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O Marxismo e a Religião

Alan Woods
O MARXISMO E A RELIGIÃO [2001]
Alan Woods

Edições
Luta de Classes
2007

Av. Santa Marina, 440, cj.04. Água Branca


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O Marxismo e a Religião
Alan Woods

O objetivo dos marxistas é o de lutar pela transformação socialista da sociedade.


Acreditamos que o sistema capitalista há tempo superou sua necessidade histórica e
se converteu em um sistema monstruosamente opressivo, injusto e desumano. O fim
da exploração capitalista e a criação de uma ordem mundial socialista harmoniosa,
baseada num plano de produção racional e democrático, será o primeiro passo para a
criação de uma nova formação social mais elevada em que homens e mulheres se
relacionarão como seres humanos.

Acreditamos que o dever de qualquer pessoa é o de apoiar a luta contra um sistema


que implica miséria, enfermidade, opressão e morte de milhões de pessoas em todo o
mundo. Damos as boas vindas à participação na luta de toda pessoa progressista,
independentemente de sua nacionalidade, cor da pele ou crenças religiosas, e
aproveitamos esta oportunidade para iniciar um diálogo entre os marxistas e os
cristãos, muçulmanos e outros grupos religiosos.

Contudo, para lutar pela transformação da sociedade de maneira eficaz é necessário


elaborar um programa, uma política e uma perspectiva séria que permitam garantir o
êxito. Acreditamos que somente o marxismo (o socialismo científico) é capaz de
proporcionar esta perspectiva.

A questão da religião é complexa e pode ser abordada a partir de diferentes pontos de


vista: histórico, filosófico, político etc. O marxismo começou como uma filosofia: o
materialismo dialético. Um bom exemplo desta filosofia pode ser encontrado nas obras
de Engels: Anti-Dühring e Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, bem
como em Razão e Revolução, que proporciona uma visão moderna das mesmas idéias.
Estes textos constituem um bom ponto de partida para esclarecer a posição filosófica
do marxismo com relação à religião.

O materialismo filosófico e a ciência

Os marxistas se baseiam no materialismo filosófico que nega a existência de qualquer


ser sobrenatural ou de algo externo à natureza. Hoje, a própria natureza proporciona-
nos suas próprias explicações sobre a origem da vida e do universo.

A ciência demonstrou que a humanidade evoluiu – como as demais espécies – ao


longo de milhões de anos e que a própria vida evoluiu a partir da matéria inorgânica.
Não pode existir o cérebro sem um sistema nervoso central, e não pode existir um
sistema nervoso central sem um corpo material, sangue, ossos, músculos etc. Ao
mesmo tempo, o corpo deve ser mantido com alimentos, que também procedem do
ambiente material. Os últimos descobrimentos genéticos obtidos pelo projeto genoma
humano têm proporcionado a prova indiscutível da visão materialista.

A revelação da longa e complexa história do genoma, oculta durante tanto tempo,


provocou discussões sobre a natureza da humanidade e sobre o processo de criação.
Parece incrível que, no início do século XXI, as idéias de Darwin ainda sejam

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desafiadas pelo chamado movimento criacionista nos EUA, que tem a pretensão de
impor aos escolares norte-americanos a idéia de que Deus criou o mundo em seis
dias, o homem do barro e a primeira mulher a partir de uma de suas costelas.

Os últimos descobrimentos finalmente demonstraram como o criacionismo é um


absurdo. Destruíram a idéia de que as espécies foram criadas separadamente e de
que o homem, com sua alma eterna, foi criado especialmente para cantar glórias ao
Senhor. Agora é evidente que os seres humanos não são criação única. Os resultados
do projeto genoma humano demonstram, de forma conclusiva, que compartilhamos os
genes com outras espécies e que estes genes tão antigos são os que nos têm ajudado
a ser o que somos. Os humanos compartilham genes com outras espécies que
remontam às nebulosas do tempo. Na realidade, uma pequena parte desta herança
genética comum pode remontar a organismos tão primitivos como a bactéria. Em
muitos casos, os seres humanos têm exatamente os mesmos genes que os ratos,
gatos, cães e, inclusive, a mosca do vinagre. Os cientistas descobriram que os seres
humanos compartilham aproximadamente 200 genes com a bactéria. Desta forma,
chegou-se à prova definitiva da evolução. E sem necessidade da intervenção divina.

Vida depois da morte?

Apesar de todo este avanço científico, por que a religião ainda se encontra tão
arraigada na mente de milhões de pessoas? A religião oferece aos homens e mulheres
o consolo de uma vida depois da morte. O materialismo filosófico nega esta
possibilidade. A mente, as idéias e a alma são o produto da matéria organizada de
uma forma concreta. A vida orgânica surge em determinado momento da vida
inorgânica e, igualmente, as formas simples da vida – bactérias, organismos
unicelulares etc. – evoluem para formas mais complexas com uma coluna vertebral,
um sistema nervoso central e um cérebro.

O desejo de viver para sempre é tão antigo quanto a própria civilização –


provavelmente mais antigo. Há algo em nosso ser que resiste à idéia de que “eu”
algum dia deixarei de existir. E renunciar para sempre a este maravilhoso mundo, às
flores, à luz do sol, à brisa no rosto, ao murmúrio de uma corrente de água, à
companhia dos seres queridos, para entrar no reino infinito do nada, é certamente
duro e incompreensível. Os humanos procuravam uma comunhão imaginária com um
mundo espiritual não material onde – pensavam – uma parte deles viveria para
sempre. Esta foi uma das mensagens mais fortes e duradouras do cristianismo:
“posso viver depois da morte”.

O problema é que a vida da maioria dos homens e mulheres na sociedade atual é tão
dura, insuportável ou carente de sentido, que a idéia de uma vida depois da morte, às
vezes, é a única forma de dar algum significado à própria existência. Voltaremos mais
tarde a esta questão tão importante. Mas, por enquanto, analisemos o significado
exato da existência da vida depois da morte.

Trata-se de um problema antigo do qual se ocupou, entre outros, o filósofo neo-


platônico grego Plotino, que assinalava o seguinte sobre a imortalidade: “Esta é
inexplicável, se dizes alguma coisa dela a convertes em algo determinado”. Esta
mesma idéia pode ser encontrada nos escritos hindus relacionados com a alma. Para
os filósofos e teólogos, a alma é somente uma “noite em que todas as vacas são

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pretas”, como dizia Hegel. E na vida cotidiana as pessoas falam confiantemente da
alma e da vida depois da morte.

Supõe-se que a alma é imaterial. Mas, existe vida sem matéria? A destruição do corpo
físico significa o fim do ser individual. Os bilhões de átomos individuais que formam
nosso corpo não desaparecem, mas reaparecem formando combinações diferentes.
Nesse sentido, somos todos imortais, porque a matéria não se pode criar ou destruir.
É verdade que existem espiritualistas que insistem em dizer que ouvem vozes embora
não haja a presença de seres físicos. A resposta é bastante simples: se há voz, deve
haver cordas vocais – senão, não poderia existir a voz. Não se pode separar nenhuma
das manifestações de nossa atividade viva do corpo material.

