a participação e a corresponsabilidade devem existir em to-
dos os seus graus. Este princípio geral deve entender-se de diverso modo nos âmbitos di-
versos” (Relatio Finalis II, C, 6).
Como tal, a comunhão se explicitará na sinodalidade, que será uma “vertente operati-
va” da Igreja como comunhão:

A sinodalidade se realiza em sentido próprio no exercício do ministério episcopal.


Expressa-se de modo pleno e supremo, válido para toda a Igreja, na atividade or-
dinária e colegial do coetus episcoporum e se realiza com valor vinculante, limi-
tado a uma agrupação de Igrejas Particulares, nos Concílios menores e nas Confe-
rências Episcopais.386

Nesse sentido, A. Antón, baseado em Y. Congar, defende uma analogia entre os


Concílios particulares e a Conferência Episcopal. Os mesmos princípios teológicos que
fundamentam os Concílios valem, analogamente, para as Conferências Episcopais.
Dois textos do Vaticano II podem ser aduzidos a favor dessa tese: Lumen Gentium
23 e Christus Dominus 38. Do primeiro texto, vem extraído o primeiro argumento: a única
vez em que o Vaticano II usa a expressão affectus collegialis o faz para falar das Conferên-
cias Episcopais (coetus episcoporum). O segundo texto apresenta o termo coniunctim (con-
juntamente) usado no lugar de collegialiter na definição de Conferência Episcopal. Aqui
não há a intenção de negar a sua índole colegial, de acordo com a interpretação dada pela
Comissão, mas deixar o tema do fundamento teológico aberto para a discussão dos teólo-
gos.387
A raiz dessa analogia encontra-se na comunhão, na qual o Vaticano II situou tanto
os Concílios particulares quanto as Conferências Episcopais. O quarto parágrafo do n. 23
da Lumen Gentium apresenta a Conferência Episcopal no contexto de um dinamismo co-

386
CHAMOSO, R. SÁNCHEZ. La sinodalidad, santo y seña de la Iglesia-comunión. In: Nuevo Mundo 181
(1998), p. 59.
387
Cf. ANTÓN, Le conferenze..., p. 296.
196

munial e colegial, que, realizado em nível local, por meio da riqueza da diversidade das
Igrejas, expressa e mantém a comunhão da Igreja Católica una e indivisa.388
Ainda se pode acrescentar a compreensão que Cipriano tem de Concílio, pois refere-
se a ele com a expressão in unum convenire, para indicar tanto a assembleia (concilium)
quanto o parecer comum (commune concilium) e o seu consenso (consensum). Para ele, era
fundamental o procedimento para se chegar ao consenso. A unanimidade dos bispos que
deviam tomar a decisão, mais a dos outros aos quais cumpriria aderir ou colocá-la em práti-
ca, deveria ser a maior possível. Quanto maior a aceitação pelas Igrejas vizinhas, tanto
maior era a autoridade do Concílio. Também conta a concordância deste com a Sagrada
Escritura e com a Tradição. E esse consenso permaneceu como um elemento fundamental
na noção de Concílio, a partir da práxis conciliar na Igreja.389

b) O princípio de subsidiariedade

O princípio de subsidiariedade é um conceito da doutrina social da Igreja. O Papa


Pio XI já se havia referido a esse princípio em sua encíclica Quadragesimo Anno, de 15 de
maio de 1931, mas no contexto da sociedade civil, formulando-o da seguinte maneira:

Permanece, contudo, imutável aquele solene princípio da filosofia social: assim


como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem efetuar com a própria
iniciativa e indústria, para o confiar à coletividade, do mesmo modo passar para
uma sociedade maior e mais elevada o que sociedades menores e inferiores podi-
am conseguir, é uma injustiça, um grave dano e perturbação da boa ordem social.
O fim natural da sociedade e da sua ação é coadjuvar os seus membros, não des-
truí-los nem absorvê-los (Quadragesimo Anno 79).

Não será aqui abordado o princípio vertente em seu significado social (sociológico),
mas apenas em sua pertinência eclesiológica e, particularmente, em relação com as Confe-

388
Cf. ibid., p. 299.
389
Cf. ibid., p. 303. A. Antón observa que aí acontece o consenso na dimensão horizontal (aceitação pelas
Igrejas vizinhas) e na dimensão vertical (concordância da decisão tomada com a Sagrada Escritura e a Tradi-
ção). Sendo assim, São Cipriano atribui à ação do Espírito Santo a decisão tomada.
197

rências Episcopais. Esse tema tem suscitado diversos estudos, como bem comprovam J. A.
Komonchak390 e Angel Antón.391
Pela primeira vez o termo vem aplicado à Igreja pelo Papa Pio XII, em seu discurso
ao Consistório, no dia 20 de fevereiro de 1946, por ocasião da recepção aos novos cardeais,
mas ele ressalta que esse princípio não deve prejudicar a estrutura hierárquica da Igreja.392
A partir daí, discute-se sua aplicabilidade ou não à Igreja. G. Mucci defende a posi-
ção de que o princípio de subsidiariedade não é aplicável à Igreja por causa da sua origem
divina e da diferença essencial entre a Igreja e o Estado, por ser a estrutura hierárquica da
Igreja incompatível com esse princípio.393
No entanto, o Magistério dos últimos Papas (Pio XII, João XXIII e Paulo VI) e os
Sínodos de 1967, 1969, 1974 e 1985, como também o Código de Direito Canônico, de
1983, referem-se ao princípio de subsidiariedade como possível de ser aplicado à Igreja. E
vão mais longe, ao afirmar que é compatível sua aplicação à Igreja na relação do Papa com
os bispos e da Sé Apostólica com outras instâncias de organização da Igreja. Nessas instân-
cias incluem-se as Conferências Episcopais.
Nas discussões do Sínodo de 1969, prevaleceu a opinião de que esse princípio pode-
rá ser aplicado concretamente às Conferências Episcopais, respeitados os direitos e a liber-
dade do Papa e de cada bispo.394 Para tal contribuiu a homilia do Papa Paulo VI, por ocasi-
ão da abertura do Sínodo, na qual ele falou explicitamente da subsidiariedade como princí-
pio regulador das relações dos bispos, como pastores de suas Igrejas Particulares, com ou-
tras instâncias hierárquicas superiores, ou seja, o exercício da colegialidade devia ser sem-
pre animado pela unidade e caridade.395

390
KOMONCHAK, J. A. Le principe de subsidiarité et sa pertinence ecclésiologique. In: LEGRAND, H.;
MANZANARES, J.; GARCÍA Y GARCÍA, A. Les conférences épiscopales. Théologie, statut canonique,
avenir. Paris: Du Cerf, 1988, p. 392-447.
391
ANTÓN, A. Il principio di sussidiarietà nell’ambito delle conferenze episcopali. In: ANTON, Le
conferenze..., p. 467-525.
392
Cf. Revista Eclesiástica Brasileira, 1946, p. 449.
393
A propósito, ver KOMONCHAK, op. cit., p. 400.
394
Pastor aeternus II, I (cf. Enchiridion Vaticanum. Documenti ufficiali della Santa Sede. 1968-1970, vol. 3.
Dehoniane: Bologna, 1977, 1027-1033).
395
Apud ANTÓN, Le conferenze..., p. 483.
198

Após o Sínodo de 1985, o Cardeal Danneels sustentava a opinião da conveniência


de aplicar o princípio de subsidiariedade à Igreja como um princípio regulador, em vista de
uma maior descentralização no governo da Igreja.396
É interessante a opinião de B. Kloppenburg, quando escreve sobre esse princípio, já
em 1971: “Entretanto, a verdade é que o atual ordo Ecclesiae ainda se apresenta extrema-
mente centralizado. [...] Em outras palavras: a atual centralização dos poderes não é de di-
reito divino”.397 Para ele, portanto, o princípio de subsidiariedade é uma forma de combater
a centralização de poder.
A viabilidade da aplicação desse princípio na Igreja vem explicitada por W. Kasper,
com base em dois motivos: o primeiro é a constituição da Igreja como comunhão e socie-
dade, porque a Igreja é simultaneamente uma realidade humana e divina. O segundo argu-
mento procede de um princípio de ordem teológico-antropológica, o qual afirma que a gra-
ça não suprime a natureza, mas antes a aperfeiçoa. Também K. Rahner desenvolve esse
último argumento, concluindo que o princípio da subsidiariedade é compatível com a estru-
tura hierárquica da Igreja e com a comunhão.398
Continuando o pensamento de K. Rahner, ainda se pode aludir à relação entre indi-
víduo e comunidade na Igreja, que é formada por pessoas, e que estas, por sua vez, se rela-
cionam com Deus. E, por essa razão, a Igreja, o Corpo de Cristo, a assembleia visível e a
comunidade espiritual (cf. Lumen Gentium 8), deve subsidiar – apoiar – essa relação, nunca
tomar o seu lugar. Assim, indivíduo e comunidade são duas realidades complementares,
jamais concorrentes.399
Daí brota a pergunta: como aplicar o princípio de subsidiariedade à Conferência
Episcopal? A questão não está clara, mas há caminhos que buscam respondê-la. A. Antón
aponta uma possibilidade, ao defender a tese do “sim, mas com a condição de que...”, como
ele a denomina. A aplicação é por analogia, mantendo os limites impostos pela natureza
divina e humana da Igreja e pela estrutura específica da Igreja, que derivam da vontade

396
Ibid., p. 487. A. Acerbi dá as seguintes sugestões para que a descentralização aconteça: o direito de inicia-
tiva ou de proposta; o direito de consulta quanto ao exercício do Magistério pontifício; conciliação entre auto-
nomia (regulada) dos bispos e o direito de primado do bispo de Roma; estabelecimento de regras de procedi-
mento para as intervenções do Magistério, conforme a sugestão de Dom Gasser; um Concílio representativo
do episcopado mundial, naturalmente presidido pelo Papa, e com voto deliberativo (cf. ACERBI, A. Para uma
nova forma de ministério petrino. In: DOS ANJOS, op. cit., p.186-190.
397
KLOPPENBURG, B. A Eclesiologia do Vaticano II. Petrópolis: Vozes, 1971, p. 153.
398
Cf. KOMONCHAK, op. cit., p. 425s.
199

explícita de Cristo. Assim, devem-se acrescentar ao princípio da subsidiariedade mais dois


princípios: o da solidariedade e o da colegialidade, em uma Igreja-comunhão na sua justa
relação entre Igreja universal e Igrejas Particulares e agrupamento de Igrejas Particulares,
indivíduo e comunidade e liberdade individual e livre associação dentro da Igreja.400
A partir do que foi exposto anteriormente, é possível aplicar o princípio de subsidi-
ariedade na Igreja e às Conferências Episcopais. Subsidiariedade não significa substituição
ou mera suplência, mas responsabilidade ativa do Corpo de Cristo e promoção da corres-
ponsabilidade das comunidades e dos cristãos401, sem, contudo, a sua aplicação contradizer
a própria natureza da Igreja e de seus princípios.

6.6.3 Os Conselhos

Como já foi visto, a Igreja não pode perder a consciência de que se origina do misté-
rio trinitário de comunhão, manifestado em Jesus Cristo, e de que deve viver esse mistério
de comunhão orgânica entre seus membros e anunciá-lo, abrindo-se a todo o gênero huma-
no.
Também já foi afirmada a Eclesiologia de comunhão como a Eclesiologia-chave do
Vaticano II, presente, principalmente, na Lumen Gentium. Entre as novidades trazidas por
ela e, de modo geral, o novo espírito eclesial inaugurado pelo Vaticano II, estão os variados
Conselhos a existirem em níveis diversos, tanto na Igreja universal quanto Particular, que
se tornam, também, expressão de colegialidade.
Com efeito, os Conselhos são uma forma de participação dos leigos na Igreja, que,
sem inverter os papéis próprios de cada estado, conforme já foi estudado no início deste
capítulo, ajuda o cristão a sentir sua responsabilidade na tarefa comum da Igreja, fruto da
expressão nova da comunhão após o Vaticano II, e exprime uma nova articulação das res-
ponsabilidades a serviço da comunhão orgânica, superando a tentação de se fixar em for-
mas que foram boas em determinada época e certa cultura, e adquirir, assim, falsas segu-
ranças.

399
Cf. ANTÓN, Le conferenze..., p. 502.
400
Cf. ibid., p. 517-521.
401
Cf. KOMONCHAK, op. cit., p. 439.
200

Ao instituir os Conselhos, o Vaticano II resgatou o que já existia desde os primór-


dios da Igreja. O Concílio de Jerusalém, conforme relata o capítulo 15 dos Atos dos Apósto-
los, é uma demonstração inequívoca dessa realidade. Com isso, o último Concílio ecumêni-
co quis tirar a consequência da nova dinâmica presente na Lumen Gentium.
Os Conselhos têm caráter consultivo e não decisório, resultante do poder de ordem,
o que não tem como consequência a anulação da responsabilidade de cada pessoa. Nessa
perspectiva, a articulação do poder consultivo com o poder decisório, que compete ao bispo
ou ao presbítero, dependendo do tipo de Conselho, torna-se um instrumento rico em eficá-
cia, desde que seja bem compreendido e bem articulado, pois ele envolve cada pessoa sem
que ninguém se torne dono de tudo. Não se pode esquecer que a participação em algum
Conselho significa participar de uma obra comum.402
Os Conselhos são os seguintes:
1- o Conselho pastoral, a ser instituído em cada diocese, com a finalidade de “exa-
minar e avaliar as atividades pastorais na diocese e propor conclusões práticas”
(cf. CIC 511-514);
2- o Conselho econômico, a ser constituído em cada diocese, presidido pelo bispo
ou por um delegado seu, formado por ao menos três fiéis nomeados pelo bispo,
com a tarefa de elaborar o orçamento anual das receitas e despesas da diocese
(CIC 492-494), a existir também em cada paróquia;
3- o Conselho dos presbíteros, a existir em cada diocese, constituído por um grupo
de sacerdotes que representam o presbitério, tem a finalidade de ser “como o se-
nado do bispo, cabendo-lhe, de acordo com o direito, ajudar o bispo no governo
da diocese, a fim de se promover ao máximo o bem pastoral da porção do Povo
de Deus que lhe foi confiada” (cf. CIC 496-502);
4- o Colégio dos consultores, a ser formado por alguns membros do Conselho
presbiteral, “não menos de seis nem mais de doze”, nomeados pelo bispo, por
um quinquênio, “ao qual competem as funções determinadas pelo direito” (cf.
CIC 502; 419 e 421);

402
Este ponto tem por base a obra PETER, R. L’Église dans tous ses conseils. Diriger, animer et vivre con-
seils et réunions d’Église. Paris: Bayard éd/Centurion, 1997 (especialmente 109-134).
201

5- o Sínodo diocesano, que é “uma assembleia de sacerdotes e de outros fiéis da


Igreja Particular escolhidos que auxiliam o bispo diocesano para o bem de toda a
comunidade diocesana” (cf. CIC 460-468).

6.7 O Magistério

A palavra Magistério vem do latim magisterium, que é uma derivação de magis


(maior) em oposição a minus (menor), com a qual se indica a relação de autoridade sobre
outras pessoas ou instâncias subordinadas. Usada pela Igreja, a palavra, portanto, ao indicar
uma autoridade em um campo determinado, aponta para a doutrina.403
Com efeito, a autoridade do Magistério se dá no campo doutrinal. Ele ensina e
transmite com autoridade a verdade revelada de Jesus Cristo e recebida na Igreja Católica, e
é, por isso, essencialmente, a atuação do ofício profético, por parte da Igreja e de seus mi-
nistros. E essa tarefa é exercida pelo Papa, pelos bispos e pelo colégio episcopal.
A sua existência se justifica por existir desde o início da Igreja, a partir do tempo
dos apóstolos. Como ela é o novo Povo de Deus, ela deve salvaguardar a própria identidade
e promover o próprio desenvolvimento, transmitindo a verdade. Como sacramento de sal-
vação, a Igreja deve permanecer fiel a sua própria natureza e ao desejo de seu fundador,
Jesus Cristo.
Assim, sua origem é divina e sobrenatural, uma vez que a Igreja detém o mandato
de ensinar, transmitir e zelar pela doutrina revelada (cf. Mt 16,18-20). A Igreja prega uma
verdade que não é sua, mas confiada a ela por Jesus Cristo.404 Ela anuncia o Evangelho, por
mandato de Cristo (cf. Mt 28,18-20; Jo 8,40; 18,37). Nesse sentido, o livro dos Atos dos
Apóstolos é uma espécie de crônica da ação magisterial e sacramental da Igreja, sob o im-
pulso do Espírito Santo. E o apóstolo Paulo, por exemplo, anuncia o Evangelho, a “palavra
da verdade” (Ef 1,13) ou a “verdade do Evangelho” (Gl 2,5; 2 Jo 10; Gl 1,8).
Desse modo, o Magistério, como a atuação do ofício profético, está ordenado à ver-
dade escatológica, que não é mais apenas anúncio de promessa como no Antigo Testamen-

403
LAURET, B. Magisterio. In: EICHER, op, cit., p. 7.
404
Nesse sentido, o Cardeal Ratzinger afirma: “O Magistério da Igreja manifesta-se a favor da primazia da
obediência e dos limites da autoridade da Igreja” (cf. RATZINGER, J. A Carta Apostólica ‘Ordinatio sacer-
dotalis’. In: L’Osservatore Romano (edição semanal em Português), ano XXV, n. 26 (25/06/1994), p. 3).
202

to, mas a proclamação da verdade realizada e manifestada em Jesus Cristo, e, nesse sentido,
epifânica. O seu poder e sua autoridade são o poder e a autoridade da Palavra de Deus, da
qual dá testemunho (2Cor 13,8). Ele atua e concretiza na comunidade dos fiéis a autoridade
intrínseca da Palavra de Deus, pela qual a autoridade do Magistério se converte em autori-
dade de serviço submisso à Palavra de Deus (cf. Lumen Gentium 25).
Por isso, tem autoridade, mas autorizada. É um ensinamento que requer obediência
por causa da verdade que apresenta. É a autoridade formal do Magistério. Isso acontece na
Igreja (cf. Mc 16,16), o que leva o cristão a crer na Igreja. É, pois, a mediação humana com
a eficácia divina.
Sua tarefa é zelar, transmitir, interpretar, definir, proclamar, salvaguardar a verdade
confiada por Cristo à Igreja. Zelar pela integridade e autenticidade da verdade de Cristo,
pois o Evangelho não pode ser mudado (cf. 1Tm 4,16). Portanto, zelar pela ortodoxia, por-
que a Igreja é mestra da verdade para os próprios filhos e arauta do Evangelho para os ou-
tros. Como o depositum fidei, confiado à Igreja, contém o credo das verdades fundamentais,
ela necessita estar sempre atenta para evitar as heresias.
O Magistério age de modo extraordinário e ordinário. O primeiro é exercido em
função hermenêutica e supletiva pelo Papa, quando fala ex cathedra, e pelo Concílio Ecu-
mênico. Também pelos bispos dispersos pelo mundo, mas em comunhão com o sucessor de
Pedro, quando convergem numa única sentença a reter como definitiva (cf. Lumen Gentium
25). Tudo isso relativo a uma definição dogmática. O segundo, o ordinário, diz respeito ao
ensinamento doutrinal, contido no depósito da fé, feito, seja pelo Papa, em seu ensinamento
ordinário, seja pelos bispos, espalhados pelo mundo inteiro, também em seus ensinamentos
ordinários.
Magistério e trabalho teológico não se excluem. Se é verdade que a Teologia não
pode restringir-se a ser apenas uma reflexão do que o Magistério explicita, não menos ver-
dade é que ela não pode criar um Magistério paralelo. A Congregação para a Doutrina da
Fé, na Instrução sobre a vocação eclesial do teólogo, quando expõe a relação entre Magis-
tério e Teologia, quanto ao problema da dissensão, explica a particularidade própria da
Igreja, entendida como mistério de comunhão, cuja origem é a unidade do Pai, do Filho e
do Espírito Santo, que se organiza de acordo com a vontade de seu fundador:
203

Imagem dos membros da primeira comunidade, todos os batizados, com os ca-


rismas que lhe são próprios, devem tender de coração sincero a uma harmoniosa
unidade de doutrina, de vida e de culto (cf. At 2,42). Esta é uma regra que brota
do próprio ser da Igreja. Portanto, não se podem aplicar a ela, pura e simplesmen-
te, critérios de conduta que têm a sua razão de ser na sociedade civil ou nas regras
de funcionamento de uma democracia. Menos ainda se podem inspirar as relações
no interior da Igreja na mentalidade do mundo circundante (cf. Rm 12,2) (Instru-
ção sobre a vocação eclesial do teólogo 29).

Contudo, anima o trabalho teológico:

A Congregação para a Doutrina da Fé convida calorosamente os bispos a manter


e a desenvolver com os teólogos relações confiantes, na condivisão de um espíri-
to de acolhimento e de serviço à Palavra, e em comunhão de caridade, em cujo
contexto poderão mais facilmente ser superados alguns obstáculos inerentes à
condição humana sobre a terra (id., 42).

6.8 A Igreja Particular

A Igreja universal, até agora, foi vista como mistério e sacramento de salvação. Mas
é necessário e indispensável estudar a Igreja Particular. Como já foi visto, o Novo Testa-
mento designava, com maior frequência, a assembleia cristã de um determinado lugar. Con-
tudo, também indicava uma realidade ao mesmo tempo universal e local.
Do ponto de vista histórico, a Igreja Particular sofreu um processo de esquecimento,
iniciado, segundo A. Beni, no século XI, quando a Eclesiologia começou a partir da Igreja
universal, motivada pela necessidade de salvaguardar sua liberdade e autonomia frente ao
Imperador.405 Porém, o Vaticano II redescobriu a Teologia da Igreja Particular, conforme
expressam os seguintes textos: Lumen Gentium 23 e 26; Ad Gentes 19-22; Orientalium Ec-
clesiarum 15; Unitatis Redintegratio 22; Presbyterorum Ordinis 5 e 6; Gaudium et Spes 91.
O vocabulário empregado pelo Vaticano II causou uma certa confusão, pois empre-
gava indistintamente, para indicar a mesma realidade, as palavras “particular” e “local”.
Depois do livro de P. de Lubac, intitulado Les Églises particuliérs dans l’Église univer-
selle406, a diocese designa a Igreja particular, porque a dimensão do mistério permanece, ao
passo que local só é a condição espaçotemporal, em que existe uma homogeneidade de am-

405
Cf. BENI, op. cit., p. 381s.
406
Paris: Aubier, 1971.
204

biente sociocultural, designando mais dioceses. Exemplo: a Igreja que está no Brasil, na
Itália etc., não a Igreja do Brasil ou da Itália. Desse modo, a “localidade” se constitui numa
verdadeira dimensão da Igreja Particular, à qual ela não pode renunciar, por ser, ao mesmo
tempo, visível e indicar um povo determinado.407
A Lumen Gentium 23 refere-se à Igreja Particular deste modo: a “una e única Igreja
Católica é constituída pelas Igrejas Particulares”. Assim, a Igreja Católica designa a Igreja
em todo o mundo. A Igreja universal, enquanto considerada sociologicamente, indica o
conjunto de Igrejas Particulares.
Com efeito, a Igreja Particular é um “evento” da Igreja universal, que é encontrada e
vivida em cada Igreja Particular. Todavia, a Igreja Particular não é simples expressão geo-
gráfica ou mera porção do rebanho, como também não é apenas uma representação da Igre-
ja e, muito menos, quantitativamente a Igreja, a comunidade ou assembleia universal, pois
pode haver outras comunidades particulares com os mesmos títulos, prerrogativas e direi-
tos.408 Por isso, a Igreja universal não é mero resultado da soma das Igrejas Particulares.
A Igreja Particular é uma Igreja que torna presente realmente, no espaço e no tempo,
em um lugar determinado, a Igreja universal, a Igreja una e única de Cristo. O Vaticano II
assim define: “Diocese é a porção do Povo de Deus confiada a um bispo para que a pasto-
reie em cooperação com o presbitério” (Christus Dominus 11). O Código de Direito Canô-
nico, nos cânones 368 e 369, além de declarar que as Igrejas Particulares são primeiramente
as dioceses, “nas quais e das quais se constitui a una e única Igreja Católica”, apresenta a
mesma compreensão conciliar de diocese.
De Lubac define assim: “O Povo de Deus é um só povo, não porque se compõe de
numerosas Igrejas Particulares, mas porque cada uma das comunidades é uma forma sob a
qual se apresenta este único Povo de Deus. A Igreja universal está toda e em cada uma das
Igrejas Particulares”.409 Assim como a Igreja Particular é a realização da Igreja universal,
ela participa das propriedades, características e predicados da Igreja universal.
Embora em cada Igreja Particular esteja presente a Igreja universal, nenhuma Igreja
Particular é, em sentido exclusivo e pleno, a Igreja universal, apesar de aquela buscar ser

407
Cf. MONDIN, op. cit., p. 407.
408
Cf. BENI, op. cit., p. 383.
409
DE LUBAC, op. cit., p. 51.
205

sempre mais o que ela já é essencialmente. Assim, os elementos constitutivos da Igreja Par-
ticular são:

a) o Espírito Santo, que habita, unifica e santifica a Igreja, por meio de


seus dons e carismas;
b) a Palavra de Deus, que, anunciada e proclamada, chama, convoca, reú-
ne, exorta e interpela;
c) o sacramento do Batismo, que é confirmação da aceitação da Palavra
de Deus, fazendo dos batizados filhos de Deus e membros da Igreja;
d) a Eucaristia, propulsora do organismo espiritual e sacramento, por ex-
celência, que faz a Igreja;
e) o bispo, que é princípio visível e fundamento particular, ajudado pelo
presbitério, em comunhão com o colégio episcopal e o bispo de Roma,
centro visível da união católica e garantia suprema da Tradição Apostóli-
ca.410
Na realidade, Jesus Cristo e o Espírito Santo fazem a Igreja Particular: Jesus Cristo,
que ainda hoje proclama sua palavra e realiza a sua salvação por meio dos sacramentos; o
Espírito Santo, que anima toda a atividade da Igreja, a assiste e a enriquece com os dons.
Assim, a Igreja Particular realiza plena e totalmente o mistério da Igreja, visto que a
sacramentalidade da Igreja encontra nela já uma plena realização e representa adequada-
mente o Povo de Deus. Que a Igreja universal não se constitui em mera soma de Igrejas
Particulares também não pode ser esquecido, pois naquela se encontra a origem da personi-
ficação, da atualização e epifania de cada uma destas. Portanto, a comunhão da Igreja acon-
tece na Igreja universal, pois a Igreja Particular sozinha não a realiza. Na Igreja universal
está compreendida a Igreja celeste, a Igreja terrestre (peregrina) e cada Igreja Particular
individualmente.411
Jean-Marie R. Tillard afirma que a Igreja nasce católica em um lugar, pois ele con-
sidera que a Igreja nasce universal em Jerusalém, apesar de ser uma Igreja Local. Inclusive,

410
Cf. ibid., p. 387-389.
411
MONDIN, op. cit., p. 412.
206

ele prefere usar a terminologia Igreja Local, e não Igreja Particular, porque a entende a par-
tir do uso neotestamentário.412
É necessário fomentar a comunhão entre as Igrejas Particulares (cf. 1Cor 12,25),
para, assim, a Igreja universal expressar sua catolicidade e unidade. Dever-se-iam criar me-
canismos concretos de comunhão entre as Igrejas Particulares. No Brasil, existe o projeto
das “Igrejas irmãs”, como uma forma de ajuda humana e material, além de outras iniciati-
vas nacionais e diocesanas.

6.9 O exercício da autoridade na Igreja como serviço

A comunidade cristã primitiva forma a comunidade messiânica de salvação, funda-


mentada nos apóstolos, trazendo o problema da necessária estrutura jurídica. Do ponto de
vista puramente natural, ela não pode realizar-se historicamente sem elementos jurídicos e
sociais. Para descobri-la e compreendê-la, é necessário ter sempre diante dos olhos a di-
mensão cristocêntrica da Igreja, que lhe é fundamental.
Contudo, a concretização das disposições organizacionais deixadas por Jesus Cristo
aconteceu em meio a condicionamentos históricos que levaram à constituição da autoridade
na Igreja. Isso não desmerece ou relativiza a autoridade na Igreja, mas demonstra, mais
uma vez, sua realidade teândrica e sua sacramentalidade própria, pois ela é uma comunhão
orgânica.
Não se põe em dúvida que Jesus Cristo revestiu a hierarquia de autoridade (cf. Mt
16,16-19). A questão é como essa autoridade vem a ser exercida na Igreja. O como não
questiona as prerrogativas inerentes à missão assumidas e exercidas na Igreja, por decor-
rência dela mesma, mas a atitude assumida pela pessoa que a exerce. Hoje há consciência
de que, a exemplo de Jesus Cristo, a autoridade na Igreja é um serviço desempenhado a
favor do todo da Igreja. A atitude de serviço, portanto, melhor retrata a disposição de quem
desempenha alguma missão que redunde em ter autoridade e que implique exigir fidelidade
à verdade do Evangelho, traduzindo no dia a dia a declaração do Mestre (cf. Mc 10,45).413

412
TILLARD, J-M. R. L’Église locale. Ecclésiologie de communion et catholicité. Paris: Du Cerf, 1995,
578p.
413
SCHMAUS, op. cit., p. 130.
207

Sabiamente, M. Schmaus tenta descrever essa realidade:

Onde há direito, existe superioridade e inferioridade, missão e obediência. O di-


reito na Igreja confere pleno poder espiritual. A autorização pelo direito significa
uma obrigação ao ministério da salvação. Quanto mais alta a autorização, maior o
dever (Mt 20,25-28). Por isso, é o exercício do direito um ministério fraternal.
Fundamentalmente não há oposição alguma entre a Igreja de direito e Igreja de
amor, entre Igreja ministerial e Igreja espiritual. O ministério eclesial é exatamen-
te santuário e o modo de agir do Espírito. O Espírito não se atém exclusivamente
ao ministério, ele sopra onde quer (Jo 3,8). Os ministérios na Igreja, porém, fo-
ram criados pelo Espírito.414

Do ponto de vista prático, hoje, depara-se com uma certa ojeriza à autoridade na
Igreja, porque muitos a confundem com autoritarismo, acrescida à dificuldade de recepção
da palavra do Magistério, por não ser levada em conta a orientação dada, pois vale é a posi-
ção pessoal nos mais diversos campos do pensamento e da moral. Vale, por isso, mudar
essa mentalidade, através de uma visão nova de autoridade na Igreja, além de um exercício
renovado da autoridade, entendido como serviço.

6.10 O regime na Igreja

Hoje se vive num clima democrático, com paridade de direitos e deveres, com cons-
ciência de participação na sociedade.415 Esse clima trouxe um questionamento para o regi-
me eclesiástico e fez surgir uma aspiração interna de participação na Igreja, também, em
termos de decisões. Por isso, a Igreja não pode ficar indiferente.
Contudo, nenhum sistema terreno pode ser aplicado diretamente à Igreja, pois só ser-
vem para sistemas apenas humanos, que não é o caso da Igreja, a qual é humano-divina e vive
do regime recebido de seu fundador. Daí que não se adaptam à Igreja as denominações dos
regimes políticos vigentes hoje, como democracia, socialismo, totalitarismo e outros. A
Igreja tem um regime próprio, derivado do poder de Jesus Cristo e transmitido até nós, ho-

414
Cf. ibid., p. 133.
415
Aristóteles dizia que havia três sistemas bons: monarquia, aristocracia e politeia (ou estado constitucional).
As deformações eram, respectivamente, a tirania, a oligarquia e a democracia, sendo, esta última, a deforma-
ção mais suportável. Ele pensava que os sistemas políticos devem estar fundamentados em realidades transce-
dentes: Deus, ideias e valores. Quando, no entanto, as pessoas decidem por capricho, o sistema vai mal, pois o
último critério deixa de ser a verdade e a virtude.
208

je, por meio dos apóstolos. Com efeito, carece totalmente de sentido o desejo ou a atitude
de alguém querer abolir a hierarquia da Igreja, porquanto, como já foi afirmado, ela é de
instituição divina. É verdade que o assunto pode ser tratado no sentido de questionar a atua-
ção da autoridade na Igreja, exercida dentro de um determinado modelo de Igreja.
Diante disso, é possível afirmar que (a) a Igreja não é, em seu conjunto, uma reali-
dade soberana, como o Estado, porque vive do que recebeu de Deus em Jesus Cristo, além
do que (b) a sua tarefa primeira e exclusiva é estar a serviço da salvação das pessoas como
filhos de Deus e conduzi-las até Deus, porque (c) ela recebeu os princípios de seu serviço e
de sua autoridade de Cristo e da revelação de Deus, que leva a contradizer, muitas vezes, o
coração humano corrompido pelo pecado, apesar de responder à realidade mais íntima do
coração humano, e porque (d) a Igreja nunca pode ser meta de si mesma, pois ela é o Corpo
de Cristo e, por isso, constituída numa realidade própria por vontade de Cristo como espaço
de salvação no mundo.
Por isso, o fundamento e a garantia do poder e do direito na Igreja é Deus, do qual
provêm a Revelação, o Salvador e a Igreja, com a ação do Espírito Santo nela mesma. As
pessoas e as comunidades vivem com liberdade, fruto do dom da graça de Deus e do orde-
namento divino. Por essa razão, ela se opõe a toda forma de domínio e de capricho huma-
nos. Resulta na fraternidade, que não é prerrogativa exclusiva de uma democracia, mas a
expressão mais íntima da humanitas, que constitui um fundamento real da Igreja e de sua
constituição.416
Como, recentemente, algumas vozes clamam por democracia na Igreja, podem-se
aduzir as quatro exigências postas por J. Ratzinger para se refletir sobre essa questão:

1º - a limitação radial do ministério espiritual, que toma a sério o caráter sacramen-


tal do ministério da Igreja e, por ele, subordina os interesses e as necessidades mundanas à
solicitude pelo Reino de Deus e sua justiça no mundo;
2º - uma reta compreensão comunitária, que inclui a consciência de a comunidade
não ser a soma dos membros que a compõem, mas uma comunhão de vida no respeito e
paciência mútuos, e o interesse recíproco na caridade fraterna. A simples eleição introdu-
ziria um falso conceito de democracia, pois esqueceria a relação entre a Igreja Particular e a

416
AUER, op. cit., p. 177.
209

Igreja universal, à qual pertencem os traços característicos da construção da comunidade


eclesial;
3º - a colegialidade deve ser entendida como a colaboração entre os diversos níveis
(cf. Gaudium et Spes 21 e Apostolicam Actuositatem 10), pela qual se mostra a vinculação
da Igreja Particular com a Igreja universal;
4º- a voz da comunidade eclesial como instância da Igreja, através dos carismas e do
sensus fidei (cf. Lumen Gentium 12), que impede a supremacia da minoria sobre a maioria a
partir do consenso da fé, evitando a manipulação da maioria pela minoria e respeitando a fé
comum das comunidades.417

Diante de tudo isso, cabe a pergunta: qual é o caminho a se tomar? Poder-se-ia vis-
lumbrar uma resposta a partir das seguintes indicações:
a) colegialidade e colaboração em todos os níveis;
b) fraternidade como um princípio básico social, em que a liturgia torna-se a sua
expressão;
c) promoção da justiça social pela caritas;
d) a articulação do princípio da subsidiariedade (cf. Quadragesimo Anno 79) com o
da solidariedade;
e) fomento à responsabilidade e à participação de todos na tarefa pastoral co-
mum.418

417
RATZINGER, J.; MAIER, H. Democracia na Igreja. Possibilidades, limites, perigos. São Paulo: Paulinas,
1976.
418
BENI, op. cit., p. 648-650.
210

CAPÍTULO SÉTIMO

OS MINISTÉRIOS NA IGREJA

A Igreja, mistério e sacramento de salvação, o Povo escolhido e convocado de


Deus, tem tarefas diferentes a serem exercidas, mas sempre em benefício do Corpo de Cris-
to. Assim, este capítulo visa expor os diversos ministérios na Igreja, enfocando sua especi-
ficidade e sua tarefa na Igreja e no mundo.

7.1 Uma Igreja ministerial

Essa expressão quer indicar uma Igreja toda corresponsável pela missão e pela vida
da Igreja. Já no Vaticano II encontra-se essa intenção, como, por exemplo, em Lumen Gen-
tium 31; 32; 33; Apostolicam Actuositatem 2 e 10. O objetivo é evitar que a tarefa esteja
concentrada nas mãos de poucos, fomentando uma Igreja mais ativa e mais responsável
pela missão da Igreja.419
Isso porque todo batizado participa do sacerdócio de Cristo, conforme o Vaticano II
redescobre:

Cristo Senhor, Pontífice tomado dentre os homens (cf. Hb 5,1-5), fez do novo
Povo “um reino e sacerdotes para Deus Pai” (Ap 1,6; cf. 5,9-10). Pois os batiza-
dos, pela regeneração e unção do Espírito Santo, são consagrados como casa espi-
ritual e sacerdócio santo, para que por todas as obras do homem cristão ofereçam
sacrifícios espirituais e anunciem os poderes daquele que das trevas os chamou à
sua admirável luz (cf. 1Pd 2,2-10) (Lumen Gentium 10).

Todo o povo de Deus é responsável pela missão da Igreja, no dizer do Vaticano II:

Pois os Pastores sagrados sabem perfeitamente quando os leigos contribuem para


o bem de toda a Igreja. Sabem também (os Pastores) que não foram instituídos

419
Ver essas ideias, mais desenvolvidas, em ANTONIAZZI, A. Os ministérios na Igreja, hoje. Perspectivas
Teológicas. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 34-41.
211

por Cristo, a fim de assumirem sozinhos toda a missão salvífica da Igreja no


mundo. Seu preclaro múnus é apascentar de tal forma os fiéis e reconhecer-lhes
atribuições e carismas, que todos, a seu modo, cooperem unanimemente na obra
comum (Lumen Gentium 30).

É nesse sentido que se fala de uma Igreja toda ministerial e se enfatiza a comunida-
de e a dimensão de serviço, que deve ter todo o ministério, como também a co-
responsabilidade de todos na Igreja, embora diferenciada. Por essa razão, trata-se de revita-
lizar todos os ministérios em função de uma Igreja em comunhão orgânica, que chama à
participação em seu serviço em ordem à salvação. Isso não significa confusão de papéis e
funções entre hierarquia e laicato, mas é necessário saber distinguir os carismas e ministé-
rios exercidos para o bem da comunidade, conforme recomenda o apóstolo Paulo, ao usar a
imagem do corpo (cf. 1 Cor 12,11.18).
O Sínodo de 1971, celebrado em Roma, ao analisar o problema do ministério pres-
biteral e a crise que enfrentava na época, encontrou-se diante do dilema: ou a ordenação de
homens casados ou a abertura para a participação de leigos nos ministérios. O Sínodo optou
pelo segundo caminho, mantendo inalterado o modelo de presbítero e abrindo o acesso de
leigos a determinados ministérios. É o caso do sacramento da Eucaristia e da Ordem, com a
possibilidade de leigos serem ministros extraordinários da Comunhão e instituídos nas fun-
ções do leitorado e do acolitato, antes unicamente possíveis como caminho à ordenação
diaconal e presbiteral.420
A Carta Apostólica Motu Proprio Ministeria Quaedam, de 15 de agosto de 1972, de
Paulo VI, reforma os ministérios e ordens. Antes havia a tonsura, as ordens menores (ostia-
riato, exorcitato, acolitato e leitorado) e maiores (subdiaconato, diaconato e presbiterato),
somente dadas aos candidatos ao presbiterato. A partir de então, foi abolida a tonsura, que
foi substituída pelo rito de admissão; as ordens menores desapareceram, sendo introduzidos
os ministérios, que passaram a ser instituídos e não mais recebidos em um rito de ordena-
ção, com acesso aos leigos, que são o leitorado e o acolitato. Foram abolidos o ostiariato, o
exorcitato e o subdiaconato. Permitiu-se às Conferências Episcopais introduzirem outros
ministérios, segundo as próprias necessidades. Os candidatos ao diaconato e ao sacerdócio,
contudo, devem receber, necessariamente, o leitorado e o acolitato.421

420
Ver, a propósito, BENI, op. cit., p. 630-634.
421
PAULO VI, Ministeria Quaedam. O texto completo encontra-se em ENCHIRIDION VATICANUM, v. 4.
Dehoniane: Bologna, 1978, p. 1106-1117.
212

Na América Latina, as duas últimas Conferências do CELAM abordam essa ques-


tão. O documento de Puebla (1979) realça a diversidade de ministérios:

A Igreja, para o cumprimento de sua missão, conta com diversidade de ministé-


rios. Ao lado dos ministérios hierárquicos, a Igreja reconhece o lugar dos ministé-
rios desprovidos de ordem sagrada. Portanto, também os leigos podem sentir-se
chamados ou ser chamados a colaborar com seus pastores no serviço à comuni-
dade eclesial, para o crescimento e vida da mesma, exercendo ministérios diver-
sos, conforme a graça e os carismas que o Senhor aprouver conceder-lhes (Puebla
804).