A idéia comum sobre a “vida depois da morte” é mais ou menos a de uma continuação
da vida que levamos sobre a terra (já que não conhecemos outra). A alma abandona o
corpo e, pelo que parece, “desperta” numa terra maravilhosa, onde, milagrosamente,
unimo-nos a nossos seres queridos, para uma vida de gozo eterno na qual a doença e
a velhice desaparecerão. Basta fazer a pergunta de uma forma concreta para se ver
que isto é impossível. Se considerarmos todas as coisas que fazem a vida valer a pena
– boa comida, bom vinho (para os ingleses, uma boa xícara de chá forte), cantar,
dançar, abraçar, fazer amor etc. –, rapidamente se tornará evidente que todas estas
atividades estão inseparavelmente unidas ao corpo e a seus atributos físicos. Os
passatempos mais cerebrais, como falar, ler, escrever e pensar, estão igualmente
unidos a nossos órgãos corporais. O mesmo acontece com a respiração ou qualquer
outra atividade do que se chama vida.

Uma existência que suprima todo sofrimento e dor seria intolerável para os seres
humanos. Um mundo onde tudo é branco seria a mesma coisa que um mundo onde
tudo é preto. A partir de um ponto de vista estritamente médico, a dor tem uma
função importante. Não é só um mal, também é um aviso de que algo funciona mal
em nosso organismo. A dor é parte da condição humana. E não somente isso: a dor e
o prazer estão dialeticamente relacionados. O prazer não poderia existir sem a dor.
Dom Quixote explicava a Sancho Pança que o melhor tempero era a fome. Da mesma
forma que descansamos melhor após um período de esforço intenso.

A morte é parte integrante da vida. A vida é inconcebível sem a morte. Começamos a


morrer no exato momento em que nascemos, porque a vida é, ao mesmo tempo, a
morte de bilhões de células e sua substituição por outros milhões de células novas –
este processo é o que constitui a vida e o desenvolvimento humano. Sem a morte não
pode existir a vida, o crescimento, a transformação ou o desenvolvimento. Ao tentar
separar a morte da vida – como se as duas coisas pudessem estar separadas – chega-
se a um estado de absoluta imutabilidade, inalterabilidade e a um equilíbrio estático.
Este é somente outro sinônimo da morte. Não pode existir vida sem transformação ou
movimento.

Que há de mal em acreditar em outra vida? Poderia parecer que não é tão mal assim.
Mas, por que educar mal homens e mulheres, animando-os a construir suas vidas em
torno de uma ilusão? Na medida em que afastamos as ilusões, vemos o mundo como
ele é realmente e a nós como somos realmente. Somente desta forma podemos
adquirir o conhecimento necessário para transformar o mundo e nós mesmos.

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O que somos como indivíduos está intimamente relacionado com nossos corpos
materiais e não com uma existência separada. Nascemos, vivemos e morremos como
os outros organismos vivos do universo. Cada geração deve viver sua vida e preparar
o caminho para as novas gerações que estão destinadas a ocupar nosso lugar. A
aspiração à imortalidade, o direito imaginário a viver para sempre, é egoísta e pouco
realista. Em vez de desperdiçar o tempo tentando alcançar “outro mundo” não
existente, é mais útil e necessário se esforçar por fazer que este mundo seja um lugar
melhor para se viver. Para a grande maioria dos homens e mulheres que nasceram
neste mundo, a pergunta mais correta e adequada não é se há vida depois da morte,
mas se há vida antes da morte.

Saber que esta vida é fugaz, que nós e nossos seres queridos não iremos estar aqui
para sempre, longe de nos deixar consternados, deveria inspirar-nos um amor
apaixonado pela vida e um desejo ardente de fazer todo o melhor que pudermos.
Sabemos que uma flor nasce apenas para murchar, e, em certo sentido, esta
transição da floração é o que dá à flor uma beleza trágica. Mas também sabemos que
a cada primavera a natureza floresce novamente, que o eterno ciclo de nascimento e
morte é a essência de todas as coisas vivas e é o que dá à vida seu sabor agridoce, a
comédia e a tragédia, o riso e as lágrimas, que convertem a vida num rico mosaico de
sentimentos. Este é o nosso destino irrecusável como seres humanos. Somos
humanos e não deuses, e, portanto, devemos aceitar nossa condição humana. Em
relação aos deuses, temos a desvantagem de sermos mortais. Mas também temos
uma grande vantagem sobre eles, nós existimos em carne e osso, enquanto que eles
são um simples produto da imaginação.

Uma conclusão pessimista?

O materialismo como filosofia tem uma longa e honrosa história. Os primeiros filósofos
jônicos gregos eram todos materialistas. Segundo conta Platão, Anaxágoras – uma
dos mais destacados e tutor de Péricles – foi acusado de ateísmo. Protágoras (415
a.C) disse, com a ironia habitual de um sofista: “Com relação aos deuses, tenho sido
incapaz de chegar a determinar se existem ou não, ou a sua forma, devido às muitas
coisas que dificultam a conquista deste conhecimento, tanto pela obscuridade da
matéria como pela brevidade da vida humana”. Diágoras, um contemporâneo, foi mais
além. Quando alguém reclamava sua atenção para as lápides votivas de um templo,
erigidas pelos agradecidos sobreviventes de um naufrágio, ele respondia: “Os que se
afogaram não colocaram as lápides”.

Por acaso a compreensão materialista significa uma visão pessimista ou niilista da


vida? Muito pelo contrário. A condição prévia para uma vida plena e satisfatória sobre
a terra é a de que adotemos uma visão realista das coisas. Uma das visões mais
humanas e sublimes da vida é a filosofia de Epicuro – este gênio da Antigüidade que,
junto com Demócrito e Leucipo, descobriu que o mundo estava formado por átomos.
Epicuro (341-270 a.C), cuja memória tem sido caluniada durante séculos pela Igreja,
desejava libertar a humanidade do tormento do medo e, particularmente, do medo à
morte. Tinha uma visão alegre e otimista da vida. No próprio dia de sua morte, fez o
comentário seguinte: “É um bom dia para morrer”.

Os estóicos, que pregavam a fraternidade universal em que todos seríamos membros


de uma grande comunidade, acreditavam que, como o universo é indestrutível, então
as almas de todos os homens sobrevivem à morte, mas não como indivíduos. E, como
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nada pode nos acontecer, porque assim é o curso e a constituição da natureza, então
não há porque temer a morte. Foi um estóico quem primeiro disse que “todos os
homens são livres”. O estoicismo teve uma grande influência na cristandade, através
dos escritos de Epectetus e Marco Aurélio. Na verdade, os estóicos não acreditavam
em um deus (utilizavam a palavra theos, mas com sentido completamente diferente
ao do deus cristão), afirmavam que o homem sábio era igual a Zeus. Sua idéia não
era a de ir para o céu, e sim a de viver uma boa vida que identificavam com a
apatheia, mas que não significava apatia, e sim o controle das emoções.