O documento de Santo Domingo (1992) sublinha, da mesma forma, a importância


dos ministérios conferidos aos leigos, de acordo com a necessidade da evangelização, e, ao
citar a Christifideles Laici 21-23, mostra que esses ministérios têm seu fundamento sacra-
mental no Batismo e na Confirmação (cf. Santo Domingo 101).

A Santa Sé publicou, assinada pelos Prefeitos de diversas Congregações, uma Ins-


trução intitulada Instrução acerca de algumas questões sobre a colaboração dos fiéis lei-
gos no sagrado ministério dos sacerdotes, datada de 15 de agosto de 1997, na qual vêm
afirmados, após uma longa premissa, alguns princípios teológicos, tais como a diferença
entre o sacerdócio comum e o sacerdócio ministerial, a unidade e a diversificação das tare-
fas ministeriais, o caráter insubstituível do ministério ordenado e a colaboração de fiéis não
ordenados no ministério pastoral, seguidos por disposições práticas. A finalidade de tal do-
cumento é “simplesmente fornecer uma resposta clara e autorizada aos insistentes e nume-
rosos pedidos enviados aos nossos Dicastérios por bispos, presbíteros, os quais solicitaram
esclarecimentos em face de novas formas de atividade ‘pastoral’ de fiéis não ordenados no
âmbito das paróquias e das dioceses”.
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil publicou, no dia 22 de abril de 1999,
o documento intitulado Missão e ministérios dos cristãos leigos e leigas, aprovado em sua
37ª Assembleia Geral, no qual se encontram assuntos relevantes sobre esse tema. Após ex-
planar os desafios e sinais dos tempos e expor a fundamentação teológica da missão do
Povo de Deus, encontram-se as diretrizes para a evangelização, a serem aplicadas “às situa-
ções específicas com criatividade e enriquecidas em cada Igreja Particular, paróquia, co-
munidade, movimento ou pastoral” (n. 112).
213

Por ministério se entende a responsabilidade assumida por um período determinado


e reconhecido oficialmente pela comunidade e pelo bispo. O já citado documento da CNBB
distingue carisma de ministério da seguinte forma: “Há forte tendência, hoje, na Teologia e
na prática pastoral, de considerar ministério, fundamentalmente, o carisma que assume a
forma de serviço à comunidade e à sua missão no mundo e na Igreja e que, por esta, é como
tal acolhido e reconhecido” (n. 84). Contudo, continua o mesmo documento, nem todo ca-
risma é ministério, porque “só pode ser considerado ministério o carisma que, na comuni-
dade e em vista da missão na Igreja e no mundo, assume a forma de serviço bem determi-
nado, envolvendo um conjunto mais ou menos amplo de funções, que responda a exigên-
cias permanentes da comunidade e da missão, seja assumido com estabilidade, comporte
verdadeira responsabilidade e seja acolhido e reconhecido pela comunidade eclesial” (n.
85), e considere “a recepção ou o reconhecimento do ministério pela comunidade eclesial
como essencial” (n. 86).
A Christifideles Laici faz a seguinte síntese dos ministérios: a) são dons e impulsos
especiais; b) assumem as mais variadas formas; c) têm uma utilidade eclesial; d) florescem
também em nossos dias e podem gerar uma afinidade espiritual entre as pessoas; e) devem
ser recebidos com gratidão; f) necessitam de discernimento; g) devem estar referidos aos
pastores da Igreja (n. 24).
O documento da CNBB classifica os tipos de ministérios da seguinte maneira: a)
ministérios simplesmente reconhecidos, quando ligados a um serviço significativo para a
comunidade, mas não permanente; b) ministérios confiados, quando conferidos por algum
gesto litúrgico simples ou alguma forma canônica; c) ministérios instituídos, quando confi-
ados pela Igreja através do rito litúrgico da “instituição”; d) ministérios ordenados, quando
reconhecidos e conferidos por meio do sacramento da Ordem (n. 87).
É interessante, por fim, trazer a advertência que o documento de Puebla faz, ao
apontar alguns perigos a serem evitados na promoção dos ministérios laicais, os quais se
convertem em obstáculos e desafios que devem ser superados, a fim de acontecer uma ver-
dadeira promoção e participação de leigos e leigas na missão da Igreja:

- persistência de certa mentalidade clerical em numerosos agentes pastorais, clé-


rigos e até mesmo leigos (cf. Puebla 784);
214

- fuga dos leigos das realidades temporais para buscar a Deus. Deve-se motivá-
los para que perseverem presentes e ativos no meio delas e ali encontrem o
Senhor (cf. Puebla 797);
- a tendência à clericalização dos leigos ou a reduzir o compromisso leigo àque-
les que recebem ministérios, deixando de lado a missão fundamental do leigo,
que é a sua inserção nas realidades temporais e em suas responsabilidades fa-
miliares (cf. Puebla 815);
- não se devem promover tais ministérios como estímulo puramente individual,
fora de um contexto comunitário (cf. Puebla 816);
- o exercício de ministérios por parte de alguns leigos não pode diminuir a parti-
cipação ativa dos demais (cf. Puebla 817).422

7.2 O leigo na Igreja e no mundo

O tema dos leigos, ainda hoje, permanece um desafio para a Igreja, tanto em termos
da reflexão teológica quanto da pastoral. Apesar de o Vaticano II ter dado um passo impor-
tante no campo da vida laical e ter posto o fundamento para a compreensão da natureza e
do lugar dos leigos no mundo e na Igreja, ainda permanece um tema a ser aprofundado e,
até, a ser mais bem definido, pois ainda nos dias de hoje falta uma maior clareza quanto ao
papel do laicato na Igreja.423
Com efeito, esse tema não perdeu sua relevância na atualidade. O Papa João Paulo
II, em seu programa preparatório ao novo milênio adventício, dá grande ênfase ao papel do
laicato, ao se expressar da seguinte maneira: “[...] no campo eclesial, a escuta mais atenta
da voz do Espírito através do acolhimento dos carismas e da promoção do laicato [...]”
(Tertio Millennio Adveniente 46). Anteriormente, em 1992, em Santo Domingo, por ocasi-
ão dos quinhentos anos de evangelização do continente latino-americano, a quarta Confe-

422
Cf. IRIARTE, G. Comunidade eclesial de base. Um novo modo de ser Igreja. São Paulo: Paulinas, 1992,
p. 84s.
423
Há muitas reflexões a respeito desse assunto. Cito aqui, apenas, a constatação da ruptura entre os leigos e o
Magistério: JAMES, C. Análise de conjuntura religioso-eclesial. Por onde andam as forças. In: Perspectiva
Teológica, ano XXVIII, n. 75 (maio/agosto 1996), p. 173s; FELLER, V. G. A Igreja que queremos para o
novo milênio. In: Revista Eclesiástica Brasileira, fasc. 234 (junho 1999), p. 264-270.
215

rência do CELAM aponta para um papel indispensável, exercido pelos leigos na tarefa
evangelizadora, ao referir-se a eles como “protagonistas da Nova Evangelização” (cf. Santo
Domingo 97). Esses chamados mostram ter havido um grande caminho percorrido, mas,
talvez, se esteja longe da meta desejável e necessária.424
Este ponto visa apresentar, inicialmente, um breve histórico do tema do laicato na
Igreja, delimitado ao período que abarca a era do Concílio Ecumênico Vaticano II, para,
depois, tentar uma definição de sua natureza, e, finalmente, apontar pistas para a sua missão
no mundo e na Igreja. Cita-se, primeiro, a missão na Igreja e, depois, no mundo. No entan-
to, tal ordem não significa a desvalorização da tarefa do fiel cristão para com o mundo. Pelo
contrário, acredita-se que, em primeiro lugar, vem a missão no mundo, como especificidade
do fiel leigo, para só então ele exercer uma tarefa na comunidade eclesial. É que se acredita
que o leigo está comprometido, prioritariamente, com a ordem temporal. Contudo, ambas
as missões estão relacionadas, visto se iluminarem reciprocamente. O problema é que se
passou a ideia, nos últimos anos, de que efetivamente é leigo apenas, e só pode ser conside-
rado como tal, quem exerce algum trabalho pastoral na Igreja ou participa de algum movi-
mento pastoral. Evidentemente, não está errada essa posição, mas a missão do leigo aponta,
antes de tudo, para o mundo, e só então para a comunidade eclesial, enquanto a participação
em algum movimento, ministério ou grupo dentro da comunidade eclesial deve servir como
apoio para o exercício consciente de sua cidadania, como cristão e agente transformador do
mundo, nos diversos setores da vida civil.

7.2.1 Recordando a história: do esquecimento à valorização do leigo

Muito se tem escrito sobre os fiéis leigos na Igreja, a partir do Concílio Ecumênico
Vaticano II, e, muito mais, talvez, se tenha falado. Mas ainda falta algo significativo, sufi-
cientemente esclarecedor da real natureza do laicato em si mesmo e da sua missão, tanto na
Igreja quanto no mundo. Contudo, não se pode esquecer a obra de Y. Congar intitulada

424
É o que afirma o Arcebispo de Pamplona, no discurso inaugural ao VIII Simpósio Internacional de Teolo-
gia, dedicado à missão do leigo na Igreja e no mundo (cf. SARMIENTO, A. et al. La misión del laico en la
Iglesia y en el mundo. VIII Simposio Internacional de Teología de la Universidad de Navarra. Pamplona:
Universidad de Navarra, 1987, p. 39).
216

Jalons pour une théologie du laïcat, que marcou época e expressou o novo espírito eclesial
para com os leigos na Igreja.425
O Concílio Ecumênico Vaticano II, especialmente o capítulo quarto da Constituição
Dogmática Lumen Gentium e o Decreto Apostolicam Actuositatem, foi um marco referenci-
al para a questão do laicato na Igreja, visto que desencadeou uma nova mentalidade e uma
postura nova para com os leigos.
A partir daí, a temática do laicato, na Igreja, nesses três últimos decênios, foi abun-
dantemente abordada, como provam os textos do Vaticano II426, dos documentos dos Pa-
pas427, de diferentes organismos da Santa Sé428, do Sínodo dos Bispos de 1987429 e das
Conferências Episcopais em todo o mundo. No Brasil, também a Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB) tem se ocupado largamente do tema dos leigos, ao se pronunciar,
inúmeras vezes, sobre os mais diversos campos da vida laical.430
Porém, o interesse pelo tema do laicato já é mais antigo. Todavia, não se pode es-
quecer que foi um tópico periférico na Eclesiologia, pois os manuais careciam de uma
abordagem adequada. Os tratados de Eclesiologia disponíveis acentuavam, comumente, na
época moderna, os elementos visíveis, hierárquicos e institucionais da Igreja, reservando
um lugar secundário para o tema dos leigos.431

425
Tradução em português: CONGAR, Y. Os leigos na Igreja. São Paulo: Herder, 1966, 712p. Interessante é
o seguinte estudo sobre essa obra: PELLITERO, R. La teología del laicado en la obra de Yves Congar. Pam-
plona: Universidad de Navarra, 1996, 529p.
426
Como já foi lembrado, especialmente o quarto capítulo da Constituição Dogmática Lumen Gentium e o
Decreto Apostolicam Actuositatem.
427
Entre os últimos documentos mais importantes, pode-se apontar a Exortação Pós-Sinodal Christifideles
Laici, de João Paulo II, publicada após o Sínodo sobre os leigos, celebrado no Vaticano, em 1987. Também
podem ser lembrados seus discursos proferidos nos encontros com os laicatos, por ocasião de suas inúmeras
visitas pastorais a diversos países do mundo.
428
Para tal, ver o índice de 1962 a 1987, no Enchiridion Vaticanum, em que está a relação de documentos
emanados pelos diversos organismos da Santa Sé (cf. Laicato/Laico. In: Enchiridion Vaticanum. Supplemen-
tum 2. Indici generali 1962-1987. Bologna: Dehoniane, 1993, p. 812-824).
429
Para o Sínodo de 1987, ver Lineamenta (28 de janeiro de 1985). In: Enchridion Vaticanum, v. 9. Bologna:
Dehoniane, 1991, p. 1340-1409; Instrumentum laboris (22 de abril de 1987). In: Enchiridion Vaticanum, v.
10. Bologna: Dehoniane, 1991, p. 1141-1211; Propositiones (29 de outubro de 1987). In: Enchiridion Vatica-
num v. 10, p. 1439-1515; Mensagem Iam instante (29 de outubro de 1987). In: Enchiridion Vaticanum, v. 10,
p. 1516-1533.
430
Como exemplo, pode-se citar: CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, Leigos e parti-
cipação na Igreja. Reflexão sobre a caminhada na Igreja no Brasil (Estudos da CNBB 45). São Paulo: Pauli-
nas, 1986; id., Os leigos na Igreja e no mundo. Vinte anos depois do Vaticano II (Estudos da CNBB 47). São
Paulo: Paulinas, 1987; id., Missão e ministérios dos leigos e leigas cristãos (Estudos da CNBB 77). São Pau-
lo: Paulinas, 1998.
431
Cf. MONDIN, op. cit., p. 7s.
217

Com a finalidade de recordar a história do laicato na Igreja, mas de forma sucinta,


desde os seus primórdios, pode-se dividi-la em quatro períodos, seguindo a classificação
feita por Bruno Forte: a) o período do Novo Testamento, em que está ausente o termo
laikós, mas enunciada claramente a dupla realidade indicada por ele (cf. 1Pd 2,9-10; 1Cor
12,4-7.27-28); b) a Igreja dos mártires, na qual prevalecia o polo comunitário na época pré-
constantiniana, a Igreja projetava-se para a história, mostrando-se como fermento e como
alternativa, e os leigos tinham carismas e ministérios; c) a Igreja na condição de cristanda-
de, na qual prevalecia o polo hierárquico na era constantiniana, quando aconteceu o distan-
ciamento dos leigos da hierarquia e estes perderam a sua hegemonia e sua atividade em
detrimento da hierarquia; d) a idade moderna e contemporânea, na qual está acontecendo a
recuperação progressiva do polo comunitário, em que os leigos readquirem a importância
que lhes diz respeito.432
Já na primeira metade do século XX, acontecimentos novos provocaram o debate
sobre o laicato e a recuperação de seu lugar na Igreja, como também o reconhecimento de
seu papel no mundo. Entre esses acontecimentos, podem-se citar os seguintes: a) o movi-
mento litúrgico, que promoveu a participação ativa de todos os fiéis na vida cúltica da Igre-
ja; b) a renovação dos estudos bíblicos, que, além de despertar o gosto pela leitura e o apro-
fundamento da Palavra de Deus, levou a fundamentar a vida cristã na Revelação; c) o mo-
vimento ecumênico, que fez com que os cristãos entrassem em diálogo, exigindo uma men-
talidade mais aberta e, por isso, realçadora da catolicidade; d) o despertar do sentido comu-
nitário e de uma espiritualidade cristocêntrica; e) importância capital do apostolado dos
leigos, que chegou ao seu ponto mais alto durante o pontificado de Pio XI, com a Ação
Católica, a qual tantos benefícios trouxe para a Igreja.433 Com efeito, por meio dessa desco-
berta, aconteceu o próprio despertar do laicato para a participação ativa no apostolado hie-
rárquico, e, motivados por essa renovação, os fiéis leigos iniciaram um grande movimento
de colaboração pastoral, assumindo campos específicos do mundo.
Toda essa situação foi servindo de fermento, por meio do qual as ideias e práticas
novas foram se desenvolvendo e propiciando uma nova postura eclesial, mudando a menta-
lidade e o modo de proceder, não apenas internamente, mas também face ao mundo, que

432
FORTE, op. cit., p. 23-37.
433
Comentário sobre esses tópicos, ver em ANTÓN, El misterio de la Iglesia II, p. 510-519.
218

estava, de forma crescente, passando por um profundo e agudo momento de transformação.


A consequência foi uma grande renovação da Teologia e da espiritualidade cristã. É preciso
recordar que a Encíclica Mystici Corporis (1943) constituiu uma oficialização de todo o
processo de renovação, por parte do Magistério da Igreja. Isso propiciou um novo lugar
para os leigos na Igreja.
O Brasil também sofreu influência desse sopro renovador. De 1931 a 1950, aconte-
ceu todo um processo de renovação na Igreja no Brasil. Se é verdade que essas ideias se
desenvolveram na Igreja universal e influenciaram o Brasil, não menos o é que foram as-
sumindo características próprias, devido ao contexto próprio do país. O elenco dessas ca-
racterísticas pode ser composto pelos seguintes elementos:

a) de início, deve-se apontar o esforço de volta às fontes, particularmente as fontes


bíblicas e patrísticas, o que acarretou uma volta a Jesus Cristo, estimulando uma
vivência mais consciente do mistério pascal;
b) a renovação litúrgica, que foi modificando um certo ritualismo e passivismo,
visto as celebrações serem feitas em língua latina; o povo, por essa razão, per-
manecia em silêncio e não participativo;
c) a renovação catequética, que levou a valorizar os conteúdos esquecidos, tais
como a Igreja e a sua missão, o Corpo místico de Cristo, o mistério pascal, a his-
tória da salvação, e que também atingiu a sua pedagogia434;
d) a fundação da Ação Católica Brasileira em 1935, com estatutos aprovados por
Roma e estruturados segundo o modelo italiano, desenvolvida em quatro ramos
fundamentais (Homens de Ação Católica, Liga Feminina Católica, Juventude
Católica Brasileira e Juventude Feminina Católica), contribuiu para a catequese
dos adultos e para um assumir consciente da responsabilidade laical da tarefa
evangelizadora própria dos leigos. Mais tarde, o surgimento da Ação Católica
especializada e com os movimentos agrários, reconhecida oficialmente pelo
episcopado brasileiro em 1950, deixou uma marca profunda.435

434
Cf. SERVUS MARIAE, Para entender a Igreja no Brasil. A caminhada que culminou no Vaticano II
(1930-1968). Petrópolis: Vozes, 1994, p. 47-50.
435
Cf. ibid., p. 58-70.
219

Quanto à América Latina, as Conferências de Medellín (1968), Puebla (1979) e


Santo Domingo (1992) assumiram essa trajetória e destacaram o papel dos leigos, de acor-
do com o espírito do Vaticano II, realçando a dimensão apostólica do laicato.436
Do ponto de vista da Igreja universal, deve-se frisar a importância do Sínodo de
1987 para a temática aqui tratada, pois representa a caminhada feita pela Igreja a respeito
do laicato, reconhecendo sua secularidade e acrescentando a abordagem da situação da mu-
lher na Igreja. Esse é um tema novo, versado na Christifideles Laici 49-52 e, posteriormen-
te, na Carta Apostólica Mulieris Dignitatem (15 de agosto de 1988), sobre a dignidade e a
vocação da mulher.437
O Papa João Paulo II costumava falar e escrever frequentemente sobre os leigos na
Igreja e no mundo. Como exemplo, pode-se citar o que segue:

A Igreja há de estar presente em todos os setores da atividade humana e nada do


que é humano lhe pode permanecer alheio. E sois vós, principalmente, prezados
leigos, que a deveis tornar presente. Quando se acusasse a Igreja de estar ausente
de algum setor, ou de despreocupar-se de algum problema humano, equivaleria a
lastimar a ausência de leigos esclarecidos ou a não atuação de cristãos naquele
determinado setor da vida humana. Por isso dirijo-vos um apelo caloroso: não
deixeis a Igreja ficar ausente de nenhum ambiente da vida da vossa querida Na-
ção. Tudo deve ser permeado pelo fermento do Evangelho de Cristo e iluminado
pela sua luz. É a vossa tarefa fazê-lo.438

7.2.2 Quem é o leigo: definindo sua natureza e vocação eclesial

Ao analisar o título em questão, pode-se objetar que é um problema doutrinal, por


isso, abstrato, pois intenta definir e precisar um lugar e um papel a exercer. Contudo, se é
uma questão doutrinal, na verdade não deixa de vir carregada de aspectos práticos, pois a
atitude perante os leigos depende da resposta a ser dada a esse ponto doutrinal, que propici-

436
A propósito, Medellín dedica o Documento 10 aos leigos, intitulado “Movimento dos leigos”. Puebla
aborda o tema no ponto 3, inserido no capítulo “Agentes de comunhão e participação”. Santo Domingo trata
de “Os fiéis leigos na Igreja e no mundo” dentro do terceiro ponto (Na unidade do Espírito, com diversidade
de ministérios e carismas) da segunda parte, dedicada à Nova Evangelização.
437
Cf. PELLITERO, op. cit., p. 353s. O autor opina que a emergência da valorização da mulher na Igreja traz
a questão da distinção entre sacerdócio comum e sacerdócio ministerial.
438
JOÃO PAULO II, A vossa missão é santificar o mundo. Homilia proferida na Sé Catedral de Lisboa: En-
contro com os Leigos, no dia 13 de maio de 1982. In: L’Osservatore Romano (Edição Semanal em Portu-
guês), de 16 de maio de 1982, p. 03.
220

ará a compreensão e o tratamento diferenciados para com os leigos. Ademais, determinará


o tipo de abertura para o papel a ser exercido por eles na Igreja e no mundo e, principal-
mente, para um menor ou maior favorecimento de um passo progressivo a ser dado segun-
do o espírito do Vaticano II e dos documentos afins da América Latina. Por essas razões, a
questão teórica, à primeira vista, revela-se, a partir de uma análise mais profunda, funda-
mental e pertinente, especialmente em um país em que os leigos constituem uma inegável
força pastoral.439
Com efeito, a resposta a ser dada a essa questão, hoje, deve estar de acordo com a
nova consciência eclesial posta pelo Vaticano II, e não simplesmente camuflada com algu-
ma resposta nova, mas que esconda uma maneira de pensar e de agir antiga, ou, por outro
lado, uma mera absorção da mentalidade do mundo. A mentalidade nova deve mudar a prá-
tica eclesial cotidiana.440
Um ponto de partida adequado é pesquisar o sentido etimológico da palavra leigo. A
pesquisa revela que provém de laós, que, por sua vez, originou laikós441, da qual resulta a
palavra leigo, em português. Comumente, lê-se que a palavra laós significa um povo em
contraposição a outro povo, uma vez que diferencia o povo de Israel de outros povos, que
são os éthne (cf. 1Rs 14,23; 2Rs 16,3), ou seja, os povos pagãos.442 A palavra está ausente
nos Setenta e no Novo Testamento, que designa os cristãos como santos, eleitos e irmãos.
Ela é encontrada, no entanto, na carta de Clemente Romano aos Coríntios (40,6), em Cle-
mente de Alexandria (Stromata 5, 6, 33) e na carta de Clemente a Tiago nas Pseudoclemen-
tinas 5,5. Tertuliano fixa o termo importado de laicus para indicar o cristão que não perten-
ce ao clero.
Um estudo de Inácio De La Potterie diz que o significado verdadeiro de laós aponta
para o significado pré-cristão, visto que diz um grupo no interior de outro grupo, isto é, um
grupo dentro do Povo de Deus. E. Schillebeeckx, ao referir-se a essa questão etimológica,
afirma que o termo leigo, sob a influência grega, foi empregado em oposição aos líderes do

439
A propósito de estatísticas sobre a participação de leigos nas atividades pastorais, ver VALLE, R.; PITTA,
M. Comunidades Eclesiais Católicas. Resultados estatísticos no Brasil. Petrópolis: Vozes e CERIS, 1994,
95p.
440
ROUTHIER, G. La réception d’un concile. Paris: Du Cerf, 1993, p.101-106.
441
O termo laikós etimologicamente deriva do substantivo laós, que significa povo. O sufixo ikós confere um
significado especial, que designa uma categoria oposta a outra no meio do povo. O adjetivo não é conhecido
na literatura clássica: ele pode ser encontrado em antigos papiros e inscrições, para indicar a massa dos habi-
tantes, a população, enquanto distinta daqueles que administram (cf. FORTE, op. cit., p. 21).
221

povo. Com efeito, o significado de leigo como “um cristão sem cargo” é muito antigo.443
Todavia, De La Potterie adverte que não significa que se deva dar ênfase ao significado
negativo do termo leigo, mas a revalorização do leigo deve dar-lhe dignidade e a função
que lhe compete, e não lhe atribuir um sentido que não possui.444
A questão, desta feita, é saber qual o sentido, na atualidade, dado a essa palavra. É
preciso partir da descrição oferecida pela Lumen Gentium, que não quis apresentar uma
definição no sentido estrito do termo, a ontológica, mas descrever os elementos que com-
põem o laicato.445 Pode-se afirmar que é uma descrição tipológica, pois o vê em seu tecido
concreto de relações, com Jesus Cristo, com a Igreja e com o mundo, em seu ser (consagra-
ção) e agir (missão). Apesar de ser negativa, contém uma visão positiva e uma verdadeira
compreensão teológica do laicato, impedindo qualquer visão do leigo a partir da oposição
entre grupos dentro da Igreja, o que foi superado pelo Vaticano II.446 E essa descrição é a
seguinte:

Pelo nome de leigos aqui são compreendidos todos os cristãos, exceto os mem-
bros de ordem sacra e do estado religioso aprovado na Igreja. Estes fiéis pelo Ba-
tismo foram incorporados a Cristo, constituídos no Povo de Deus e a seu modo
feitos participantes do múnus sacerdotal, profético e régio de Cristo, pelo que
exercem sua parte na missão de todo o povo cristão na Igreja e no mundo. A ín-
dole secular caracteriza especialmente os leigos (Lumen Gentium 31).

Essa descrição destaca, em primeiro lugar, um elemento comum, válido para todos
os batizados na Igreja, uma vez que os considera como fiéis e, nessa qualidade, iguais na
Igreja; e, em segundo lugar, realça um elemento peculiar, isto é, a condição secular dos
leigos, que os distingue da hierarquia.

442
Cf. CONGAR, Os leigos na Igreja, p. 14.
443
Cf. MAGNANI, G. La cosiddetta teologia del laicato ha uno statuto teologico? In: LATOURELLE, R. (a
cura), Vaticano II: Bilancio & Prospettive venticinque anni dopo (1962-1987), v. 1. Assisi: Cittadella, 1987,
p. 494-516; SCHILLEBEECKX, E. A definição tipológica do leigo cristão conforme o Vaticano II. In:
BARAÚNA, op. cit., p. 982.
444
DE LA POTTERIE, I. L’origine et le sens primitif du mot ‘läic’. In: Nouvelle Revue Théologique, 80
(1958), p. 840-853.
445
Cf. MONGE, M. S. Eclesiología. La Iglesia, misterio de comunión y misión. Madrid: Atenas, 1994, p.
369.
446
É a opinião de MAGNANI, op. cit., p. 520. O mesmo encontra-se em RODRIGUEZ, P. La identidad teo-
lógica del laico. In: SARMIENTO et al., op. cit., p. 93.
222

O elemento comum é o mesmo para todos os batizados, visto que nasce da recepção
do mesmo sacramento, que torna todos os cristãos iguais e irmãos na comum pertença à
mesma Igreja. Nessa igualdade comum, podem-se destacar os seguintes aspectos:

a) o cristológico, que é a incorporação comum a Cristo por meio do Batismo;


b) o eclesial, que é a integração de todos os batizados no Povo de Deus, de acordo
com a Lumen Gentium 1 e 2;
c) o missionário, exercido de acordo com a competência que lhe diz respeito.

A Lumen Gentium, no texto a seguir, reconhece que o elemento comum é o prioritá-


rio, pois todo o Povo de Deus, membro da hierarquia ou do laicato, é chamado à mesma
salvação e perfeição, gozando da mesma dignidade:

Um é, pois, o Povo eleito de Deus: “um só Senhor, uma só fé, um só Batismo”


(Ef 4,5). Comum a dignidade dos membros pela regeneração em Cristo. Comum
a graça de filhos. Comum a vocação à perfeição. Uma só a salvação, uma só a es-
perança e indivisa a caridade. Não há, pois, em Cristo e na Igreja, nenhuma desi-
gualdade em vista de raça ou nação, condição social ou sexo, porque “não há ju-
deu ou grego, não há servo ou livre, não há varão ou mulher, porque todos vós
sois um em Cristo Jesus” (Gl 3,28; Cl 3,11) (Lumen Gentium 32).

Se o elemento comum é o prioritário, é interessante chamar a atenção de que as dife-


renças internas passam para um segundo plano, quando se considera o mundo como a fron-
teira da congregatio fidelium. Bruno Forte pensa dessa maneira e defende a sua posição ao
frisar que o que deve ser realçado é a diferença entre o mundo e a Igreja, e não a diferença
interna, entre os próprios membros do Povo de Deus, no qual deve haver comunhão e coo-
peração. Por esse motivo, o autor fala em recuperar a dimensão da laicidade como dimen-
são de toda a Igreja, e não apenas como característica dos leigos.447

447
Cf. FORTE, op. cit., p. 56-67. Laicidade é a “afirmação da autonomia e da consistência do mundo profano
em relação à esfera religiosa” (id., p. 56). A laicidade na Igreja “quer dizer respeito pela autonomia do mun-
dano em seu interior: os batizados são sujeitos humanos, nos quais dignidade e responsabilidade próprias
devem ser reconhecidas e promovidas” (id., p. 63). Ainda quer dizer “a responsabilidade de todos os batiza-
dos (não só dos leigos) em vista da ordem temporal: nesse sentido, a laicidade é vista ‘como dimensão da
missão da encarnação da História’ que brota da ordenação para o serviço e para a missão inserida na antropo-
logia da graça” (id., p. 64). “Por fim, a assunção crítica da laicidade na Eclesiologia comporta o reconheci-
mento por parte da Igreja do valor próprio e autônomo das realidades terrestres, o respeito e a atenção em
relação à laicidade do mundo” (id., p. 66). Segundo R. Pellitero, essa posição caracteriza o pensamento teoló-
gico de B. Forte sobre os leigos (cf. PELLITERO, op. cit., p. 353).
223

Contudo, o peculiar, que é a índole secular dos leigos, está muito bem clarificado e
distinto, conforme o texto da Lumen Gentium 31, já citado anteriormente. O Papa João Pau-
lo II, em sua Exortação Apostólica Christifideles Laici, de 30 de dezembro de 1988, tam-
bém destaca o elemento peculiar como essencial, uma vez que se constitui em um elemento
qualificador e não como um elemento entre outros:

Mas a comum dignidade batismal assume no fiel leigo uma modalidade que o
distingue, sem todavia o separar, do presbítero, do religioso e da religiosa. O
Concílio Vaticano II apontou a índole secular como sendo essa modalidade: “A
índole secular é própria e peculiar dos leigos”. [...] É verdade que todos os mem-
bros da Igreja participam da sua dimensão secular, mas de maneiras diferentes.
Nomeadamente a participação dos fiéis leigos tem uma modalidade de atuação e
de função que, segundo o Concílio, lhe é “própria e peculiar”: tal modalidade é
indicada na expressão “índole secular” (Christifideles Laici 15, grifos do autor).

Esses textos mostram o fiel leigo como um novo protagonista humano dentro da
Igreja e no mundo. A propósito, é interessante lembrar uma afirmação de Karl Rahner que,
talvez, ajude a minimizar o escândalo daquele que não aceita essa peculiaridade do leigo e
o queira na mesma situação daqueles que são apontados pela Lumen Gentium como inte-
grantes da hierarquia, por terem recebido o sacramento da Ordem. Esse conhecido teólogo
alemão diz que um leigo plenamente dedicado à missão espiritual da Igreja deixaria de ser
realmente leigo, fundamentando sua afirmação a partir da distinção entre a cooperação no
“apostolado da missão ministerial ou apostolado hierárquico” e a tarefa própria do leigo, a
actio catholicorum: esse apostolado não é apostolado de missão ministerial e profissional,
senão apostolado da caridade na situação mundana de leigo, a qual forma parte de sua con-
dição de leigo, pois todo cristão, em virtude do Batismo e da Confirmação, está autorizado
e obrigado a dar testemunho de sua fé, a interessar-se por seu próximo e pela sua salva-
ção.448
Da mesma forma pensa E. Schillebeeckx, ao caracterizar o leigo do seguinte modo:

É pela ordem terrestre da sociedade temporal que o leigo, de maneira distinta,


procura o Reino de Deus, e este elemento distintivo incorpora-se na definição ti-
pológica do leigo cristão. Dessa forma o Concílio formulou claramente a posição
cristã do leigo tanto na Igreja quanto no mundo: esclareceu a parte distintivamen-
te leiga na missão do povo de Deus na Igreja e no mundo.449

448
Cf. RAHNER, K. Escritos de Teología, v. II. Madrid: Taurus, 1963, p. 337-374 (especialmente p. 360).
449
SCHILLEBEECKX, A definição tipológica..., p. 991, grifo do autor.
224

A “índole secular”, que caracteriza o leigo, portanto, diz respeito à relação secular
da Igreja com o mundo. Sem esta, não haveria sentido em apresentar uma descrição eclesio-
lógica do leigo, mesmo que fosse tipológica, a partir de sua relação explícita com o mundo.
Por essa razão, afirma o mesmo autor supracitado: “A relação com o mundo secular só po-
de ser absorvida no conceito teológico do leigo, se a missão específica da Igreja já inclui
em si mesma uma definida relação eclesial com este mundo secular”.450
Aí temos um elemento distintivo e positivo, pois o leigo irá procurar o Reino de
Deus através da sua relação com o mundo secular. Essa distinção escapa da compreensão
negativa de leigo, que o vê como um não clérigo, ou como um cristão neutro. O leigo deve
ordenar as coisas do mundo segundo a vontade de Deus, seja como criança, jovem ou adul-
to. Todos os fiéis leigos, de acordo com sua faixa etária e condição de vida, seja vocacional
ou profissionalmente, devem ordenar o mundo para Deus. É como afirma Puebla: o leigo é
“homem de Igreja no coração do mundo e de homem do mundo no coração da Igreja” (Pu-
ebla 786).
O Sínodo de 1987, como já foi apontado, distingue teologicamente, com base na
índole secular, a diferença entre os fiéis leigos e os presbíteros. O Sínodo entende a secula-
ridade dos leigos da seguinte maneira, assumindo a Proposição 4 do Relatório Final, entre-
gue ao Santo Padre no encerramento dos trabalhos:

A índole secular do fiel leigo não deve, pois, definir-se apenas em sentido socio-
lógico, mas sobretudo em sentido teológico. A característica secular é vista à luz
do ato criador e redentor de Deus, que confiou o mundo aos homens e às mulhe-
res, para tomarem parte da obra da criação, libertarem a mesma criação da in-
fluência do pecado e santificarem a si mesmos no matrimônio ou na vida celibatá-
ria, na família, no emprego e nas várias atividades sociais.451

Enfim, em forma de síntese, com relação ao laicato na Igreja, devem-se ter em conta
três postulados básicos452:

a) a valorização da origem comunitária da Igreja comporta a consequência da igual-


dade fundamental de todos os batizados diante de Deus: a condição da Igreja como povo

450
Ibid., p. 998.
451
SYNODUS EPISCOPORUM – 1987, De vocatione et missione laicorum. Propositiones. In: Enchiridion
Vaticanum, v, 10, p. 1445.
225

reunido na “unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo” é estar sob o primado absoluto do
Senhor, pôr-se na escuta de sua Palavra;
b) a renovada consciência da índole escatológica da Igreja e do destino final comum
rumo à pátria celeste evidencia a vocação universal à santidade na comunhão eclesial: to-
dos, cada um conforme o dom e o ministério recebidos, antecipam, no próprio presente, o
futuro da promessa do Senhor nas obras de caridade, justiça e paz;
c) a tensão entre origem e destino, o ínterim que existe entre o já e o ainda-não em
sua provisoriedade e em sua complexidade, ajuda a pensar em uma Igreja una na diversida-
de, rica pela variedade de dons e serviços que não fazem concorrência à unidade fundamen-
tal, mas a exprimem e a fecundam conforme Deus proporciona a cada um o poder de fazer.
Entre o princípio e o fim, encontra-se uma Igreja da Trindade, que vive em comunhão e
que, por isso, não anula o diferente, mas o reconhece e o promove na verdade do amor.

7.2.3 Missão na Igreja e no mundo: para que o leigo?

Ao apresentar a identidade dos fiéis leigos, a Apostolicam Actuositatem proclama


que eles têm uma missão a cumprir “na Igreja e no mundo” (Apostolicam Actuositatem 2).
O mesmo encontra-se na Christifideles Laici 49. Daqui em diante, será exposta essa dúplice
missão dos fiéis leigos.

a – A missão na Igreja

O Vaticano II aponta a missão dos fiéis leigos na Igreja a partir da conhecida trilo-
gia das funções, ou dos múnus de ensinar, santificar e reger. Essa é a missão de Jesus Cris-
to, que se prolonga na missão dos pastores e da qual também participam os leigos a seu
modo. Daqui em diante será abordado cada um desses três múnus.

O múnus sacerdotal é explicitado pela Lumen Gentium da seguinte forma:

Àqueles, pois, que une intimamente à sua vida e missão, também concede parte
de seu múnus sacerdotal no exercício do culto espiritual para que Deus seja glori-

452
Extraídos de FORTE, op. cit., p. 18-20.
226

ficado e os homens salvos. Por isso, consagrados a Cristo e ungidos pelo Espírito
Santo, os leigos são admiravelmente chamados e munidos para que neles se pro-
duzam sempre mais abundantes os frutos do Espírito. Assim todas as suas obras,
preces e iniciativas apostólicas, vida conjugal e familiar, trabalho cotidiano, des-
canso do corpo e da alma, se praticados no Espírito, e mesmo os incômodos da
vida pacientemente suportados, tornam-se “hóstias espirituais, agradáveis a Deus,
por Jesus Cristo” (1Pd 2,5), hóstias que são piedosamente oferecidas ao Pai com
a oblação do Senhor na celebração da Eucaristia. Assim também os leigos, como
adoradores agindo santamente em toda parte, consagram a Deus o próprio mundo
(Lumen Gentium 34).

Esse texto apresenta, fundamentalmente, três campos como ação sacerdotal dos lei-
gos: a) a oferenda espiritual de toda a vida; b) a participação em toda a vida sacramental e
no culto, não como meros espectadores ou simples destinatários, mas como verdadeiros
protagonistas, posto que “é toda a comunidade, o Corpo de Cristo unido à sua Cabeça, que
celebra” os sacramentos, pois “a assembleia inteira é o ‘liturgo’, cada um segundo a sua
função”, visto ela ser diferenciada (Catecismo da Igreja Católica 1140-1144); c) o exercí-
cio dos diversos ministérios dentro do campo específico de atividade correspondentes aos
leigos, ou até nos casos de suplência, supondo a missão canônica.453
Ao texto antes citado ainda se pode acrescentar a dimensão do sacerdócio comum
dos fiéis, que é próprio a todo batizado, uma vez que resulta deste e é exercido da forma
como vem expresso anteriormente. P. Delhaye entende esse tipo de sacerdócio como o ser-
viço de Deus através da vida cristã, tornada um sacrifício vivo, santo e agradável a Deus ao
oferecer-se em um culto espiritual, que afeta todos os atos da vida cotidiana e da ação apos-
tólica.454

O múnus profético dos leigos é abordado pela Lumen Gentium 35:

Cristo, o grande Profeta que proclamou o Reino do Pai, quer pelo testemunho da
vida, quer pela força da palavra, continuamente exerce seu múnus profético até à
plena manifestação da glória. Ele o faz, não só através da hierarquia que ensina
em seu nome e em seu poder, mas também através dos leigos. Por essa razão,
constituiu-os testemunhas e ornou-os com o senso da fé e a graça da palavra (cf.
At 2,17-18; Ap 19,10), para que brilhe a força do Evangelho na vida cotidiana,

453
Aqui não cabe a abordagem da questão dos ministérios dos leigos. A respeito desse tema, ver, por exem-
plo, FERNANDEZ, A. Ministerios no ordenados y laicidad. In: SARMIENTO et al., op. cit., p. 387-405;
MEDINA ESTEVEZ, J. Notas sobre los miniterios de la Iglesia confiados a los fieles laicos. In: SARMIEN-
TO et al., op. cit., p. 407-413; CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, Missão e ministé-
rios dos cristãos leigos e leigas (Documentos da CNBB 62). São Paulo: Paulinas, 1999.
454
DELHAYE, P. El sacerdocio común cristiano, estado de la cuestión. In: SARMIENTO et al., op. cit., p.
176s.
227

familiar e social. Eles se apresentam como filhos da mesma promessa, quando,


fortes na fé e esperança, aproveitam o momento presente (cf. Ef 5,16; Cl 4,5) e
esperam a glória futura pela paciência (cf. Rm 8,25). Mas não escondam essa es-
perança no íntimo da alma, e sim pela renovação contínua e pela luta “contra os
dominadores do mundo das trevas, contra os espíritos da malícia” (Ef 6,12) tam-
bém a exprimam nas estruturas da vida secular (Lumen Gentium 35).

A missão profética resulta não de uma concessão dada pelo Magistério, mas do Ba-
tismo, sendo, portanto, inerente a todo batizado, e acontece por meio de três funções: o sen-
tido da fé, o testemunho de vida e a graça da palavra.
O sentido da fé455 é como um instinto que conduz a toda verdadeira doutrina, como
uma luz que defende e detecta perigos, dado germinalmente com a fé e se nutre e se fortale-
ce, como a fé, pela Revelação de Jesus Cristo. Por essa razão, o Vaticano II não temeu
afirmar a infalibilidade do ato de crer (cf. Lumen Gentium 12).
O testemunho de vida é outra contribuição que os leigos devem prestar ao profetis-
mo, sempre estimado e urgido ao longo dos séculos. Paulo VI não vacila em afirmar que o
primeiro meio de evangelização é o testemunho de vida autenticamente cristã, porque o
homem de hoje escuta com mais gosto o testemunho do que a pregação (cf. Evangelii Nun-
tiandi 41). O documento do Vaticano II, Ad Gentes, no capítulo segundo, descreve o cami-
nho aberto pelo testemunho, a partir da vida orientada sempre para Deus e segundo ele, até
a consumação escatológica. É isso que dá credibilidade para o que o leigo diz e anuncia,
pois está sendo fermento de uma nova sociedade, em meio ao mundo escravizado pelo pe-
cado e pelas estruturas injustas. Tudo isso vivido nas condições comuns da vida, de acordo
com a Lumen Gentium 35, mas de uma forma diferente, fruto da adesão a Jesus Cristo. É o
que explicita o texto seguinte, que, inclusive, identifica o leigo com o cristão:

É mister que a Igreja se faça presente nessas sociedades por seus filhos que entre
elas vivem ou a elas são enviados. Onde quer que vivam, pelo exemplo da vida e
pelo testemunho da palavra, devem todos os cristãos manifestar o novo homem
que pelo Batismo vestiram, e a virtude do Espírito Santo que os revigorou pela
Confirmação. Assim os outros, vendo as suas boas obras, glorificarão o Pai (cf.
Mt 6,16) e mais perfeitamente compreenderão o autêntico sentido da vida e o vín-
culo universal da comunhão humana (Ad Gentes 11).

A graça da palavra é a expressão que se encontra na Lumen Gentium 35, com a qual
conclui a participação dos fiéis leigos no múnus profético de Cristo. Não implica o ensinar
228

com autoridade, próprio do Magistério autêntico456, mas o falar a partir da experiência de


sua fé e, também, da qualificação científica, que inclui a obrigação de conhecer a doutrina
da Igreja Católica, até mesmo no tocante ao ensino das ciências sagradas.457 Todavia, deve-
rá ser sempre um ato profundamente eclesial e, portanto, realizado não individual e isola-
damente, mas em comunhão com a Igreja e seus pastores, pois toda a Igreja é “inteiramente
evangelizadora” (cf. Evangelii Nuntiandi 60).

O múnus régio é exposto da seguinte forma:

Também através dos fiéis leigos o Senhor quer dilatar o seu reino, reino de ver-
dade e de vida, reino de santidade e graça, reino de justiça, amor e paz. Neste rei-
no a própria criatura será libertada do jugo da corrupção para a liberdade gloriosa
dos filhos de Deus. [...] Por isso os fiéis devem reconhecer a natureza íntima de
toda criatura, seu valor e sua ordenação ao louvor de Deus. E mesmo através das
obras seculares devem ajudar-se a si mesmos para uma vida mais santa. E isso de
tal forma que o mundo seja imbuído do espírito de Cristo e na justiça, caridade e
paz atinja mais eficazmente o seu fim. No desempenho desse dever de alcance
universal compete aos leigos a principal responsabilidade (Lumen Gentium 36).

A participação no múnus real aborda a problemática da corresponsabilidade dos


fiéis leigos no interior da Igreja, pois todo o Povo de Deus é responsável pela missão confi-
ada por Jesus Cristo à Igreja. Daí a passividade e a inibição deverão ser substituídas por
atitudes de livre iniciativa, direito dos leigos derivado de seu Batismo. Convém lembrar que
a lei universal da Igreja reconhece esse direito; contudo, determina que haja o devido con-
sentimento da autoridade eclesiástica competente.458
Portanto, a hierarquia deverá acolher as iniciativas que venham dos fiéis leigos e
efetuar o juízo correspondente sobre a autenticidade e exercício ordenado das mesmas, con-
forme recorda a Lumen Gentium 12, quando aponta que essas iniciativas são fruto dos ca-
rismas distribuídos pelo Espírito Santo, dados para o bem de todo o Povo de Deus (cf. 1Cor
12,4-11).
Outra esfera da manifestação desse múnus é a participação dos fiéis leigos nas di-
versas esferas de decisão da comunidade eclesial, tais como os Conselhos pastorais, os

455
Sobre o sentido da fé, ver SANCHO, J. El ‘sensus fidei’ en los laicos. In: SARMIENTO et. al., op. cit., p.
545-551.
456
A respeito desse assunto, ver BENI, op. cit., p. 669-689.
457
É o que determina o Código de Direito Canônico, cânon 229, § 1, 2 e 3.
458
É o que determina o cânon 216, do Código de Direito Canônico.
229

Conselhos de assuntos econômicos e os Sínodos diocesanos.459 Basta a citação dessas for-


mas, embora existam outras. Finalmente, é conveniente recordar o direito de associação,
por parte dos leigos, seja pública ou privada, claramente afirmado no cânon 215 do Código
de Direito Canônico, que segue as determinações da Apostolicam Actuositatem 19, possibi-
litando a participação no apostolado da Igreja.

b – A missão no mundo

O específico da identidade do leigo é a sua atividade secular: “As profissões e ativi-


dades seculares competem propriamente aos leigos, ainda que não de modo exclusivo”
(Gaudium et Spes 43). Essa afirmação corresponde ao que se encontra em outro documento
já citado, a Lumen Gentium: “É, porém, específico dos leigos, por sua própria vocação,
procurar o Reino de Deus exercendo funções temporais e ordenando-as segundo Deus”
(Lumen Gentium 31).460
Convém prestar atenção à expressão empregada pela Gaudium et Spes e referida
acima “ainda que não de modo exclusivo”, pois significa que devem ser evitadas duas posi-
ções contrárias, mas ambas extremas e incompatíveis com uma visão positiva a respeito da
identidade e da missão do leigo no mundo: uma, a restrição dessa missão como a única do
leigo, e a outra, o esquecimento de que ela pertence de modo peculiar aos leigos. É o que
afirma o citado texto da Lumen Gentium. Por essa razão, o Papa Paulo VI explicita:

A sua primeira e imediata tarefa não é a instituição e o desenvolvimento da co-


munidade eclesial – esse é o papel específico dos Pastores – mas sim o pôr em
prática todas as possibilidades cristãs e evangélicas escondidas, mas já presentes
e operantes, nas coisas do mundo. O campo próprio da sua atividade evangeliza-
dora é o mesmo mundo vasto e complicado da política, da realidade social e da
economia, como também o da cultura, das ciências e das artes, da vida internaci-
onal, dos “mass media” e, ainda, outras realidades abertas para a evangelização,
como sejam o amor, a família, a educação das crianças e dos adolescentes, o tra-
balho profissional e o sofrimento (Evangelii Nuntiandi 70).

459
Gostaria de recordar a acusação de burocratização da Igreja. A organização é, sem dúvida, necessária, mas
deverá ser evitado o exagero, que leva a dificultar a vida dos fiéis. Deve-se saber discernir uma crítica injusta
de outra procedente. A propósito, pode-se ver o décimo segundo capítulo da seguinte obra, intitulado “Que-
bra-molas”: VALLÉS, Querida Igreja, p. 103-111. Sobre outra questão, que é a do voto consultivo, ver MA-
RIJUÁN, J. M. Vocación y misión de los laicos dentro de la relación Iglesia-Mundo. In: CHICA, F.;
PANIZZOLO, S.; WAGNER, H. (Org.). Ecclesia Tertii Millennii advenientis. Omaggio al P. Angel Antón.
Casale Monferrato: PIEMME, 1997, p. 797s.
460
Sobre o significado desse texto, ver BELDA PLANS, M. La misión específica de los laicos: estudio de los
términos en los Documentos del Concilio Vaticano II. In: SARMIENTO et. al., op. cit., p. 333s.
230

Poder-se-ia afirmar, sem medo, não ser possível aumentar a responsabilidade dos
leigos na comunidade eclesial a tal ponto de prejudicar o desempenho de seus trabalhos no
mundo. Deve haver um equilíbrio entre as tarefas seculares e eclesiais, a fim de poderem
desempenhar adequadamente as que lhes incumbem. A propósito, pode-se citar o cânon
227 do Código de Direito Canônico vigente:

É direito dos fiéis leigos que lhes seja reconhecida, nas coisas da sociedade civil, a
liberdade que compete a todo cidadão; usando dessa liberdade, cuidem que suas ati-
vidades sejam imbuídas do espírito evangélico e atendam à doutrina proposta pelo
Magistério da Igreja, precavendo-se, porém, em questões discutíveis, de não apre-
sentar a própria opinião como doutrina da Igreja.

Esse cânon proclama três princípios básicos: a) a necessária e pertinente autonomia


dos fiéis leigos, também em relação a outros setores do Povo de Deus, sem que essa signi-
fique o desrespeito ou esquecimento das exigências da fé (cf. Lumen Gentium 36); b) for-
mação adequada, buscando uma síntese pessoal entre fé e vida, que lhes permita ser um
ponto de encontro entre a Igreja e os demais setores da vida pública; c) legítimo pluralismo
em matérias opináveis, impedindo que a opção tomada por uns ou outros seja apresentada
como única e obrigatória em seus campos respectivos.
O problema da relação entre “Igreja e mundo” e “fé e vida” é urgente, visto haver
uma separação nesses níveis da atividade dos fiéis leigos nos quais deve haver uma busca
de uma nova fase, enquanto se deve superar essa dicotomia, tendo em vista uma maior uni-
dade na própria vida dos leigos e, também, sua inserção nas atividades seculares, perante as
quais são chamados a ser sal e luz do mundo (cf. Mt 5,13-16) e fermento (cf. Mt 13,33). Por
isso, Paulo VI proclamava, já em 1975, que o drama hodierno é ruptura entre o Evangelho e
a cultura (cf. Evangelii Nuntiandi 20). Igual denúncia encontra-se em Puebla, ao se afirmar
que muitos leigos não tomam “consciência plena de sua pertença à Igreja e são afetados
pela incoerência entre a fé que dizem professar e praticar e o compromisso real que assu-
mem na sociedade” (Puebla 783).461 Por esse motivo, a nova evangelização surge na Amé-

461
O texto integral é o seguinte: “Enquanto essas tensões afetam principalmente aqueles que participam em
movimentos leigos, grandes setores do laicato latino-americano não tomaram consciência plena de sua per-
tença à Igreja e são afetados pela incoerência entre a fé que dizem professar e praticar e o compromisso real
que assumem na sociedade. Divórcio entre fé e vida exacerbado pelo secularismo e por um sistema que ante-
põe o ter mais ao ser mais” (Puebla 783).
231

rica Latina “como uma resposta aos problemas apresentados pela realidade de um Conti-
nente no qual se dá um divórcio entre fé e vida” (Santo Domingo 24).
No momento atual, enquanto é claro o princípio pelo qual corresponde aos leigos o
dever peculiar de ordenar o mundo segundo o Reino de Deus462, devem ser levadas em con-
ta as dificuldades que eles enfrentam no exercício dessa tarefa. Por essa razão, é importante
não apenas respeitar a liberdade inerente e necessária ao exercício dessa missão, mas tam-
bém impedir que ela seja cerceada em nome de qualquer motivo. É preciso, portanto, apoiar
os leigos no exercício dessa tarefa, favorecendo-os e ajudando-os de todas as maneiras. As
normas da Igreja devem contribuir e não impedir ou delimitar a transformação do mundo. É
evidente que o exercício dessa missão não significa que a transformação do mundo não
deva corresponder ao desígnio de Deus, competindo ao Magistério a tarefa de zelar para
que isso aconteça.
Para tal, faz-se necessária uma atitude de diálogo entre o Magistério e os fiéis lei-
gos, como também entre eles e as instâncias competentes da sociedade em geral, nas quais
eles estão inseridos, seja por relações de trabalho ou outras, de qualquer tipo. Só assim o
fiel leigo poderá exercer a sua tarefa com competência na sociedade civil e, ao mesmo tem-
po, fiel à sua identidade da fé, ser uma presença transformadora do Evangelho de Jesus
Cristo, contribuindo para a implantação do Reino de Deus no mundo, segundo a vontade e
o desígnio de Deus.
Daí convém recordar o que escrevia Paulo VI sobre a necessidade do diálogo entre a
Igreja e o mundo na Encíclica Ecclesiam Suam, de 6 de agosto de 1964:

Há uma terceira atitude, que a Igreja Católica deve tomar neste momento da his-
tória do mundo. Referimo-nos ao estudo sobre os contatos que ela há de manter
com a humanidade. [...] A Igreja deve entrar em diálogo com o mundo em que
vive. A Igreja faz-se palavra, faz-se mensagem, faz-se colóquio (Ecclesiam Suam
III).

Portanto, é preciso encontrar pontos de contato entre o Evangelho e a cultura vigen-


te hoje, sem trair a verdade evangélica, seja abreviando-o ou esquecendo as partes mais
exigentes e questionadoras.

462
O Código de Direito Canônico, no cânon 225, § 2, reconhece e afirma essa nota dos leigos.
232

7.2.4 O protagonismo dos leigos

A expressão “protagonismo dos leigos” é a maneira pela qual a América Latina, a


partir do documento de Santo Domingo, está expressando a citada doutrina do último Con-
cílio. Significa o reconhecimento efetivo da vocação e do lugar dos leigos na Igreja e no
mundo. Significa que os leigos têm reconhecido, por parte da hierarquia da Igreja, o seu
espaço, que deve ser ocupado por eles. Não é uma concessão da Igreja, como escreve Dom
Aloísio Lorscheider, mas “um direito-dever do cristão leigo”.463
Santo Domingo, quando usa tal expressão, quer indicar a urgência do momento pre-
sente na América Latina e no Caribe:

Que todos os leigos sejam protagonistas da nova evangelização, da promoção


humana e da cultura cristã. É necessária a constante promoção do laicato, livre de
todo clericalismo e sem redução ao intraeclesial. Que os batizados não evangeli-
zados sejam os principais destinatários da nova evangelização. Esta só será efeti-
vamente levada a cabo, se os leigos, conscientes de seu Batismo, responderem ao
chamado de Cristo a que se convertam em protagonistas da nova evangelização
(Santo Domingo 97).

O texto acima apresenta alguns aspectos que merecem destaque e consideração:

a) os leigos são protagonistas da nova evangelização, da promoção humana e da


cultura cristã;
b) é necessária a promoção do laicato, livre de todo clericalismo e sem redução ao
intraeclesial;
c) os batizados não evangelizados são os principais destinatários do protagonismo
dos leigos;
d) o protagonismo dos leigos é uma resposta ao chamado de Cristo, que manifesta,
por sua vez, a consciência de seu Batismo.

Ser protagonista significa, portanto, ocupar o primeiro lugar em um acontecimento,


isto é, ser o agente principal. Quer dizer que o leigo tem o papel principal na nova evange-
lização. E é ele quem ocupa esse lugar, porque o mundo de hoje, primando por uma nova

463
LORSCHEIDER, A. Uma possível conferência nacional de cristãos leigos. In: Revista Eclesiástica Brasi-
leira, v. 55, fasc. 219 (setembro/1995), p. 520.
233

cultura, a científico-técnica, exige uma presença qualificada. Com efeito, o leigo, caracteri-
zado pela índole secular, pode e deverá ser essa presença evangélica no mundo 464, o que
está de acordo com o texto claro e incisivo da Lumen Gentium:

É, porém, específico dos leigos, por sua própria vocação, procurar o Reino de
Deus, exercendo funções temporais e ordenando-as segundo Deus. Vivem no sé-
culo, i.é., em todos e em cada um dos ofícios e trabalhos do mundo. Vivem nas
condições ordinárias de vida familiar e social, pelas quais sua existência é como
que tecida. Lá são chamados por Deus, para que, exercendo seu próprio ofício,
guiados pelo espírito evangélico, a modo de fermento, de dentro, contribuam para
a santificação do mundo. E assim manifestam Cristo aos outros, especialmente
pelo testemunho de sua vida resplandecente em fé, esperança e caridade. A eles,
portanto, cabe, de maneira especial, iluminar e ordenar de tal modo todas as coi-
sas temporais, às quais estão intimamente unidos, que elas continuamente se fa-
çam e cresçam segundo Cristo, para louvor do Criador e Redentor (Lumen Gen-
tium 31).

O Projeto “Rumo ao Novo Milênio”, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil,


adota essa expressão. Lê-se, no ponto intitulado “Sujeitos e objetivos da nova evangeliza-
ção”, o seguinte:

Na Igreja Particular como comunhão de vocações, carismas e ministérios, há tare-


fas e responsabilidades específicas. Ao presbítero, presidido pelo bispo, cabe a
fundamental tarefa de unir e motivar todos os membros da comunidade diocesana
para assumirem, com generosidade e alegria, este imenso “mutirão evangeliza-
dor”. Entretanto, na tarefa de acolher o Evangelho como experiência de vida, de
expressá-lo no cotidiano, o protagonismo é do cristão leigo. Este protagonismo
requer mudanças no estilo do governo e no exercício da autoridade, por parte da
hierarquia, para permitir e encorajar a comunhão, participação e co-
responsabilidade dos leigos na tomada de decisões pastorais, valorizando o voto
dos Conselhos pastorais e a presença ativa dos fiéis em Sínodos e Concílios parti-
culares, conforme está previsto por documentos oficiais da Igreja.465

Esse texto também sugere algumas observações que podem ser muito sugestivas
para o protagonismo do leigo na Igreja no Brasil nesta hora histórica, ou seja, no início de
um novo milênio, que deve ser marcado com renovado elã evangelizador:
a) a diferença das tarefas dos presbíteros e dos leigos;
b) todos estão comprometidos com o “mutirão evangelizador”;
c) o protagonismo é dos fiéis leigos;

464
Cf. ibid., p. 519s.
465
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, Rumo ao novo milênio. Projeto de Evangeli-
zação da Igreja no Brasil em preparação ao Grande Jubileu do ano 2000. São Paulo: Paulinas, 1996, n. 88, p.
34.
234

d) o protagonismo é expresso na vida cotidiana;


e) o que requer mudanças no estilo da Igreja: no governo e no exercício da autori-
dade;
f) permitir e encorajar a comunhão, participação e corresponsabilidade dos fiéis
leigos na tomada de decisões;
g) voto nos Conselhos pastorais;
h) presença ativa nos Concílios e Sínodos particulares;
i) não é uma concessão, mas direito, inclusive assegurado pelos documentos ofici-
ais da Igreja.

Esses últimos textos citados, embora longos, levantam questões muito interessantes
e pertinentes, que ajudam o fiel leigo a exercer a sua tarefa evangelizadora no mundo como
verdadeiro protagonista, e não como mero executor de algo determinado por outro ou por
concessão dada por quem possui a primazia da autoridade na Igreja.
Uma questão a refletir é como, efetivamente, valorizar o fiel leigo na Igreja, sem
cair na tentação de clericalizá-lo imediatamente ou de fazê-lo assumir a função do presbíte-
ro, permitindo ou exigindo que ocupe o lugar e o papel específico que diz respeito ao pres-
bítero na comunidade eclesial. Esses perigos são reais e denunciados em muitos documen-
tos do Magistério. É o que se encontra em Santo Domingo, no texto anteriormente citado
(cf. Santo Domingo 97). A questão sugere que o leigo assuma, em primeiro lugar, aquilo
que lhe é específico: a sua índole secular. Assim, ele estará exercendo aquela configuração
que, realmente, lhe é própria, e servindo de fermento no mundo, transformando o tecido
social de acordo com o Reino de Deus e também marcando presença efetiva como cristão,
convicto e consciente de sua fé e identidade cristãs. Nesse sentido, deve-se entender o texto
que segue:

A persistência de certa mentalidade clerical nos numerosos agentes de pastoral, clé-


rigos e inclusive leigos (cf. Puebla 784), a dedicação preferencial de muitos leigos a
tarefas intraeclesiais e uma deficiente formação privam-nos de dar respostas eficazes
aos atuais desafios da sociedade (Santo Domingo 96).

A missão específica delegada a todos os fiéis leigos se faz viva quando eles se en-
carnam de forma plural, de acordo com a variedade de meios possíveis de exercê-la. Desde
o terreno sociopolítico, passando pela evangelização da cultura e atingindo a variedade de
235

ministérios confiados a eles, o campo da atuação dos leigos se manifesta imenso, pois a
sociedade hodierna é plural, por isso, plural será a forma concreta de ser presença transfor-
madora do Reino de Deus no meio do mundo, como verdadeiro protagonista da nova evan-
gelização.466
Para tal, é necessário investir na formação dos leigos, conforme recomenda o docu-
mento do CELAM,467 o que contribuirá, segundo M. S. Monge, para despertar o sentido de
responsabilidade, superando o clericalismo; o sentido comunitário, superando o individua-
lismo; o sentido da solidariedade, superando o personalismo; o sentido missionário, supe-
rando o salvacionismo.468 Esse foi o apelo de João Paulo II à IV Conferência do Episcopa-
do Latino-Americano, que respondeu, ao assumir os leigos como a linha pastoral prioritá-
ria:

A importância da presença dos leigos na tarefa da nova evangelização que conduz


à promoção humana e chega a informar todo o âmbito da cultura com a força do
Ressuscitado nos permite afirmar que uma linha prioritária de nossa pastoral, fru-
to desta IV Conferência, há de ser a de uma Igreja na qual os fiéis cristãos leigos
sejam protagonistas. Um laicato, bem estruturado com uma formação permanen-
te, maduro e comprometido, é o sinal de Igrejas Particulares que levem muito a
sério o compromisso da nova evangelização (Santo Domingo 103).

Por fim, o protagonismo dos fiéis leigos leva-os a desenvolver uma espiritualidade
própria, que pode ser chamada de “espiritualidade do cotidiano”469. Essa significa o assumir
da vida toda como fonte de união com Deus e caminho de desenvolvimento da vocação à
santidade (cf. Mt 5,48), fruto do Batismo, buscando realizá-la e experienciá-la como cami-
nho que conduz para Deus Pai, em profunda atitude de louvor pela criação e razão de ale-
gria.

7.3 O ministério petrino

466
BONNET, P. A. Il ‘christifidelis’ recuperato protagonista umano della Chiesa. In: LATOURELLE, op.
cit., p. 477.
467
CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. DEPARTAMENTO DE LEIGOS, Manual de for-
mação dos leigos. Petrópolis: Vozes, 1995.
468
MONGE, op. cit., p. 188-190.
469
Expressão usada por GARCIA-MATEO, R. Teologia spirituale. Il laicato. Roma: Università Gregoriana,
1995, p. 83.
236

O bispo de Roma470 tem uma situação particular na sucessão apostólica, pois ele é o
único que sucede individualmente a um apóstolo, que é Pedro, enquanto a sucessão dos
outros apóstolos, por parte dos demais bispos, se dá não individualmente, mas em conjunto,
como colégio. E é por meio do apóstolo Pedro que a Igreja permanece na forma de vida e
de regime que recebeu de Jesus Cristo.

7.3.1 O papel de Pedro segundo o Novo Testamento

Os textos do Novo Testamento afirmam os poderes de Pedro: Mt 28,18-20; Jo


20,21-23; Lc 22,19; 1Cor 11,24. Esses textos suscitaram muitos estudos, devido à diver-
gência que há neles, pois a redação aconteceu em épocas e em circunstâncias diferentes.
Para alguém ser apóstolo, era preciso o encontro com o Ressuscitado, o encargo pessoal
dele recebido e a convivência com o Senhor durante a sua vida terrena.

a. 1Cor 15,3-5: esse texto é, talvez, o primeiro cronologicamente, datando da Páscoa


de 55 ou 57. O que interessa é a frase “apareceu a Céfas e depois aos doze”. Paulo escreve
aquilo que lhe foi transmitido e chama Pedro de Céfas (exceto Gl 1,8). Como o testemunhar
a ressurreição é um dos elementos constitutivos do ser apóstolo, esse fato demonstra uma
primazia de Pedro no testemunho da ressurreição. É uma primazia qualitativa: primado de
Pedro no apostolado ou na qualidade de apóstolo. Desse modo, a fé de Pedro é criadora da
comunidade messiânica de salvação, já que a comunidade é criada a partir do testemunho
da ressurreição. Aparecendo, em primeiro lugar, nesse episódio e em outros, mostra que faz
parte da tradição da comunidade o primado de Pedro, não contestado pelos outros apóstolos
e aceito pela Igreja.

b. Também primado na eleição e no envio. Os sinóticos apresentam Pedro como o


primeiro chamado e o primeiro enviado: Mc 1,16-20; Mt 4,18ss; 10,2; Lc 5,1-11. Todas as
listas apostólicas começam por Pedro e terminam com Judas, o traidor, alternando a ordem
intermediária (cf. Mt 10,2-4; Mc 3,16-19; Lc 6,14-16; At 1,13).

470
Sobre a estrutura hierárquica, ver AUER, op. cit., p. 202-336; BENI, op. cit., p. 429-602; MONDIN, op.
cit., p. 320-353.
237

A mudança de nome também está ligada à vocação de Pedro: Mt 3,16; Jo 1,41-42.


Isso indica uma nova tarefa que está sendo dada a ele. Na história da salvação aconteceu
muitas vezes, sempre indicando algo sério diante de uma incumbência também séria e deci-
siva.

c. Mt 16,13-19: é um texto decisivo, embora seja muito discutido. A sua autentici-


dade literária é aceita também por parte de exegetas não católicos. A maior dificuldade
quanto a sua autenticidade refere-se à palavra minha Igreja, pois há dúvida quanto à possi-
bilidade de Cristo tê-la proferido. No entanto, a realidade significada está presente na pre-
gação de Jesus. Mateus põe esse texto dentro de sua catequese, em que faz Pedro confessar
a messianidade de Jesus.
As chaves significam a autoridade de Pedro: ele representa na terra o Senhor, o do-
no da casa. Ele é o plenipotenciário de Cristo. Ele tem o máximo poder de ordem e o de
ensino. Daí o poder doutrinal, que é interno e espiritual, e o poder disciplinar, que é externo
e jurídico.
O ligar e o desligar significam que ele recebe uma autoridade diferente daquela dos
outros apóstolos. Ele pode decidir o que é lícito ou proibido, o que é justo. Essa imagem
adquire um tríplice sentido: a) aplicar excomunhão e dela libertar; b) impor uma obrigação
e dela dispensar; c) declarar algo como lícito ou ilícito.
As portas do inferno não prevalecerão contra a Igreja: são as forças da perecibilida-
de que a ameaçam e ameaçarão. Pedro é o fundamento granítico – de pedra – unido com o
fundamento granítico por excelência, Jesus Cristo.
Assim, Pedro é o início da Igreja, que será edificada na fé professada, em primeiro
lugar, por ele. Na função apostólica de fundamento, ele é qualificado pela sua fé como a
primeira pedra rochosa. Exerce um ministério tal que abre ou fecha o acesso ao Reino de
Deus. Tem uma autoridade de modo proeminente entre os demais apóstolos.

d. Lc 22,31-32: o valor eclesiológico desse texto está no contexto imediato, que


concerne ao destino dos apóstolos e ao futuro da obra messiânica. Ao rezar pela fé dos
apóstolos, Jesus quer proteger a Igreja (cf. Mt 16,17-19).
238

e. Jo 21,15ss: João testemunha que Cristo cumpriu suas promessas ao transmitir os


poderes a Pedro após a sua ressurreição. Aí aparece a imagem do pastor e do apascentar,
expressão da plenitude dos poderes conferidos a Pedro a fim de que ele pudesse dirigir o
rebanho. Isso supõe a transmissão da vida, pela pregação da palavra e dos sinais sacramen-
tais e pela proteção desta contra ameaças internas e externas.

7.3.2 O reconhecimento do papel primacial do Papa como sucessor do apóstolo Pedro e


bispo de Roma segundo alguns escritos patrísticos

A partir do princípio da sucessão apostólica, o bispo de Roma é o sucessor do após-


tolo Pedro. Ele goza de uma situação particular na sucessão apostólica, pois é o único dos
bispos a suceder pessoalmente a um apóstolo (Pedro), enquanto os demais sucedem colegi-
almente.
O bispo de Roma é o sucessor do apóstolo Pedro porque este esteve em Roma e ali
sofreu o martírio. Há testemunhos da estada dele em Roma: At 12,17; Gl 2,11.14; At 10;
1Pd 5,13 (Babilônia indica Roma); ainda Inácio de Antioquia e Rm 4,3; também o historia-
dor Eusébio e Ireneu; as escavações de São Sebastião, na via Ápia, e da basílica de São
Pedro. O apóstolo Pedro foi para Roma por motivos apostólicos, isto é, para a expansão do
cristianismo, obedecendo à iluminação do Espírito Santo. Roma era a Capital do Império
Romano e daí sua importância para a época.
A palavra papa (equivale a pai) foi, originalmente, empregada para superiores de
conventos, sacerdotes, bispos e, mais tarde, principalmente para patriarcas. Desde meados
do século IV, era empregada para o bispo de Roma. No Ocidente, o termo passa a ser reser-
vado para o bispo de Roma, a partir da metade do século VI. Gregório VII é quem fixa juri-
dicamente essa expressão. A questão está em torno dos títulos que passam a ser emprega-
dos, tanto no Ocidente quanto no Oriente, onde os patriarcados são associações de Igrejas
ou províncias eclesiásticas com um metropolita à frente.
Em todos ocupava o bispo de Roma o lugar proeminente. E pela comunhão com ele
estavam todos os bispos ligados entre si em unidade. Diversos testemunhos do século I
atestam a consciência eclesiástica do primado do Papa.
239

a) O primeiro século

O primeiro testemunho claro é de Clemente de Roma (96), numa carta que escreve à
comunidade de Corinto. Havia uma revolta nessa comunidade contra os superiores eclesiás-
ticos e Clemente procura apaziguar. Isso ele faz por própria iniciativa e se desculpa por não
se ter preocupado antes com o caso. Nele fala toda a comunidade de Roma. Pede obediên-
cia, por isso não é uma simples exortação. Essa carta gozou de prestígio durante todo o sé-
culo II.

Por causa das desgraças e das calamidades que se precipitaram repentina e sucessivamente
sobre nós, talvez estejamos a ocupar-nos com atraso dos acontecimentos que se deram entre
vós. [...] É, pois, acertado que nos orientemos por tais e tão grandes exemplos, curvemos
nossa cerviz e ocupemos o lugar da obediência, para acalmarmos a vã sedição e alcançar-
mos com lisura a meta proposta da verdade.471

Na mesma carta, nos números 40, 42 e 44, Clemente Romano afirma a sucessão
apostólica. A lista da sucessão composta por Eusébio de Cesareia também é um argumento
inquestionável a favor do primado e da sucessão.

b) O segundo século

A análise de alguns escritos patrísticos revela a consciência da Igreja de Roma de


ser a Igreja de Pedro e que ele continua a viver na sede romana, por meio de seus sucesso-
res, e, mediante eles, ela exerce a sua função de mestra, guia e garantia da unidade e da
pureza da fé, recebida de Jesus Cristo, através dos apóstolos. Embora os documentos que
comprovem tal consciência não sejam tão numerosos, eles, no entanto, revelam claramente
essa fé implícita e verdadeira compreensão sobre o papel do primado de Pedro e de seus
sucessores.
Se é verdade que esses textos não apresentam uma elaboração teológica clara e arti-
culada como a que temos hoje, o que só foi possível como fruto de séculos de reflexão, não
menos verdade é que hoje se deve voltar a eles, como fontes antigas de expressão das re-
gras de fé. Só assim se poderá julgar se os desenvolvimentos posteriores correspondem ou

471
CARTA DE S. CLEMENTE ROMANO AOS CORÍNTIOS 1 e 63 (Introdução, tradução do original grego
e notas por Dom Paulo Evaristo Arns). Petrópolis: Vozes, 1973, p. 19 e 64.
240

não a eles, conforme o expressa a Constituição Dogmática Dei Filius, do Concílio Vaticano
I (1870), citando a frase de São Vicente de Lérins, na qual vem afirmada a necessidade de
um desenvolvimento segundo a mesma ordem da fé, sentido e pensamento, em cada gera-
ção e em cada tempo (DS 3020).472 A seguir, abordam-se alguns autores do período patrís-
tico, que deixaram escritos a respeito da Igreja de Roma e de Pedro e seus sucessores.

1 – Inácio de Antioquia

Na Saudação da carta aos Romanos, escrita por volta do ano 107, Inácio, Bispo de
Antioquia, na Síria, escreve:

Inácio, também chamado Teóforo, à Igreja que recebeu misericórdia pela grande-
za do Pai altíssimo e de Jesus Cristo seu Filho único, Igreja amada e iluminada
pela vontade daquele que escolheu todos os seres, isto é, segundo a fé e a carida-
de de Jesus Cristo nosso Deus, ela que também preside na região da terra dos
romanos, digna de Deus, digna de honra, digna de ser chamada bem-aventurada,
digna de louvor, digna de êxito, digna de pureza, e que preside na caridade na
observância da lei de Cristo e que leva o nome do Pai.473

Esse texto sugere as seguintes observações:

 o texto é um elogio denso e cheio de conteúdo à Igreja de Roma, presente nas ex-
pressões enfáticas, que ele não usa para nenhuma outra Igreja a quem endereça cartas. Com
isso, embora implicitamente, reconhece estar diante de uma Igreja que goza de proeminên-
cia perante todas as outras. Não há um significado jurídico nas expressões, mas este não era
o seu objetivo. No conjunto, todavia, indica um papel particular do primado que a Igreja de
Roma exerce em relação às outras Igrejas.474
 As expressões “preside na região” e “preside na caridade” mostram que não diz
sobre quem ou sobre que coisa preside, pois em ambas o verbo presidir é intransitivo. A
Igreja de Roma simplesmente preside e desenvolve essa presidência em uma região bem

472
“Crescat igitur et multum vehementerque proficiat, tam singulorum quam omnium, tam unius hominis
quam totius Ecclesiae, aetatum ac saeculorum gradibus, intelligentia, scientia, sapientia: sed in suo dumtaxat
genere, in eodem scilicet dogmate, eodem sensu eademque sententia” (DS 3020).
473
INÁCIO DE ANTIOQUIA, Carta aos Romanos, 1,1-3. In: CARTAS DE SANTO INÁCIO DE ANTIO-
QUIA. Comunidades em formação, op. cit., p. 63, grifos nossos.
474
A fonte básica deste texto é FALBO, G. Il primato della Chiesa di Roma alla luce dei primi quattro secoli.
Roma: Coletti, 1989.
241

determinada, que é o território dos romanos. A natureza da presidência vem explicitada na


segunda expressão: “preside na caridade”. A. Harnack resolve o problema, dizendo que ela
se distingue das demais pela observância da caridade.475 É a supremacia de uma virtude: a
Igreja de Roma foi sempre caridosa para com as comunidades necessitadas.
Mas tal interpretação é simplista, porque não leva em conta a palavra agápe. Segun-
do o estilo de Inácio, agápe é usado no lugar de ekklesía, conforme Aos Tralianos 13,1 e
Romanos 9,3; Filipenses 11,2 e Aos Esmirnenses 12,1. O verbo “presidir” é usado no con-
texto eclesial, contrariando o costume habitual de sempre acompanhá-lo com nome de luga-
res ou pessoas, e não nomes abstratos ou virtudes.
Santo Inácio usa, pois, a palavra presidir de forma original. É próprio dele ir à subs-
tância teológica e sobrenatural da realidade eclesial. Por essa razão, ele vê a Igreja como
amor, animada e guiada pelo Espírito Santo, que é amor e vínculo de koinonía, além de unir
todos os membros da Igreja. Ou a vida mesma de Deus, segundo 1Jo 4,8; 4,16; Jo 13,35.
Por isso, pode-se dizer que o amor é a regra das relações dos cristãos entre si e torna-se
sinal de reconhecimento da verdadeira Igreja de Cristo. Assim, agápe é sinônimo de Igreja
universal. Dessarte, a Igreja de Roma tem a prerrogativa de guia na fé e no amor.
Essa opinião não é unânime, mas condividida por grande número de autores. Inde-
pendentemente das interpretações, o texto deixa clara a proeminência da Igreja de Roma,
que não pode ser de natureza apenas exemplar, mas revela uma qualidade estável e de direi-
to: ela tem a prerrogativa de guiar a fé e o amor. P. Th. Camelot O.P. conclui que presidir
“na” região e não “sobre” a região indica a região onde a Igreja Romana está estabelecida e
preside, além de afirmar uma certa alusão à proeminência do Bispo de Roma sobre os de-
mais.476

 Na medida em que a leitura avança, o texto mostra Roma como mestra. Compara-
da com as suas outras cartas, na dirigida Aos Romanos, Inácio coloca-se na condição de
discípulo, entendendo que se deve conformar ao ensinamento de Roma. Nas outras cartas,
ele instrui, exorta e recomenda. Inclusive, em Aos Romanos 9,1, recomenda a Igreja da Sí-

475
HARNACK, A. “Das Zeugnis des Ignatius über das Ansehen der römischen Gemeinde”. Sitzungsberichte
dell’Accademia di Berlino, 1896, p. 111-131 apud FALBO, op. cit., p. 119, nota 4.
476
IGNACE D’ANTIOCHIE. Lettres (Texte grec, introduction, traduction et notes de P. Th. Camelot O.P.
Sources Chrétiennes 10). Paris: Du Cerf, 1969, p. 106, nota 1.
242

ria à de Roma, a qual, no período em que fica sem bispo, é confiada aos cuidados de Cristo
e da caridade da Igreja de Roma.
Em Aos Romanos 3,1, reconhece o papel magisterial da Igreja de Roma sobre as
demais: “Jamais tivestes inveja de alguém, instruístes sim a outrem. É meu desejo que
guardem sua força as lições que inculcais a vossos discípulos”. Certamente, Inácio sublinha
as intervenções concretas da Igreja de Roma. A alusão à “inveja”, no início do capítulo
terceiro, faz pensar na carta de Clemente Aos Coríntios.
É interessante notar que só na carta Aos Romanos não se encontra nenhuma exorta-
ção à concórdia e à unidade. Com isso, talvez Inácio queira confirmar o que compete à
Igreja de Roma: a vigilância sobre a unidade e a concordância da Igreja. Ele não quer dar
ordens à Igreja de Roma, mas, ao contrário, entrar em sintonia com a Igreja de Pedro e Pau-
lo, conforme Aos Romanos 4,3.