Realmente, a maioria das pessoas da Antigüidade parecia ser indiferente à questão do


que ocorreria depois da morte. A “vida” depois da morte dos gregos era um lugar
particularmente pouco atrativo, cinzento, um mundo triste de espíritos vacilantes. Os
egípcios tinham uma visão mais atrativa do outro mundo, em que havia comida e
vinho, música, mulheres nuas dançando, o que, portanto, tornava necessário
abastecê-lo através de um exército de escravos. Mas, para os egípcios, o outro mundo
era monopólio da classe dominante, cujas tumbas monumentais mostravam a mesma
riqueza ostentosa e o mesmo luxo que tinham desfrutado na vida. Na China e em
outras sociedades classistas primitivas, a classe dominante admitia com
surpreendente equanimidade a possibilidade de um futuro inferno ardente, então
preferia dedicar-se ao gozo tranqüilo de suas riquezas em vida, enquanto deixavam
que o futuro cuidasse de si mesmo. Contudo, para os pobres, a aceitação passiva de
um mundo de dor e sofrimento neste vale de lágrimas é o preço a pagar diante da
promessa de um futuro feliz além tumba. Esta promessa tem levado milhões de
homens e mulheres ao esquecimento, esgotando-se numa vida de esforços
intermináveis, de angústias mentais e físicas.

Para algumas pessoas esta situação pode parecer justa. Mas, para nós, mais parece
um embuste descarado. “Se às pessoas comuns lhes tiramos esta esperança, o que
lhes sobra?”. Este é o argumento dos sofistas. A resposta é: alcançarão a verdade e a
Bíblia diz que a verdade nos tornará livres. Então, enquanto os olhos de homens e
mulheres se dirigirem para o céu, serão incapazes de contemplar os problemas reais
que os atormentam e de ver os seus verdadeiros inimigos.

O amor à vida é o autêntico fundamento do materialismo filosófico e deve envolver o


desejo apaixonado por transformar o mundo em que vivemos e por melhorar a vida
de nossos concidadãos. Onde a religião ensina a elevar os olhos para o céu, o
marxismo diz para lutarmos por uma vida melhor sobre a terra. Os marxistas
acreditam que homens e mulheres devem lutar para transformar suas vidas e criar
uma sociedade verdadeiramente humana que permita à raça humana elevar-se até
alcançar sua verdadeira natureza. Acreditamos que os homens e as mulheres têm
somente uma vida e devem se dedicar a tornar esta vida maravilhosa. Lutamos por
um paraíso nesta vida porque sabemos que não há outra. Na medida em que vivemos
e lutamos por um mundo melhor, também preparamos um futuro melhor para nossos
filhos e netos. E, mesmo que cada indivíduo tenha uma vida finita, a espécie humana
continuará e nossa contribuição individual à causa da humanidade também pode
perdurar depois que tenhamos deixado de existir. Podemos alcançar a imortalidade,
não negando as leis da natureza, mas perdurando na memória das futuras gerações, a
única imortalidade a que os mortais podem aspirar.

Há uma profunda diferença filosófica entre o marxismo e todas as formas de religião.


Significa isso que não podemos lutar e trabalhar juntos por um mundo melhor?
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Absolutamente. Todos têm o direito de defender qualquer opinião. Mas esta diferença
de opiniões – que é importante a partir de um ponto de vista filosófico – não nos
deveria impedir de nos unirmos na luta contra a injustiça e a opressão terrenas.
Trata-se apenas de se chegar a um acordo no programa básico para a transformação
socialista da sociedade e dos meios para levá-lo à prática. Feito isto, não nos faltará
tempo, depois, para discutir as outras questões!

O mundo da religião é um mundo desconcertante, é uma impressão destorcida da


realidade. Mas, como todas as idéias, as idéias religiosas também têm sua origem no
mundo real. Ademais, são a expressão das contradições da sociedade de classes. Este
fato é muito evidente nas religiões mais antigas.

O deus babilônico Marduk anunciou sua intenção de criar o homem para que prestasse
serviço aos deuses, “para liberá-los” das tarefas menos nobres relacionadas ao ritual
do templo e para proporcionar sua alimentação. Neste caso, encontramos um reflexo,
na religião, da realidade da sociedade de classes. A humanidade estava dividida em
duas classes: em cima, os deuses intocáveis (a classe dominante), e, em baixo, os
“pedreiros e distribuidores de água” (as classes trabalhadoras). Seu objetivo é o de
dar uma justificação (religiosa) ideológica à escravização da maioria pela minoria. E
era este um fato muito real na vida de todas as sociedades antigas (e modernas): a
casta sacerdotal estava liberada do trabalho e desfrutava de privilégios reais ao se
erigir como representante físico de deus sobre a terra.

Ao escrever sobre os mitos da criação babilônicos (nos quais se baseou o primeiro


livro do Gêneses), S. H. Hooke faz a seguinte observação: “Já vimos que o mito de
Lahar e Ashnan terminou na criação do homem para prestar seu serviço aos deuses.
Outro mito [...] descreve como se criou o homem. Embora o mito sumério difira
consideravelmente da épica da criação babilônica, ambas as versões estão de acordo
no objeto para o qual foi criado o homem, ou seja, prestar seus serviços aos deuses,
cultivar a terra e liberar os deuses de ter de trabalhar para viver” (S. H. Hooke. Middle
Easter Mythology. P. 29. Edição Inglesa).

A religião (diferentemente da magia, do totemismo e do animismo das primeiras


sociedades sem classes) surge da divisão da sociedade em classes antagônicas e é
expressão das contradições insolúveis provocadas por esta divisão. Na Bíblia,
encontramos o jardim do éden, que expressa o sentimento e a nostalgia de se ter
perdido um mundo pleno de felicidade. A religião procura superar esta contradição,
suavizar esta ferroada, reconciliar aos homens e mulheres com a realidade de
sofrimento e exploração, apresentando estas calamidades como a vontade de Deus ou
como o resultado da desobediência a Deus, ou as duas coisas. Submissão! Obediência!
Sacrifício! Depois tudo caminhará bem. Na realidade, a separação violenta da
humanidade de si mesma – esta alienação da raça humana – apenas poderá ser
superada com a abolição da sociedade classista e com o restabelecimento de laços
verdadeiramente humanos entre as pessoas.

Esta relação psicológica entre os seres humanos e as divindades que eles criam para
si mesmos, muito nos diz sobre a verdadeira situação da espécie humana. Não é
segredo que as divindades de uma determinada sociedade são o reflexo dessa
sociedade, de seu modo de produção, das relações sociais, da moralidade e dos
preconceitos. Como assinalamos em Razão e Revolução: “Não foi deus quem criou o
homem a sua própria imagem, mas, pelo contrário, foi o homem quem criou deuses a
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sua própria imagem e semelhança. Ludwig Feuerbach disse que, se os pássaros
tivessem uma religião, seu deus teria asas. ‘A religião é uma ilusão em que nossas
próprias concepções e emoções se nos apresentam como existências separadas, como
seres à margem de nós mesmos. A mente religiosa não distingue entre o subjetivo e o
objetivo – não tem dúvidas; tem a capacidade não de discernir coisas diferentes dela
mesma, mas de ver suas próprias concepções fora de si mesma como seres
independentes. Isto era algo que homens como Xenofonte de Colofon (565-470 a.C)
entendeu quando escreveu: ‘Homero e Hesíodo atribuíram aos deuses toda ação
vergonhosa e desonesta entre os homens: o roubo, o adultério, o embuste (...) Os
etíopes fazem seus deuses negros e com o nariz chato e os trácios fazem os seus com
os olhos cinzentos e o cabelo vermelho (...) Se os animais pudessem pintar e fazer
coisas como os homens, os cavalos e os bois também fariam deuses a sua própria
imagem’” (Alan Woods e Ted Grant. Razón y Revolución. Madri. Fundação Frederico
Engels. 1995. p. 36).