 Inácio não cita o bispo de Roma, mas a Igreja de Roma, como sinal de que o que
conta é o papel primacial dela, mesmo que o bispo do momento seja possuidor de uma per-
sonalidade insignificante ou vigorosa.477

2 – Ireneu de Lião

O testemunho de Ireneu sobre a Igreja de Roma está enquadrado dentro de sua fina-
lidade geral, isto é, a de combater as heresias gnósticas, que pretendiam ser a verdade au-
têntica. A arma de Ireneu, como fará Tertuliano mais tarde, é a “tradição inalterada”: o de-
pósito da fé, recebido de Jesus Cristo e dos apóstolos, que fundaram as Igrejas, e transmiti-
do até nós, por uma sucessão ininterrupta de pessoas, os bispos das Igrejas, que o recebe-
ram de seus antecessores e que, por sua vez, o entregaram íntegro aos seus sucessores. Esse
é o motivo pelo qual Ireneu dá importância fundamental às “listas episcopais” das Igrejas
fundadas pelos apóstolos. Ele se declara capaz de fornecer o elenco ininterrupto dos bispos
de cada Igreja apostólica. Como esse empreendimento seria muito demorado, ele se restrin-
ge à Igreja de Roma. Ireneu entende que ela de Roma guarda fielmente a tradição apostóli-
ca.

477
FALBO, op. cit., p. 118-124.
243

É nesse contexto que se situa a sua famosa frase, atinente ao primado romano. To-
davia, ela é obscura em sua formulação latina; por isso, objeto das mais variadas hipóteses
da parte dos estudiosos quanto à sua interpretação. O texto é o seguinte:

Com efeito, deve necessariamente estar de acordo com ela, por causa da sua ori-
gem mais excelente, toda a Igreja, isto é, os fiéis de todos os lugares, porque nela
sempre foi conservada, de maneira especial, a tradição que deriva dos apóstolos
(Ad hanc enim ecclesiam propter potentiorem principalitatem necesse est omnem
convenire ecclesiam, hoc est omnes qui sunt undique fideles, in qua semper ab
his sunt undique, conservata est ea quae est ab apostolis traditio).478

Os problemas do texto são estes:

 não se tem certeza se a expressão “ad hanc ecclesiam” se refere à Igreja de Roma
ou à Igreja universal, da qual se separaram os hereges, que são os que não seguem a tradi-
ção transmitida pelos apóstolos. Apesar de a construção gramatical permitir a dúvida, o
contexto leva a concluir que a frase é um parêntese e se refere à Igreja de Roma. É por isso
que, logo a seguir, lembra a sucessão, a partir de Pedro e Paulo até Eleutério. Como se vê, o
contexto é o da Igreja de Roma, e não o da universal. Assim, Ireneu quer demonstrar a
permanência da tradição apostólica em cada Igreja Local, da qual a Igreja de Roma, funda-
da por Pedro e Paulo, é exemplo. B. Botte diz que ad hanc refere-se a in qua, o que não
deixa dúvidas de que o contexto indica a Igreja de Roma. Isso confirma a interpretação tra-
dicional, que sustenta referir-se a Roma479;
 principalitas é um termo muito genérico e pode traduzir muitas palavras gregas,
todas muito precisas. Quanto à sua interpretação, duas opiniões são possíveis. A primeira
diz que os termos archê e archaiótes indicam origem, no sentido de que a Igreja de Roma
pode reivindicar a origem superior em relação a todas as outras Igrejas, porque foi fundada
pelos apóstolos Pedro e Paulo, aduzindo ao termo proteía, que significa prioridade: assim,
a Igreja de Roma pode ser considerada a prior omnium pelo fato de estar instituída na pes-
soa do apóstolo Pedro pelo próprio Salvador. A segunda opinião prefere as palavras “auto-
ridade” e “direção”, que é exercida pela Igreja de Roma, e com a qual todas as Igrejas de-

478
IRENEU DE LIÃO, Livros I, II, III, IV, V (Introdução, notas e comentários H. Ribeiro; organização das
notas bíblicas R. Frangiotti; tradução L. Costa. Coleção Patrística 4). São Paulo: Paulus, 1995. Texto Latino:
Adversus Haereses III, 3,2.
479
BOTTE, B. A propos de l’Adversus Haereses 3,3,2 de Saint Irénée. In: Irénikon 30 (1957), p. 156-163
apud FALBO, op. cit., p. 131, nota 39.
244

vem estar “de acordo”. Mas o “estar de acordo” é uma “necessidade de fato” (necessitas
facti), e não “necessidade jurídica” (necessitas juris). Aqui há nova discordância: a necessi-
dade de toda a Igreja concordar com a de Roma é uma conclusão lógica, no sentido de que
cada Igreja, na medida em que mantiver pura a tradição apostólica, concordará ipso facto
com a Igreja de Roma. De toda sorte, independentemente das traduções possíveis, a moti-
vação é a mesma para reconhecer a proeminência da Igreja de Roma: ela foi fundada pelos
apóstolos Pedro e Paulo e, mediante a sucessão ininterrupta dos bispos, conservou fielmen-
te o depósito da fé transmitido pelos apóstolos480;
 a repetição de qui sunt undique parece ser uma confusão na cópia. Por essa razão,
trata-se da Igreja de Roma “na qual, por meio de seu bispo, foi conservada a tradição apos-
tólica”.
Portanto, a frase de Ireneu, pelo que vem antes e depois, e interpretada à luz de todo
o pensamento do autor, significa a Igreja de Roma. Mais adiante, Ireneu fala de Clemente,
terceiro sucessor de Pedro, que considera natural o dever da Igreja de Roma de intervir na
de Corinto, para “reuni-los na paz, reavivar-lhes a fé, e reconfirmar a tradição que há pouco
tempo tinha recebido dos apóstolos”.481 É o reconhecimento do papel da Igreja de Roma de
ser garantia da disciplina eclesiástica (ad pacem eos congregans), da unidade e da pureza
da fé (reparans fidem) e da conservação da autêntica tradição apostólica (adnuntians quam
ab apostolis acceperat traditionem).
Ireneu foi a Roma, em 177, para recorrer à autoridade doutrinal e à mediação eclesi-
al de Eleutério, 12º sucessor de Pedro. Eusébio narra as discussões na Gália por causa do
montanismo e refere-se ao Papa com as expressões “negociador em favor da paz das Igre-
jas” e “zelador do testamento de Cristo”.482 Ele mesmo vê a autoridade da Igreja de Roma,
não no sentido jurídico, que está no esquema hodierno, mas no sentido de um ponto de refe-
rência eclesial, que se coloca na categoria da comunhão, concernente ao essencial, isto é, a
fé e a praxe eclesial. Ele dá um passo adiante ao de Inácio de Antioquia, pois especifica o

480
Cf. Sources Chrétiennes 34 (Paris, 1956), p. 414-424. Livro II da Adversus Haereses, em que principalitas
significa “pela sua mais forte autoridade de fundação”.
481
O texto latino é o seguinte: “ad pacem eos congregans et reparans fidem eorum et adnuntians quam in
recenti ab apostolis acceperat traditionem”. In: Adversus Haereses III, 3,3. Em português: IRENEU DE
LIÃO, op. cit., p. 250.
482
EUSÈBE DE CÉSARÉE. Histoire ecclésiastique (Texte grec, traduction et notes par G. Bardy. Sources
Chrétiennes 31, 41 e 55). Paris: Du Cerf, 1952, 1955 e 1967. Aqui: Histoire ecclésiastique V, 3,4 e V, 4,1-2
(v. II, p. 26-28).
245

“preside” (prokáthetai): cada Igreja deve estar de acordo com a Igreja de Roma toda vez
que surgirem problemas de fé ou de fundamento da vida cristã.483

3 – Cipriano

Cipriano, como bispo de Cartago e presidente de todos os bispos africanos, está em


constante relação com Roma. Apesar de sua visão oscilar conforme quem detinha, no mo-
mento, o episcopado romano, reconhece explicitamente um primado, embora não o de ju-
risdição. A sua obra traduz uma forte preocupação com a unidade da Igreja, ameaçada pelas
heresias e cismas. Ele sempre foi defensor da fé e da comunhão eclesial e, por essa razão,
vê no bispo de Roma o símbolo da unidade e, por isso, afirma que a Igreja principal está
onde se encontra a cátedra de Pedro.
A passagem mais famosa e controvertida sobre o primado romano está no capítulo
quarto da obra De catholicae ecclesiae unitate. Esta se constitui no pensamento eclesioló-
gico de Cipriano. Ele não é teólogo profissional, mas pastor e homem de governo, por isso
seus escritos estão em relação com os acontecimentos e são uma resposta pastoral, portanto,
prática e concreta às questões do momento. Ele é tributário de Tertuliano, seu conterrâneo.
A unidade da Igreja, ameaçada pelas heresias e cismas, constitui a preocupação fun-
damental do bispo de Cartago. Raciocina fundamentado no texto de Mt 16,17s, no qual está
afirmado que Cristo funda a única Igreja sobre o único Pedro. A unidade da Igreja acontece
em cada Igreja Local na pessoa dos bispos, aos quais, como sucessores dos apóstolos, são
dirigidas as mesmas palavras que Cristo disse a Pedro. O que foi confiado a Pedro, por
primeiro, individualmente, quer ser paradigmático para a unidade da Igreja, que em Pedro
reconhece seu princípio. O bispo de Roma, que senta na cátedra de Pedro, continua a ser
símbolo dessa unidade: aí teve início a unidade do sacerdócio.
Os manuscritos nos vêm transmitidos em três maneiras diferentes.

O primeiro, mais curto, insiste sobre o primado:

E, depois da ressurreição, diz ao mesmo: “Apascenta as minhas ovelhas”. Sobre


ele só constrói a Igreja e lhe manda que apascente as suas ovelhas. Embora co-

483
FALBO, op. cit., p. 128-137.
246

munique a todos os apóstolos igual poder, todavia institui uma só cátedra, deter-
minando assim a origem da unidade.
É verdade que os demais (apóstolos) eram o mesmo que Pedro, mas o primado é
conferido a Pedro para que fosse evidente que há uma só Igreja e uma só cátedra.
Todos são pastores, mas é anunciado um só rebanho, que deve ser apascentado
por todos os apóstolos em unânime harmonia.
Aquele que não guarda essa unidade, proclamada também por Paulo, poderá pen-
sar que ainda guarda a fé? Aquele que abandona a cátedra de Pedro, sobre o qual
foi fundada a Igreja, poderá confiar que ainda está na Igreja?484

O segundo, o mais extenso, insiste na igualdade entre os apóstolos:

Sobre um só edificou a sua Igreja. Embora, depois da sua ressurreição, tenha co-
municado igual poder a todos os apóstolos, dizendo: “Como o Pai me enviou, eu
vos envio a vós. Recebei o Espírito Santo, a quem perdoardes os pecados ser-
lhes-ão perdoados, a quem os retiverdes ser-lhes-ão retidos”, todavia, para tornar
manifesta a unidade, dispôs com a sua autoridade que a origem da unidade proce-
desse de um só.
É verdade que os demais apóstolos eram o mesmo que Pedro, tendo recebido
igual parte de honra e de poder, mas a primeira urdidura começa pela unidade, a
fim de que a Igreja de Cristo aparecesse uma só.
O Espírito Santo, falando na pessoa do Senhor, designa esta Igreja única, quando
diz no Cântico dos Cânticos: “Uma só é a minha pomba, a minha perfeita, única
filha da sua mãe e sem igual para a sua progenitora”.
Aquele que não guarda esta unidade poderá pensar que ainda guarda a fé? Aquele
que resiste e faz oposição à Igreja poderá confiar que ainda está na Igreja?
Paulo apóstolo inculca o mesmo ensinamento e mostra o sacramento da unidade,
dizendo: “Um só corpo e um só espírito, uma é a esperança da vossa vocação, um
Senhor, uma fé, um Batismo, um só Deus”.485

O terceiro resulta da combinação dos dois anteriores.

Os estudos sobre essas três redações são muitos. A hipótese mais provável é que o
primeiro texto foi escrito contra Felicíssimo e, depois, revisado para ser enviado a Novaci-
ano. A hipótese mais provável é que o primeiro texto é o original, pois a carta seria escrita a
Novaciano. A hipótese de que o segundo texto seria o original apresenta menos probabili-
dade.
O problema de fundo é a relação entre Pedro e os apóstolos, que se traduz na ques-
tão da relação do bispo de Roma com os demais bispos. Desse modo, o pensamento dos
textos é o mesmo, apenas com acentuações diferentes. O ponto de partida é igual: a unidade
da Igreja, comum nos dois textos, expressa pela afirmação “sobre o qual edificarei a minha
Igreja”. Mas o conceito do igual poder e da igual dignidade concedidos a todos os apóstolos

484
SÃO CIPRIANO, A unidade da Igreja Católica 4,8-10.
485
Ibid. 4, 3-7.
247

é expresso de modos diferentes: “apostolis omnibus parem tributat potestatem” (texto I) e


“apostolis omnibus post resurrectionem suam parem postestatem tributat” (texto II). De
outra forma: “hoc erant utique et ceteri quod Petrus” (texto I) e “hoc erant utique et ceteri
apostoli quod fuit Petrus, pari consortio praediti et honoris et potestatis” (texto II).
Mas a Igreja tem origem em Pedro: “Primatus Petro datur ut ecclesia et cathedra
una monstretur” (texto I) e “Exordium ab unitate proficiscitur ut ecclesia Christi una
monstretur” (texto II). Por isso, não se pode estar na Igreja, se não se está unido a Pedro e
aos apóstolos. Enfim, a argumentação resulta fundamentalmente a mesma: a Igreja é una,
porque Cristo, como exemplo e ensinamento, fundou-a sobre um (Pedro), pelo qual os bis-
pos, individualmente, como os apóstolos, têm o mesmo poder e dignidade e governam in
solidum a única Igreja, reconhecendo a Pedro, e portanto, ao bispo de Roma, o primado que
consiste no estar na origem da unidade.
Desses textos e de suas atitudes, se deduz o assim chamado “episcopalismo” de Ci-
priano, isto é, a concepção eclesiológica que põe em cada bispo individualmente o funda-
mento da unidade da própria Igreja Local, fazendo-o responsável, tão só diante de Deus,
pelas próprias decisões no governo de seu rebanho. A comunhão eclesiástica, que une os
bispos num único colégio, é possuída in solidum por cada bispo.
O “tu es Petrus” refere-se a todos os bispos, porque os poderes concedidos a Pedro
são transmitidos por meio do mecanismo da sucessão a cada bispo individualmente. Talvez
isso se deva aos “lapsos”, que pretendiam agir em nome da Igreja, ignorando o bispo. As-
sim, a comunhão com o bispo se torna o critério para fazer parte da Igreja. A unidade do
episcopado e o colégio episcopal solidariamente têm a responsabilidade de toda a Igreja.486
Enfim, Cipriano afirma que os poderes dados aos demais bispos são uma participa-
ção dos poderes dados a Pedro. Ele fundamenta a Igreja primitiva, onde todos os poderes
sacerdotais foram nele enraizados. Ainda afirma que a conexão com Pedro é o fundamento
do poder episcopal, condicionado à unidade da Igreja universal. Também assevera que toda
a Igreja se fixou em Roma, quando Pedro lá se fixou. Daí denominar a Igreja de Roma co-
mo a ecclesia principalis. Cipriano é, por isso, um forte testemunho da tradição do primado
e vai contribuir para o amadurecimento da fé no primado.

486
FALBO, op. cit., p. 143-162.
248

c – Mais alguns testemunhos

Optato, bispo da cidade de Mileve, que viveu cerca de 320 a 385, na sua luta contra
os donatistas, cita a lista dos bispos de Roma como prova do primado da Igeja romana e
ensina que a comunhão com a Igreja de Roma é o penhor da legitimidade e da autorização
divina às outras Igrejas, dando a certeza de pertencer à Igreja Católica.487
Ambrósio afirma: “Onde está Pedro, aí está a Igreja” (Ubi ergo Petrus, ibi eccle-
sia).488
Jerônimo declara ao Papa Dâmaso: “Não sigo a ninguém como cabeça, a não ser
Cristo somente, e por isso quero permanecer em comunhão contigo, isto é, com a Sé de
Pedro. Eu sei que sobre esse rochedo está fundada a Igreja”.489
Agostinho, na sua luta contra Pelágio, quando três Sínodos rejeitaram o pelagianis-
mo, procura arduamente a aprovação de Roma, porque, segundo ele, somente a Sé Apostó-
lica conferirá a devida força à decisão dos bispos africanos, não cabendo mais apelação.
Daí surgiu a expressão Roma locuta, causa finita, para indicar como eram acatadas as deci-
sões tomadas pelo Papa. 490

d – A praxe do recurso a Roma por parte dos orientais

Após a análise dos escritos de alguns Santos Padres, que mostram o reconhecimento
do papel primacial da Igreja de Roma sobre as demais, cabe o estudo de uma praxe antiga
da Igreja, dominante entre os orientais: o recurso a Roma. O valor teológico dessa praxe
advém, diferentemente dos ocidentais, das considerações que eles fazem sobre Pedro, por
não apresentarem declarações explícitas sobre o papel primacial de Roma. Só por esse ca-
minho é que se pode chegar, de algum modo, ao pensamento deles sobre seus sucessores
como chefes das Igrejas fundadas por eles.
O que permanece implícito na teoria vem, todavia, explicitado pelo fato do uso do
recurso a Roma nas questões de maior importância, no plano doutrinal e disciplinar, nas

487
PL 11, 946-950.
488
PL 14, 1134.
489
PL 22,355.
490
PL 33, 760. 762. 764; 44, 389-390. 549-554.
249

controvérsias teológicas, nos casos de deposição dos bispos ou de incerteza sobre sua legi-
timidade. Todos esses casos testemunham como está viva, embora, obviamente, com nuan-
ças diversas, a consciência dos Padres orientais do papel de Roma como garantia da verda-
de e da unidade.

1 – O testemunho de Eusébio de Cesareia

O pai da historiografia cristã, Eusébio de Cesareia, conservou documentos impor-


tantes sobre o cristianismo primitivo na sua História Eclesiástica que, se não fosse ele, po-
deriam ter sido perdidos. Sua obra está tomada pelo amor à Igreja e, por isso, quer conser-
var e ressaltar a memória dos sucessores dos apóstolos. Seu interesse se concentra sobre as
quatro Igrejas: Jerusalém, Antioquia, Alexandria e Roma. Todas estão relacionadas com
Pedro: a de Jerusalém, pela fundação; a de Antioquia, pela transmissão da verdade; a de
Alexandria, indiretamente, porque foi fundada por Marcos, o qual Pedro chama de “meu
filho”491; e a de Roma, porque foi fundada por Pedro e ele lá pregou.
Essas quatro Igrejas, às quais se unirá, mais tarde, a de Constantinopla, tornaram-se
sedes patriarcais, assumindo um papel fundamental na Eclesiologia oriental. Entre estas,
está a de Roma, que desperta um interesse particular por parte de Eusébio. Ele fala da vinda
de Pedro a Roma, da luta com Simão, o mago, da redação do evangelho, por parte de Mar-
cos, do martírio de Pedro, com a cabeça para baixo, e do testemunho do presbítero Gaio
sobre o troféu do Vaticano.
Eusébio de Cesareia mostra que a Igreja de Roma reflete a autoridade do príncipe
dos apóstolos, que a funda. Por isso, ele fala do papel de Roma como garantia da fé e como
juíza suprema em todas as questões, tanto doutrinais quanto da praxe eclesial, importantes
para a vida da Igreja. Como exemplo ele cita as seguintes questões: a controvérsia pascal,
que faz Policarpo vir a Roma para encontrar um acordo com Aniceto 492, e o caso de Vitó-
rio, prestes a excomungar Polícrates de Éfeso e os bispos da Ásia.493 Alude, também, à
questão dos “lapsos”, com as decisões tomadas por Cornélio, que foram comunicadas a

491
Histoire ecclésiastique II, 15,2 e 16,1 (v. I, p. 71).
492
Id. IV, 14,1 (v. I, p. 179).
493
Id. V, 23-25 (v. II, p. 66-72).
250

todas as Igrejas da África e de Antioquia e aceitas por todas elas.494 Ainda acrescenta a in-
tervenção autorizada de Estêvão, na questão do batismo de adultos495, e louva a caridade de
Roma em ajudar os irmãos em necessidade, trazendo o testemunho de Dionísio de Corin-
to496 e de Dioníso de Alexandria.497
Desse modo, ele testemunha, mesmo que implicitamente, o prestígio da Igreja ro-
mana, acima de todas as outras, porque é a Igreja de Pedro. Isso, apesar da visão eclesioló-
gica das quatro sedes apostólicas, em que transparece, em Eusébio, um influxo político,
devido à grande estima que ele tinha ao Imperador Constantino, por entendê-lo como envi-
ado por Deus. Essa estima levará a privilegiar a Igreja de Constantinopla enquanto sede
imperial, passando da tetrarquia para a pentarquia. Mas essa visão não penetra na substân-
cia das coisas, porque, mesmo no período da decadência política de Roma, e até em con-
comitância com isso, cresce o seu prestígio como primeira sede e como garantia da fé e da
unidade da Igreja.498
Assim, Clemente de Alexandria oferece as mais numerosas e circunstanciais notí-
cias sobre as relações entre Pedro e a Igreja de Roma.499 Orígenes, em seu comentário sobre
o Gênesis, fala da vinda de Pedro a Roma e de sua crucificação de cabeça para baixo.500 Ele
foi a Roma no tempo de Zeferino, Papa de 199 a 217, com o desejo de ver a “antiquíssima
Igreja dos Romanos”.501 Era a Igreja mais importante e, por isso, podia julgar as questões
controvertidas.

2 – Paulo de Samósata

Paulo de Samósata sucedeu a Demetriano na sede de Antioquia, em 260, e professa-


va ideias heréticas de tipo adocionista, ensinando que o Filho de Deus era um homem co-
mum. Além do mais, levava uma vida extremamente luxuosa e escandalosa.502 Por causa

494
Id. VI, 43, 3 (v. II, p. 154).
495
Id. VII, 2 (v. II, p. 167).
496
Id. IV, 23, 9-11 (v. I, p. 204s).
497
Id. VII, 5, 2 (v. II, p. 169).
498
FALBO, op. cit., p. 165.
499
Histoire ecclésiastique VI, 14,5-7 (v. II, p. 107).
500
Id. III, 1,2 (v. I, p. 13).
501
Id. VI, 14,10 (v. II, p. 108).
502
MANZANARES, C. V. Paolo di Samosata. In: Dizionario Sintetico di Patristica. Vaticano: Libreria
Editrice Vaticana, 1995, p. 144.
251

disso, foi convocado um Sínodo em Antioquia, que ocorreu em 264, no qual ele prometeu
corrigir-se. No entanto, ele não colocou em prática a sua promessa proferida diante dos
bispos. Por isso, foi convocado outro Sínodo para 268. Neste, ele foi desmascarado, e a
sentença de excomunhão e de deposição foi comunicada, em primeiro lugar, ao bispo de
Roma, Dionísio, e só depois ao bispo de Alexandria, Máximo, e, por último, aos bispos de
todo o mundo.503 Dionísio de Roma ratificou a decisão do Concílio de Antioquia. Mas Pau-
lo ainda não se conformou e negou-se a deixar a igreja e a residência episcopal. O Impera-
dor, apesar de pagão, determina obediência ao mandar que o edifício pertence a quem está
em comunhão epistolar com o bispo de Roma.504
Esse caso demonstra a consideração de que gozava a Igreja de Roma e a prática de
dirigir-se a ela nas questões de maior importância. As cartas de comunhão eram o instru-
mento que manifestava a profunda união entre as Igrejas: os nomes dos bispos em comu-
nhão vinham escritos nos dísticos e eram lidos na Eucaristia. Ser excomungado significava
ser excluído dos dísticos e, como consequência, da vida íntima da Igreja, da qual as mani-
festações públicas e solenes eram sinal. E a comunhão com o bispo de Roma era fundamen-
tal, apesar da busca da comunhão também com todos os bispos orientais. Isso porque a co-
munhão com a Igreja universal acontecia mediante a comunhão com o bispo de Roma, e a
excomunhão, por parte de Roma, significava a exclusão da Igreja universal.

3 – Santo Atanásio e o recurso a Roma durante a crise ariana

Atanásio, Bispo de Alexandria, a partir de 328, viu-se envolvido na luta ariana, que
seguiu ao Concílio de Niceia, de 325. Ele foi um intrépido defensor da ortodoxia e, por
isso, os arianos se voltaram contra ele. Foi deposto e exilado várias vezes, sempre calunia-
do pelos seus inimigos. Esses fatos ocorreram no tempo de Constantino († 337) e de seu
filho, Constanço.
O Papa Júlio (337-352) era considerado o juiz natural da controvérsia. Por isso, os
arianos enviaram o presbítero Macário, com a missão de conseguir a confirmação do Síno-
do de Tiro e reconhecer Pisto como o novo bispo de Alexandria. Mas Atanásio convocou

503
Histoire ecclésiastique VII, 30, 2.17.
504
Id. VII, 30, 19.
252

um novo Sínodo, do qual participaram, aproximadamente, cem bispos, que reconheceram a


fé professada em Niceia e declararam Atanásio como o único bispo legítimo de Alexandria.
As atas do Sínodo foram enviadas ao Papa, juntamente com uma carta de Atanásio, na qual
ele descrevia todo o episódio. Nesse mesmo tempo, uma carta escrita pelos padres sinodais
foi enviada a todos os bispos do mundo, informando sobre a mentira que foi o sínodo de
Tiro. Então, o Papa Júlio convocou um Sínodo para Roma, celebrado em 341, a fim de emi-
tir a sentença definitiva. Participaram Atanásio, Marcelo de Ancira e outros bispos orien-
tais, todos exilados. Macário veio também a Roma. Mas o Papa, apesar das ameaças, resta-
beleceu Atanásio e os demais bispos exilados, comunicando a sua decisão mediante a Encí-
clica Anegnon.
O que interessa aqui é a constatação de que tanto os defensores da ortodoxia quanto
os arianos queriam a confirmação por parte do bispo de Roma, provando, dessa maneira, o
reconhecimento prático do primado do Papa. O motivo disso não é político, mas teológico.
Atanásio mesmo exprime a consciência da ligação de Roma com Pedro. Assim, a tradição
de Roma é normativa, porque se trata da mesma tradição do apóstolo Pedro.505

4 – São Basílio recorre a Roma para sanar o cisma de Antioquia

Basílio, reconhecido defensor da ortodoxia e uma das personalidades mais eminen-


tes entre os bispos orientais, foi bispo de Cesareia durante pouco mais de oito anos, pois
sua morte prematura ocorreu em janeiro de 379. Ele empenhou-se na busca da paz e da
unidade da Igreja ao combater o arianismo, procurando superar o cisma daí advindo com as
366 cartas que escreveu, mediante as quais exorta a santidade e a responsabilidade do epis-
copado.
A Igreja de Antioquia estava dividida entre ortodoxos e arianos. E os próprios orto-
doxos estavam divididos. Para conseguir superar o cisma, ele recorre ao Papa Dâmaso
(366-384), pensando que só o prestígio e a autoridade da sede romana poderiam restabele-
cer a unidade perdida com o cisma. Auxiliado por Atanásio, que morre, mais tarde, em 373,
já amadurecido pela experiência com as circunstâncias ocorridas em Alexandria, recorre ao
Papa. Com esse intuito, aconselha-se com Atanásio, escrevendo-lhe cinco cartas, nas quais

505
Cf. FALBO, op. cit., p. 171s.
253

expõe a triste situação de sua Igreja. Em uma das cartas, Basílio expõe o recurso a Roma.
Enfim, escreve ao Papa Dâmaso, na carta 70, urgindo ser necessário intervir, de acordo com
a tradição do século anterior, como havia feito o Papa Dionísio.
Nota-se, novamente, um testemunho claro, por meio desse fato, do reconhecimento
do papel primacial de Roma, apesar de o resultado da ação de Basílio só ter surtido efeito
mais tarde, quando ele já havia morrido, pois a distância era grande, o que dificultou uma
informação objetiva. Basílio dava muita importância à comunhão entre os bispos, que era
alimentada pela troca de correspondência ou por visitas. E o bispo de Roma ocupa um pa-
pel preponderante quanto à comunhão, pois ele é o “corifeu dos ocidentais”, expressão usa-
da por ele, estabelecendo um paralelo com Pedro, o “corifeu” dos apóstolos. A sua Eclesio-
logia dá o primeiro lugar ao bispo de Roma, pois ele deve condenar as heresias e excomun-
gar os hereges, enquanto todos os bispos, tanto do Ocidente quanto do Oriente, devem estar
em comunhão com ele.506

5 – João Crisóstomo e o ofício de Pedro

É o maior defensor do primado entre os orientais. Chama Pedro de “corifeu dos


apóstolos”, insistindo sobre a qualidade de rocha e do poder das chaves. A esse propósito, é
importante a homilia 54 sobre Mateus, na qual comenta a profissão de fé de Pedro em Ce-
sareia de Filipe. Deve-se destacar que ele considera terem as prerrogativas de Pedro sido
transmitidas aos seus sucessores. Ele descreve o ofício de Pedro e seus sucessores, usando a
imagem do servo fiel que o Senhor estabelece como chefe da sua casa. Considera que o
máximo sinal de amor a Cristo é o apascentar o rebanho de Cristo, não a vigilância, o jejum
e a obra de caridade.
Tudo isso demonstra a sua grande admiração pela Igreja de Roma, fundada por Pe-
dro, e o local onde ele derramou o seu sangue. Também é sinal da consciência da dignidade
da Igreja de Roma, que guarda as relíquias dos santos apóstolos e em cuja cátedra sentam
os sucessores de Pedro. Ele considera que a comunhão com os sucessores de Pedro assegu-
ra a comunhão com a Igreja universal. Por causa disso, sofreu muito com a situação da

506
Ibid., p. 173-177.
254

Igreja de Antioquia e se impôs a tarefa de restabelecer a plena unidade entre a sua Igreja e
Roma.
A ocasião foi-lhe dada com ordenação como bispo de Constantinopla. Devendo co-
municar a sua eleição a Roma, quer reconciliar com Roma o ex-bispo de Constantinopla,
Flaviano de Antioquia. A proposta de reconciliação foi apresentada por ele no Concílio de
Cápua, de 392, o qual ele preside, a todos os bispos que professavam a doutrina ortodoxa.
Depois de muitas dificuldades, ele teve sucesso, mais tarde, ao conseguir o reconhecimento
de Flaviano, por parte de Roma, restabelecendo, desse modo, a unidade.
Todo esse esforço demonstra que a comunhão com a Igreja de Roma é uma das
principais preocupações nos fatos concretos da vida de Crisóstomo e corresponde à sua
visão eclesiológica. Iluminativos são os recursos a Roma feitos por ele, assim como os úl-
timos fatos de sua vida, quando ele apela para Roma. Assim, continua a tradição do recurso
à “Igreja principal”, seguindo os traços dos grandes Padres orientais, Atanásio e Basílio.507

7.3.3 O ensinamento do Magistério

A doutrina da Igreja ensina que ela continua nos seus ministérios a estrutura do co-
légio apostólico. Esse princípio nos leva a algumas conclusões.

a. A sucessão apostólica nos poderes do ministério não é apenas de Pedro, mas do


colégio apostólico como tal, sendo Pedro o chefe desse colégio. Daí se conclui que a auto-
ridade do Papa é uma autoridade no colégio, não se podendo afirmar uma monarquia ponti-
fícia, que levaria ao esquecimento da realidade do colégio episcopal, como sucessor do
colégio apostólico, no sentido de um plenipotenciário absoluto, embora deva ser resguarda-
da sua autoridade própria, enquanto sucessor de Pedro, como vem explicitado a seguir.
b. No entanto, a sucessão de Pedro é diferente no grupo dos Doze: a de Pedro é pes-
soal, porque ele tinha um papel específico dentro do colégio apostólico e, assim, ele assegu-
ra ao seu sucessor o privilégio de chefe que ele possuía. Ainda mais: Pedro recebeu pesso-
almente, isto é, independentemente dos outros onze apóstolos, o poder das chaves e do pas-
toreio universal, que o fez chefe do colégio apostólico e da Igreja. O poder supremo e uni-

507
Ibid., p. 177-184.
255

versal foi dado a um colégio estruturado, com um chefe. A partir daí a posição de Pedro
dentro do colégio funda, ao mesmo tempo, a possibilidade de incorporar a si mesmo o con-
junto do colégio e de representá-lo. Com efeito, o Papa, como sucessor de Pedro, representa
o colégio episcopal e pode sozinho, dessa forma, tomar decisões que obrigam a Igreja intei-
ra. Um bispo não pode fazer isso, assim como também não os bispos do mundo inteiro. A
Nota prévia afirma que o colégio episcopal é o Papa na chefia de todos os bispos. Portanto,
os bispos sem o Papa, mesmo reunidos em Concílio ecumênico, não poderão tomar nenhu-
ma decisão que obrigue a Igreja inteira.
c. A Igreja vive em comunhão de fé e de trabalho. Assim, as decisões papais sempre
deverão estar em comunhão de fé, devendo sempre fazer parte do depósito da fé (depositum
fidei), pois todos, na Igreja, estão sujeitos à Revelação e à Tradição apostólica. Evidente-
mente, essas decisões dizem respeito a questões de fé e moral.
d. As tarefas na Igreja não são as mesmas, mesmo dentro do colégio episcopal. En-
quanto o Papa tem a seu encargo a Igreja universal, pois é o seu pastor supremo e universal,
os bispos, por sua vez, têm a seu encargo uma Igreja Particular, que é “a porção do Povo de
Deus confiada a um bispo para que a pastoreie em cooperação com o presbitério” (Christus
Dominus 11; CIC 369). Colegialmente, os bispos residenciais têm o encargo da Igreja uni-
versal, por exemplo, num Concílio ecumênico. E a pertença ao colégio episcopal se dá por
meio da ordenação e da imposição das mãos, em que acontece a comunhão hierárquica, que
é a comunhão com o chefe e demais membros do colégio episcopal.
O Papa é, antes de tudo, o bispo de Roma, isto é, de uma Igreja Particular. Mas co-
mo sede de Pedro tem um carisma especial entre as Igrejas Particulares. Também o Papa é
pastor da totalidade do rebanho, exercendo um poder pleno, supremo, ordinário, imediato e
verdadeiramente episcopal. Ele é o “pastor supremo”, ou seja, aquele que preside na cari-
dade e que tem o encargo da unidade e da saúde do todo. O seu pastoreio é solicitude geral,
em união com os bispos, e graças a eles uma promoção da missão e uma confirmação fra-
terna da fé.
Historicamente constatamos que a sede de Roma tem a presidência na caridade,
sendo modelo de fé para as outras Igrejas. O Papa pode substituir ou providenciar um bispo
que falte. Também resolve uma situação de crise, numa função de competência da autori-
dade local. Sustém a autoridade dos bispos locais, mediante a sua autoridade superior à dos
256

bispos locais. Ele pode fazer tudo na Igreja, mediante a plenitude de poder que possui, des-
de que não esteja contrário à fé, ao estatuto fundamental da Igreja (o Código de Direito
Canônico) e ao direito divino.
O dogma do primado foi definido pelos seguintes Concílios: Lião, em 06 de julho
de 1274 (DS 861); Florença, em 06 de julho de 1439 (DS 1307-1308); Vaticano I, em 1870
(DS 3053-3075). A partir da doutrina ensinada por esses Concílios, do ponto de vista do
desenvolvimento do dogma do primado, podem-se fazer as seguintes observações:

• Os teólogos da Idade Média trataram a questão do primado superficialmente, no


contexto de outros problemas. Mas sua evolução se deve ao surgimento de novas Ordens
(franciscanos e dominicanos). Boaventura é quem desenvolve mais o primado: o Papa é o
ápice da realidade total hierarquicamente erigida, porque, segundo o Doctor Seraphicus, em
todas as coisas há um primeiro e um sumo, ao qual todo o singular se reduz, mas que, in-
versamente, é a origem e fonte de todas elas. Ele é o vigário de Jesus Cristo e medida de
todo o governo eclesiástico.508
• A discordância com a Igreja oriental se dá no prisma do poder de jurisdição que
deve ter ou não o Papa. A Igreja ocidental declara que o primado é de direito divino – juris-
dição, portanto –, ao passo que a Igreja oriental afirma que é apenas de honra, sendo o Papa
o patriarca de um dos patriarcados existentes.
• O poder de ordem do Papa não é superior ao dos demais bispos, embora esteja
enraizado na sacramentalidade da Igreja (Jesus Cristo comunica a salvação por meio das
pessoas humanas). Quando o Papa aceita a eleição feita pelos cardeais reunidos em concla-
ve, torna-se Papa e daí assume a plenitude do poder de jurisdição.
• A primazia do Papa é de natureza jurídica, tendo, assim, direito de estabelecer exi-
gências e tomar decisões que obrigam sob consciência toda a Igreja. Cabe a ele governar a
Igreja, em virtude dos poderes recebidos de Cristo.
• A autoridade do Papa diz respeito ao poder disciplinar, que é exterior e jurídico, e
ao poder doutrinal, que é interno e espiritual. As decisões pontifícias obrigam, portanto, sob
consciência. Assim, decide a sorte eterna da pessoa batizada na Igreja Católica: é a vincula-
ção hierárquica (vinculum hierarchicum).

508
SCHMAUS, op. cit., p. 157.
257

Esses Concílios ensinam que o primado é de jurisdição, com extensão sobre toda a
Igreja; o Papa é o sucessor do apóstolo Pedro e tem a plenitude do poder recebido de Jesus
Cristo. Assim, o Papa tem o poder de jurisdição sobre os demais Bispos. Com efeito, a base
do papado é cristológica, e não apenas mero resultado de uma evolução histórica, porquan-
to ele é proveniente da vontade de Jesus Cristo. O Vaticano II trouxe um complemento ne-
cessário com a doutrina do episcopado e da colegialidade episcopal.

7.3.4 A atualidade do primado

Hoje, o primado está na ordem do dia, tanto nos meios católicos quanto no diálogo
ecumênico. Pode-se dizer que é um dos sinais dos tempos. Para tal, mais do que nunca, o
primado deve-se constituir em um “ministério de unidade”, o que não contraria a tradição
patrística. E esse ministério de unidade pode ser exercido pelo Papa, visto que ele se torna
centro de convergência ou mediador de todos os cristãos. Esse papel poderia ser exercido
não apenas internamente, dentro da Igreja Católica, mas em relação a todos os cristãos do
mundo. Nesse sentido, o Papa João Paulo II declara, em sua Encíclica Ut Unum Sint, dese-
jar um estudo sobre o primado, a fim de abrir uma situação nova favorável ao ecumenismo:

Estou convicto de ter a este propósito uma responsabilidade particular, sobretudo


quando constato a aspiração ecumênica da maior parte das Comunidades cristãs,
e quando ouço a solicitação que me é dirigida para encontrar uma forma de exer-
cício do primado que, sem renunciar de modo algum ao que é essencial da sua
missão, se abra a uma situação nova (Ut Unum Sint 95).