Mas estes deuses não são simples cópias em papel carbono da realidade, são a
realidade vista através dos óculos da religião – um mundo alienado, místico, de
cabeça para baixo, onde tudo está ao contrário. Eles são tudo o que homem gostaria
de ser, mas que não pode ser. Possuem todos esses atributos que os humanos
gostariam de ter e que aspiram ter, mas que não podem ter. Nesse sentido, a religião
representa uma aspiração inalcançável. Mas este sentimento religioso também contém
outro elemento: uma profunda aspiração de um mundo melhor depois da vida.
Quando o camponês faminto e oprimido brada a seus deus, pedindo com clamor
justiça, grita contra a injustiça, a crueldade e a falta de humanidade deste mundo.

A fé na igualdade e na comunhão dos crentes encontra-se freqüentemente no


comunismo primitivo e também nos primeiros cristãos. Os movimentos de massas que
surgiram no calor destas crenças, durante o primeiro período tanto do Islã quanto da
cristandade, sacudiram o mundo. Mas, devido ao escasso desenvolvimento dos meios
de produção, a humanidade teve de trabalhar e sofrer outros dois mil anos de
sociedade escravista. O sonho de igualdade e fraternidade se dissipou. Por trás do
senhor – e, mais tarde, do capitalista – estava não somente o monarca de carne e
osso, com seus soldados, policiais e carcereiros, mas também os policiais e carcereiros
espirituais. A resistência ao status quo era castigada não somente com o fogo e a
espada, mas também com a excomunhão e o tormento eterno. O desespero por não
se obter justiça no mundo real obrigava o homem a pensar que a justiça podia ser
encontrada no além, do outro lado da tumba.

Falamos aqui de homens, porque, durante a maior parte da história escrita, a


sociedade tem permanecido dominada por homens; as mulheres têm sido relegadas
ao papel de escravas do escravo. Um homem deve servir a seu senhor, a seu rei e a
seu deus, mas uma mulher deve servir a seu marido, a seu senhor e a seu amo. Para
muitas mulheres, o consolo da religião foi a única maneira de aliviar o intenso
sofrimento de sua escravidão. Isto explica porque em muitas sociedades as mulheres
encontram-se tão ligadas à religião. Sem ela, suas vidas seriam insuportáveis. É como
uma droga que nubla os sentidos e os torna insensíveis ao sofrimento. Mas isto não
elimina a causa da dor, nem melhora a sorte das mulheres. Muito pelo contrário.
Embora, em suas origens, o cristianismo oferecesse novas esperanças para as
mulheres, tendo sido classificada, desdenhosamente, pelos romanos, como “uma
religião de escravos e mulheres”, na prática se caracterizava por uma intensa
misoginia. O pecado original do homem foi provocado por uma mulher: Eva.
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As relações naturais entre os homens e as mulheres foram proibidas e permaneceram
malditas como um pecado mortal. Santo Agostinho descreveu o ato sexual como uma
“missa ímpia”. O papel da mulher é o de sofrer a serviço do homem, uma situação que
se expressa de forma clara na aflita virgem Maria. Sobre a terra não se pode esperar
a felicidade.

Gerações de pensamento religioso impuseram sua marca na infelicidade de muitas


mulheres. E o que se refere ao cristianismo também se pode referir a outras religiões.
Há uma antiga oração judia que diz: “Bendita seja a vossa perspicácia senhor que não
me fez nascer mulher”. Em determinados países muçulmanos, a opressão das
mulheres alcançou uma forma extrema – como é o caso do Irã e ainda mais do
Afeganistão. A tradição hindu durante séculos condenou as viúvas a se imolarem nas
piras funerárias de seus maridos. A emancipação das mulheres de sua escravidão está
em direta contradição com a religião.

Na maioria das religiões, cristianismo, islamismo, budismo, sikhismo – pelo menos em


suas origens – existe um elemento de crítica ao mundo e seu funcionamento,
combinado com o sonho de um mundo melhor, em que não haverá mais ricos ou
pobres, opressores ou oprimidos, e todos os homens e mulheres serão irmãos e irmãs.
Tanto nas igrejas cristãs, quanto nas mesquitas muçulmanas, esta ilusão persiste na
“comunhão” ou fraternidade de todos os crentes, na idéia de que todos são “iguais aos
olhos de deus” e outras coisas no mesmo estilo. Mas, no dia seguinte, o empresário
rico, cristão ou muçulmano, voltará a explorar, roubar, insultar e trapacear a seus
trabalhadores, como o fazia antes da “comunhão”. Quando se menciona esta flagrante
contradição entre a teoria e a prática da religião, balançarão tristemente a cabeça e
culparão a imperfeição dos seres humanos neste mundo de pecado, o que será muito
pouco consolador para o trabalhador.

As origens da cristandade

O papel da religião na sociedade mudou muitas vezes ao longo dos séculos. É


importante compreender a origem da evolução histórica das grandes religiões.
Originalmente, a cristandade e o islã eram movimentos revolucionários de pobres e
oprimidos. Tomemos o exemplo da cristandade. Há aproximadamente dois mil anos os
primeiros cristãos organizaram um movimento de massas formado pelos setores mais
pobres e oprimidos da sociedade. Engels escreveu a esse respeito: “A história dos
primeiros cristãos tem notáveis pontos de semelhança com o movimento da classe
operária moderna... Ambos são perseguidos e fustigados, seus seguidores são
desprezados e vítimas de leis exclusivas, os primeiros como inimigos do gênero
humano e os últimos como inimigos do Estado, da religião, da família e da ordem
social. E, apesar de toda perseguição, de serem esporeados por isto, ambos avançam
vitoriosos” (Marx e Engels. On the religion. P. 281. Na edição inglesa).

Os primeiros cristãos eram comunistas e isto se pode ver claramente ao se ler os Atos
dos Apóstolos. O próprio Jesus Cristo andava entre os pobres e os despossuídos e,
com freqüência, atacava os ricos. Não foi por casualidade que seu primeiro ato ao
entrar em Jerusalém fosse o de atacar os cambistas do templo. Também disse que
seria mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar

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no reino de deus (Lucas, 18-24). Os primeiros cristãos alinharam-se com os pobres
contra os ricos e os poderosos.

Na epístola de São Tiago podemos ler: “Agora cabe aos ricos: chorem e lamentem-se
porque lhes têm caído por cima desgraças. Os vermes meteram-se em suas reservas
e a traça lhes come suas vestes; seu ouro e sua prata se oxidaram. O óxido se levanta
como acusador contra vocês e como o fogo lhes devora as carnes. Como
entesouraram, se já eram os últimos tempos? O salário dos trabalhadores que
colheram seus campos não lhes foi pago; as queixas dos segadores já tinham chegado
aos ouvidos do Senhor dos exércitos. Conheceram apenas luxo e prazeres neste
mundo, e passaram muito bem, enquanto outros eram assassinados. Condenaram e
mataram o inocente, pois, como podia se defender?” (São Tiago, 5-1). Esta é a voz da
luta de classes, com toda clareza. A Bíblia está repleta destas expressões.

O comunismo dos primeiros cristãos também era evidente em suas comunidades onde
toda riqueza constituía um bem comum. Aquele que desejasse se unir a uma
comunidade cristã devia dar, de início, toda sua propriedade mundana. Nos Atos dos
Apóstolos podemos ler: “Vinham assiduamente ouvir os apóstolos, à convivência
[koinonia, é o mesmo que comunismo], à divisão do pão e às orações... Todos que
tinham acreditado viviam unidos; compartilhavam tudo o que tinham, vendiam seus
bens e propriedades e repartiam depois o dinheiro entre todos segundo as
necessidades de cada um” (Atos dos Apóstolos, 2-42).

E novamente: “A multidão de fiéis tinha um só coração e uma só alma. Ninguém


considerava como próprios os seus bens, mas que tudo era tido em comum... Entre
eles nenhum sofria necessidade, pois os que possuíam campos ou casas os vendiam,
traziam o dinheiro e o depositavam aos pés dos apóstolos, que o repartiam segundo
as necessidades de cada um” (Atos dos Apóstolos, 4-32).

É evidente que este comunismo tinha um caráter ingênuo e primitivo. Reflete os


homens e mulheres de seu tempo, que eram pessoas de grande coragem que não se
atemorizaram em sacrificar sua vida na luta contra o monstruoso estado escravista
romano. Mas este comunismo dos primeiros cristãos estava ainda num nível muito
primitivo, comunal (repartição da comida , das roupas etc.). Não era um comunismo
real baseado na propriedade coletiva dos meios de produção. Carecendo de uma
compreensão científica do desenvolvimento da sociedade, os primeiros cristãos,
apesar de seu imenso espírito revolucionário e heroísmo, eram incapazes de
materializar seus ideais. Seu comunismo tinha um caráter utópico e estava condenado
ao fracasso.

A cristandade e o comunismo

Nos primeiros anos da igreja, seus representantes continuaram fazendo eco das idéias
comunistas originais do movimento. São Clemente escreveu: “O uso de todas as
coisas que se encontram neste mundo deveria ser comum para todos os homens.
Somente a iniqüidade mais evidente nos faz dizer ao outro: ‘isto me pertence, tanto a
ti quanto a mim’. Daí a origem da discussão entre os homens”.

Esta observação é correta e demonstra claramente que a origem da luta de classes (“a
discussão entre os homens”) encontra-se na existência da propriedade privada. A
eliminação da discussão entre os homens pressupõe a abolição da propriedade
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privada. São Basílio o Grande propôs uma idéia similar: “Que é isso que dizes que é
‘teu’? Por que é teu? De quem o recebeste? Falas e ages como aquele que numa
ocasião foi cedo ao teatro e tomou posse dos assentos destinados ao público restante,
acreditava que, por chegar antes, podia proibir às outras pessoas que se sentassem,
pretendia apropriar para ele o uso exclusivo de uma propriedade destinada ao uso
comum. E é esta precisamente a forma de agir do rico”.

O mesmo disse São Gregório: “Portanto, se alguém deseja se converter no amo de


toda riqueza, possuí-la e excluir os seus irmãos, inclusive à terceira ou quarta
geração, tal desgraçado não é um irmão e sim um tirano bárbaro e cruel, uma besta
feroz cuja boca sempre está aberta e disposta a devorar para seu uso pessoal a
comida dos outros companheiros”.

E, segundo São Ambrósio: “A natureza supre sua riqueza a todos os homens em


comum. Deus criou todas as coisas para que todos os seres vivos gozem delas em
comum e para que a terra se converta numa posse comum a todos. Foi a própria
natureza que criou o direito da comunidade e foi a usurpação injusta que criou o
direito à propriedade privada”.

São Gregório o Grande continua: “A terra em que nasceram é comum a todos e,


portanto, o fruto da terra pertence a todos sem distinção”. E São Crisóstomo
acrescenta: “O rico é um ladrão”.

Bastam estas linhas para ilustrar as raízes revolucionárias da cristandade em sua


primeira época. Os primeiros cristãos estavam dispostos a resistir às torturas mais
horrorosas para defender sua fé, desafiar ao Estado, à classe dominante e a morrer na
areia. A causa de tão feroz perseguição era que este movimento dos pobres e
despossuídos representava uma séria ameaça para a ordem existente. Mas nenhum
destes métodos repressivos conseguiu esmagar o movimento que ressurgia com
novas forças do sangue de seus mártires.

Não obstante isso, a ausência de bases materiais que permitissem a introdução de


uma sociedade sem classes transformou, aos poucos, tudo em seu contrário. Nessas
condições, a direção da igreja, começando pelos bispos – os tesoureiros –,
pressionados pela classe dominante e pelo Estado, aos poucos foi se separando das
crenças comunistas originais do movimento. Diante da impossibilidade de derrotar os
cristãos com repressão, a classe dominante mudou de tática. Como o imperador
Constantino conseguiu corromper as camadas superiores da igreja se pode ver na
seguinte passagem sobre a história da primeira igreja. Eusébio descreve o concílio de
Nicéia, celebrado no ano 325 d.C, e que foi presidido pelo próprio imperador “como
mensageiro de Deus”, nestes termos:

“As circunstâncias do banquete foram tão esplêndidas que são indescritíveis. Os


destacamentos de guardas e outras tropas rodearam a entrada do palácio com suas
espadas e, entre estes, os homens de Deus entraram sem temor até os aposentos
imperiais mais íntimos. Alguns foram os próprios companheiros de mesa do
imperador, outros se reclinaram nos sofás que estavam colocados de cada lado.
Podia-se chegar a pensar que esta era uma imagem do reino de Cristo, que era um
sonho e não a realidade” (T. Ware. The Orthodox Church. P. 27. Na edição inglesa).

12
Estes métodos são muito familiares aos dirigente social-democratas e aos sindicalistas
de hoje em dia. São precisamente os mesmos métodos utilizados pelo sistema para
atrair os líderes reformistas do movimento operário às idéias burguesas; desta forma,
os corrompem e o sistema os absorve. As lideranças do movimento são convidadas a
ceias e festas ostentosas, onde confraternizam com os ricos e famosos. Desde o
concílio de Nicéia a igreja tem sido a mais firme colaboradora da riqueza, do privilégio
e da opressão.

Os primeiros cristãos negavam-se a reconhecer o Estado ou a servir no exército.