Além do significado ecumênico, o primado poderia exercer uma tarefa social em


prol da humanidade, contribuindo para um serviço humanitário, desempenhado com humil-
dade e caridade. E o Papa poderia, perfeitamente, a partir da figura que ele representa para
o mundo de hoje, exercer sem pretensões essa tarefa tão necessária diante de tantos confli-
tos e tensões que o mundo enfrenta, contribuindo para superar situações desumanizadoras.
Seria, portanto, um papel não apenas religioso, mas também humanitário.
Do ponto de vista estritamente interno da Igreja, convém ressaltar a questão da co-
legialidade, assim como foi ensinada pelo Concílio Vaticano II, a qual não pode ser enten-
dida simplesmente como um aceitar as decisões tomadas por uma instância superior. A co-
258

legialidade é ativa e deve expressar a responsabilidade comum no pastoreio de toda a Igre-


ja, embora a Igreja universal esteja sujeita ao Papa, e as Igrejas Particulares aos bispos resi-
denciais. Isso implica compartilhar as iniciativas pastorais e os temas que preocupam o Po-
vo de Deus no momento. Dessa forma, seria possível tornar o primado um ponto de con-
vergência que recolheria todas as iniciativas, preocupações, vitórias e derrotas enfrentadas
pelas Igrejas Particulares na sua tarefa de evangelizar (cf. Mt 28,18-20).
A Eclesiologia de comunhão orgânica encontra aqui uma importância capital. Só a
partir de uma Igreja entendida como koinonía pode-se pensar nesses termos. E o Papa seria
o organizador, o iniciador e o juiz em questões controvertidas. Seria o exercício, por exce-
lência, do pastoreio universal, o que não significa negar o primado de jurisdição. Mas, co-
mo Pastor supremo, a eficácia de seu ministério assumiria uma perspectiva fraternal e cole-
giada.
O princípio de subsidiariedade encontraria, assim, o espaço para ser aplicado, pois o
primado ajudaria as Igrejas Particulares em suas necessidades; porém, nunca substituindo
aquilo que elas mesmas poderiam fazer.
Eis algumas reflexões fragmentárias que exigem maior aprofundamento. Mas, sem
dúvida, estamos diante de um tema novo e apaixonante que suscitará uma prática também
nova, resultando em uma possibilidade maior de reconstituição da tão desejada união dos
cristãos.

7.4 O ministério episcopal

A diferença entre o apostolado (a missão dos Doze) e o episcopado procede do fato


de os apóstolos terem tido duas funções: a) eles foram testemunhas oculares de tudo o que
fez o Senhor Jesus durante a sua vida terrena pela nossa salvação, como também de sua
ressurreição e, enquanto tais, receberam o mandato de fundar as Igrejas mediante o anúncio
do Evangelho; b) foram mestres e pastores das Igrejas por eles fundadas.
Os bispos sucedem aos apóstolos apenas na segunda função, assim mesmo não em
absoluta paridade. Os bispos, em sentido estrito, são chefes ministeriais das Igrejas funda-
das pelos apóstolos e constituídos como tais para que guiassem (apascentassem) as Igrejas.
259

Assim, os bispos têm uma autoridade de ministério que visa à direção pastoral das Igrejas
fundadas pelos apóstolos, cuja autoridade deriva daquela dos apóstolos.
Os bispos não têm o carisma da Revelação e não podem constituir Tradição assim
como os apóstolos. Estes podem colocar Tradição normativa, ao passo que aqueles estão
sujeitos à Tradição. É claro que o colégio episcopal goza da infalibilidade, quando julga ou
ensina formalmente uma verdade pertinente ao depósito da fé.
Um bispo individualmente não sucede a um apóstolo individualmente, exceto o bis-
po de Roma. A sucessão dos bispos é sempre colegial: cada bispo sucede a todos os apósto-
los.
Os apóstolos realizam a presença do Senhor, que já veio pleno de graça e de verda-
de, mas em vista da vinda futura: isso supõe Jesus Cristo como fundamento (1Cor 3,10). Os
apóstolos foram, por isso, escolhidos, consagrados e enviados pessoalmente pelo Senhor.
Os bispos o são por meio de uma mediação – a dos apóstolos –, pois foram escolhidos, con-
sagrados e enviados por eles.
Os poderes episcopais são o poder de Ordem e o poder de jurisdição. Essa divisão
foi feita pela Igreja, pois inicialmente a missão e função recebida de Cristo pelos apóstolos
é considerada una.
Essa subdivisão aconteceu porque alguns bispos se mostraram indignos pela sua
conduta pessoal ou por suas posições heréticas. Como deviam ser depostos por causa disso,
surgiu a questão se, com a deposição, perdiam também o poder espiritual. Agostinho fez tal
divisão: o bispo não perde o poder espiritual, que é proveniente do sacramento da Ordem,
apenas lhe é vetado o exercício do mesmo, perdendo, por isso, a jurisdição. Com a Teologia
pós-tridentina, essa distinção é aceita pela Teologia sem problemas.
Mas o poder de jurisdição está subordinado ao poder de Ordem, pois aquele pressu-
põe este. O poder de jurisdição pode ser perdido, ao passo que o de Ordem não, já que este
é resultado da ordenação episcopal. O poder de Ordem está em função do caráter salvífico
presente na comunidade messiânica de salvação, isto é, o aprofundamento e a conservação
da vida divina na pessoa humana. O poder de jurisdição serve à Ordem salvificamente ope-
rante na comunidade fraterna, cuja vida tem raízes na sacramentalidade da Igreja. Este está
260

limitado local ou pessoalmente, pois se destina àquelas pessoas para as quais o sacerdócio
foi instituído.509
Hoje essa divisão está sendo questionada. Com certeza deve-se superar a tendência
ou o perigo de uma separação radical entre esses dois poderes, embora sejam dois. A uni-
dade entre ambos acontece no âmbito sacramental. A elucidação desse problema encontra-
se na Lumen Gentium 20. Uma Igreja sem o múnus episcopal não seria a Igreja de Jesus
Cristo.

a) O múnus episcopal de ensinar

Entre os principais deveres dos bispos sobressai o de pregar o Evangelho. Pois os


bispos são os pregoeiros da fé que levam novos discípulos a Cristo. São os mes-
tres autênticos dotados da autoridade de Cristo que pregam ao povo a eles confia-
do a fé que deve ser crida e praticada. À luz do Espírito Santo ilustram a fé, tiran-
do do tesouro da Revelação coisas novas e velhas (cf. Mt 13,52). Fazem frutificar
a fé. E com vigilância afastam os erros que ameaçam o seu rebanho (cf. 2Tm 4,1-
4). Os bispos, quando ensinam em comunhão com o Romano Pontífice, devem
ser respeitados por todos como testemunhas da verdade divina e católica. Devem
os fiéis acatar uma sentença sobre a fé e a moral proferida por seu bispo em nome
de Cristo, e devem ater-se a ela com religioso obséquio do espírito. [...] Embora
os bispos individualmente não gozem da prerrogativa da infalibilidade, contudo,
mesmo quando dispersos pelo mundo, guardando, porém, a comunhão entre si e
com o sucessor de Pedro e quando ensinam autenticamente sobre assuntos de fé e
moral, concordam numa sentença que deve ser mantida de modo definitivo, então
anunciam infalivelmente a doutrina de Cristo. [...] A infalibilidade prometida à
Igreja reside também no Corpo episcopal, quando, com o Sucessor de Pedro,
exerce o supremo Magistério (Lumen Gentium 25).

b) O múnus episcopal de santificar

O bispo, distinguido pela plenitude do sacramento da Ordem, é o “administrador


da graça do sacerdócio supremo”, mormente na Eucaristia, que ele mesmo ofere-
ce ou cuida que seja oferecida, e pela qual continuamente a Igreja vive e cresce.
[...] Em toda a comunidade de altar unida ao sacrifício, sob o ministério sagrado
do bispo, manifesta-se o símbolo daquela caridade e “unidade do Corpo Místico,
sem a qual não pode haver salvação”. [...] Mas toda a celebração legítima da Eu-
caristia é dirigida pelo bispo, a quem foi confiado o encargo de oferecer e admi-
nistrar o culto da religião cristã à Divina Majestade, segundo os preceitos do Se-
nhor e das leis da Igreja, determinada ulteriormente para a diocese segundo o seu
juízo particular. [...] Assim, os bispos, rezando pelo povo e trabalhando, de modo

509
Ibid., p. 192.
261

variado e abundante, repartem a plenitude da santidade de Cristo. Pelo ministério


da palavra comunicam aos crentes a força de Deus para a salvação (cf. 1Rm 1,16).
Santificam os fiéis mediante os sacramentos, cuja distribuição regular e frutuosa é
ordenada por sua autoridade. Regulam a administração do Batismo, pelo qual se
concede a participação no sacerdócio real de Cristo. Eles são os ministros originá-
rios da Confirmação, os dispensadores das Ordens sacras, os moderadores da dis-
ciplina penitencial. E solicitamente exortam e instruem os fiéis, para que na litur-
gia e, sobretudo, no santo sacrifício da Missa desempenhem com fé e reverência
suas partes. Por fim, com o exemplo de sua vida, devem edificar aqueles aos
quais presidem, preservando seus costumes de todo mal. E, na medida do possí-
vel, com o auxílio do Senhor, transformando tudo em bem, cheguem à vida sem-
piterna juntamente com a grei que lhes foi confiada (Lumen Gentium 26).

c) O múnus episcopal de governar

Como vigários e legados de Cristo, os bispos governam as Igrejas Particulares


que lhes foram confiadas, com conselhos, exortações e exemplos, mas também
com autoridade e com sacro poder. Deste poder não usarão senão para edificar
sua grei na verdade e santidade, lembrados de que quem é o maior deve portar-se
como o menor, e o que manda como quem serve (cf. Lc 22,26-27). Este poder
que eles pessoalmente exercem, em nome de Cristo, é próprio, ordinário e imedi-
ato, embora seu exercício seja, em última instância, regido pela autoridade su-
prema e possa ter certos limites segundo a unidade da Igreja ou dos fiéis. Em vir-
tude deste poder, os bispos têm o sagrado direito e o dever perante Deus de legis-
lar para seus súditos, de julgar e de ordenar tudo o que se refere à organização do
culto e do apostolado. A eles é confiado plenamente o múnus pastoral, ou o cui-
dado habitual e cotidiano das almas. [...] Seu poder, portanto, não é diminuído pe-
lo poder universal e supremo, antes, pelo contrário, é assegurado, consolidado e
defendido. [...] O bispo, enviado pelo Pai de famíia para governar sua família, te-
nha diante dos olhos o exemplo do Bom Pastor, que veio, não para ser servido,
mas para servir (cf. Mt 20,28; Mc 10,45), e para dar sua vida pelas ovelhas (cf. Jo
10,11). [...] Não se negue, pois, de atender seus súditos, amando-os como verda-
deiros filhos e exortando-os para que alegremente colaborem com ele. Devendo
dar conta das suas almas a Deus (cf. Hb 13,17), cuide tanto deles, pela oração,
pregação e por todas as obras de caridade, como também daqueles que ainda não
pertencem ao seu redil, os quais o Senhor tenha confiados a si. [...] Por sua vez,
os fiéis devem estar unidos a seu bispo como a Igreja a Jesus Cristo, e Jesus Cris-
to ao Pai, para que todas as coisas se harmonizem pela unidade e redundem para a
glória de Deus (2Cor 4,15) (Lumen Gentium 27).

7.5 O ministério presbiteral

No Antigo Testamento, o termo kolen é de etimologia discutida. Indica tanto o sa-


cerdote de Javé como o de outros deuses (1Sm 5,5). Não possui forma feminina. Em Israel
nunca houve sacerdotisas. Também o termo levita, nome próprio ou ofício – Levi –, era
empregado para o sacerdote de Javé. O sacerdócio organizado existiu só no tempo de Josué
e Juízes; antes eram chefes de famílias ou das tribos.
262

No Novo Testamento, só o termo hiereus é empregado para designar o sacerdócio


judaico, de Jesus Cristo e o do cristão. Nunca os apóstolos e seus colaboradores foram de-
signados com esse termo. Só nos escritos da Igreja antiga são chamados de sacerdotes. Os
textos são os seguintes: At 14,32; 20,17; 1Tm 5,17; 1Pd 5,1; Tg 5,14. O texto de 1Pd 2,5-10
emprega a palavra “sacerdote”, aludindo a Êx 19,6, assim como Ap 1,6 e 5,10.
Os termos hiereus e hieráteuma são empregados para interpretar a obra salvadora de
Cristo e caracterizar o povo neotestamentário de Deus. A carta aos Hebreus desenvolve
uma Teologia da obra salvadora de Cristo como consumação do ministério dos sumos sa-
cerdotes no Antigo Testamento. Cumpre definitivamente as promessas prefiguradas em
ordem cultual no AT e conclui a série de sacrifícios dele, que não podem ser mais repetidos
após o sacrifício de Cristo. Indica também Igreja como povo sacerdotal.
O sacramento da Ordem, como já foi indicado anteriormente, é o sacramento da
diferenciação, pois distingue os fiéis dentro do único Povo de Deus. Também ele exerce, a
seu modo, os três múnus de Cristo. O texto de Presbyterorum Ordinis 4-6 explica como o
presbítero exerce esses três múnus, que podem ser caracterizados da seguinte forma:

a) o múnus presbiteral de ensinar, que se encontra na Presbyterorum Ordinis 4,


apresenta as seguintes características:

- o Povo de Deus congrega-se pela Palavra do Deus vivo, que se há de procurar


com pleno direito nos lábios dos sacerdotes;
- os presbíteros, na qualidade de cooperadores dos bispos, têm como primeira
tarefa anunciar o Evangelho a todos, para constituírem e aumentarem o Povo
de Deus;
- pela Palavra de Deus se desperta e alimenta a fé dos fiéis e se inicia e cresce a
comunidade eclesial (Rm 10,17);
- os presbíteros são devedores de todos, no sentido de terem de partilhar com
todos a verdade do Evangelho, da qual desfrutam no Senhor;
- os presbíteros têm o dever de não ensinar a sua sabedoria, mas o Verbo de
Deus, e convidar a todos com insistência para a conversão e a santidade;
263

- a pregação sacerdotal deverá aplicar a verdade perene do Evangelho às cir-


cunstâncias concretas da vida, não se atendo a expor de modo geral e abstrato
a Palavra de Deus.

b) O múnus presbiteral de santificar, que se encontra na Presbyterorum Ordinis 5,


apresenta as seguintes características:

- é exercido por meio dos sacramentos e da Eucaristia em particular;


- Deus quis assumir homens como sócios e auxiliares seus, para servirem hu-
mildemente à obra de santificação;
- os presbíteros são consagrados por Deus, pelo ministério do bispo, feitos de
modo especial participantes do Sacerdócio de Cristo, para, nas celebrações sa-
gradas, agirem como ministros dele, que na liturgia exerce o seu múnus sacer-
dotal continuamente em nosso favor pelo seu Espírito;
- pelo Batismo introduzem as pessoas no povo de Deus;
- pela Penitência reconciliam com Deus e a Igreja;
- pela Unção dos enfermos aliviam os doentes;
- pela celebração, sobretudo da Missa, oferecem sacramentalmente o sacrifício
de Cristo;
- pela celebração de qualquer sacramento, os presbíteros se vinculam de diver-
sos modos hieraquicamente ao bispo, e assim, de certa forma, o tornam presen-
te em cada reunião dos fiéis;
- os demais sacramentos se ligam à Sagrada Eucaristia e a ela se ordenam, pois
contêm todo o bem espiritual da Igreja, como fonte e ápice de toda a evangeli-
zação;
- a assembleia eucarística é o centro da comunidade de fiéis, presidida pelo
presbítero;
- além de ensinar a participar de todos os sacramentos, os presbíteros devem
também fazê-lo em relação com as celebrações da sagrada liturgia, a fim de
que também nelas se chegue a uma oração sincera, ensinando os fiéis a cele-
264

brar o Senhor de todo o coração, por hinos e cânticos espirituais, em todo o


tempo e a propósito de tudo, rendendo graças a Deus Pai, em nome de Nosso
Senhor Jesus Cristo;
- isso inclui o Ofício divino, pelo qual os presbíteros suplicam a Deus em nome
da Igreja, em favor de todo o povo a eles confiado e até pelo mundo inteiro;
- a casa de oração (a igreja) deve mostrar-se luzente e apta para a oração e as ce-
lebrações religiosas;
- os presbíteros devem esforçar-se por cultivar retamente a ciência e arte litúrgi-
ca, para que as comunidades cristãs, a eles confiadas, possam louvar a Trinda-
de com sempre maior perfeição.

c) O múnus presbiteral de governar, que se encontra na Presbyterorum Ordinis 6,


apresenta as seguintes características:

- “exercendo o múnus de Cristo Cabeça e Pastor na parte de autoridade que lhes


toca, os Presbíteros reúnem, em nome do bispo, a família de Deus, como fra-
ternidade animada por um só objetivo, e levam-na por Cristo no Espírito a
Deus Pai”;
- para exercer tal ministério, como também os demais ofícios de presbítero, é
conferido um poder espiritual, dado, evidentemente, para a edificação;
- hão de tratar as pessoas, não segundo o agrado dos homens, mas segundo as
exigências da doutrina e da vida cristã e na mais nobre humanidade, admoes-
tando-as como a filhos os mais caros (cf. 2Tm 4,2);
- cuidar para que cada fiel cultive a própria vocação pessoal segundo o Evange-
lho, uma caridade sincera e operosa e a liberdade, para a qual Cristo libertou;
- orientar para a maturidade cristã, fazendo descobrir nos acontecimentos, de
maior ou menor monta, a vontade de Deus;
- treinar os cristãos a viver de acordo com a caridade e a servir uns aos outros;
- cuidado especial com os pobres e mais humildes, cuja evangelização é dada
como sinal da obra messiânica, além dos religiosos e religiosas, doentes e ago-
nizantes;
265

- o múnus de pastor não se resume ao cuidado individual dos fiéis, mas abarca a
formação de uma autêntica comunidade cristã;
- educar, passo a passo, os catecúmenos e os neófitos;
- “não se edifica nenhuma comunidade cristã, se ela não tiver por raiz e centro a
celebração da Santíssima Eucaristia: por ela há de iniciar-se, por isso, toda
educação do espírito comunitário”;
- “é pela caridade, oração, exemplo e obras de penitência que a comunidade
eclesial desempenha verdadeira função de mãe para com as almas que devem
ser levadas a Cristo”;
- “na construção da comunidade cristã, os presbíteros não estão jamais a serviço
de alguma ideologia ou facção humana, mas, como arautos do Evangelho e
pastores da Igreja, se desdobram por conseguir o crescimento espiritual do
Corpo de Cristo”.

Convém notar que esses três múnus têm igualdade de importância e são exercidos
de forma igual, apesar de ter sido mais valorizado, do ponto de vista histórico, o múnus de
santificar, pelo qual o presbítero quase que reservava suas atividades aos sacramentos.510 A
Congregação para o Clero publicou, no dia 19 de março de 1999, o documento intitulado O
Presbítero. Mestre da palavra, ministro dos sacramentos e guia da comunidade em vista do
terceiro milênio, no qual ressalta a unidade dos três múnus de Jesus Cristo no exercício do
ministério presbiteral.
O sacramento da Ordem se realiza em três graus: episcopado, presbiterato e diaco-
nato. A Lumen Gentium, do Vaticano II, atribui a sacramentalidade da Ordem, em primeiro
lugar, ao bispo, quando fala em “ordenação episcopal” e, abolindo o linguajar anterior,
“consagração episcopal”. O n. 28 do documento citado entende que o presbítero participa
da sacramentalidade da ordenação episcopal, e não possui a plenitude da Ordem, o que o
faz “colaborador da Ordem episcopal” que “prolonga a ação do bispo em todas as comuni-
dades locais cristãs” e “torna visível em todos os lugares a Igreja universal” (Lumen Gen-
tium 28; Presbyterorum Ordinis 2 e 7).

510
A respeito dessa crítica, ver HACKMANN, G.L.B. Servir a Cristo na comunidade. O ministério presbite-
ral em Edward Schillebeeckx. São Paulo: Loyola, 1993, p. 135-149.
266

Não há por que duvidar da sacramentalidade da Ordem e do caráter sacerdotal. É


inegável que a escolha feita pela comunidade tem importância, como demonstram os teste-
munhos da história. Contudo, o sacramento acontece pela imposição das mãos, acompa-
nhada pela epíclese, que foi sempre interpretada como o gesto de validade e liceidade de
uma ordenação. Desde o século I, esse ato litúrgico é necessário e importante para a trans-
missão e efetivação do carisma, tanto no Oriente como no Ocidente. Quanto ao caráter,
pode-se afirmar, com segurança, que tanto no Oriente quanto no Ocidente há uma Teologia
do caráter sacerdotal, entendido como um carisma permanente dado aos ministros pela or-
denação.511
O celibato eclesiástico512 tornou-se lei canônica obrigatória para todo o clero latino
no segundo Concílio de Latrão, em 1139, concluindo um longo processo histórico, iniciado
com leis locais e regionais. O estudo das motivações que levaram à decretação dessa lei
mostra a crescente motivação espiritual, quando sempre mais sacerdotes renunciavam ao
matrimônio, como um dos motivos preponderantes para o Magistério unir sacerdócio e ce-
libato. Outra razão relevante é de ordem pastoral, quando sempre mais presbíteros declinam
do matrimônio para melhor poderem desempenhar sua tarefa pastoral. Assim, da motivação
evangélica, encontrada em Mt 19,11-12, que entende o celibato como um carisma, passa-se
para motivações de ordem espiritual e pastoral, conforme demonstram os Santos Padres.513
Apesar de não haver uma ligação teológica entre sacerdócio e celibato, ambos orien-
tam-se um para o outro. Essa ligação é explicitada pelo Magistério da Igreja, pois o celibato
proporciona maior disponibilidae para o serviço pastoral e é fonte de caridade pastoral e
fecundidade espiritual. O Vaticano II justifica o celibato, apontando-o “ao mesmo tempo
como sinal e estímulo da caridade pastoral e fonte peculiar de fecundidade espiritual no
mundo” (Presbyterorum Ordinis 16), não pretendendo alterar essa lei (cf. id. e Sacerdotalis

511
A propósito, ver HACKMANN, op. cit., p. 159-174.
512
Ver, sobre o tema do celibato, um estudo amplo em COPPENS, J. (Org.). Sacerdozio e celibato. Studi
storici e teologici. Ancora: Milano, 1975, 1025p.
513
A respeito da história e das motivações do celibato sacerdotal, ver HACKMANN, G.L.B. O celibato sa-
cerdotal: história. In: Teocomunicação, 21 (1991/4), p. 545-552; id. Celibato sacerdotal: motivações. In: Teo-
comunicação, 22 (1992/1), p. 133-144. O processo de dispensa do celibato encontra-se regulamentado em De
dispensatione a sacerdotali caelibatu, de 14.10.1980, emanado da Sagrada Congregação para a Doutrina da
Fé, de acordo com o cânon 291, do Código de Direito Canônico de 1983.
267

Caelibatus 14 e 43), pois “o celibato se ajusta de mil modos ao sacerdócio” (Presbyterorum


Ordinis 16). João Paulo II não se cansava de proclamar a estreita ligação entre ambos.514

7.6 O diaconato permanente

O diaconato existiu, desde sempre, na Igreja Católica. Em geral, o texto clássico de


At 6,1ss, sobre a instituição dos sete, é visto, tradicionalmente, como o texto da instituição
da prática do diaconato na Igreja primitiva, embora existam, hoje, interpretações variadas
quanto a esse passo e, inclusive, afirmações de que ele não quer indicar a instituição do
diaconato, porque os sete dos At 6,1ss são responsáveis pela pregação no mundo helenista.
No entanto, do ponto de vista histórico, não há dúvidas quanto a sua existência desde os
primórdios da Igreja. Os textos Rm 15,8; Ef 3,7; 6,21-22; At 20,4-5; Cl 1,6-8; 4,7-9; Tt 3,12
apresentam os diáconos exercendo serviços relevantes. Contudo, não deixa de haver muita
dificuldade para precisar a sua identidade e o seu caráter sacramental.
Inácio de Antioquia registra o diaconato entre a tríade ministerial: é um grupo fixo e
estável que, juntamente com os presbíteros, está em torno do bispo para o serviço da Igre-
ja.515 É a figura da Igreja apresentada na Tradição Apostólica: um bispo no centro da Igreja,
assistido no governo e na ação eucarística pelo colégio de presbíteros, juntamente com um
certo número de diáconos, que realizam atividades diversas. Assim, o diaconato está referi-
do a um bispo, e não ao presbitério, em seu serviço à comunidade.516
Com o passar do tempo, mais precisamente por volta do século IV, o diaconato
permanente foi desaparecendo, até ser de todo extinto, permanecendo apenas como acesso
ao ministério presbiteral. O Vaticano II decretou sua restauração e sua valorização teórica e
prática, conforme se encontra na Lumen Gentium, que afirma: “O diaconato futuramente
poderá ser restaurado como um grau próprio e permanente da hierarquia” (Lumen Gentium

514
A questão da ordenação de mulheres para o presbiterato começou a ser discutida na Igreja Católica e foi
objeto da Declaração Inter Insigniores, emanada da Congregação para a Doutrina da Fé, de 15 de outubro de
1976. O Papa João Paulo II escreveu a Carta Apostólica Ordinatio Sacerdotalis, de 22 de maio de 1994, na
qual ele afirma que a ordenação sacerdotal é reservada somente aos homens por uma disposição divina, conti-
da no depósito da fé.
515
INÁCIO DE ANTIOQUIA, Carta aos Tralianos 2,3; Carta aos Efésios 2,1; Carta aos Esmirnenses 8,1;
10,1.
516
Disdakalia II, 44,2.
268

29). Quer dizer que o situa dentro da constituição hierárquica da Igreja como membros de
Ordem sagrada, admitindo a possibilidade de diáconos casados. E declara ainda mais: “São-
lhes impostas as mãos, ‘não para o sacerdócio mas para o ministério’, porquanto, fortaleci-
dos com a graça sacramental, servem ao povo de Deus na diaconia da liturgia, da palavra e
da caridade, em comunhão com o bispo e seu presbitério” (Lumen Gentium 29).
Posteriormente, o diaconato, incluindo o acesso a homens casados, foi regulamenta-
do pela Carta Apostólica Motu Proprio Ad Pascendum, datada de 15 de agosto de 1972,
também de Paulo VI.517 Ultimamente, duas Congregações publicaram uma declaração con-
junta sobre o diaconato permanente: a Congregação para a Educação Católica promulgou as
Normas fundamentais para a formação dos diáconos permanentes, e a Congregação para o
Clero o Diretório do ministério e da vida dos diáconos permanentes, ambos datados de 22
de fevereiro de 1998.518
Em meio às discussões atuais sobre a ordenação do diaconato, pode-se afirmar, a
partir de uma Eclesiologia orgânica, que o diaconato representa e atualiza o ministério de
Jesus Cristo em seus múltiplos aspectos, em comunhão com o episcopado e o presbiterato,
enquanto servidor. Com Eloy Bueno de la Fuente, pode-se entender a sua peculiariedade
sacramental, não a partir da ótica do poder sobre os sacramentos, mas na dimensão do ser-
viço comunitário, apontando para uma Igreja mais servidora. E o diácono realizará as suas
funções vinculadas mais ao ministério do bispo do que ao do presbitério, mais em perpecti-
va diocesana do que paroquial.519

7.7 Os religiosos na Igreja

A vida religiosa, apesar de aparecer como um fenômeno universal das religiões, tem
seu fundamento na vida de Jesus, em seus gestos, exemplos e palavras (Lumen Gentium 43
e Perfectae Caritatis 12). É de instituição divina, pois os conselhos evangélicos são um
dom divino que a Igreja recebeu do seu Senhor.

517
Id., p. 1118-1131.
518
A Comissão Teológica Internacional publicou um documento sobre o diaconato permanente intitulado
Diaconato, evolução e perspectivas, datado de 30 de setembro de 2002.
519
Cf. DE LA FUENTE, E. B. Eclesiología (Sapientia Fidei 18). Madrid: BAC, 1998, p. 201-203.
269

Ela é entendida como a consagração total da pessoa a Deus. Por isso, apresenta-se
como parte integrante da essência da Igreja. Também não poderá jamais ser abolida, uma
vez que se constitui um elemento vital do Corpo de Cristo, que é a Igreja. O fundamental é
o seguimento de Jesus, que assume forma particular na vida religiosa. Implica uma vida
consagrada a Deus por meio dos três votos (castidade, pobreza e obediência), vividos em
comunidade e a partir de um carisma especial, recebido de seu fundador, como um tesouro
a ser conservado, que origina uma espiritualidade característica.
A Perfectae Caritatis estabelece cinco princípios para a atualização da vida religiosa,
que deve acontecer sob o impulso do Espírito Santo e guia da Igreja:

a) o seguimento de Cristo proposto pelo Evangelho como a regra suprema;


b) índole e função próprias de cada Instituto, de acordo com o espírito e as intenções
dos fundadores;
c) participação e favorecimento das iniciativas e das intenções da Igreja, de acordo
com a índole de cada Instituto;
d) conhecimento do mundo, das pessoas e das necessidades da Igreja e condições pa-
ra julgá-los com sabedoria e à luz da fé;
e) primazia à renovação espiritual, mesmo que se trate de promover obras externas.
270

CAPÍTULO OITAVO

O SERVIÇO DA PALAVRA NA IGREJA

Como a Igreja está a serviço da Palavra de Deus, neste capítulo520 serão desenvolvi-
dos alguns aspectos característicos do desempenho da Igreja desse serviço, que se constitui
em verdadeira missão para ela, enquanto comunidade messiânica de salvação, que é a Igre-
ja do Novo Testamento. A opção por construir um capítulo em torno da Palavra na Igreja
implica algumas repetições, mas ajuda, por outro lado, a destacar a importância da Palavra
de Deus para a Igreja. Para tal, é necessário, em primeiro lugar, recordar três princípios
relacionados com o desempenho da palavra pela Igreja:

a) a Revelação foi confiada a toda a Igreja, pois toda ela participa da missão salvífi-
ca de Jesus Cristo, particularmente pelo múnus profético. Para tal, serve-se da Bíblia, a Pa-
lavra de Deus, e do Magistério, que se tornam, assim, as regras próximas da fé. Entretanto,
a Revelação não é apenas um “depósito”, mas também um processo vital, do qual se tem a
receber e a dar;
b) os graus e as maneiras de participação na função profética de Cristo não são idên-
ticos para todos na Igreja. Apesar de nenhum batizado ser excluído, o Papa e os bispos,
sempre em união com ele, como herdeiros do colégio apostólico, participam de modo parti-
cular do múnus profético, ao receberem o serviço de guiar os irmãos na fé e de assegurar a
sua reta compreensão contra possíveis desvios. Por isso, só estes são, na Igreja, os mestres
autênticos, ou seja, testemunhas qualificadas, oficiais, os únicos intérpretes autorizados da
mensagem de Cristo e de sua interpretação (hermenêutica e reinterpretações). Mas eles
mesmos não podem acrescentar nem cortar nada dessa Palavra recebida de Jesus Cristo que
devem anunciar com fidelidade;
c) os textos neotestamentários que dão fundamento são Mt 28,18-20; At 1,8 e Jo
20,21.
271

8.1 A infalibilidade de toda a Igreja

O Vaticano II repropõe duas teses tradicionais deixadas na sombra durante muito


tempo: a da transmissão e do aprofundamento da Palavra de Deus por meio de todo o Povo
de Deus, no qual os fiéis leigos dão sua contribuição aos pastores, e a da infalibilidade do
Povo de Deus no consenso em matéria de fé e de costumes. Esse ensinamento está claro
nos dois textos conciliares seguintes:

Deus dispôs com suma benignidade que aquelas coisas que revelara para a salva-
ção de todos os povos permanecessem sempre íntegras e fossem transmitidas a
todas as gerações (Dei Verbum 7).

A Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura constituem um só sagrado depósito da


palavra de Deus confiado à Igreja; apegando-se firmemente ao mesmo, o povo
santo todo, unido aos seus pastores, persevera continuamente na doutrina dos
apóstolos e na comunhão, na fração do pão e nas orações (cf. At 2,42), de sorte
que os bispos e os fiéis colaboram estreitamente na conservação, exercício e pro-
fissão de fé transmitida (Dei Verbum 10).

O texto básico encontra-se na Lumen Gentium 12, em que está afirmada a infalibili-
dade de todo o Povo de Deus, como já foi citado anteriormente:

O conjunto dos fiéis, ungidos que são pela unção do Santo (cf. 1Jo 2,20 e 27),
não pode enganar-se no ato de fé. E manifesta essa sua peculiar propriedade me-
diante o senso sobrenatural da fé de todo o povo, quando, desde os bispos até aos
últimos fiéis leigos, apresenta um consenso universal sobre questões de fé e cos-
tumes.

A infalibilidade é um carisma, um dom de Deus, pelo qual a Igreja, de per si infalí-


vel, está, em certas condições, imune de erro. E porque a Igreja participa, assim, da infalibi-
lidade de Jesus Cristo, ela é infalível, portanto, por extensão da verdade infalível de Cristo.
E ele prometeu que permaneceria conosco até o final dos tempos (Mt 28,18-20).

8.2 A infalibilidade do Magistério da Igreja

O Mestre prometeu que os apóstolos seriam pérpetua e eficazmente assistidos por


ele, isto é, estariam preservados de todo erro e da possibilidade de errar. O Espírito Santo,
que assistiu aos apóstolos e os santificou (Jo 14,13.16-17.26; At 1,8 e 2,6), é a causa sobre-

520
Este capítulo é, com alguns acréscimos, uma síntese de BENI, op. cit., p. 663-739.
272

natural da infalibilidade. Com efeito, o Espírito Santo, qual mestre espiritual e interior,
além de agir em todos os cristãos, para mantê-los firmes em toda a verdade e conservá-los
na fidelidade a Cristo, age, de modo especial, nos pastores, que são os sucessores dos Doze,
isto é, do apóstolo Pedro e dos outros onze, dotando o seu Magistério de um adequado ca-
risma de verdade.
A razão teológica é a seguinte: se a Igreja é perene e, portanto, indefectível nos seus
elementos essenciais, deve ser perene nela também o Magistério infalível. Por meio dessa
prerrogativa, a Igreja pode conservar intactas, até o final dos tempos, a pureza e a unidade
do depósito da fé. Com efeito, sem um Magistério infalível, a Revelação terminaria por
ceder às vicissitudes e contrariedades das opiniões humanas. A declaração da Congregação
da Doutrina da Fé Mysterium Ecclesiae afirma o seguinte: “O Povo de Deus tem necessida-
de da intervenção e da ajuda do Magistério, quando surgem dissensos internos e se difun-
dem sobre uma doutrina que deve ser crida e retida; e isso para evitar que, dentro do Corpo
de seu Senhor, ele seja privado da comunhão da única fé” (n. 2).
O mesmo documento explica a natureza da infalibilidade da seguinte forma:

O carisma da infalibilidade não dispensa o sucessor de Pedro e o colégio episco-


pal do empenho de perscrutar, com o uso dos meios apropriados, o tesouro da
Revelação divina contido na Bíblia e na Tradição viva da Igreja. Mas no exercí-
cio das suas funções, os pastores da Igreja são convenientemente assistidos pelo
Espírito Santo; e essa assistência chega ao vértice, quando instruem o Povo de
Deus, de tal modo que, pelas promessas de Cristo a Pedro e aos outros apóstolos,
seu ensinamento é necessariamente imune de erro (Mysterium Ecclesiae 3).

Portanto, a infalibilidade é uma ação particularíssima da Providência, por uma espe-


cial assistência do Espírito Santo, que dirige todo o ensinamento definitivo da Igreja, a fim
de preservá-lo, em matéria de fé e de moral, de todo e qualquer erro, porquanto ele é a alma
da Igreja. E essa assistência não é só negativa, no sentido de só impedir o erro, mas também
positiva, enquanto conduz ao aprofundamento e ao conhecimento da verdade revelada (DS
893).
E os detentores do Magistério autêntico infalível, na Igreja, são o colégio episcopal
e o Papa.

Os bispos sucedem os apóstolos tanto no múnus magisterial quanto no pastoral.


Mas, aqui, convém notar que os bispos congregados em colégio episcopal, sucessor do co-
273

légio apostólico, e não os bispos individualmente, são infalíveis, de acordo com a Nota
Prévia, no final da Lumen Gentium, que é uma explicação do n. 22 do mesmo documento,
sempre sob a presidência do Papa, sucessor individual do apóstolo Pedro. Portanto, a infa-
libilidade diz respeito a todo o colégio episcopal, e não a um bispo individualmente, pois os
bispos, com exceção do sucessor de Pedro, sucedem ao colégio dos apóstolos. De fato, o
colégio dos bispos sucede ao colégio apostólico. Quer dizer que os bispos são infalíveis
somente quando unidos entre si, sob a chefia do Papa, pois o colégio não existe sem a sua
cabeça (cf. Nota Prévia 3).
O ensinamento episcopal assume uma forma dupla: ensino solene, por meio do
Concílio ecumênico, e Magistério ordinário e universal. Em ambos os casos, sempre quan-
do se verificam as condições exigidas, o Magistério é infalível.
O Concílio ecumênico é a reunião legítima dos pastores da Igreja, para discutir e
decidir sobre questões de fé, de moral e de disciplina da Igreja universal. Os elementos
formais que tornam um Concílio ecumênico são os seguintes: convocação, celebração e
confirmação ou aprovação do Papa. Quando a participação é representativa de uma parte
dos cristãos, diz-se Concílio particular. Quando participam bispos de mais províncias ecle-
siásticas, diz-se Concílio plenário; provincial, se restrito a uma Província eclesiástica.
Os bispos, fora de um Concílio ecumênico, podem também ser infalíveis, mesmo
dispersos pelo mundo e em comunhão de Magistério com o sucessor de Pedro, quando con-
cordam em uma única sentença a reter como definitiva, embora individualmente não gozem
dessa prerrogativa (cf. Lumen Gentium 25). Tais ensinamentos concordes, que se constitu-
em em Magistério ordinário, acontecem, se explicam e podem ser acertados através da
pregação, das cartas encíclicas e pastorais, dos catecismos diocesanos, dos decretos e decla-
rações doutrinais, da aprovação tácita ou expressa dos escritos dos padres e dos teólogos,
dos estatutos dos Sínodos e dos Concílios plenários etc. Como na prática nem sempre é
fácil saber até que ponto existe o consenso, o Papa pode verificar a sua existência ou não
sobre determinado assunto por meio de um instrumento hábil.521

521
O Papa Pio XII aplicou um questionário para verificar o consenso universal sobre a doutrina da Assunção
de Maria aos céus e o usou como o argumento decisivo para a proclamação do dogma da Assunção, como
está afirmado na Munificentissimus Deus, de 1º de novembro de 1950 (cf. PIO XII, Allocuzione nel Concisto-
rio del 30 Ottobre 1950. In: AAS, 42 (1950), p. 774-775).
274

O objeto do Magistério infalível da Igreja são as verdades formalmente reveladas, as


implicitamente presentes na Revelação e as “verdades conexas” com as doutrinas formal-
mente reveladas (as conclusões teológicas e os fatos dogmáticos).
As verdades formalmente reveladas são aquelas atestadas por Deus e contidas na
Sagrada Escritura explicitamente, como, por exemplo, a encarnação, e implicitamente,
quando contidas no depósito da fé. Como exemplo, pode-se aludir, no caso da encarnação,
que Jesus Cristo possui corpo e alma como nós. Também os dogmas marianos, explicitados
à luz da fé pelo método racional teológico ou pelo conhecimento resultante da lumen fidei,
conforme a expressão de Santo Tomás.522
O ensinamento da Igreja, iluminado pelo Espírito Santo e manifestando progressi-
vamente de maneira infalível o conteúdo da Revelação, pode atestar, com toda certeza, a
origem divina dos dogmas marianos. Isso porque Jesus Cristo dotou o Magistério da prer-
rogativa da infalibilidade, que atinge o depósito da fé, por resultar de Cristo (Jo 14,26), que
ensinará tudo aos pregadores do Evangelho (Mt 28,20).
Embora as verdades conexas com as doutrinas formalmente reveladas não estejam
contidas de modo formal na Revelação, estão contidas de modo virtual, por estarem estrei-
tamente ligadas com ela. O Mysterium Ecclesiae 3 diz: “Segundo a doutrina católica, a in-
falibilidade do Magistério da Igreja se estende, não só ao depósito da fé, mas também a
tudo o que é necessário para que ele possa ser guardado e exposto como deve”. São elas:

1º) as conclusões teológicas são verdades que se deduzem por raciocínio verdadeiro
e próprio das premissas contidas na Revelação. Exemplo: a Eucaristia é o corpo de Cristo,
e, da verdade racional que cada corpo tem sua quantidade, deduz-se a conclusão teológica
de que na Eucaristia está presente o corpo de Cristo com sua quantidade. Também esses
ensinamentos gozam de infalibilidade, porque esse carisma é dado para zelar pela integri-
dade do depósito da fé, através da razão, pois a Igreja deve saber até onde se estende sua
infalibilidade, para discernir o falso e o verdadeiro (DS 3405);
2º) os fatos dogmáticos são realidades não contidas na Revelação e de cuja aceita-
ção dependem intrínseca e necessariamente a consciência e a segurança do dogma. Como

522
Summa Theologiae II-II, 1, 4, ad 3.
275

exemplo, vale citar a legitimidade da eleição de um Papa ou de um Concílio ecumênico. Se


Pio XII não fosse verdadeiro Papa, a Igreja não creria, hoje, na Assunção.