Depois deste concílio tudo mudou. A igreja se converteria em um dos principais pilares
do Estado e perseguiria ferozmente a todos os que questionassem suas novas
doutrinas. Quando Ário de Alexandria rechaçou o credo niceno, seus seguidores (os
arianos) foram passados pela espada. Mais de três mil cristãos foram assassinados por
seus colegas cristãos – houve mais mortos do que em três séculos de perseguição
romana. Com estes meios a igreja dos pobres e dos oprimidos se transformou no
principal veículo de sua escravização.

Como esquecer os pecados... e fazer dinheiro

Durante este período, a igreja cristã foi absorvida – através de suas camadas
superiores – pelo Estado. Em toda sua posterior história a igreja se aproveitou da
debilidade humana e do temor à morte, para escravizar a mente dos homens, e, neste
processo, conseguir enorme poder e riquezas, algo que contrastava totalmente com a
pregação do pobre rebelde galileu em cujo nome pretendia falar. De um movimento
revolucionário de pobres e oprimidos, converteu-se no baluarte da reação e no porta-
voz dos ricos e poderosos – uma situação que tem permanecido até a atualidade.

A história da igreja é a completa e absoluta negação de suas primeiras idéias, crenças


e tradições. Sobre a história do papado da Idade Média e do Renascimento – uma
crônica sem paralelo de infâmia e crime – escreveram-se numerosos volumes. Aqui
nos limitaremos a um só exemplo que resume a verdadeira situação e demonstra qual
é o abismo que separa a verdadeira situação dos mitos hipócritas. No ano 1517, o
papa Leão X publicou a Taxa Camarae, destinada a vender indulgências e salvar almas
em troca de uma modesta soma de dinheiro. Não existia nenhum crime, por mais vil
que fosse, que não pudesse ser absolvido. Entre seus 35 artigos, podemos ler:

“1. O eclesiástico que incorrer em pecado carnal, seja com monjas, primas, sobrinhas
ou afilhadas suas, enfim, com qualquer outra mulher, será absolvido, mediante o
pagamento de 67 libras e 12 xelins.

2. Se o eclesiástico, além do pecado de fornicação, pedir para ser absolvido do pecado


contra a natureza ou de bestialidade, deve pagar 219 libras e 15 xelins. Mas, se
somente tiver cometido pecado contra a natureza com crianças ou com bestas e não
com mulher, somente pagará 131 libras e 15 xelins.

3. O sacerdote que deflorar uma virgem pagará duas libras e oito xelins.

4. A religiosa que quiser alcançar a dignidade de abadessa depois de se ter entregado


a um ou mais homens, simultânea ou sucessivamente, dentro ou fora de seu
convento, pagará 131 libras e 15 xelins.

13
5. Os sacerdotes que quiserem viver em concubinato com seus parentes, pagarão 76
libras e um xelim.

6. Para todo pecado de luxúria cometido por um laico, a absolvição custará 27 libras e
um xelim; para os incestos serão acrescentadas conscienciosamente quatro libras.

7. A mulher adúltera que pedir absolvição para ficar livre de todo processo e ter ampla
dispensa para prosseguir suas relações ilícitas, pagará ao papa 87 libras e três xelins.
Em caso igual, o marido pagará igual soma; se tiverem cometido incestos com seus
filhos acrescentarão conscienciosamente seis libras.

8. A absolvição e a segurança de não ser perseguidos pelos crimes de pilhagem, roubo


ou incêndio, custarão aos culpáveis 131 libras e sete xelins.

9. A absolvição de assassinato simples cometido na pessoa de um laico fixa-se em 15


libras, quatro xelins e três centavos.

10. Se o assassino tiver dado morte a dois ou mais homens num mesmo dia, pagará
como se tivesse assassinado um só.

11. O marido que maltratar sua mulher pagará no caixa da chancelaria três libras e
quatro xelins; se a matar, pagará 17 libras e 15 xelins; e se lhe tiver morto para se
casar com outra, pagará, ademais, 32 libras e nove xelins. Os que tiverem auxiliado o
marido a cometer o crime serão absolvidos mediante o pagamento de duas libras por
cabeça.

12. O que afogar a um seu filho pagará 17 libras e 15 xelins (ou seja, duas libras a
mais do que por matar a um desconhecido) e se o matarem o pai e a mãe com
consentimento mútuo pagarão 27 libras e um xelim, pela absolvição.

13. A mulher que destruir seu próprio filho levando-o em suas entranhas e o pai que
tiver colaborado na perpetração do crime, pagarão 17 libras e 15 xelins cada um. O
que facilitar o aborto de uma criatura que não for seu filho pagará uma libra a menos.

14. O assassinato de um irmão, uma irmã, uma mãe ou um pai, serão pagos por 17
libras e 15 xelins.

15. Quem matar um bispo ou prelado de hierarquia superior, pagará 131 libras, 14
xelins e seis centavos.

16. Se o matador tiver dado morte a muitos sacerdotes em várias ocasiões, pagará
137 libras e seis xelins, pelo primeiro assassinato, e a metade pelos seguintes”.

Porém, mais sério que o assassinato, a violação e o infanticídio, era o crime atroz da
heresia, ou seja, manter idéias diferentes às da igreja oficial. Inclusive se um hereje
se convertia, ele ou ela deviam pagar ainda a soma de 269 libras, enquanto que o
“filho de um hereje que tivesse sido queimado, enforcado ou qualquer outra forma de
execução, não podia ser reabilitado exceto se pagasse 218 libras, 16 xelins e nove
centavos”.

14
A lista continua com fraude, contrabando, inadimplência às dívidas, comer carne nos
dias sagrados, filhos bastardos de sacerdotes que desejem tomar os hábitos sagrados
e, inclusive, eunucos que desejem se converter em sacerdotes (no ponto 33, está
registrado que estes tinham de pagar 310 libras e 16 xelins).

Apesar desta cínica lista de infâmias, os historiadores católicos descrevem o papa


Leão X como o protagonista do “mais brilhante e talvez o período mais perigoso do
pontificado na história da igreja” (Pepe Rodríguez. Mentiras fundamentales de la
iglesia católica. Barcelona. Ediciones B. Anexo. Pp. 397-400).

A religião e a revolução

Em todos os países, e através dos séculos, a igreja se colocou ao lado dos opressores
frente aos oprimidos. Os latifundiários ingleses trabalhavam em estreita colaboração
com os pregadores protestantes. Em França, Espanha e Itália, os sacerdotes eram os
servidores mais abjetos dos latifundiários e, depois, dos capitalistas. Contudo,
freqüentemente as contradições de classe da sociedade se expressaram através de
um disfarce religioso e isto não deve surpreender a quem está familiarizado com o
materialismo histórico.

Com relação a este tema, Trotsky escrevia o seguinte: “As idéias religiosas, como as
demais, nascem no terreno das condições materiais da vida, ou seja, antes de tudo no
terreno dos antagonismos de classe, somente pouco a pouco abrem o caminho,
sobrevivem, devido ao conservadorismo, às necessidades que as engendrou e não
desaparecem senão em conseqüência de choques e sérias perturbações” (Trotsky.
Adonde va Inglaterra?. Argentina. El Yunque editora. 1974. p. 192).

Em diferentes períodos, diferentes religiões, igrejas e seitas desempenharam papéis


diferentes, que, em última instância, refletiam interesses de classes diferentes e
antagônicos. Os primeiros movimentos da grande rebelião contra o feudalismo foram
desafios ao poder e à autoridade da igreja católica romana, e encontraram eco entre
as massas. Um historiador católico disse que “o espírito revolucionário de ódio em
relação à igreja e ao clero se apoderou das massas em várias regiões da Alemanha...
O grito “morte aos padres!”, que antes se murmurava secretamente, agora era uma
palavra de ordem habitual” (citado por W. Manchester. A World Lit only by Flame. P.
161. Na edição inglesa).

As primeiras explosões sociais, como a protagonizada pelos lolardos, na Inglaterra, e


pelos hussitas, na Alemanha, prepararam o caminho para a reforma de Lutero. Em
todos estes movimentos existiu uma tendência comunista que recordava as primeiras
tradições da igreja e, em todos os casos, esta tendência foi brutalmente reprimida.
Durante a rebelião camponesa da Inglaterra, em 1381, o cronista Frossart narra as
atividades de um movimento de dissidentes liderado por John Ball, precursor de idéias
comunistas com um disfarce bíblico, como se pode ver em suas famosas palavras:

“Quando Adão lavrava e Eva fiava,


Quem era, então, o patrão?”.

No período de ascensão da burguesia, a religião protestante refletia a rebelião da


nascente burguesia contra o decadente feudalismo. Sem dúvida, neste momento,
desempenhou um papel progressista. O protestantismo nasceu dividido no século XVI.
15
Na agitação destes tempos turbulentos, surgiram novas seitas que representavam as
idéias e aspirações de diferentes classes e subclasses. Anabatistas, menonitas,
boêmios, congregacionistas, presbiterianos, unitários... O setor de esquerda
representava uma tendência claramente comunista, como era o caso de Thomas
Müntzer e dos anabatistas na Alemanha. Müntzer, um antigo luterano, rompeu com
Lutero e animou os camponeses a se levantar contra a ordem existente. Apesar de
suas atividades revolucionárias, Lutero era hostil ao movimento revolucionário dos
camponeses alemães, embora sua pregação os tenha inspirado a entrar em ação.
Lutero animou a aristocracia a esmagar violentamente o movimento e assim se fez.
Os príncipes “cristãos” assassinaram a quase 100 mil camponeses. Somente na
Saxônia assassinaram a cinco mil homens. Libertaram aproximadamente a 300
somente depois de que suas mulheres aceitaram dar uma surra em dois sacerdotes
acusados de fomentar a rebelião. O próprio Müntzer foi torturado e degolado.

As atividades da sagrada Inquisição – a gestapo da contra-reforma – é bem conhecida


e não merece mais comentários. Nos Países Baixos ocupados pelos espanhóis, era um
crime capital ter uma Bíblia em casa. Os acusados de heresias eram queimados vivos,
embora, quando confessavam e se arrependiam, a Inquisição se mostrava
misericordiosa: decapitava-os e, às mulheres, eram queimadas vivas. Menos
conhecidas são as atividades dos protestantes para sufocar a dissidência. Calvino –
que criou uma ditadura teocrática em Gênova – queimou vivo a Miguel Servet quando
o mesmo se encontrava no ponto de descobrir a circulação sangüínea. Servet pediu
misericórdia – não por sua vida, mas porque queria ser decapitado. O pedido foi
negado e ficou na fogueira durante hora e meia.

As revoluções francesa e inglesa

Na revolução inglesa do século XVII, a ala mais revolucionária refletia as aspirações


das camadas mais baixas da sociedade, os artesão e os trabalhadores – o nascente
proletariado –, e isto encontrou sua expressão em uma forma religiosa. A ala
esquerda do movimento se organizou em toda uma série de seitas protestantes
radicais e democráticas, como a Quinta Monarquia, os ranters e os anabatistas, os
niveladores e os cavadores.

Neste contexto histórico, estes movimentos tinham caráter progressista e


revolucionário. Refletiam os avanços iniciais, confusos, da consciência de uma classe
que ainda não se tinha formado totalmente. Após a restauração, estas tendências
radicais plebéias reapareceram como dissidências religiosas. Perseguidos pela
monarquia com o apoio da igreja anglicana, muitos deles emigraram para a América
e, ali, suas energias revolucionárias ficaram em segundo plano diante da tarefa de
descobrir e colonizar um novo continente. Com os anos, suas origens revolucionárias e
radicais se perderam. Alguns deles, como os quackers, ainda mantêm alguns
elementos de suas velhas idéias, embora de forma muito diluída e que não interferem
em seus exitosos interesses empresariais. A maioria se converteu num baluarte da
reação. Na América Latina, por algum estranho capricho do destino, as seitas
evangelistas se converteram nas tropas de choque da reação e em defensores das
ditaduras militares, enquanto que, até certo ponto, pelo menos a base da igreja
católica romana se inclinou em direção à causa dos pobres e oprimidos.

Durante a revolução francesa – mais de um século depois da revolução inglesa –, a


consciência das massas tinha avançado a tal ponto que a religião já não
16
desempenhava qualquer papel em seu pensamento. A estreita relação entre a igreja e
o estado absolutista era óbvia para todos. No tormentoso período que levou à tomada
da Bastilha, os filósofos materialistas, como Diderot e Holbach, realizaram um rigoroso
trabalho de demolição da Bastilha espiritual da religião. A revolução francesa arrancou
a raiz eclesiástica. O estado jacobino oficialmente era ateu, embora Robespierre tenha
tentado cobri-lo com a folha de parreira do “ser supremo”, que não convencia a
ninguém, exceto ao próprio Robespierre. Embora se supusesse que o povo francês era
fervorosamente católico, a religião praticamente desapareceu em França depois da
revolução (exceto nos distritos mais atrasados e reacionários, como a Vendéia). Na
realidade, a maioria da população odiava os padres, a quem consideravam,
corretamente, como agentes da classe dominante. Somente no final do século XIX,
particularmente após a Comuna de Paris, que provocou comoções na burguesia
francesa, esta deu os passos necessários para recuperar o método reacionário da
religião, utilizando, para este objetivo, truques como os “milagres” manufaturados de
Lourdes.

Na revolução russa, as coisas ficaram ainda mais claras. Embora a classe operária
russa tenha entrado no cenário da história, em janeiro de 1905, sob a liderança de um
padre e conduzindo ícones religiosos, tudo isto desapareceu rapidamente depois do
massacre de nove de janeiro, quando o czar cristão ordenou a seus cossacos abrir
fogo contra o povo desarmado que tinha ido apresentar-lhe uma petição. A partir
deste momento, a religião não mais desempenhou qualquer papel no movimento, que
esteve organizado e dirigido pelos marxistas. Após a vitória da revolução de outubro,
o colapso da influência eclesiástica foi inclusive mais rápido e mais completo do que
em França.