As notas teológicas são fórmulas que servem para qualificar o valor dogmático de
uma doutrina em relação com a fé. Assim, uma verdade é de fé divino-católica ou de fé
católica ou dogma de fé, quando revelada por Deus e proposta pelo Magistério extraordiná-
rio ou ordinário para se crer como tal. É fé definida (de fide definita) quando proposta pelo
Papa, por meio de uma definição solene, ou pelo Concílio. É de fé divina (de fide), quando
contida de modo evidente na Revelação, mas não proposta a se crer explicitamente pela
Igreja. É de fé eclesiástica, quando não contida formalmente na Revelação, mas definida
infalivelmente pelo Magistério. É próxima à fé, quando é considerada contida na Revelação
unanimemente pela Igreja, mas não definida expressamente. É teologicamente certa, quan-
do a doutrina é deduzida de uma verdade revelada, cuja negação seria rejeitar um dogma. É
doutrina católica, quando a doutrina expressa é autenticamente ensinada pela Igreja, mas
não ainda como verdade de fé.
As censuras teológicas indicam o grau de contraste de uma doutrina com a fé e com
os costumes. Assim, uma doutrina é herética, quando está em oposição certa e direta a uma
verdade divino-católica, isto é, um dogma. É próxima a heresia, quando a verdade negada é
uma verdade próxima à fé. É errônea na fé, quando está em oposição a uma verdade de fé
divina ou de fé eclesiástica. É somente errônea, quando em oposição a uma proposição
teologicamente certa. É temerária, quando em oposição a uma doutrina católica comumen-
te aceita pela Igreja, mas não ainda como verdade de fé.
Os cristãos devem obediência ao Magistério nas verdades formalmente declaradas e
ao seu ensino ordinário, como verdades da fé divina e católica. A não aceitação (desobedi-
ência em questões de fé e de moral) põe em risco a salvação pessoal (cf. Lumen Gentium
25).

8.3 A infalibilidade do Papa

O Vaticano I assim define:


276

Ensinamos e definimos como dogma divinamente revelado que o Romano Pontí-


fice, quando fala ex cathedra, isto é, no desempenho do ministério de pastor e
doutor de todos os cristãos, define com sua suprema autoridade apostólica alguma
doutrina referente à fé e à moral para toda a Igreja, em virtude da assistência di-
vina prometida a São Pedro, goza daquela infalibilidade com a qual Cristo quis
munir a sua Igreja, ao definir alguma doutrina sobre a fé e a moral; e que, portan-
to, tais declarações do Romano Pontífice são por si mesmas, e não apenas em vir-
tude do consenso da Igreja, irreformáveis (DS 3074).

Portanto, o Pontífice Romano, chefe do colégio dos bispos, em virtude de seu ofício,
goza da infalibilidade da Igreja, quando, qual pastor supremo e doutor de todos os fiéis, que
confirma na fé os irmãos (Lc 22,32), sanciona com ato definitivo uma doutrina sobre a fé e
a moral (cf. DS 3070).
Essa definição foi assumida pelo Vaticano II (Lumen Gentium 25) e Mysterium Ec-
clesiae 3, como, aliás, não poderia deixar de ser. A infalibilidade papal é uma prerrogativa
intimamente conexa com o primado, conferido por Cristo a Pedro e a seus sucessores (cf.
Mt 16,18-19).
O Vaticano II completou em muitos aspectos essa doutrina, que não ficara totalmen-
te clara no Vaticano I. Apresentando uma doutrina mais completa, o Vaticano II mostra a
infalibilidade como dom da Igreja universal e afirma que também o colégio dos bispos goza
dela, quando em colégio episcopal presidido pelo Papa. O número 25 da Lumen Gentium é
central.
Algumas observações referentes a essa doutrina523:

a) o Vaticano II deu preferência à palavra “pregar” em vez de “ensinar”, dando um


caráter mais salvífico-sacramental do que jurídico às declarações;
b) a infalibilidade do Papa está ligada à infalibilidade de toda a Igreja e à do colégio
episcopal, ou seja, dos bispos com o Papa, seu chefe;
c) uma declaração infalível do Papa é uma decisão de fé. Não é uma fé nova que se
cria com a decisão papal, mas é a fé já existente que é verificada, explicada e anunciada. A
doutrina exposta pelo Papa deve fundamentar-se na Escritura e/ou Tradição;
d) a palavra “infalibilidade” significa, positivamente, que, “na Igreja e pela pregação
episcopal, o depósito da salvação deixado por Cristo e a verdade salvífica transmitida pelos

523
Cf. SCHMAUS, op. cit., p. 180-187.
277

apóstolos se conservam e comunicam fidedignamente, que a Igreja se mantém na verdade e


que ela permanece fiel a Cristo”.524

Portanto, a infalibilidade exprime a posse garantida da verdade e a sua comunica-


ção. Atribuída ao Papa, tem o sentido de permitir que a Revelação seja anunciada com au-
tenticidade, sem mal-entendidos humanos, sem abreviações, sem adições. O Papa usa da
infalibilidade somente em “questões de fé e de moral”, quando válidas para toda a Igreja, e
no desempenho de seu ministério de pastor e doutor de todos os cristãos. Dessa forma, as
definições são irreformáveis por si mesmas e têm caráter de decisão definitiva para a fé.
Dessa forma, a infalibilidade do Papa está a serviço da Igreja e é uma garantia de
que esta permanece na mesma verdade ensinada e deixada a ela por Jesus Cristo.

8.4 Consenso e dissenso na Igreja

O tema do consenso e do dissenso na Igreja é difícil e melindroso. Hoje, ao se dar


muita importância ao pluralismo teológico, pode-se correr o risco de chegar ao dissenso.
Por outro lado, a ciência teológica é muito dinâmica, por isso nenhuma fórmula dogmática
pode ser exclusiva, estática, absolutizada, mas deve ficar aberta ao progresso, a novas pers-
pectivas integradas, e até, quem sabe, ser substituída por outra mais adequada.
Para haver um verdadeiro discernimento entre consenso e dissenso, deve-se apelar
para a hermenêutica teológica, que busca a descoberta do pensamento verdadeiro e seu sig-
nificado. Ela coloca os problemas da crítica textual (texto, contexto próximo e remoto), a
história dos termos e os conceitos, a época da definição etc., pois o cristianismo não é uma
filosofia ou uma ideologia, muito menos ainda apenas um catálogo de verdades ou proposi-
ções a se crer.
Podem-se citar algumas pistas provisórias, em vista da tratativa da matéria:

- a obediência não é passivismo;


- a contestação é um direito da verdade, que sempre é maior;

524
Cf. ibid., p. 184.
278

- a contestação é um direito de justiça, em que deve prevalecer o bem comum, a


caridade até a unidade e a solidariedade fraternal;
- a crítica não pode jamais ser radical, totalmente negativa, global, brutal e selva-
gem; deve ser sempre humana, cordial e cristã, por isso deve ser útil à pessoa e ao bem co-
mum.

8.5 A recepção

A recepção de um Concílio é um tema muito pouco debatido na Teologia. A posi-


ção do Brasil a respeito desse assunto não faz exceção com o restante da situação mundial,
visto ser matéria pouco estudada de forma sistemática na Eclesiologia. Entretanto, se é um
tema pouco refletido, contudo está sempre presente na Igreja, a tal ponto de Y. Congar di-
zer que se pode estudar “a história de todos os Concílios sob o ângulo da recepção”.525
O já citado e conhecido teólogo francês trouxe esse tema à tona, quando, em 1972,
escreveu, em meio às suas reflexões eclesiológicas, um artigo, iniciando-o de maneira mui-
to sugestiva: “Tema perigoso? Em todo caso, tema raramente abordado, e todavia da maior
importância, tanto sob a perspectiva do ecumenismo, como de uma Eclesiologia plenamen-
te tradicional e católica”.526
Uma década após, são publicados outros dois trabalhos sobre a recepção. Thomas
Ryan afirma, ao iniciar seu artigo, que “recepção” é a nova palavra sagrada no movimento
ecumênico. Na mesma época, Jean-Marie R. Tillard assinala que o termo, embora raramen-
te utilizado nos decênios recentes, ganha terreno no círculo da reflexão eclesiológica.527
Com efeito, o tema da recepção está encontrando, recentemente, espaço no debate
teológico, devido aos dois motivos elencados a seguir: primeiro, a comemoração dos vinte
anos do término do Vaticano II, quando o Papa João Paulo II convocou um Sínodo Extra-
ordinário, acontecido de 25 de novembro a 08 de dezembro de 1985, para “celebrar, verifi-

525
“On pourrait poursuivre l’histoire de tous les conciles sous l’angle de leur réception”. CONGAR, Y. La
‘réception’ comme réalité ecclésiologique. In: Revue des Sciences Philosophiques et Théologiques 56 (1972),
p. 374. Há uma publicação abreviada do mesmo artigo em Concilium 1972/7, p. 886-907, que não será usada
aqui.
526
“Thème dangereux? En tout cas, thème rarement abordé, et cependant d’une importance majeure tant au
point de vue de l’oecuménisme qu’à celui d’une ecclésiologie pleinement traditionelle et catholique” (cf. id.,
p. 369).
527
Cf. ROUTHIER, G. La réception d’un concile. Paris: Du Cerf, 1993, p. 15 e 16, notas 2 e 3.
279

car e promover o Concílio Ecumênico Vaticano II”, que provocou um debate sobre a sua
recepção528; segundo, o movimento ecumênico, que trouxe o tema à luz de forma tão pre-
ponderante que o consagrou no sentido de frisar a necessidade de os diálogos e os acordos
bilaterais ou multilaterais serem recebidos pelas respectivas Igrejas.
G. Routhier, com razão, defende a opinião de que o tema da recepção é, ao mesmo
tempo, tradicional, por isso longe de ser estranho à literatura teológica ou à prática eclesial,
e oculto, pois esteve ausente em um período da história da Igreja, devendo, por isso mesmo,
ser redescoberto, motivos pelos quais não se pode considerá-lo como um conceito novo.529
Em suma, poder-se-ia afirmar que a recepção implica um conceito já conhecido pela tradi-
ção eclesial, porém não discutido. Essa é a conclusão de J. P. Boyle, quando estuda o Vati-
cano I.530
J. Ratzinger comunga com esse tipo de constatação, ao mostrar que a ideia da re-
cepção já estava presente entre os bispos no Concílio de Trento (1545-1563), especialmente
através dos Cardeais Cervini e Seripando. A recepção está presente nos textos conciliares,
como demonstra o Decreto sobre os Livros Sacros e as Tradições a Receber, da quarta ses-
são, de 8 de abril de 1546, na qual foi definido o cânon bíblico (DS 1501-1508). O Vaticano
I fez uso da recepção, ao receber doutrinas anteriores, não apenas quando professou publi-
camente a fé de Trento, na segunda sessão, mas também quando redigiu novos enunciados
doutrinais a partir de decretos de Concílios anteriores.531

8.5.1 O fato da recepção

A recepção pertence à vida da Igreja e nela se estabelece como um processo consti-


tutivo, porquanto está no coração da relação entre Deus e seu povo, entre as pessoas na

528
Assim o L’Osservatore Romano anuncia a convocação da segunda Assembleia Extraordinária do Sínodo
dos Bispos: “Um Sínodo extraordinário para reviver e aprofundar o Concílio Vaticano II: O Papa convocou
uma Assembleia Extraordinária do Sínodo dos Bispos, a ser realizada de 25 de novembro a 8 de dezembro
deste ano, para recordar o Concílio Ecumênico Vaticano II a vinte anos do seu encerramento, com o objetivo
de reviver aquela atmosfera de comunhão eclesial e de aprofundar o denso ensinamento conciliar, em ordem à
sua aplicação na vida da Igreja. Este anúncio foi feito no encerramento da Semana de oração pela unidade dos
Cristãos, ao término da Missa celebrada na Basílica de S. Paulo fora dos Muros, no dia 25 de janeiro”. (In:
L’Osservatore Romano. Edição Semanal em português, de 3 de fevereiro de 1985, ano XV, nº 5, p. 01).
529
ROUTHIER, op. cit., p. 17. Observo que sigo, fundamentalmente, essa obra para a elaboração deste item.
530
Ibid., p. 18.
531
RATZINGER, J. Ein Versuch zur Frage des Traditionsbegriffs. In: Offenbarung und Überlieferung. Fri-
bourg, 1965, p. 58, 59 e 65 apud ROUTHIER, op. cit., p. 18.
280

Igreja e entre as Igrejas Locais e as Igrejas de diversas confissões cristãs. E esse processo
tem um alcance maior, ao dizer respeito, também, às relações entre Igreja, cultura e socie-
dade.
Portanto, o fato da recepção faz parte da história da Igreja, embora, como foi frisado
anteriormente, não refletido e nem sempre presente nos debates teológicos. A análise da
recepção faz constatar sempre ter havido uma recepção feita pelo Papa, que pode ser cha-
mada de oficial, e que sempre existiu, conforme demonstra o estudo da história dos Concí-
lios e da liturgia, que prova sempre ter havido a realidade da recepção na Igreja. Esta se
encontra regulada pelo Código de Direito Canônico, conforme os cânones 222 e 227 do
Código, de 1917, e do cânon 338 do Código, de 1983. O Vaticano II demonstra o mesmo,
ao apenas considerar válido e verdadeiro ato colegial uma iniciativa dos bispos somente
quando aprovada pelo Papa, conforme Lumen Gentium 22.532
Contudo, embora exista uma recepção oficial, convém frisar, desde já, que a recep-
ção de um Concílio não depende exclusivamente do Papa ou do colégio dos bispos, mas é
um processo que envolve toda a Igreja, pois é ela toda quem recebe um Concílio, a partir de
princípios teológicos explícitos, conforme será exposto mais adiante. O estudo da história
dos Concílios, enquanto aponta para a vida concreta da Igreja, mostra a recepção como algo
inerente a ela mesma.
A fé de Niceia só foi plenamente recebida após uma caminhada de 56 anos, mar-
cada por Sínodos, excomunhões, exílios, intervenções e violências imperiais. Foi o Concí-
lio de Constantinopla, de 381, que pôs fim a essas querelas, o qual, por sua vez, só foi con-
siderado ecumênico533 porque sua profissão de fé foi recebida por Calcedônia534, como ex-
pressão mais completa da fé nicena. Com efeito, o Símbolo, conhecido como constantino-
politano, foi lido após o de Niceia e os cânones do de 381 como “sinódicos535 do segundo
Concílio”. Mas foi só em 519, e antes por consentimento tácito e suposto, que Roma, mais
precisamente, o Papa Hormisdas (514-523), recebe a profissão de fé do Patriarca de Cons-

532
Deve-se comparar com Christus Dominus 4 e Lex Ecclesiae Fundamentalis, cânones 41 e 46, § 1.
533
Não se vai entrar, aqui, na discussão sobre a ecumenicidade dos Concílios. Para tal, pode-se ver WOL-
FINGER, F. O Concílio ecumênico e a recepção de suas conclusões. In: Concilium 187 (1983/7), p. 95-101;
RICCA, P. O Concílio ecumênico: expressão de colegialidade dos bispos ou a communio ecclesiarum, ou
representação de toda a comunidade dos fiéis? In: Concilium 187 (1983/7), p. 102-109.
534
Santo Ambrósio se lamentava do esquecimento e da ausência de Roma em Constantinopla (cf. Epist. 13,4-
8. PL 16,952-953. In: CONGAR, op. cit., p. 372).
535
Sinódicos é a coleção de resoluções sinodais.
281

tantinopla, João de Bizâncio, feita ao firmar a Formula Hormisdae, e reconhece o Concílio


de Constantinopla como o segundo dos quatro primeiros ecumênicos.536
O Concílio de Niceia conheceu ainda outras vicissitudes. Alguns meses depois de
seu término, dois bispos retiraram sua aprovação ao dogma da filiação divina. Os Sínodos
de Tiro e de Jerusalém, em 335, depõem Atanásio e reabilitam Ario. O próprio Papa Júlio
(337-352) parece não ter considerado o julgamento de Niceia como irrevogável. Todavia, o
Imperador Constantino Magno rechaçou essas e outras ameaças contra o Símbolo niceno,
enquanto um dos seus filhos, no Ocidente, prescrevia como obrigatória a fé nicena, e o ou-
tro, Constâncio II, no Oriente, liderava uma oposição ao mesmo Símbolo. Tendo este últi-
mo se tornado Imperador, em 353, impôs uma fórmula semiariana em todo o Império, re-
correndo, inclusive, a medidas coercitivas contra os bispos, mesmo contra Libério, bispo de
Roma (352-366). Somente mais tarde, com a divisão dos antinicenos, Basílio Magno, Gre-
gório Nazianzeno e Gregório de Nissa conseguiram a vitória da fé no Filho de Deus, con-
forme professava o primeiro niceno.537
O Concílio de Constantinopla, de 381, teve um cenário conturbado. O Imperador
Teodósio I (379-395) insistiu na aceitação do Símbolo de Niceia como conforme à fé do
bispo de Roma e do de Alexandria. Mas como havia dois cânones (o segundo e o terceiro)
que desagradaram a Sé de Roma, foram necessários setenta anos para que o Papa Leão I, e
com ele toda a Igreja latina, reconhecesse a apostolicidade do Concílio de Constantinopla
no de Calcedônia. E o mesmo Papa o havia rechaçado dois anos antes, tachando de “latro-
cínio” o Concílio celebrado em Éfeso, por ter contrariado a fé católica, conforme o Tomus
ad Flavianum.538
A história do III Concílio, o de Éfeso, de 431, não é capaz de fazê-lo passar por
ecumênico, o que só foi possível devido a entendimentos posteriores, dois anos após, entre
Cirilo e o grupo de João de Antioquia. É que Cirilo de Alexandria, precipitadamente, deci-
diu realizar duas assembleias, sem relação uma com a outra, antes da chegada dos Bispos
sírios e dos legados, que chegaram, respectivamente, dois e dezoito dias após.539

536
Cf. ALBERIGO, G. (Org.). Storia dei concili ecumenici (2. ed.). Brescia: Queriniana, 1993, p. 46-56.
537
Cf. DENZLER, G. Autoridade e recepção das conclusões conciliares na cristandade. In: Concilium 187
(1983/7), p. 16s. Ver também ALBERIGO, op. cit., p. 52s.
538
Cf. DENZLER, op. cit., p. 17. Sobre a questão dos privilégios pretendidos por Constantinopla, como nova
Roma, ver ALBERIGO, op. cit., p. 105s.
539
Cf. ALBERIGO, op. cit., p. 77.
282

Calcedônia recebeu o Tomus ad Flavianum e as duas cartas de Cirilo, junto com os


Símbolos de Niceia e Constantinopla, com aclamações que exaltavam “a fé dos Padres e a
fé dos apóstolos” e proclamavam que “Pedro falou pela boca de Leão” e “Leão e Cirilo
ensinaram do mesmo modo”, constituindo-se em um verdadeiro ato de recepção, uma vez
que o Concílio reconheceu a expressão da fé de Pedro na fórmula do Papa. No entanto, a
recepção de Calcedônia percorreu uma longa trajetória. Até é possível falar de não recepção
jurídica e literal da decisão conciliar por parte da hierarquia romena e dos coptas egípcios,
devido ao antinestorianismo e à reação contra a Pérsia, por ser considerada exógena, o que
levará ao quinto Concílio ecumênico.540
O Concílio de Niceia II, de 787, esbarrou na recusa dos teólogos francos, especi-
almente por causa das declarações sobre o culto das imagens. Eles fundamentavam a sua
posição, afirmando que o conteúdo da fé deve ser tido como superior à autoridade do Con-
cílio.541 Somente no pontificado de Leão IX (1049-1054) é que esse Concílio foi oficial-
mente reconhecido no âmbito da Igreja latina.542
Um exemplo de não recepção pode ser referido por ocasião do Concílio de Floren-
ça, com a bula Laetentur Coeli, de 06 de julho de 1439, que celebrou a união entre as Igre-
jas latina e oriental, mas que teve pouco efeito prático, diante da não aceitação da união,
nem pelo clero, nem pelo povo da Igreja greco-bizantina. Joseph Gill, ao comentar esse
fato, cita a difusão de uma opinião geral sobre a união das duas Igrejas, segundo a qual a
união foi refutada pouco tempo depois em Constantinopla, quando da chegada da delegação
grega. Prova disso são os poucos acordos de união celebrados com as Igrejas orientais sepa-
radas.543
O IV Concílio de Latrão, de 1215, foi recebido no Ocidente de tal forma que dei-
xou marcas profundas. A sua profissão de fé Firmiter, reproduzida do início dos Decretais,
converte-se em um quarto Símbolo e esquema de ensino dos clérigos e fiéis; sessenta de
seus textos e 59 de seus setenta cânones entraram no Direito Eclesiástico, até no Código de

540
Cf. CONGAR, op. cit., p. 372s; ALBERIGO, op. cit., p. 96 e 106s.
541
Constantino afirma que o Imperador, enquanto sucessor e igual aos apóstolos, não necessita de um Concí-
lio para decidir em matéria de fé (cf. id., p. 148).
542
Cf. DENZLER, op. cit., p. 17.
543
GILL, J. Il concilio di Firenze. Firenze: G. C. Sansoni, 1967, p. 417. É sintomática a afirmação com a qual
o autor conclui o último capítulo do livro: “A causa da união estava perdida” (p. 462).
283

1917, o que justifica afirmar, seguindo Congar, que a recepção de um Concílio depende de
sua eficácia.544
E Y. Congar ainda acrescenta:

Em compensação, a recepção foi estabelecida e expressa, às vezes, por decisões


explícitas. A esse respeito, a recepção por parte da Santa Sé Apostólica de Roma
foi decisiva para todo o processo de recepção no Ocidente. Para Roma, em si
mesma, possuía um valor de confirmação. Mas ela também foi afirmada por um
processo mais extenso e mais complexo, exercido pela pregação (aspecto querig-
mático), espiritualidade e elaboração teológica. Por se tratar de dogmas trinitários
e cristológicos, a liturgia a consagrou e definitivamente assegurou: lex orandi.545

8.5.2 A recepção como realidade eclesiológica

O ponto anterior induz à constatação de que o fato da recepção sempre existiu na


vida da Igreja, embora, como já foi aludido anteriormente, não tenha sido abordado do pon-
to de vista da Eclesiologia. E é o que se tentará fazer a seguir, enquanto se buscará encon-
trar um conceito para a recepção, assim como os princípios teológicos que a tornam possí-
vel, além de critérios para se estabelecer se houve ou não a recepção de um Concílio, ou,
ainda, se a recepção está em processo.

a) O conceito de recepção

Inicialmente, seguindo E. Kilmartin, é preciso assinalar que o

processo de recepção de um bem espiritual na Igreja resiste a uma análise exata,


por ser um conceito não captável. Como o fenômeno da recepção se produz fre-
quentemente no interior das Igrejas de uma mesma comunhão ou entre Igrejas se-
paradas, uma descrição precisa do processo não é feita de maneira geral.546

Todavia, é possível estabelecer elementos que favorecem uma compreensão con-


ceitual de recepção, tendo em vista a análise dos mesmos na vida da Igreja. O intuito não é
apresentar uma teoria original da recepção, mas apresentar uma síntese crítica, definindo e

544
CONGAR, op. cit., p. 374.
545
Ibid., p. 373.
546
KILMARTIN, E. J. Reception in History: An Ecclesiological Phenomenon and its Significance. In: Jour-
nal of Ecumenical Studies 21(1984), p. 37 apud ROUTHIER, op. cit., p. 69, nota 7.
284

descrevendo esse processo, no intuito de tornar o conceito mais operacional e mais apto a
suster as análises relativas aos fatos particulares da recepção.
Y. Congar define recepção como o “processo pelo qual um corpo eclesial faz ver-
dadeiramente sua uma determinação que ele não deu a si próprio, reconhecendo, na medida
promulgada, uma regra que convém à sua vida”.547
Motivado pela razão de não se poder apresentar uma definição operacional estrita
de recepção, por ser um fenômeno amplo e complexo e conhecer diferentes acentos e mo-
dalidades, ao longo das idades e segundo as confissões548, G. Routhier afirma ser mais fácil
encontrar elementos que descrevem ou caracterizam o processo e o apresenta como “um
processo espiritual através do qual as decisões propostas por um Concílio são acolhidas e
assimiladas na vida de uma Igreja Local e tornam-se, para esta, uma viva expressão da fé
apostólica”.549
Diante dessas duas definições, podem ser feitas algumas observações. Em primeiro
lugar, é preciso distinguir entre dois sentidos do termo recepção, segundo A. Grillmeier,
que, por sua vez, se inspirou no estudo de Franz Wieacker sobre a recepção do direito ro-
mano no mundo germânico.
O primeiro é o sentido estrito, reputado como sentido próprio, enquanto o segun-
do, o sentido análogo, que é o mais largo, vem considerado como sentido impróprio. Se-
gundo A. Grillmeier, só se pode falar de recepção no sentido do encontro da ação de dar e
receber entre duas regiões culturais diferentes e separadas, tornando-a um processo exóge-
no e não endógeno, ou epidêmico e não endêmico. Tal é o sentido estrito ou próprio.550
Diante dessa compreensão, a recepção é um elemento cultural que o “povo A” re-
cebe do “povo B”, mas caracterizado por não ter sido criado por ele; portanto, totalmente
estranho. Assim, não podem ser considerados como fenômeno de recepção uma evolução
interna ou o desenvolvimento de um elemento no interior de uma cultura. Contudo, o refe-

547
“Par ‘réception’ nous entendons ici le processus par lequel un corps ecclésial fait sienne en vérité une
détermination qu’il ne s’est pas donné à lui-même, en reconnaissant, dans la mesure promulguée, une règle
qui convient à sa vie” (CONGAR, op. cit., p. 370).
548
Sobre a história detalhada do processo de recepção, ver ROUTHIER, op. cit., p. 15-65.
549
“Sommairement, nous décrivons la réception comme un processus spirituel par lequel les décisions propo-
sées par un concile sont accueillies et assimilées dans la vie d’une Église locale et deviennent pour celle-ci
une vivante expression de la foi apostolique” (ROUTHIER, op. cit., p. 69).
550
Cf. ROUTHIER, op. cit., p. 53. Por “exógeno” se entende o que cresce de fora para dentro, enquanto por
endógeno o que cresce de dentro para fora; por “epidêmico” o que se alastra rapidamente e, por “endêmico” o
que já existe em um determinado lugar.
285

rido autor não descarta a possibilidade de acontecer a recepção dentro da própria Igreja
Católica, embora ele reserve o conceito de recepção, em sentido próprio, para o processo de
câmbio entre as Igrejas regionais, como ocorreu nos primeiros séculos da Igreja, ou, ainda,
entre Igrejas separadas. O que não se enquadra nessa ótica é considerado “recepção inau-
têntica ou imprópria”, ou o sentido análogo.551
A posição de A. Grillmeier foi criticada por diversos autores, especialmente por Y.
Congar, por parecer muito rígida. Na verdade, há dois elementos que se entrecruzam na
posição de Grillmeier e que devem ser abordados separadamente: a distinção entre os par-
ceiros e a originalidade do bem produzido pela relação com o parceiro que o recebe.
Deve-se reconhecer que certa exogenia é necessária, pois não é possível haver tro-
ca de um bem sem a presença de dois parceiros distintos. Essa via abre a perspectiva para
compreender a Teologia da recepção, a partir de uma Teologia da Igreja Particular e de uma
Teologia do Espírito Santo, que distribui seus variados dons a todos os membros da Igreja.
Essas duas bases já são suficientes para justificar a distinção de parceiros. A isso se acres-
centem a necessidade de a Igreja Local ser sujeito de ação e iniciativa e a existência de su-
jeitos ativos e capazes de iniciativas, como condição para poder haver troca e comunicação,
entre pessoas que acolham na fé a Palavra de Deus, como possibilidade de haver processo
de recepção.552
A referida distinção de sujeitos não inclui a exigência de que estes sejam totalmen-
te estranhos uns aos outros, pois a Teologia da comunhão, quadro no qual deve ser situada a
Teologia da recepção, mostra a necessidade de uma pertença comum. Assim, a separação
absoluta dos parceiros, com ausência total de intersubjetividade, é incompatível com a co-
munhão, visto a relação supor a diferença de parceiros e a pertença comum a um sistema,
ou, de outra forma, a semelhança permite construir relações entre eles. É o que pensa, com
razão, W. Beinert, ao afirmar que os parceiros devem ter algo em comum, ou seja, um mí-
nimo de semelhança entre o que dá e o que recebe, que pode ser, ao menos, a mesma lín-
gua. Portanto, é necessária uma separação relativa entre os parceiros e não absoluta, como

551
Cf. GRILLMEIER, A. Konzil und Rezeption. Methodische Bemerkungen zu einem Thema der ökumenis-
chen Diskussion der Gegenwart. In: Theologie und Philosophie 45 (1970), p. 324 apud ROUTHIER, op. cit.,
p. 57s. A. Grillmeier entende por região a Igreja Local em seu sentido antigo, como diocese, província ecle-
siástica, os patriarcados e, mais recentemente, a união dos diferentes ritos.
552
ROUTHIER, op. cit., p. 54-55.
286

quer Grillmeier, apesar de que uma maior separação entre parceiros aumentará a possibili-
dade de troca.553
Quanto à produção de um bem espiritual proposto pela recepção, é preciso distin-
gui-la de um simples desenvolvimento interno, que, de fato, não constitui um fenômeno de
recepção, mas de evolução. A posição de Grillmeier, ao exigir exogenia absoluta, é muito
restritiva. Posição intermediária é tomada por William Rush, segundo o qual acontece um
verdadeiro fenômeno de recepção quando “é pedido às Igrejas aceitarem e fazerem sua
qualquer coisa que elas não produziram”.554 Como exemplo pode-se trazer um documento
de convergência ecumênica. Esse documento vem, em certo sentido, de fora delas todas e
pode ser reivindicado por uma instância que ultrapasse cada uma delas, havendo, contudo,
um conhecimento anterior. O mesmo vale para uma decisão conciliar, que jamais será to-
talmente estranha às Igrejas, pois todas professam a mesma fé apostólica. Essa posição in-
termediária mantém a exogenia do bem produzido, em relação ao parceiro que o recebe, e,
assim, um processo de troca é facilmente concebível, sem que o princípio da exogenia te-
nha sido considerado absoluto.555
Outros exemplos de exogenia relativa do bem produzido são as discussões com an-
ticalcedonianos e nestorianos, as quais demonstram que o bem produzido não é completa-
mente estranho entre as Igrejas separadas. O mesmo vale para os acordos sobre verdades
fundamentais da fé com os luteranos.556 A Unitatis Redintegratio 14 e a Lumen Gentium 15
não excluem que a Igreja Católica possa receber algo de outras Igrejas cristãs por meio do
aprofundamento e da renovação, podendo enriquecer-se enquanto se aprofunda.
Sintetizando, no caso da recepção das decisões de um Concílio pelas Igrejas Lo-
cais, a exogenia se manifesta de duas maneiras: a) o bem produzido pode ser relativamente
estranho a uma Igreja Particular, em razão de um desenvolvimento unilateral de sua tradi-
ção, da ocultação secular de um elemento de sua tradição ou de maior ou menor consonân-
cia desse bem com a cultura na qual se insere uma Igreja Particular; b) a instância que pro-

553
Ibid., p. 55.
554
RUSH, W. G. “Baptism, Eucharist, Ministry”. In: Dialog 22 (1983), p. 91. Apud id., p. 57, nota 129.
555
Id., p. 57.
556
O recente acordo sobre a Justificação é um exemplo de que não há um desconhecimento absoluto, apesar
das diferenças existentes entre as duas Igrejas.
287

duz esse bem – o episcopado –, embora esteja na Igreja e a represente, fica em relação dia-
lética com ela e se situa frente a frente com ela mesma.557
Tendo em vista o que foi explicitado acima, devem-se levar em conta dois aspec-
tos: a) se um Concílio, seja universal ou regional, está, essencialmente, em ato anamnético
e se enraíza na fé apostólica confessada por todas as Igrejas, dificilmente se pode imaginar
que o bem produzido seja totalmente estranho. O mesmo acontece no diálogo ecumênico,
no qual se constata que as convergências são maiores que as diferenças, embora as Igrejas
reconheçam divergências; b) há um distanciamento, por parte de quem recebe, da instância
de produção, pois, em certo sentido, o Povo de Deus tem de “receber” as determinações
doutrinais ou disciplinares de um Concílio, decididas pelos bispos, que não foram produzi-
das imediatamente. Todavia, o episcopado não pode jamais se considerar separado da Igre-
ja, apesar de sua posição original na mesma. A verdade a ser crida na Igreja é sempre dada
(traditio) e ela deve ser recebida (receptio). A recepção, dessa forma, testemunha o consen-
timento de todas as Igrejas ao ensinamento de um Concílio e não somente dos fiéis, toma-
dos não individualmente, ao ensinamento dos bispos.558
Enfim, pode-se afirmar que se está diante de um fenômeno de recepção, mesmo
nos casos de acolhida, por uma Igreja Particular, das decisões de um Concílio. Se a exoge-
nia não é perfeita, nem quanto à diferença dos parceiros, nem quanto ao bem produzido e
aos parceiros que o recebem, a distinção e a “exogenia relativa” são suficientes para que
haja, efetivamente, um processo de intercâmbio. Assim, recepção se torna esse processo de
acolhida, em uma Igreja Particular, das decisões de um Concílio, enquanto o processo de
uma Igreja aceitar uma proposição dogmática completamente diferente é um outro tipo do
fenômeno de recepção.559

557
ROUTHIER, op. cit., p. 59.
558
Ibid., p. 59-60. O autor ainda acrescenta mais duas observações: 1ª - se as decisões de um Concílio geral
não apresentam nenhuma característica estranha às Igrejas Locais, sua recepção não se estende senão a decê-
nios, e não demora séculos. Se encontram adversidades, contestação, ou mesmo oposição, é que o bem produ-
zido apresenta certa característica de estranheza. O bem produzido corrige unilateralismos, colocando as ques-
tões sob novas perspectivas, dando novo equilíbrio aos elementos de confissão da fé, iluminando certos aspec-
tos entregues ao envelhecimento. 2ª - A característica escatológica da verdade deixa aberta a questão do apro-
fundamento das verdades doutrinais e, como consequência, permite reconhecer que o ensinamento de um
Concílio apresenta certa característica de novidade e, como tal, certa exogenia. É o que afirma Dei Verbum 8
(ROUTHIER, op. cit., p. 61-62).
559
Por exemplo, uma Igreja monofisista aceitar a definição de Calcedônia.
288

b) Princípios teológicos para a recepção de um Concílio

Após verificar o fato da recepção, é necessário determinar a esfera teológica na


qual pode e deve acontecer o processo de recepção, ou seja, o seu estatuto teológico.560 Ao
se falar de processo, fica nítida a complexidade de um fenômeno que não se deixa reduzir a
uma ação específica e que envolve parceiros diversos. Para tal, é preciso distinguir dois
fatos importantes:
1º - o reconhecimento de que a recepção não se reduz a um ato particular, mas que
se insere em uma história e uma continuidade;
2º - a consciência de que muitos parceiros estão engajados nas diferentes ações que
agem nessa história.561
Exatamente por isso é preciso ter clareza quanto aos princípios teológicos que nor-
teiam esse processo e determinam, inclusive, sua maior ou menor eficácia, ou seja, seu de-
senvolvimento mais harmônico e mais de acordo com o espírito eclesial.
Os autores realçam a necessidade de aprofundar essa via eclesial juntamente, tendo
como pano de fundo as noções de Tradição, Apostolicidade e Consenso, que permanecem
como substrato indispensável para se verificar o processo de recepção. Também se faz ne-
cessária a presença de conceitos eclesiológicos importantes, tais como a Teologia da comu-
nhão, o lugar da Pneumatologia em Eclesiologia, o sensus fidelium, o papel e o lugar dos
ministérios na Igreja, a infalibilidade etc.
Y. Congar, baseando-se em P. Fransen562, destaca a importância da Eclesiologia de
comunhão para compreender a recepção, que necessariamente associa a Teologia da Igreja
Particular, a Pneumatologia, a Teologia da Tradição e um profundo sentido de conciliarida-
de da Igreja. Ele se justifica, ao mostrar que uma concepção piramidal de Igreja elimina
qualquer possibilidade de existir um processo de recepção, ao compreender a comunidade
eclesial como informe, passiva e desprovida da assistência do Espírito Santo. Isso significa
que a primazia é exercida pela verdade, e não pela autoridade, como comprova a história

560
Aqui só serão abordados os princípios teológicos da recepção. Y. Congar expõe, longamente, as teorias
jurídicas que justificam a recepção: a teoria da aceitação das leis e a teoria dos galicanos (cf. CONGAR, op.
cit., p. 385-391).
561
Cf. ROUTHIER, op. cit., p. 70.
562
FRANSEN, P. L’autorité des conciles. In: Problèmes de l’autorité (Unam Sanctam 38). Paris: Du Cerf,
1962, p. 83s apud CONGAR, op. cit., p. 402.
289

dos Concílios ecumênicos. A autoridade destes provinha da conformidade de suas decisões


com a fé recebida dos apóstolos, e não do poder da assembleia hierárquica.563
Essa visão leva a valorizar as Igrejas Particulares, visto que nelas os fiéis, assistidos
e animados pelo Espírito Santo, são sujeitos do ato de crer. Elas, também, serão o lugar no
qual pode acontecer o ato de recepção, pois é nelas que os fiéis vão receber as decisões
conciliares e fazer suas a novidade ou as determinações trazidas pelos Concílios, de acordo
com a definição de recepção citada anteriormente. Assim, o Espírito Santo renovará as
Igrejas Particulares, mas mantendo a referência ao que foi recebido de Jesus Cristo por
meio dos apóstolos.564 Os ministros exercem seu papel próprio, com autoridade jurídica de
guardiões da verdade, pedindo a adesão ao conteúdo da verdade, ao quod, e não ao quo.
Assim, a atividade de discernimento e de recepção é viável.565
Contudo, convém recordar que não é a recepção que confere legitimidade a uma
decisão conciliar ou a um decreto. Esta provém da autoridade que os emite. O contrário
seria uma atitude galicana. Todavia, os ministros não agem isolados: os bispos são sempre
bispos de uma Igreja Particular, mesmo em comunhão hierárquica. O que quer dizer que
eles irão tornar presente a fé de sua Igreja Particular em um Concílio e, ao mesmo tempo,
tornarão presentes as decisões conciliares na sua Igreja Particular, efetivando a comunhão
eclesial. Dessarte, a recepção “não é constitutiva da qualidade jurídica de uma decisão”,
mas “constata, reconhece e atesta que a novidade recebida responde ao bem da Igreja”, uma
vez que diz respeito a uma decisão (dogma, cânones, normas éticas) que deve assegurar o
bem da Igreja.566 É a autoridade do conteúdo.
F. Wolfinger vai muito além, não sem certo extremismo, quando, após ter feito um
estudo comparativo entre os Concílios ecumênicos dos primeiros séculos e os da Idade Mé-
dia e concluído que a ideia da representação persiste nestes últimos, mesmo quando o Papa
os convoca para confirmar suas reivindicações, afirma o que segue, na conclusão de seu
artigo:

563
Cf. id., p. 392. O autor, no mesmo lugar, explicita melhor: “Em teologia da Tradição, dir-se-ia: passagem
da traditio passiva à traditio activa ou ainda do traditum ao tradens, sendo este último efetivamente identifi-
cado com o que se chamou, a partir do século XVIII, a ‘Igreja docente’”.
564
Y. Congar comenta que um dos erros de Sohm foi conceber “uma espécie de Pneumatologia sem estruturas
dadas” (cf. id., p. 393).
565
Id., p. 393.
290

A recepção só se torna problema quando vista sob a falsa alternativa: investidos


no poder contra fiéis, doutrinadores contra ouvintes. A verdadeira coordenação
soa assim: todos estão juntos diante da Revelação de Deus e realizam a aceitação
fiel em distintas posições de trabalho, mas em testemunho comum. Onde vigorar
esta máxima, podem as Igrejas receber umas das outras, os Concílios serão rece-
bidos pela Igreja universal, pode um Concílio receber outro; pois todos recebem
uns dos outros a fé e nela a consciência da salvação que sabe garantida, na multi-
formidade das afirmações, a unidade da fé.567

À guisa de conclusão, podem-se elencar os seguintes princípios teológicos, que se


revelam como necessários para referência a um estatuto eclesiológico da recepção:
- a Eclesiologia de comunhão;
- a revalorização das Igrejas Particulares;
- a participação de todos na vida da Igreja;
- o acento do lugar do Espírito Santo na Eclesiologia;
- uma reflexão sobre a compreensão de Tradição;
- o aprofundamento do ministério de governo na Igreja;
- o esboço de uma Teologia da inculturação.

c) A continuidade de um Concílio no tempo

Um Concílio não é somente um momento determinado na história, mas vai se de-


senvolvendo no tempo, como indica a história dos Concílios. A data do término de um
Concílio marca o início do processo de recepção. Mesmo que se queira dominar tal proces-
so, controlar as diferentes variáveis, planificar e balizar as etapas, definir o fim, a recepção
escapará sempre a toda planificação ou a todo cenário predefinido. Nenhuma data final será
segura quando se discute a recepção de um Concílio. A. Grillmeier nota que os quatro pri-
meiros Concílios ecumênicos da Igreja antiga, por exemplo, foram “intelectual e espiritu-
almente” recebidos somente após décadas e, mesmo, séculos.568 A história ensina, portanto,

566
Id., p. 399. E o autor continua: “Eis por que a recepção de um Concílio se identifica praticamente com sua
eficácia, como se observa no caso de Latrão IV, do Tridentino, e mesmo Niceia I, de Calcedônia ou de Niceia
II” (id.).
567
WOLFINGER, F. O Concílio ecumênico e a recepção de suas conclusões. In: Concilium 187 (1983/7), p.
101.
568
GRILLMEIER, A. The Reception of Church Councils. In: MCSHANE, P. Foundations of Theology: Pa-
pers from the International Lonergan Congress. Dublin, Gill et Macmillan, 1971, p. 383 apud ROUTHIER,
op. cit., p. 71, nota 13.
291

que a recepção de um Concílio se inscreve na sucessão do tempo, geralmente longo, e em


muitas etapas. Por esse motivo, a recepção é um processo, para indicar que não pode ser
reduzido a um ato específico. A recepção é, assim, segundo Grillmeier, a soma total de
inúmeras ações, acontecimentos e desenvolvimentos de estatutos legais, julgamentos e edu-
cação e, mesmo, transformação de atitudes de milhões de pessoas em face da lei. Seria me-
lhor até ser designada como fenômeno do que como processo.569
Como é um processo, no qual estão envolvidos diversos parceiros e se atualiza atra-
vés de um número infinito de ações, dificilmente se deixa prever e agarrar. Isso explica por
que as análises do processo de recepção estão apenas no início. O processo de discernimen-
to da recepção passa por inúmeras dificuldades, pois ele não tem trajetória definida e con-
tornos facilmente perceptíveis, como também não possui algum critério oficial pelo qual se
possa estabelecer ou verificar a recepção em uma Igreja Particular. É, portanto, uma recep-
ção informal, pois não conhece formas definidas nem uma declaração jurídica, mesmo que,
no conjunto do Povo de Deus (pastores, teólogos e outros fiéis), se precise o sentido de um
enunciado e um Concílio acabe recebido por um novo Concílio.570
A rerrecepção de um Concílio por outro Concílio é uma figura que não se apresen-
ta em todos os casos de recepção e não se fecha por um novo Concílio. Comprova-o o fato
de, ainda hoje, se falar da rerrecepção de Calcedônia.571 Quer dizer: cada nova geração é
chamada a receber de forma nova os ensinamentos de um Concílio antigo, tornando a re-
cepção um processo aberto, continuado. A rerrecepção traz novas preocupações e questões
novas que cada geração não se furta a endereçar a um enunciado conciliar.572
Alguns exemplos: Trento foi imediatamente recebido na Espanha; desencadeou um
forte movimento de renovação na Itália; penetrou progressivamente na Igreja da França. Só
em 1615 seus decretos foram recebidos pela assembleia dos clérigos de Paris, ou seja, mais
de quarenta anos após o Sínodo de Besançon tê-los recebido. O mesmo vale para a reforma
da vida do clero, para a história dos seminários: só no século XVII se conhecem verdadei-
ros seminários na França, enquanto, já no século anterior, Carlos Borromeu os tinha funda-

569
Cf. ROUTHIER, op. cit., p. 71-72.
570
Cf. ibid., p. 73.
571
A propósito, ver KASPER, W. Jesús, el Cristo. 6. ed. Salamanca: Sígueme, 1986, p. 16s.
572
Cf. ROUTHIER, op. cit., p. 74.
292

do na Itália. O mesmo vale para o Vaticano II, visto que, para exemplificar, a reforma litúr-
gica encontrou etapas diferentes nas diversas regiões do Brasil e do mundo.573

d) Critérios e pontos de referência para periodizar a recepção

Para melhor determinar a evolução do processo de recepção, uma periodização se


impõe, embora, convém assinalar, desde o início, ela dependa bastante do ponto de vista do
estudioso. É o caso de F. Wieacker, que, mesmo tendo estudado a recepção do direito ro-
mano na Alemanha e a recepção deste pelo direito eclesiástico, não deixa de constituir uma
boa referência. Ele periodiza a recepção da seguinte maneira: a recepção canônica e a re-
cepção primitiva (Frührezeption); a recepção plena (Vollrezeption) ou a recepção prática
(praktische Rezeption), que passa por diversas etapas; a recepção prática tardia.574
G. Alberigo, ao estudar o processo de recepção do Concílio de Trento, assinala que
uma fase importante é quando os participantes da assembleia conciliar (bispos e teólogos)
cessam de ser os protagonistas da vida eclesial. O período seguinte, o pós-Concílio, é uma
projeção na vida eclesial das tensões que aconteceram na assembleia conciliar.575
A respeito do Vaticano II, foram feitas algumas tentativas. Entre elas, pode-se citar
a de H. J. Pottmeyer, que faz uma leitura dialética do período pós-conciliar. Ele destaca, em
primeiro lugar, a necessidade de tempo para a sua recepção, a fim de acontecer a assimila-
ção pela grande comunidade eclesial e surgir a mudança de mentalidade, a conversão e uma
nova autocompreensão da Igreja. Ele vê a recepção como processo de interpretação dos
documentos conciliares, que se divide, por sua vez, em oficial e não oficial. A essa fase
segue a do movimento de renovação, que suscitou procedimentos novos, tais como Síno-
dos, Comunidades de Base etc., pelos quais a própria Igreja se reinterpreta. Aí se estabelece
uma dialética entre o processo de recepção e de interpretação, na qual se manifestam duas
fases: a do entusiasmo, seguida pela de desilusão. E esta significa a força de inércia de uma
grande instituição e de seu significado histórico.576

573
Cf. ibid., p. 75.
574
Cf. ibid., p. 77.
575
Cf. ibid., p. 79.
576
Cf. POTTMEYER, H. J. Una nuova fase della ricezione del Vaticano II. In: ALBERIGO, G.; JOSSUA, J.-
P. (a cura) Il Vaticano II e la Chiesa. Brescia: Paideia, 1985, p. 44-51.
293

Outra tentativa é feita por A. Acerbi, o qual considera, em primeiro lugar, o Vatica-
no II como uma experiência espiritual que trouxe a “reforma da Igreja para a missão sob o
signo da Palavra de Deus”, e não como uma “máquina de produzir documentos”. A essa
fase segue a da superação do Concílio por fidelidade ao próprio Concílio, perseguindo a
aplicação para hoje da intenção original do Vaticano II, presente nos diversos documen-
tos.577
A partir dessas abordagens diferentes, podem ser extraídos alguns elementos co-
muns que estão além de aspectos particulares. Assim, a recepção de um Concílio por uma
Igreja Particular deve levar em conta os seguintes aspectos:
- a história dessa Igreja Particular;
- a evolução da Igreja inteira durante esse período;
- a história econômica, política, social e cultural do lugar onde está inserida essa
Igreja Particular.578
O último elemento é importante, pois determinados tipos de Teologias podem cor-
rer o risco de descurar esses aspectos de caráter histórico e de desenvolvimento sociocultu-
ral na avaliação da recepção de um Concílio. Trata-se de não se deter apenas no período
pós-conciliar e no pequeno espaço de tempo que ele ocupa, fácil de circunscrever, mas é
preciso discernir as características da época e os fatores que o influenciam. Como conse-
quência, deve-se assinalar que todo estudo da recepção de um Concílio deve levar em conta
a história social, política, econômica, cultural e religiosa da Igreja de um lugar, antes e de-
pois desse Concílio, como também a identificação das correntes que atravessam a socieda-
de na qual ele se insere.579
A partir daí, podem-se estabelecer critérios para o processo de recepção: a) os crité-
rios externos dizem respeito à periodização dos fatos relativos à história de uma Igreja Par-
ticular; b) critérios internos são os inerentes à história dos Concílios e internos à vida da
Igreja, como a evolução cultural, política e econômica, porque são singulares e podem ser

577
Cf. ACERBI, A. A recepção do Concílio Vaticano II em um contexto histórico transformado. In: Concili-
um 166 (1981/6), p. 102-111.
578
ROUTHIER, op. cit., p. 81.
579
ROUTHIER, loc. cit.
294

encontrados no curso da recepção de um Concílio, enquanto inerentes ao processo mes-


mo.580
G. Alberigo e A. Acerbi apresentam os seguintes critérios, que merecem ser levados
em conta: a) o desaparecimento da geração que fez o Concílio, como protagonista que pro-
longa na vida eclesial os debates da aula conciliar que são fonte de interpretação, marca o
fim de uma etapa; é a recepção querigmática; b) imediatamente segue a recepção prática,
que leva à evolução das instituições e das práticas.581
Outra maneira de observar o processo de recepção é aprofundar não o espírito pró-
prio de cada período, mas partir da observação dos meios que ela recebe ou do patrimônio
que ela atinge. F. Wieacker segue essa linha: os diferentes períodos são indicadores de sal-
tos qualitativos e de rupturas. Isso não é a mesma coisa que passar de uma etapa a outra,
uma vez que o processo conhece evoluções e mutações.582
A. Grillmeier sugere três níveis que servem como indicadores da relativa profundi-
dade do processo de recepção:
a) a recepção querigmática; é a difusão dos documentos e exortações para pôr em
prática o Concílio e esforços para concretizá-lo;
b) a recepção teológica;
c) a recepção litúrgica.583
M. Krikorian e Jean Willebrands usam uma trilogia semelhante: o kérygma, a di-
daqué e a praxis pietatis. No entanto, essa trilogia não abrange todos os aspectos, segundo
o último autor, pois, “na sua forma plena, a recepção abarca a doutrina oficial, sua procla-
mação, a liturgia, a vida espiritual e ética dos fiéis, assim como a Teologia enquanto refle-
xão sistemática sobre certa realidade”. Isso significa que a recepção se estende gradualmen-
te, atingindo esferas cada vez mais amplas da vida cristã, e se enraíza cada vez mais, em
profundidade e em totalidade. A recepção não pode ser restrita ao fato da promoção de um
Concílio, que envolve a difusão de seus documentos ou exortações, mas também os esfor-

580
ROUTHIER, loc. cit.
581
Cf. ROUTHIER, op. cit., p. 82.
582
Cf. ibid., p. 83.
583
GRILLMEIER, op. cit., p. 395-411 apud ROUTHIER, op. cit., p. 84.
295

ços por atualizá-los em fatos.584 Poder-se-á falar, portanto, em recepção na Teologia, na


liturgia e, mais globalmente, na prática eclesial.
À recepção querigmática que, na tradição da Igreja Católica, contém um aspecto
canônico formal ou jurídico, com a confirmação papal, sucede uma outra fase: a da atuali-
zação na vida da Igreja do que se dá a receber. É a passagem do “conhecimento” para a
“vida e para os atos”, como duas partes do processo de recepção, conforme se encontra na
introdução e na conclusão do Sínodo de 1985, quando expressa a vontade de fazer passar o
Concílio para a práxis e para a vida da Igreja (cf. Relatio Finalis I,1). Nesse caso, está se
verificando o estabelecimento da distinção entre recepção querigmática e recepção práti-
ca.585
A passagem da “recepção querigmática” para a “recepção prática” marca um salto
qualitativo, ou a passagem de um limiar, que é a infiltração das decisões conciliares no cor-
po da Igreja. Ou, em outras palavras, é o “julgamento crítico”, que verifica se o que é dado
a receber está em harmonia com a fé apostólica, tal como a Igreja a recebeu, e o “julgamen-
to prático”, que verifica o que pode ser feito nas e entre as Igrejas envolvidas, caso elas
considerem a fé aceitável. A passagem da dimensão noética à práxis constitui um momento
importante da recepção e marca o início de uma nova etapa. Isso está em analogia com a
Igreja primitiva: após o primeiro discurso de Pedro, os ouvintes perguntam o que devem
fazer, e Pedro responde que devem mudar de vida, engajar-se no mistério pascal de Cristo e
receber o Batismo, o que vem selar a recepção da palavra proclamada (At 2,14-36.41).586

8.5.3 A recepção do Vaticano II

A finalidade deste ponto é estudar a recepção do Vaticano II, procurando aplicar a


um caso concreto o que foi estudado até aqui. É pertinente a observação de que o tempo
passado desde o término do Vaticano II é um prazo muito curto ainda, o que não torna pos-
sível avaliar a recepção do Vaticano II. A propósito, convém também desfazer um possível
equívoco, isto é, o de confundir recepção e aplicação, como se fossem sinônimos. Todo o

584
Id., p. 84.
585
Id., p. 86.
586
Id., p. 86.
296

esforço feito para a aplicação de um Concílio ainda não é recepção, mas uma fase da mes-
ma.587
Nesse sentido, o Vaticano II não foi concluído no dia 8 de dezembro de 1965. Paulo
VI, no Congresso Internacional de Teologia do II Concílio ecumênico, em setembro de
1965, diz que a tarefa do Concílio ecumênico não está encerrada definitivamente com a
promulgação dos decretos, porque eles, como ensina a história dos Concílios, muito mais
do que um ponto de chegada, são um ponto de partida em direção a novos objetivos. Com
efeito, depois de dezembro de 1965, foi necessário bom número de documentos, decretos
de aplicação e instruções para precisar certas orientações do Vaticano II, o que é um dos
aspectos da recepção. A assembleia conciliar encontra, portanto, um prolongamento no
período de recepção, no qual não se pode definir exatamente a sua duração nem o seu con-
torno.588
Partindo do ponto de vista de G. Alberigo, o qual destaca que a fase importante da
recepção acontece quando os participantes da assembleia conciliar (bispos e teólogos) ces-
sam de ser os protagonistas da vida eclesial, observa-se que essa fase já está sendo supera-
da, pois a geração dos protagonistas do Vaticano II ou já desapareceu, ou está indo para o
término de suas atividades na Igreja.
No entanto, a recepção do Vaticano II está em curso, mesmo considerando-se a
afirmação de J. Ratzinger, o qual lança a hipótese de que, em 1975, a recepção correta do
Concílio ainda não tinha começado e, posteriormente, assevera que a “a recepção real ainda
não começou de todo”. Na mesma obra, mais adiante, ele apresenta uma periodização mais
equilibrada por meio de esquemas binários (recepção e não recepção): uma fase eufórica,
até 1968, seguida de uma fase de desilusão (1970-1980), e os anos 80, que representam
uma fase de síntese e de equilíbrio.589 Apesar de tal ponto de vista, não se pode concluir
que exista uma não recepção do Vaticano II.
Ainda há outras tentativas, como a interpretação de J.-M. R. Tillard, que periodiza a
recepção, ao distinguir entre duas ondas: a) a aceitação vaga, globalmente de 1965 a 1980;
b) aceitação apesar de tudo, de 1980 em diante. Também a de C. Floristan, que distingue
quatro etapas: entusiasmo (1965-1971); contestação (1972-1975); transição (1976-1978) e

587
Id., p. 183.
588
Id., p. 71.
589
Id., p. 78.
297

involução (1979-1985). G. Routhier observa que esses estudos são eurocêntricos e tomam
os acontecimentos de maio de 1968 como um divisor da história pós-conciliar.590
Independentemente desses modos diversos de descrever a periodização do processo
de recepção do Vaticano II feita pelos estudiosos acima referidos, pode-se aludir à tríade
“doutrina-vida-culto”, que são expressões da Tradição viva da Igreja. Essa tríade corres-
ponde à periodização que sintetiza modos diferentes, como já foi referido, a saber: a recep-
ção querigmática, teológica e litúrgica.
O Vaticano II conheceu uma grande difusão de seus documentos, responsável por
uma mudança geral da mentalidade eclesial: o movimento conciliar, como observa H. J.
Pottmeyer. Igualmente, é inegável a reforma da liturgia, que, apesar de conhecer fases dife-
rentes nos diversos países do mundo, propiciou uma nova vivência da vida litúrgica na
Igreja. Também aconteceu a mudança da estrutura da Igreja. A promulgação do Código de
Direito Canônico, em 1983, de acordo com o espírito do último Concílio, reflete o novo
espírito eclesial.591
O Sínodo Extraordinário de 1985 constituiu, sem dúvida, um marco importante no
pós-Concílio. Além de verificar a recepção do Vaticano II, contribuiu para avaliar e apro-
fundar o seu espírito.592 A elaboração do Catecismo da Igreja Católica, a exemplo do de
Trento, fruto de uma das recomendações do Sínodo, apesar de toda a polêmica que gerou,
contribui e contribuirá para uma difusão do espírito do Vaticano II e para uma catequese, de
acordo com o seu ideário e seus princípios, favorecendo o aprofundamento, desse modo, da
recepção querigmática.
Ainda uma consideração sobre o enraizamento de um Concílio em um terreno de-
terminado, de acordo com os fatores históricos próprios de uma Igreja Particular, como foi
aludido anteriormente. A América Latina representa uma aplicação do Vaticano II para a
sua realidade concreta, determinando uma verdadeira recepção criativa do último Concílio.
É o que expressa S. Galilea, ao considerar que as Conferências de Medellín e Puebla são

590
Id., p. 80.
591
Ver o decreto de promulgação do novo Código, de 25 de janeiro de 1983. Uma visão crítica é apresentada
por CORECCO, A. Aspetti della ricezione del Vaticano II nel Codice di diritto canonico. In: ALBERIGO;
JOSSUA, op. cit., p. 333-397.
592
Ver a nota 4, em que há uma referência aos objetivos do Sínodo, de acordo com as palavras de João Paulo
II.
298

exemplos de recepção seletiva e criativa do Vaticano II, por aplicarem as determinações


conciliares à realidade cultural e histórica do continente latino-americano.593
Mas ainda há um grande caminho a percorrer. Sintomático é o primeiro número do
ano de 1999 da revista Concilium, totalmente dedicado a fazer um balanço da recepção do
Vaticano II, além de lembrar ainda questões abertas e propor “uma entrada coletiva em um
tempo de experimentação”, assemelhando a Igreja a um “laboratório, onde muitas coisas se
buscam, com resultados imprevisíveis”.594 Eis por que a recepção do Vaticano II ainda con-
tinua, sendo impossível prever, hoje, sua rerrecepção por um novo Concílio.

593
GALILEA, S. L’America Latina nelle conferenze di Medellín e Puebla. Un esempio di ricezione selettiva
e creativa del Concilio. In: ALBERIGO; JOSSUA, op. cit., p. 87-106.Também GIRARDI, G. De la ‘Iglesia
en el mundo’ a la ‘Iglesia de los pobres’. El Vaticano II y la teología de la liberación. In: FLORISTAN, C.;
TAMAYO, J.J. El Vaticano II, veinte años después. Madrid: Cristandad, 1985, p. 430-463.
594
THEOBALD, C.; MIETH, D. Editorial. Questões abertas. In: Concilium 279 (1999/1), p. 9-11.
299

CAPÍTULO NONO
A VOCAÇÃO MISSIONÁRIA DA IGREJA

O presente capítulo parte da verificação de que a chegada do novo milênio coloca a


questão da missão evangelizadora da Igreja, pois, neste momento da história, quanto mais
cresce a consciência missionária cristã perante a constatação de que, hoje, paulatinamente,
a humanidade está perdendo as suas raízes cristãs, tanto mais urgente se torna a tarefa
evangelizadora: “Quanto mais o Ocidente se separa das suas raízes cristãs, tanto mais se
torna terreno de missão, nas formas mais diversificadas de ‘areópagos’” (Tertio Millennio
Adveniente 57).
Essa questão estará subjacente no decorrer deste capítulo, que, igualmente, almeja
oferecer um contributo para aprofundar a reflexão sobre a missão evangelizadora da Igreja,
que, por sua natureza, lhe é inerente, e a busca efetiva de resposta ao atual desafio posto à
evangelização, colaborando, dessa forma, para o crescimento da consciência de que a Igreja
não poderá renunciar, hoje, em hipótese alguma, assim como foi realizado desde o seu al-
vorecer, à missão de proclamar a todos os povos, até ao final dos tempos, o Evangelho de
Jesus Cristo (cf. Mt 28,18-20).

9.1 Alguns dados sobre a situação do cristianismo hoje

A análise da situação atual da religiosidade põe em destaque a seguinte constatação:


“Dado o vertiginoso processo de urbanização, cujos efeitos se deixam sentir até no mundo
rural, a Igreja do Brasil se encontra hoje diante de uma verdadeira terra de missão”.595 Essa
afirmação provoca uma reflexão muito séria sobre a própria missão da Igreja, visto estar ela
enfrentando, ao querer efetivar seu programa evangelizador, situações novas596, fruto do

595
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Rumo ao Novo Milênio. Projeto de Evangeli-
zação da Igreja no Brasil em preparação ao Grande Jubileu do ano 2000 (Documentos da CNBB 56). São
Paulo: Paulinas, 1996, n. 80.
596
É interessante a seguinte afirmação, fruto de uma pesquisa recente: “A juventude francesa prefere Buda a
Cristo”. Os jovens da França, de 18 a 24 anos, respondem que creem em Deus da seguinte forma: em 1957,
73% responderam afirmativamente; em 1967, 81%; em 1977, 62%; em 1997, 46%. O índice dos que disseram
300

impacto da modernidade e de outros fatores recentes até então desconhecidos. Ainda pro-
põe um questionamento sobre os sujeitos efetivos da missão, enquanto a afirmação de que
os leigos são os protagonistas da evangelização suscita a pergunta sobre o real significado,
o alcance e as implicações dessa responsabilidade para a Igreja, do ponto de vista inter-
no.597
Não devem ser esquecidos os fatores da liberdade religiosa e do surgimento de co-
munidades religiosas novas, de tipo evangélico e pentecostal598, que questionam a missio-
nariedade da Igreja, perante o respeito ao pluralismo religioso e o necessário diálogo inter-
religioso599, como parte da tarefa ecumênica. Constata-se que, por vezes, a liberdade religi-
osa é confundida com mera tolerância religiosa e descompromisso com a tarefa missioná-
ria, sem cair, por outro lado, no proselitismo. Com certeza, a promoção do ecumenismo não
anula a obrigatoriedade da missão, de acordo com o espírito do Vaticano II: “Por sua parte,
incumbe a cada discípulo de Cristo o dever de disseminar a fé” (Lumen Gentium 17).
O Censo de 1991, do IBGE, apresenta cifras reveladoras sobre a situação do catoli-
cismo no Brasil. Eis alguns desses dados: dos convertidos para as Igrejas Evangélicas, 64%
são originários da Igreja Católica; criaram-se quatro mil novas denominações religiosas,
não identificadas no Censo de 1980; as Igrejas Evangélicas estão predominando no Cristia-
nismo Reformado, sendo o primeiro lugar ocupado pela Assembleia de Deus em número de
templos e fiéis espalhados por todo o Brasil; a Universal do Reino de Deus está em quinto
lugar entre os Evangélicos Pentecostais, apesar de seu crescimento e exploração da mídia; a
Igreja Batista ocupa o primeiro lugar entre os Evangélicos Tradicionais; perda do constran-
gimento na explicitação das identidades religiosas não católicas e não cristãs, como Espiri-

não crer em Deus subiu de 17%, em 1957, para 51%, em 1997. O mais surpreendente é que, ao serem pergun-
tados sobre qual a religião que melhor responde aos anseios dos jovens de hoje, o budismo ficou com 29%
das preferências, enquanto o cristianismo com 13% e o Islã com 11% (cf. REVISTA ECLESIÁSTICA BRA-
SILEIRA, Juventude francesa prefere Buda a Cristo, v. 58, fascículo 230, junho de 1998, p. 464).
597
O Pe. Antoniazzi critica a posição de Santo Domingo quanto ao tema dos sujeitos da evangelização, pois o
Documento, apesar de afirmar que o protagonismo da evangelização cabe aos leigos (parte III), na parte II,
capítulo 1, e mais especificamente no n. 293, parece sugerir um predomínio do clero e dos religiosos. Vale
sua constatação final: o avanço da participação dos leigos na evangelização implica uma “nova atitude e uma
nova qualificação do clero” (cf. ANTONIAZZI, A. A missão da Igreja no documento. In: AA.VV. Santo
Domingo. Ensaios Teológico-Pastorais. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 203s).
598
A propósito, ver reflexão sobre esse assunto e o desafio que representa para a Igreja, em CALIMAN, A.
“O desafio pentecostal: aproximação teológica”. Perspectiva Teológica, ano XXVIII, n. 76 (set.dez. 1996), p.
295-309. Também o Editorial da mesma revista, intitulado “O ressurgir pentecostal: um desafio para a pasto-
ral e a teologia” (p. 285-293).
301

tismo Kardecista, Umbanda e Candomblé, o que não acontecia nos Censos anteriores a es-
se; a Umbanda é a segunda religião que mais cresce e da qual mais emigram adeptos para
as Igrejas Evangélicas e Pentecostais. Oitenta por cento da população brasileira declarou-se
católica, enquanto, em 1980, era 88,9%, 91,77% em 1970 e 95,7% em 1950. Jovens entre
18 e 24 anos declaram-se cristãos sem religião.600
O Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (CERIS), em parceria com
o Instituto Nacional de Pastoral (INP), realizou, em seis grandes cidades (Rio de Janeiro,
São Paulo, Recife, Salvador, Belo Horizonte e Porto Alegre), uma pesquisa sobre os vários
perfis do catolicismo nas cidades, as crenças e as práticas religiosas. O resultado, enquanto
“desoculta tendências na realidade brasileira que vêm de mais atrás, e outras que foram
surgindo nos últimos anos”, mostra a convivência atual de novos movimentos e pastorais
sociais da década de 60, provando que a realidade religiosa do Brasil é plural e dinâmica e,
por isso, precisa encontrar novos caminhos evangelizadores proféticos.601

9.2 Alguns pressupostos

O compromisso da Igreja com a missão602 não é gratuito ou fruto de mera decisão


apostólica, mas brota da consciência de que o Evangelho, proclamado por Jesus Cristo,
deve ser anunciado até os confins do mundo, a fim de que todos sejam salvos (cf. Lc 9, 1-6;
10, 1; 1Tm 2,4).
A seguir, abordam-se três pressupostos em vista da continuidade da missão de Jesus
Cristo realizada pela Igreja, pois ela existe para evangelizar (cf. Evangelii Nuntiandi 14),

599
Cf. MIRANDA, M. DE FRANÇA Diálogo inter-religioso e fé cristã. In: Perspectiva Teológica, ano
XXIX, n. 77 (jan./abr. 1997), p. 31-52.
600
Dados extraídos de JAMES, C. Análise de conjuntura religioso-eclesial. In: Perspectiva Teológica, ano
XXVIII, n. 75, (maio/ago. 1996), p. 157-159.
601
CERIS, Desafios do catolicismo na cidade. Pesquisa em regiões metropolitanas brasileiras. São Paulo; Rio
de Janeiro: Paulus e Ceris, 2002. O texto citado encontra-se à p. 10.
602
No caso do Brasil, ao procurar responder à convocação do Papa e estabelecer o seu projeto de preparação
ao Grande Jubileu do ano 2000, conclama as comunidades diocesanas para assumirem um “mutirão evangeli-
zador” (cf. CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Rumo ao Novo Milênio. Projeto de
Evangelização da Igreja no Brasil em preparação ao Grande Jubileu do ano 2000, n. 88).
302

tendo em vista que o “termo evangelização, por isso mesmo, expressa a missão global da
Igreja”.603

a) A Igreja é continuadora da missão de Jesus Cristo

Jesus Cristo foi enviado pelo Pai para evangelizar, isto é, para anunciar a Boa-
Nova do Reino de Deus ao mundo. Isso ele fez tanto por palavras quanto por ações, ao
proclamar a novidade do Reino de Deus, especialmente aos pobres (cf. Lc 4,16-21). E,
por essa razão, ele dá a seguinte resposta aos enviados de João: “Ide anunciar a João o
que ouvis e vedes: os cegos veem e os coxos andam, os leprosos ficam limpos e os sur-
dos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados. Feliz é aquele que não
se escandalizar de mim” (Mt 11,5).
Ele foi sempre fiel à sua missão, a ponto de consumar a sua obra por meio de
morte na cruz e, depois do terceiro dia, ressuscitar. A sua morte não foi morte qualquer,
mas redentora, isto é, foi a causa da salvação da humanidade do pecado, como expressa
o apóstolo Paulo aos Filipenses:

Ele, subsistindo na condição de Deus, não pretendeu reter para si ser igual a
Deus. Mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo, tor-
nando-se solidário com os homens. E, apresentando-se como simples homem,
humilhou-se, feito obediente até à morte, até à morte da cruz. Pelo que tam-
bém Deus o exaltou e lhe deu o nome que está sobre todo nome. Para que ao
nome de Jesus se dobre todo joelho de quantos há no céu, na terra, nos abis-
mos. E toda língua proclame, para glória de Deus Pai, que Jesus Cristo é Se-
nhor (Fl 2,6-11).

A missão da Igreja tem seu fundamento na missão de Jesus Cristo, pois ele envia os
apóstolos a pregar e a batizar:

Então Jesus se aproximou e lhes disse: Toda a autoridade me foi dada no céu e na
terra. Ide, pois, fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do
Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a observar tudo quanto vos man-
dei. Eis que eu estou convosco, todos os dias, até ao fim do mundo (Mt 28,18-20).

603
Id., nº 61.
303

Dessarte, a Igreja não anuncia a si mesma, mas a Jesus Cristo e sua salvação, em
obediência ao mandato recebido dele por meio dos apóstolos.
Por isso, a missão de Jesus continua presente na Igreja, pois ela é, hoje, para o mun-
do, a continuadora de sua missão. Os apóstolos, eles mesmos chamados por Jesus Cristo e
enviados por ele, continuaram, por sua vez, a chamar e enviar sucessores, o que garantiu e
garante a continuidade da missão, através do tempo e do espaço, atingindo a todos os povos
em todas as épocas. O Evangelho pregado pela Igreja é o mesmo Evangelho de Jesus Cris-
to, recebido dele por meio dos Doze, o que a torna católica e apostólica. É como diz o Papa
Paulo VI: “Existe, portanto, uma ligação profunda entre Cristo, a Igreja e a evangelização.
Durante este ‘tempo da Igreja’ é ela que tem a tarefa de evangelizar. E essa tarefa não se
realiza sem ela e, menos ainda, contra ela” (Evangelii Nuntiandi 16).
O Papa Paulo VI apresenta cinco razões fundamentadoras e justificadoras para es-
clarecer os laços existentes entre a Igreja e a evangelização, provenientes do Novo Testa-
mento e da própria história da Igreja, manifestando em sua vida e ação a vinculação entre
ambos, fruto daquilo que a Igreja tem de mais íntimo: a Igreja nasce da ação evangelizadora
de Jesus e dos Doze; nascida da missão, pois a Igreja é enviada por Jesus, ela fica no mun-
do até o Senhor da glória voltar para o Pai; evangelizadora como é, a Igreja começa por
evangelizar a si mesma; ela é depositária da Boa-Nova que há de ser anunciada; enviada e
evangelizadora, a Igreja envia também ela própria evangelizadores (cf. Evangelii Nuntiandi
15).

b) A Igreja como sacramento universal de salvação

Esse pressuposto significa a resposta concreta que a Igreja dá ao mandato missioná-


rio recebido de Cristo, como foi visto anteriormente. Ela é sacramento de salvação para o
mundo (Lumen Gentium 1), o que significa que ela deve apresentar a salvação de Cristo a
toda a humanidade, tarefa que corresponde a sua natureza. Por esse motivo, ela não pode
calar-se (cf. At 4,20), já que a grandiosa riqueza que possui a impele a proclamar, a todos os
povos e em todo o tempo, a salvação da humanidade e do mundo trazida pelo advento do
Messias, a fim de que todas as pessoas escutem a sua mensagem e se convertam (cf. Re-
demptoris Missio 11). O apóstolo Paulo testemunha essa verdade: “Com efeito, não me
304

envergonho do Evangelho. Ele é uma força de Deus para a salvação de todo aquele que crê,
do judeu primeiro, mas também do grego” (Rm 1,16).
O objetivo da evangelização consiste, precisamente, em suscitar e alimentar de mo-
do progressivo a fé em Jesus Cristo. Suscitar pelo anúncio claro de sua mensagem de salva-
ção. O anúncio, primeiro passo da missão, suscita a fé. É como Paulo, tomado pelo ardor
evangelizador, explica:

Mas como invocarão aquele em quem não creram? E como crerão, sem terem ou-
vido falar? E como ouvirão falar, se não houver quem pregue? E como pregarão,
se ninguém for enviado? Como está escrito: Quão belos são os pés dos que anun-
ciam o bem. Mas nem todos obedecem ao Evangelho. Porque Isaías diz: Senhor,
quem creu em nossa pregação? Por conseguinte, a fé procede da audição, e a au-
dição da palavra de Cristo (Rm 10, 14-17).

O programa da nova evangelização604, conforme conclamava João Paulo II em suas


sucessivas visitas à América Latina, expressa essa preocupação. O passo seguinte é o ali-
mento da fé, suscitada pelo primeiro anúncio. E diante dessa situação é preciso tomar pro-
vidências urgentes: aí se explica a necessidade de tornar concreta a consciência da missio-
nariedade da Igreja, conforme adverte o apóstolo Paulo: “Ele deseja que todos os homens
sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (2Tm 4, 2).
Deve ser anunciada não simplesmente uma doutrina, mas a pessoa de Jesus Cristo.
O conteúdo da evangelização é sempre a pessoa, obra e mensagem de Jesus Cristo: “Não
haverá nunca evangelização verdadeira, se o nome, a doutrina, a vida, as promessas, o rei-
no, o mistério de Jesus de Nazaré, Filho de Deus, não forem anunciados” (Evangelii Nunti-
andi 22). E quem aceita a pessoa de Jesus Cristo irá, necessariamente, aceitar a sua mensa-
gem, não apresentando problemas para crer na doutrina ensinada pela Igreja, pois a palavra
da Igreja é a Palavra de Deus, visto a Igreja ser cooperadora na obra da salvação: “A pri-
meira beneficiária da salvação é a Igreja: Cristo adquiriu-a com o seu sangue (cf. At 20,28)
e tornou-a sua cooperadora na obra da salvação universal. Com efeito, Cristo vive nela, é o
seu Esposo, realiza o seu crescimento, e cumpre a sua missão através dela” (Redemptoris
Missio 9).

604
C. Boff considera a nova evangelização como o grande projeto pastoral do atual Papa (cf. BOFF, C. Uma
análise de conjuntura da Igreja Católica no final do milênio. In: Revista Eclesiástica Brasileira, v. 56, fascícu-
lo 221 (março de 1996), p. 134).
305

E essa salvação é oferecida a todos, pois a proposta de Cristo é uma proposta à li-
berdade do homem:

A universalidade da salvação em Cristo não significa que ela se destina apenas


àqueles que, de maneira explícita, creem em Cristo e entram na Igreja. Se é desti-
nada a todos, a salvação deve ser posta concretamente à disposição de todos. É
evidente, porém, que, hoje, como no passado, muitos homens não têm a possibi-
lidade de conhecer ou aceitar a Revelação do Evangelho, e de entrar na Igreja.
Vivem em condições socioculturais que não o permitem, e frequentemente foram
educados noutras tradições religiosas. Para eles, a salvação de Cristo torna-se
acessível em virtude de uma graça que, embora dotada de uma misteriosa relação
com a Igreja, todavia não os introduz formalmente nela, mas ilumina convenien-
temente a sua situação interior e ambiental. Esta graça provém de Cristo, é fruto
do seu sacrifício e é comunicada pelo Espírito Santo: ela permite a cada um al-
cançar a salvação, com a sua livre colaboração (Redemptoris Missio 10).

Com razão, Arialdo Beni afirma que a salvação proclamada pela Igreja é total e uni-
versal, pois é salvação da pessoa em sua totalidade, ou seja, da alma e do corpo, de toda a
pessoa enquanto indivíduo e enquanto ser social: da família, do Estado, de todos os grupos
com valores positivos e de todo o universo. É a libertação integral pessoal e coletiva de
todos os sofrimentos e do mal, sob qualquer forma que se manifeste.605

c) A Igreja é uma comunidade de ação

O agir é uma resposta, consequência e expressão da fé, sendo sua expressão inesti-
mável. Não se trata aqui de aquilatar o valor da ação acima da graça de Deus e do sopro do
Espírito, muito menos de considerar que a Igreja deverá justificar-se através das obras e da
ação humana, caindo em uma visão utilitarista e comercial. A ação demonstra o sentido e a
orientação da própria Igreja, enquanto fruto das convicções de fé. No dizer de Hans Zirker,
“a forma como a Igreja compreende e explica a própria prática constitui um momento es-
sencial da sua autocompreensão e da sua autoapresentação”.606
O esforço missionário além dos limites da Igreja, ou a missão ad gentes, se distin-
gue da pregação e do ensino dentro da Igreja, apesar de segui-lo. Por essa razão, do ponto
de vista interno da Igreja, acompanhando a dedicação caritativa para com as pessoas e gru-
pos, está a responsabilidade para com as condições e estruturas políticas, pois a caridade

605
Cf. BENI, op. cit., p. 250.
306

procede da liturgia, enquanto a missão desemboca na catequese e na edificação da comuni-


dade. A ação política pode ser compreendida como contributo a ser feito, na trilha da cari-
dade. É como ensina o apóstolo Tiago: “Assim também a simples fé, se não tiver obras,
será morta” (Tg 2,17).
Não pode haver separação entre a ação institucional da Igreja e a atividade privada
dos cristãos, visto que a dimensão institucional da Igreja e o próprio cristão marcam pre-
sença por meio do testemunho que dão e por aquilo que são, ao proclamarem e defenderem
os valores do Evangelho. Com isso, supera-se um discurso a favor ou contra a orientação
unilateral entre horizontal e vertical, pois, a partir dessa compreensão, ambos estão em
permanente, imprescindível e necessária relação.607

9.3 Os documentos recentes do Magistério

A Igreja, através de seu Magistério, vem demonstrando uma consciência crescente


de seu compromisso evangelizador. Os Papas e os Sínodos recentes têm se ocupado do te-
ma da evangelização e do desafio que ela representa hodiernamente para a Igreja, buscando
soluções e respostas para os problemas e interrogações apresentados à vida cristã. A seguir,
são destacados alguns textos recentes por meio dos quais o Magistério expressa a urgência
e a atualidade da ação evangelizadora da Igreja.

a) Concílio ecumênico Vaticano II

O Decreto do Vaticano II, Ad Gentes 7, sobre a atividade missionária da Igreja, as-


sim explica os motivos e a necessidade da evangelização:

O motivo dessa atividade missionária está na vontade de Deus, que “quer que to-
dos os homens sejam salvos e venham ao conhecimento da verdade. Porque um é
Deus, um também o mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus,
que se entregou para redenção de todos” (1Tm 2,4-5). “E em nenhum outro há
salvação” (At 4,12). É necessário que pela pregação da Igreja todos o reconheçam
e a ele se convertam e pelo Batismo sejam incorporados nele e na Igreja, seu
Corpo.

606
ZIRKER, H. Ecclesiologia. Brescia: Queriniana, 1987, p. 234.
607
Ibid., p. 234-237.
307

E justifica essa afirmação com outro texto do Concílio Vaticano II:

O único Mediador e o caminho da salvação é Cristo, que se nos torna presente no


seu Corpo, que é a Igreja. Ele, porém, inculcando com palavras expressas a ne-
cessidade da fé e do Batismo (cf. Mc 16,16; Jo 3,5), ao mesmo tempo confirmou
a necessidade da Igreja, na qual os homens entram pelo Batismo como por uma
porta. Por isso não podem salvar-se aqueles que, sabendo que a Igreja Católica
foi fundada por Deus, através de Jesus Cristo, como instituição necessária, apesar
disso não quiserem nela entrar ou nela perseverar (Lumen Gentium 14).

Portanto, fica claro que o motivo da evangelização está na vontade de Deus, que
quer que todas as pessoas sejam salvas. E é por meio da pregação que todos os povos o
reconhecerão como Senhor e Redentor. Por isso, os dois textos conciliares afirmam a ne-
cessidade da Igreja para a salvação, pois ela, qual porta, dará acesso à salvação por meio do
Batismo, sacramento de entrada na Igreja, como meio necessário de acesso à salvação. Eis
aí a razão e a necessidade da evangelização.

b) Evangelii Nuntiandi

A Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, de 1975, surgiu como fruto das con-
clusões do Sínodo de 1974 sobre a evangelização no mundo contemporâneo, que aponta a
fidelidade à mensagem de Jesus Cristo, da qual a Igreja é servidora, e às pessoas, às quais
deve transmiti-la, intata e viva, como o “eixo central da evangelização”. A Exortação apon-
ta três problemas que o Sínodo teve presentes durante a sua realização:

- “O que é feito, em nossos dias, daquela energia escondida da Boa-Nova,


suscetível de impressionar profundamente a consciência dos homens?
- Até que ponto e como é que essa força evangélica está em condições de
transformar verdadeiramente o homem deste nosso século?
- Quais os métodos que hão de ser seguidos para proclamar o Evangelho de
modo que a sua potência possa ser eficaz?” (Evangelii Nuntiandi 4).

O documento está dividido em sete capítulos: “De Cristo Evangelizador a uma Igre-
ja evangelizadora”; “O que é evangelizar”; “O conteúdo da evangelização”; “As vias de
evangelização”; “Os destinatários da evangelização”; “Os obreiros da evangelização”; e “O
espírito da evangelização”. Ele compreende a natureza da Igreja a partir da evangelização:

Evangelizar constitui, de fato, a graça e a vocação própria da Igreja, a sua mais


profunda identidade. Ela existe para evangelizar, ou seja, para pregar e ensinar,
308

ser canal do dom da graça, reconciliar os pecadores com Deus e perpetuar o sacri-
fício de Cristo na Santa Missa, que é o memorial da sua Morte e gloriosa Ressur-
reição (Evangelii Nuntiandi 14).

Dentro do interesse do tema aqui abordado, encontra-se, no capítulo segundo, o


conceito de evangelização: “Evangelizar, para a Igreja, é levar a Boa-Nova a todas as par-
celas da humanidade, em qualquer meio e latitude, e pelo seu influxo transformá-las a partir
de dentro e tornar nova a própria humanidade”. E continua com mais clareza:

A finalidade da evangelização, portanto, é precisamente essa mudança interior; e


se fosse necessário traduzir isso em breves termos, o mais exato seria dizer que a
Igreja evangeliza, quando, unicamente firmada na potência divina da mensagem
que proclama, ela procura converter ao mesmo tempo a consciência pessoal e co-
letiva dos homens, a atividade em que eles se aplicam, e a vida e o meio concreto
que lhes são próprios (Evangelii Nuntiandi 18).

O capítulo VI, intitulado “Os obreiros da evangelização”, mostra que todos são res-
ponsáveis pela obra evangelizadora da Igreja, pois a Igreja toda é missionária (Evangelii
Nuntiandi 59), o que torna a missão um ato eclesial (Evangelii Nuntiandi 60), assumindo
uma perspectiva universal (Evangelii Nuntiandi 61), incluindo, também, a responsabilidade
da Igreja Particular (Evangelii Nuntiandi 62 e Ad Gentes 6).
O documento marcou época, como não poderia deixar de ser. A sua leitura demons-
tra uma visão clara da consciência eclesial da evangelização e do seu papel para com a hu-
manidade e, também, para o mundo. Apesar de já fazer mais de vinte anos de sua publica-
ção, ainda mantém sua atualidade.

c) Redemptoris Missio

Celebrando o 25º aniversário do Decreto conciliar Ad Gentes, a Carta Encíclica Re-


demptoris Missio, de João Paulo II, datada de 07 de dezembro de 1990, versa sobre a vali-
dade permanente do mandato missionário e mostra a urgência da atividade missionária, nos
dias de hoje, por parte da Igreja. Está dividida em oito capítulos, assim distribuídos: I- Je-
sus Cristo, único Salvador; II- O Reino de Deus; III- O Espírito Santo, protagonista da mis-
são; IV- Os imensos horizontes da missão “ad gentes”; V- Os caminhos da missão; VI- Os
responsáveis e os agentes da pastoral missionária; VII- A cooperação na atividade missio-
nária; VIII- A espiritualidade missionária.
309

Ela nasce da experiência pessoal do Papa, fruto de suas constantes visitas apostóli-
cas aos mais diversos países do mundo inteiro no decorrer de mais de dez anos de pontifi-
cado, até então. Ele, ao reafirmar o compromisso com a missão evangelizadora da Igreja,
recebida de Jesus Cristo por meio dos Doze, tem presentes os novos desafios para a missão,
diante da crise de identidade e de motivação sofrida pela Igreja, no período posterior ao
término do Vaticano II.
Para o tema que detém a nossa atenção, o capítulo terceiro, no conjunto da Encícli-
ca, é muito significativo, pois ressalta a presença e a ação do Espírito Santo quanto à mis-
são evangelizadora da Igreja, ao nomeá-lo como “protagonista” da missão. Assim o Papa
justifica a denominação:

Verdadeiramente o Espírito Santo é o protagonista de toda a missão eclesial: a


sua obra brilha esplendorosamente na missão ad gentes, como se vê na Igreja
primitiva pela conversão de Cornélio (cf. At 10), pelas decisões acerca dos pro-
blemas surgidos (cf. At 15), e pela escolha dos territórios e povos (cf. At 16,6s). O
Espírito Santo age através dos apóstolos, mas, ao mesmo tempo, opera nos ouvin-
tes: “Pela sua ação a Boa-Nova ganha corpo nas consciências e nos corações hu-
manos, expandindo-se na história. Em tudo isto, é o Espírito Santo que dá a vida”
(Redemptoris Missio 21).

Esse texto enfatiza que o Espírito Santo é o “sujeito transcendente” da realização da


obra missionária, uma vez que aparece, no “ápice da missão messiânica de Jesus”, como
aquele que deve continuar a obra salvífica, que sempre está radicada no sacrifício da cruz
(cf. Redemptoris Missio 21). Desde o início da vida da Igreja, ele a torna toda missionária,
ao impelir o grupo dos fiéis a se “constituírem em comunidade” e a proclamarem a Boa-
Nova a toda criatura, a exemplo de Pedro, que formou a primeira comunidade após o seu
primeiro anúncio (At 2,42-47; 4,32-35). Assim como esteve no início, o Espírito Santo con-
tinua presente e operante em todo tempo e lugar (cf. Redemptoris Missio 28).
O Papa conclui esse capítulo com a interessante constatação de que a atividade mis-
sionária ainda está no início, pois a humanidade, “em movimento e insatisfeita”, exige um
“renovado impulso na atividade missionária”, facilitado pelo alargamento de suas possibili-
dades, o que exige “coragem apostólica, apoiada sobre a confiança no Espírito” (cf. Re-
demptoris Missio 30).

d) Puebla e Santo Domingo


310

Esses dois documentos, resultantes das Conferências dos Bispos da América Latina
(CELAM), respectivamente de 1979 e 1992, são de capital importância, visto que são sinais
vivos da preocupação evangelizadora da Igreja deste nosso Continente.
A Conferência de Puebla foi a aplicação da Evangelii Nuntiandi para a América
Latina, o que se torna claro em seu título: “A evangelização no presente e no futuro da
América Latina”. Todo o documento retrata esse intuito, a começar pelo seu próprio es-
quema, divisível em três partes: a primeira, o ver, onde se encontra uma análise pastoral da
evangelização na América Latina; a segunda, o julgar, na qual são destacados o conteúdo e
o conceito de evangelização; a terceira parte, o agir, que propõe ações em vista da evange-
lização, que encontra no binômio “comunhão e a participação” o meio pelo qual ela aconte-
cerá.
A IV Conferência do Episcopado Latino-Americano, acontecida em Santo Domin-
go, aborda os temas da nova evangelização, promoção humana e cultura cristã, os quais
“englobam as grandes questões que, daqui para o futuro, deve enfrentar a Igreja diante das
novas situações que emergem na América Latina e no mundo” (Discurso inaugural do San-
to Padre em Santo Domingo 1). A segunda parte do documento, intitulada “Jesus Cristo
Evangelizador vivo em sua Igreja”, une os três temas propostos pelo Papa em uma conti-
nuidade: a nova evangelização encontra na promoção humana sua expressão mais profunda,
pois o plano da Criação não pode ser dissociado do plano da Redenção, criando, dessa for-
ma, uma cultura cristã (cf. Santo Domingo 157). Interessante é notar que o documento con-
sidera a promoção humana como a dimensão privilegiada da nova evangelização, superan-
do a incoerência entre a fé e a vida cotidiana (cf. Santo Domingo 159).

9.4 O Espírito Santo é o agente principal da evangelização

O livro dos Atos dos Apóstolos já atesta os primeiros passos da missão evangeliza-
dora:

Tendo-se completado o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lu-


gar. De repente, veio do céu um ruído como o agitar-se de um vendaval impetuo-
so, que encheu toda a casa onde se encontravam. Apareceram-lhes, então, línguas
de fogo, que se repartiam e que pousaram sobre cada um deles. E todos ficaram
311

repletos do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Es-


pírito lhes concedia se exprimissem (At 2,1-4).

Pela força do Espírito Santo, em Pentecostes, os Doze começaram a pregar o Evan-


gelho, superando o medo e a timidez: “Tendo eles assim orado, tremeu o lugar onde se
achavam reunidos. E todos ficaram repletos do Espírito Santo, continuando a anunciar com
intrepidez a Palavra de Deus” (At 4,31).
E a Igreja vem, desde então, gradativamente tomando consciência de que a sua mis-
são primordial é a evangelização, como afirma, de forma tão lúcida, o Papa Paulo VI:

Evangelizar constitui, de fato, a graça e a vocação própria da Igreja, a sua mais


profunda identidade. Ela existe para evangelizar, ou seja, para pregar e ensinar,
ser canal do dom da graça, reconciliar os pecadores com Deus e perpetuar o sacri-
fício de Cristo na Santa Missa, que é o memorial de sua Morte e gloriosa Ressur-
reição (Evangelii Nuntiandi 14).

O Catecismo da Igreja Católica exprime essa mesma consciência, ao mostrar a ação


do Espírito Santo nos fiéis, que faz acontecer a obra salvífica de Jesus Cristo no coração da
pessoa disposta a ouvir a Palavra de Deus, a aceitá-lo pela fé e a receber o sacramento do
Batismo, iniciando uma vida nova:

A missão de Cristo e do Espírito Santo realiza-se na Igreja, Corpo de Cristo e


Templo do Espírito Santo. Esta missão conjunta associa a partir de agora os fiéis
de Cristo à sua comunhão com o Pai no Espírito Santo: o Espírito prepara os
homens, antecipa-se a eles pela sua graça, para atraí-los a Cristo. Manifesta-lhes o
Senhor ressuscitado, lembra-lhes a sua palavra, abrindo-lhes o espírito à compre-
ensão da sua Morte e Ressurreição. Torna-lhes presente o mistério de Cristo,
eminentemente na Eucaristia, a fim de reconciliá-los, de colocá-los em comunhão
com Deus, a fim de fazê-los “produzir muito fruto” (Jo 15,5.8.16) (Catecismo da
Igreja Católica 737, grifos do autor).

Essa visão, além de estar presente no Concílio Ecumênico Vaticano II (cf. Lumen
Gentium 4 e 12 e Gaudium et Spes 22, 26 e 41), encontra-se nos documentos do Papa João
Paulo II, por meio de afirmações explícitas de que é o Espírito Santo quem faz a ação evan-
gelizadora da Igreja avançar e frutificar, conforme a já citada Redemptoris Missio 21 e o
passo que segue:

O Espírito Santo é também, na nossa época, o agente principal da nova evangeli-


zação. Será, por isso, importante redescobrir o Espírito como aquele que constrói
o Reino de Deus no curso da história e prepara a sua plena manifestação em Jesus
312

Cristo, animando os homens no mais íntimo deles mesmos e fazendo germinar


dentro da existência humana os gérmenes da salvação definitiva que acontecerá
no fim dos tempos (Tertio Millennio Adveniente 45).

Esses dois textos servem, perfeitamente, para elucidar o pensamento do Papa sobre
a importância da ação própria do Espírito Santo no desempenho da missão evangelizadora
da Igreja, que não poderá exercer a sua missão sem a assistência do mesmo Espírito Santo,
que a anima no cumprimento da sua missão até o fim dos tempos, conforme já Jesus Cristo
havia prometido: “E eis que eu estou convosco todos os dias, até à consumação dos sécu-
los” (Mt 28,20).
Essa tarefa não foi sempre fácil e isenta de sacrifício, como lembra a Comissão Pas-
toral e Missionária do Grande Jubileu do Ano 2000:

Ao longo da sua história bimilenar, a Igreja pagou alto preço pela audácia de seus
filhos, que confirmaram com o sangue a própria franqueza ao anunciar que Cristo
é o único Salvador (cf. At 4,12): “[...] se não tivesse havido aquela sementeira de
mártires e aquele patrimônio de santidade que caracterizavam as primeiras ge-
rações cristãs” (TMA 37), a Igreja não se teria desenvolvido ao longo de todo o
primeiro milênio. João Paulo II acrescenta que, “no final do segundo milênio, a
Igreja tornou-se novamente a Igreja dos mártires”. O nosso testemunho não é,
portanto, secundário, mas tem um valor salvífico que precisa ser sempre mais re-
descoberto.608

9.5 O Espírito Santo dado à Igreja: a missão

Neste ponto, serão destacados alguns aspectos da missão do Espírito Santo na Igre-
ja, que se convertem, necessariamente, em missão própria de todo cristão, como membro
consciente da Igreja de Jesus Cristo.

a) A construção da unidade na diversidade

A Igreja é una, porque Cristo é indiviso, do qual ela tem o corpo. A unidade assim
concebida pode parecer uniformidade, dado que nela não há mais judeu, grego, nem ho-
mem, nem mulher (cf. Gl 3,28). Mas é no Espírito que a Igreja é batizada no único Cristo

608
COMISSÃO PASTORAL E MISSIONÁRIA DO GRANDE JUBILEU DO ANO 2000. O Espírito que é
Senhor e dá a Vida. Subsídio pastoral-missionário para o ano de 1998. São Paulo: Paulinas, 1997, p. 80.
313

(1Cor 12,13), por isso o apóstolo descobre, ao mesmo tempo, a unidade e a diversidade, ou
seja, a unidade em uma grande diversidade (1Cor 12,4-30).
É próprio do Espírito Santo unir, diversificando, fazendo realçar a alteridade de cada
um. Ele age, enquanto amor, criando o ser-em-relação. A comunhão das pessoas não su-
prime, mas acentua a identidade de cada um na reciprocidade das relações.609 O Espírito
unifica a Igreja, segundo o papel que ele exerce no mistério eterno, em que as três Pessoas
divinas são distintas. Assim, a Igreja é uma na diversidade, como Deus é um na Trindade.
Essa missão aparece sob outro ponto de vista: ele é único e edificante – “em um só
Espírito” (1Cor 12,13) – e se multiplica. Os fiéis constituem um só e único corpo na diver-
sidade dos membros, pois grande é a variedade dos ministérios e dos dons do Espírito San-
to, que são todos exercidos dentro do Corpo de Cristo em vista da sua unidade (1Cor 12,4-
30). É preciso superar a tentação da uniformidade, que levaria a Igreja a esfacelar-se ou a
atrofiar-se, porque sufocaria o Espírito que faz a unidade na diversidade. É necessário, tam-
bém, prestar atenção à diversidade do mundo, que ultrapassa as fronteiras da Igreja, apren-
dendo a trabalhar com todas as pessoas, culturas, modos de pensar e avaliar diferentes ex-
pressões da vida cristã. Mas a diversidade é sinal da presença do Espírito, enquanto inte-
grada na unidade.610

b) O Espírito Santo é amor e reciprocidade

A presença do Espírito Santo é explicada através do símbolo do Templo (1Cor


3,16;6,19; Ef 2,20.22). Mas essa presença é fruto do amor, que torna possível a plena reci-
procidade. Diz Santo Tomás que quem ama sai de si mesmo e se transfere para o amado.611
As Pessoas divinas estão presentes uma nas outras, a tal ponto que o Pai e o Filho são um
só (Jo 14,10). Mas a interioridade entre o Espírito e o fiel é amor: provoca união por meio
do Pai e do Filho. Ele está presente enquanto comunhão de pessoas. Paulo expressa essa
presença interior da seguinte maneira: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em

609
Cf. DURRWELL, op. cit., p. 88s.
610
Cf. ibid., p. 86s.
611
“Amans sic fit extra se in amatum translatus” (cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologiae I, q.
20, a. 2, ad 1).
314

mim” (Gl 2,20). É assim que o Espírito Santo é fundamento de reciprocidade.612 Ele é co-
munhão, o amor que “amorifica”. Por meio de sua presença, o fiel pertence a Cristo (Rm
8,9). Com isso, destaque recebem o amor e a solidariedade, com a consequente superação
do egoísmo e do individualismo, ou seja, o cultivo da humanização e cultura dos valores da
fé.

c) O Espírito Santo introduz os fiéis no movimento trinitário

Ele personaliza de forma divina o fiel e o introduz no movimento trinitário. O após-


tolo coloca essa presença no coração dos fiéis (Rm 5,5; Gl 4,6; 2Cor 1,22). O batizado se
torna sempre mais uma pessoa na comunhão de Cristo, ele próprio unido ao Pai. O Espírito
Santo é poder criador e amor, cria, personalizando, colocando-em-relação. Por meio do
Espírito, a Trindade se radica na criatura e a criatura é integrada em Deus. O Espírito está
tanto no início, ao abrir o fiel à comunhão, quanto no fim, ao se constituir em selo que con-
sagra a comunhão.
Assim, a pessoa humana e Deus estão interiores um ao outro (cf. 1Jo 4,13). A nova
e eterna aliança aconteceu no Espírito (Jr 31,31-33; Ez 36,6s). Por meio do Espírito Santo,
que é liberdade, Deus se une à sua criatura de modo a não se poder separar, pois Deus ama
de modo infinito e une-se à criatura por amor.613 Para tal, é necessária uma adequada for-
mação religiosa e valorização humana, a fim de que possa acontecer um verdadeiro encon-
tro transformador entre Deus e a pessoa humana.

d) O Espírito Santo não é inativo, mas é poder e ação

O Espírito Santo é poder e ação, que se manifesta como uma presença e como um
chamado para o futuro. As primeiras comunidades cristãs tinham uma percepção bem pre-
cisa da graça que as permeava, pois exprimiam a identidade cristã com fórmulas criativas e
fiéis ao Evangelho de Jesus Cristo. Assim, hoje, as comunidades cristãs vivem o mesmo
poder criador, que as impele para o futuro, porquanto o Espírito Santo impele à ação, sem-

612
Cf. DURRWELL, op. cit., p. 88.
613
Cf. ibid., p. 89.
315

pre para a frente, provocando a passagem da teoria à ação, na qual os leigos se transformem
em verdadeiros protagonistas do apostolado cristão. Isso supõe uma adequada formação
permanente do laicato, que o capacite a assumir a sua identidade cristã na Igreja e no mun-
do.

e) A Igreja é filial no Espírito Santo

A presença do Espírito torna a Igreja filial: “Com efeito, não recebestes um espírito
de escravos, para recair no temor, mas recebestes um espírito de filhos adotivos, pelo qual
clamamos: Abba! Pai” (Rm 8,15; cf. Gl 4,6-7). Essa filiação nasce da água e do Espírito (Jo
3,5). A água é o símbolo do Espírito. É a participação da natureza divina (2Pd 1,4), por
vontade exclusiva de Deus (Jo 1,13), que é de tipo pessoal e comunitário, sendo, todavia,
mais real do que qualquer outra, assim como real foi a relação filial entre Jesus Cristo e seu
Pai.614

9.6 Algumas pistas em vista da evangelização

Daqui em diante, seguirão algumas pistas pastorais em vista da prática da evangeli-


zação, como sugestão, sem pretender absolutizá-las ou esgotar o tema. Tais pistas indepen-
dem do modelo de missão a ser adotado, entre os muitos que existiram ao longo da história
da Igreja.615 A propósito dos modelos, A. Beni considera que o modelo da comunidade de

614
Cf. ibid., p. 91s.
615
S. Dianich cataloga os possíveis modelos de missão da seguinte forma: a) A missão cumprida - já realiza-
da: os escritos do Novo Testamento dão a sensação de que a comunidade apostólica já tinha consciência da
vinda próxima de Cristo, por isso considerava que a missão já havia sido concluída, em vista da perspectiva
escatológica já realizada (p. ex.: 1Ts 4,16s; 1Jo 2,17); b) A missão escondida: nasceu da Igreja dos mártires,
quando a perseguição e a morte dos cristãos contribuem para o crescimento do número dos cristãos, de acordo
com a frase de Tertuliano: “O sangue dos mártires é semente de novos cristãos” (Apologeticum 50); c) A
missão “contra os povos”: o anúncio do Evangelho é feito, muito mais, contra os povos do que com os povos.
A esperança do Povo de Deus é uma esperança contra os outros, não com os outros. É uma consciência já
existente no Antigo Testamento e, depois, também em Paulo, conforme 1Cor 15,25: “Porque é necessário que
ele reine até pôr todos os inimigos debaixo de seus pés”. Essa mentalidade, posteriormente, com o advento do
tempo de Constantino, continuou a mesma. É a societas christiana (cf. DIANICH, S.. Chiesa in missione. Per
una ecclesiologia dinamica. Cinisello Balsamo: Paoline, 1987, p. 80-133). Arialdo Beni apresenta outra clas-
sificação de modelos de missão, partindo da relação da Igreja com o mundo: a) de fuga e de defesa: isolando-
se e fechando-se, quase que em um gueto, como no tempo das antigas perseguições e da Revolução Francesa;
b) de condenação em bloco: confundindo o mundo com o reino de pecado e de escuridão e negando qualquer
valor efetivo à realidade terrestre, como no tempo do famoso Syllabus, de Pio IX, de 08 de dezembro de 1864
316

fé é o único justo e legítimo, pois a Igreja é distinta do mundo, mas não separada, nem indi-
ferente. É como ensina o Vaticano II: a Igreja não é do mundo, mas está no mundo e deve
ser para o mundo; “caminha juntamente com a humanidade inteira” e “experimenta com o
mundo a mesma sorte terrena” (Gaudium et Spes 40), para contribuir na “construção ade-
quada do mundo”, no qual as pessoas todas vivem comunitariamente (cf. id., 21).616 Eis as
seguintes pistas:

1 – a necessária conversão permanente da Igreja, não levando em conta apenas os


desafios externos feitos a ela, mas como uma atitude a exigir que ela olhe também para si
mesma e constate aquilo em que deverá mudar. O Vaticano II expressa muito bem essa
verdade, ao afirmar a necessidade permanente de conversão, visto ela ser simultaneamente
divina e humana (cf. Lumen Gentium 8). Essa reforma, ou conversão permanente, deve
ajudá-la a ser sinal de salvação para o mundo e, assim, manifestar melhor a salvação de
Cristo. Isso exige testemunho de santidade (Ad Gentes 11-12; Redemptoris Missio 42 e
Evangelii Nuntiandi 41), o que acontecerá mediante o testemunho de vida, de diálogo e
presença de caridade. Santo Domingo assevera que só uma comunidade evangelizada pode
evangelizar (cf. Santo Domingo 31 e 32). E o Papa, recentemente, mostrou a santidade co-
mo o “horizonte para o qual deve tender todo o caminho pastoral”, o que é uma “opção
carregada de consequências” (Novo Millennio Ineunte 30 e 31).
2 – Todos são responsáveis pelo projeto de evangelização, tanto da hierarquia quan-
to do laicato. Paulo VI cita os que devem responder pela evangelização: Papa, bispos, sa-
cerdotes, religiosos, leigos, família, jovens e ministérios diversificados (cf. Evangelii Nun-
tiandi 67-73). João Paulo II, ao escrever sobre a vocação e missão dos leigos na Igreja e no
mundo, destaca a corresponsabilidade dos fiéis leigos na missão da Igreja: “Os fiéis leigos,

(DS 2901-2980); c) de antagonismo e de concorrência: quase um poder terreno ao lado de outro poder, e que
se esforça por competir com o outro por meio de sua organização cultural e assistência social (escolas, asilos,
hospitais próprios); d) de longa e progressiva dominação, como na época da “cristandade medieval”, na qual a
Igreja e o Estado se confundiam e este tornava-se “braço secular” daquela; e) de fusão, a ponto de perder a
própria identidade e tornar-se quase uma cidade terrestre, reduzindo servilmente toda a sua atividade ao com-
promisso secular e profano; f) de uma comunidade de fé, que é distinta e independente da comunidade políti-
ca, mas não separada, e, portanto, de aceitação consciente e cordial deste “mundo mundano” assim como é,
com características próprias e positividade por si mesmo, com um único objetivo de servi-lo, desejosa de
ajudá-lo, sem colisão ou comprometimentos de qualquer espécie, desenvolvendo todas as suas virtualidades
por um autêntico progresso sempre maior, e levar o mundo a sua plenitude (cf. BENI, op. cit., p. 247s).
616
BENI, op. cit., p. 248.
317

precisamente por serem membros da Igreja, têm por vocação e por missão anunciar o
Evangelho: para essa obra foram habilitados e nela empenhados pelos sacramentos de inici-
ação cristã e pelos dons do Espírito Santo” (Christifideles Laici 33). Santo Domingo afirma
que os leigos são os “protagonistas” da nova evangelização (cf. Santo Domingo 97).
3 – Diálogo com o mundo, que implica a atitude de escuta, como tão bem se encon-
tra no Vaticano II, com a Constituição Pastoral Gaudium et Spes:

Por isso, o Concílio, testemunhando e expondo a fé de todo o Povo de Deus con-


gregado por Cristo, não pode demonstrar com maior eloquência sua solidarieda-
de, respeito e amor para com toda a família humana à qual esse povo pertence,
senão estabelecendo com ela um diálogo sobre aqueles vários problemas [...]
(Gaudium et Spes 3).

Escuta para poder aprender da história e discernir os sinais dos tempos.617 O mundo
atual, caracterizado, recentemente, pela descristianização e pelo crescente progresso técni-
co-científico, apresenta-se como uma realidade complexa e em mutação (cf. Redemptoris
Missio 32), o que exige um anúncio claro e convincente da salvação de Cristo (cf. Evangelii
Nuntiandi 52).
4 – Busca da unidade por meio da abertura ao ecumenismo e do diálogo inter-
religioso, com consciência de que ambos fazem parte da missão evangelizadora da Igreja
(cf. Redemptoris Missio 55; Santo Domingo 136-138), diante da constatação de que a divi-
são dos cristãos é um escândalo para o mundo e um prejuízo para a pregação do Evangelho
(cf. Unitatis Redintegratio 1). O Projeto Rumo ao Novo Milênio recomenda que todos os
setores sejam envolvidos no trabalho ecumênico e no diálogo inter-religioso.618
5 – Uma promoção humana que dê atenção aos excluídos, resultante da exigência da
fé, como já foi descrito anteriormente, pois a ausência dessa promoção significa “ignorar a
doutrina do Evangelho sobre o amor para com o próximo que sofre ou se encontra em ne-
cessidade” (Evangelii Nuntiandi 31; cf. Ad Gentes 12; Evangelii Nuntiandi 30-39). Santo
Domingo cita os novos desafios nesse campo: direitos humanos, ecologia, terra, empobre-
cimento e solidariedade, trabalho, mobilidade humana, ordem democrática, nova ordem
econômica, integração latino-americana e família (Santo Domingo 157-227). Marcou época

617
A propósito dessa afirmação, ver DE FREITAS, M. C. A Igreja do Brasil rumo ao novo milênio. In: Pers-
pectiva Teológica, ano XXIX, n. 77 (jan./abr. 1997), p. 27.
618
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, n. 143.
318

a declaração do Papa Paulo VI: “A Igreja é perita em humanidade” (Alocução à ONU, de


04/10/1965, e Populorum Progressio 13). João Paulo II, na Veritatis Splendor 3, afirma que
essa dimensão é fruto da encarnação, de acordo com a Gaudium et Spes 22, pois Jesus Cris-
to, como homem perfeito, revela o homem ao próprio homem e a sublimidade de sua voca-
ção, sendo, desse modo, modelo de humanidade.
6 – Justa relação entre testemunho e anúncio, considerando as situações que exigem
um e outro.619 João Paulo II discorre sobre os diversos âmbitos da missão ad gentes, pois o
mandato de Cristo não tem fronteiras. Assim, ele se refere aos “areópagos modernos”, co-
mo, por exemplo, os meios de comunicação (cf. Redemptoris Missio 32). Já Paulo VI lem-
brava a utilização dos Meios de Comunicação de Massa (cf. Evangelii Nuntiandi 45). Com
efeito, a pregação do Cristo Salvador (cf. Redemptoris Missio 44) deve ser viva (cf. Evan-
gelii Nuntiandi 42) a ponto de levar à conversão e ao Batismo (cf. Redemptoris Missio 46).
Nisso se inclui o indispensável contato pessoal (cf. Evangelii Nuntiandi 46) e a catequese
(cf. Evangelii Nuntiandi 44).
7 – A inculturação do Evangelho se apresenta hoje como um tema importante, que
não pode ser descurado. A consciência em torno do respeito à cultura de cada povo (cf.
Evangelii Nuntiandi 20; Redemptoris Missio 52) deve conviver com o anúncio da mensa-
gem de Jesus Cristo, a ponto de superar a atual ruptura entre o Evangelho e cultura, consi-
derada por Paulo VI como “o drama de nossa época” (cf. Evangelii Nuntiandi 20). Devem-
se incluir o reconhecimento e a valorização da religiosidade popular como “semente do
Verbo” presente nas diferentes expressões de religiosidade (Evangelii Nuntiandi 48), ou
como “húmus precioso para a nova evangelização”.620 É nessa ótica que se articulam e se
integram os quatro eixos das Diretrizes do Projeto Rumo ao Novo Milênio (testemunho,
serviço, diálogo e anúncio).621

619
A. Antoniazzi põe a discussão sobre qual dos dois aspectos tem a prioridade e responde que depende da
situação concreta em que o cristão e a evangelização se encontram (cf. ANTONIAZZI, op. cit., p. 200).
620
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, n. 45.
621
M. C. de Freitas apresenta quatro possíveis visões do evento da preparação ao novo milênio: uma aproxi-
mação triunfalista; uma aproximação derrotista; uma aproximação a partir dos excluídos; e uma aproximação
cristocêntrica (cf. DE FREITAS, loc. cit., p. 16-19).
319

Enfim, não é demais repetir: “Outra não é a missão da Igreja. Ela existe para evan-
gelizar. O termo evangelização, por isso mesmo, expressa a missão global da Igreja”.622 E
ainda:

A evangelização há de conter também sempre – ao mesmo tempo como base,


centro e ápice do seu dinamismo – uma proclamação clara de que, em Jesus Cris-
to, Filho de Deus feito homem, a salvação é oferecida a todos os homens, como
dom da graça e da misericórdia do mesmo Deus (Evangelii Nuntiandi 27).

Com efeito, é preciso criar um “clima de evangelização” como meio conscientiza-


dor e incentivador, para que os fiéis cristãos possam assumir sua tarefa evangelizadora.

622
Id., n. 61.
320

CONCLUSÃO

Não se poderia concluir esta obra sem uma alusão a Maria, a Mãe de Deus. Nela, a
Igreja tem sua melhor parte. Elucidativo é o fato de o último capítulo da Lumen Gentium
ser dedicado à Mariologia, pois mostra Maria não apenas como modelo para a Igreja, mas
como a Igreja já realizada. Seguindo o exemplo da Mãe de Deus, a Igreja chegará, sem dú-
vida, ao fim feliz de sua jornada terrena.
O Papa João Paulo II, quando convocou a Igreja para o triênio preparatório ao
Grande Jubileu do ano 2000, apresentava, no segundo ano, Maria como a “mulher dócil à
voz do Espírito Santo” e, por isso, “modelo de docilidade ao Espírito Santo para a Igreja”:

Maria, que concebeu o Verbo encarnado por obra do Espírito Santo e que depois,
em toda a existência, se deixou guiar pela sua ação interior, será contemplada e
imitada no decorrer deste ano sobretudo como a mulher dócil à voz do Espírito
Santo, mulher do silêncio e da escuta, mulher de esperança, que soube acolher,
como Abraão, a vontade de Deus “esperando contra toda esperança” (Rm 4,18).
Ela leva à sua expressão plena o anseio dos pobres de Javé, resplandecendo como
modelo para quantos se confiam, com todo coração, às promessas de Deus (Tertio
Millennio Adveniente 48).

Como tal, pode-se dizer que ela se converteu, segundo a opinião de Raniero Canta-
lamessa, na primeira e na maior carismática da Igreja, não que ela tivesse recebido algum
dom particular, ou tivesse realizado algum milagre, mas “porque nela o Espírito Santo rea-
lizou a maior de suas ações prodigiosas, suscitando em Maria não uma palavra de sabedo-
ria, não uma grande capacidade de governo, não uma visão, não um sonho, não uma profe-
cia, mas a vinda mesma do Messias”.623 Pois o que o Espírito Santo operou em Maria pode
ser considerado um verdadeiro carisma, “aliás, como o carisma mais alto jamais concedido
a uma criatura humana”.624
É elucidante a declaração da Comissão Teológico-Histórica do Grande Jubileu do
ano 2000:

Tudo aquilo que Maria tem e se tornou, com o seu livre consentimento e a sua co-
laboração, se deve ao seu Filho Jesus e à ação do Espírito Santo. A Virgem é a

623
CANTALAMESSA, R. Maria, um espelho para a Igreja. Aparecida: Santuário, 1992, p. 160.
624
Ibid., p. 161.
321

toda santa, porque desde o primeiro momento da sua existência foi “sacrário do
Espírito Santo” (Lumen Gentium 53). No fundo, “cheia de graça” significa “plena
do Espírito Santo”, porque é sempre ele, o Espírito, que a põe em comunhão com
toda a vida trinitária.625

E Maria, no Espírito Santo, continua sendo Mãe do Corpo de Cristo, que é a Igreja.
A efusão e a ação do Espírito Santo nela não se restringem ao momento da anunciação, mas
se perpetuam ao longo do tempo da Igreja, que, segundo o evangelista Lucas, é o tempo,
por excelência, do Espírito Santo. Quando ela gera o Verbo, o Filho de Deus feito carne (cf.
Jo 1,14), por virtude do Espírito Santo, está, por extensão, gerando todos aqueles que se
tornarem filhos de Deus pelo Batismo, ao aceitarem, pela fé, a vida de Deus, ofertada pelo
redentor por meio de sua obra salvífica. Por essa razão, “na raiz da maternidade de Maria
ampliada” a todas as pessoas, está sempre o Espírito Santo.626 Nela, a Igreja toda se torna
“pneumática e carismática”627, possibilitando que ela declare ao anjo, a exemplo de Maria,
que é modelo da Igreja (cf. Lumen Gentium 63): “Eu sou a serva do Senhor; faça-se em
mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38).

625
COMISSÃO TEOLÓGICO-HISTÓRICA DO GRANDE JUBILEU DO ANO 2000, p. 77.
626
Cf. id., p. 84.
627
Expressões usadas por CANTALAMESSA, R. O canto do Espírito. Meditações sobre o Veni Creator.
Petrópolis: Vozes, 1998, p. 163.
322

QUESTÕES PARA O ESTUDO

1. Que elementos constantes decorrem do estudo da história da Eclesiologia?


2. Qual a imagem de Igreja que a Lumen Gentium, Gaudium et Spes, Medellín, Puebla e San-
to Domingo apresentam?
3. Que consequências pastorais decorrem do estudo da história da Eclesiologia para hoje?
4. Quais são as duas principais tendências atuais da Eclesiologia? Ler e analisar REB 96/1, p.
125-149.
5. Que tarefa se descortina para a Eclesiologia hoje?
6. O que é o mistério da Igreja?
7. Por que é tão importante para a Igreja considerar a sua realidade misteriosa?
8. Quem é o fundador da Igreja? Ele tomou alguma(s) providência(s) para tal?
9. Jesus Cristo quis o Reino de Deus ou a Igreja?
10. O que é a natureza teândrica da Igreja?
11. Qual a relação entre a Trindade e a Igreja?
12. Qual a relação entre o Espírito Santo e a Igreja?
13. Definir ou descrever a Igreja? Por quê?
14. Qual é o conteúdo da imagem bíblica Povo de Deus?
15. Quando acontece o despertar para a retomada do uso dessa imagem na Teologia católica?
16. Caracterize essa imagem na Lumen Gentium.
17. Qual é o contributo principal dessa imagem para a compreensão da Igreja?
18. Qual é o sentido do “senso da fé”?
19. Caracterize a dimensão escatológica da Igreja.
20. Que sinal de salvação está sendo a Igreja, hoje, na América Latina, no Brasil e no Rio
Grande do Sul?
21. O que significa afirmar a Igreja como sacramento universal de salvação?
22. Como realizar hoje a comunhão eclesial?
23. O que significa compreender a Igreja como Corpo de Cristo?
24. Há possibilidade de salvação fora da Igreja?
25. Por que na Igreja Católica encontra-se a plenitude dos meios de salvação?
26. Explicite a importância da imagem Povo de Deus para a compreensão da Igreja.
27. Exponha a história e o significado das notas da Igreja.
28. Explique como acontece a dimensão teândrica da Igreja em cada uma das quatro notas.
29. Mostre como estão presentes o mistério e a sacramentalidade da Igreja nas quatro notas.
30. Como fazer acontecer hoje, para nós, Igreja, as quatro notas?
31. Explique quais são as formas de unidade e como se tornam critério de eclesialidade.
32. Explique a Romanidade: seu uso, o abandono e sua viabilidade enquanto categoria expli-
cativa.
33. Exponha, segundo seu parecer, o contributo de J. Sobrino para a reflexão sobre as notas da
Igreja.
34. Qual é a estrutura fundamental da Igreja?
35. O que significa o princípio da sucessão apostólica e qual a sua importância para a vida
da Igreja?
36. O que é a colegialidade episcopal e suas formas?
37. Qual é a missão do Magistério da Igreja?
38. Quais são as formas de o Magistério exercer sua missão?
323

39. Há oposição entre carisma e poder na Igreja? Justifique.


40. Como entender corretamente a Igreja Particular e sua relação com a Igreja universal?
41. Como o poder deve ser exercido na Igreja?
42. Como justificar a existência da hierarquia na Igreja?
43. Tem sentido falar em democracia na Igreja?
44. Explique qual é a identidade do leigo na Igreja e no mundo.
45. Explique qual é a missão do presbítero na Igreja.
46. Explique o que é a recepção na Igreja.
47. Qual é a raiz da missão da Igreja?
48. Por que a Igreja é missionária?
49. Quem são os responsáveis pela missão?
50. Onde e como se pode missionar?
324

BIBLIOGRAFIA

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