“A igreja ortodoxa russa se convertia mais uma vez, sem chegar a se sobrepor à
mitologia do cristianismo primitivo, em um aparelho burocrático paralelo ao do
czarismo. O ‘pope’ marchava ao lado do latifundiário e respondia com medidas de
repressão a qualquer movimento cismático. Por tal razão, revelaram-se tão débeis,
sobretudo nos centros industriais, as raízes da igreja ortodoxa russa. Separados do
aparelho burocrático da igreja, os operários russos, em sua grande maioria, assim
como a jovem geração camponesa, afastaram com o mesmo golpe a religião”
(Trotsky. Ibid. Pp. 190-191).

Este é um comentário devastador contra a forma com que o estalinismo atrasou a


consciência da sociedade, quando, imediatamente depois do colapso da URSS,
recuperou todos os ingrediente da antiga lixeira: nacionalismo, anti-semitismo,
fascismo, monarquismo – e, junto a todas estas glórias do czarismo, a religião e a
superstição. Estes remanescentes da barbárie medieval estenderam-se como uma
praga no débil e destroçado corpo da Rússia, mostrando a todos a verdadeira
natureza do “mercado” e o fato de que a burguesia na Rússia não oferece nada além
da perspectiva de declínio econômico, social e cultural.

A igreja e o socialismo

O surgimento do movimento operário moderno na última década do século XIX e no


período anterior à Primeira Guerra Mundial foi para o establishment religioso um
completo desafio. Sem exceção, a igreja se colocou ao lado dos exploradores contra o
socialismo e o movimento operário. Para conter a extensão das idéias socialistas no
seio da classe operária, a igreja católica se dispôs a dividir o movimento operário com
17
a criação de sindicatos católicos separados e organizações de jovens e mulheres, para
competir diretamente com a social-democracia. A realidade é que a igreja copiou os
métodos organizativos da social-democracia.

A hierarquia eclesiástica – sempre tão atenta com os ricos e poderosos – viam o


socialismo e o movimento operário com suspeita e hostilidade. O papa Leão XIII, em
sua encíclica Rerum Novarum (sobre a “condição” dos operários) sublinha a
hostilidade do Vaticano em relação ao socialismo.

“Os socialistas, depois de excitar nos pobres o ódio aos ricos, pretendem que seja
necessário acabar com a propriedade privada e substituí-la pela coletiva, em que os
bens de cada um sejam comuns a todos, atendendo a sua conservação e distribuição
os que comandam o município ou têm o governo geral do Estado. Passados assim os
bens das mãos dos particulares às da comunidade e repartidos por igual os bens e
seus produtos, entre todos os cidadãos, acreditam eles que podem curar radicalmente
o mal que existe hoje... Se um homem aluga outro, sua força ou seu engenho, ele o
faz para receber em troca os meios de subsistência, com a intenção de adquirir um
direito real, não simplesmente o seu salário, mas também para se libertar dele.
Investiria este salário em terra e isso é somente o seu salário de outra forma...

“Precisamente nisto consiste, como facilmente todos entendem, o domínio dos bens,
móveis e imóveis. Portanto, ao tornar comum toda a propriedade particular, os
socialistas pioram a condição dos operários porque, ao tirar-lhes a liberdade de
empregar os seus salários como queiram, por eles mesmos, tiram-lhes o direito e até
a esperança de aumentar o patrimônio doméstico e de melhorar com o seu uso seu
próprio estado. Os socialistas... atacam a liberdade de cada assalariado, para privá-los
da liberdade de dispor de seus salários. Cada homem tem, pela lei da natureza, o
direito de possuir propriedade para si mesmo...

“Deve ser dentro deste direito de suas próprias coisas, não simplesmente para uso do
momento, não simplesmente as coisas que perecem com seu uso, mas aquelas coisas
cujo uso é permanente e estável.

“... Sendo o homem anterior ao Estado, recebeu da natureza o direito de prover a si


mesmo, ainda antes que se constituísse a sociedade... Quando, no ato de preparar
estes bens materiais, emprega o homem a atividade de sua inteligência e as forças de
seu corpo, por isso mesmo aplica a si próprio aquela parte da natureza material que
cultivou e em que deixou impressa como uma imagem de sua própria pessoa; e assim
justamente o homem pode reclamá-la como sua, sem que de modo algum possa
ninguém violentar o seu direito...”

O papa Leão XIII também escreveu: “A democracia cristã, pelo simples fato de ser
cristã, deixa-se basear nos princípios da fé divina (...) Por isso, a justiça da
democracia cristã é sagrada. O direito de adquirir e possuir propriedades não pode ser
contradito e devem ser salvaguardados os diferentes graus e distinções que são
indispensáveis em cada comunidade bem organizada. É evidente, portanto, que não
há nada em comum entre a social-democracia e a democracia cristã. As duas diferem
entre si como a seita do socialismo difere da Igreja de Cristo”.

James Connoly, esse grande marxista irlandês e mártir revolucionário, cujas polêmicas
com a Igreja católica são declarações clássicas de socialismo, comentava o seguinte:
18
“Se um dos meninos das escolas públicas não se comportasse, o mais esperado é que
permanecesse no assento de sua carteira até que terminasse seus dias de escola.
Imaginem a um sacerdote que defende o sistema de arrendamento de terras como o
padre Kane e o papa, dizendo: ‘O homem que cultivou a terra durante o inverno e a
primavera tem o direito de ficar com o que ganhou de sua própria colheita’, e imagina
que esta apresentando um argumento contra o socialismo. Os socialistas não
defendem a interferência no direito de um homem a ‘ficar com o que ganhou’;
ademais, insistem enfaticamente em que a esse homem, camponês ou trabalhador,
não se lhe deveria obrigar a entregar nenhuma parte do ‘que ganhou’ a uma classe
ociosa cujos membros ‘não fazem nenhum esforço’, e que conseguiram ficar donos da
propriedade da nação através da força impiedosa, o espólio e a fraude” (J. Connoly.
Selected Writings. pp. 78-9).

Em 21 de setembro de 1958, o papa Pio XII escrevia: “A multiplicidade de classes


sociais corresponde plenamente com os desígnios do criador”. Isto é o mesmo que
dizer que a Igreja considera a sociedade de classes fixa, eterna e de origem divina.
Temos somente de comparar essas palavras com as de São Clemente (citada
anteriormente), quando escrevia: “O uso de todas as coisas que se encontram neste
mundo deveria ser comum a todos os homens. Somente a injustiça [iniqüidade]
manifesta faz com que um diga ao outro, ‘isto me pertence mais que a ti’. Daí, a
origem da discussão entre os homens”.

A postura de Pio XII é a mesma do antigo hino anglicano Todas as coisas brilhantes e
maravilhosas, que contém as bem conhecidas linhas:

“O rico em seu castelo, o pobre em sua barreira:


Ele [Deus] fez o superior e o humilde e organizou seu Estado”

Isto é absolutamente típico da atitude da igreja durante séculos: a defesa aberta do


status quo e da divisão da sociedade em classes.

Posteriormente, como resultado do crescimento do movimento operário e do


irresistível movimento em direção ao socialismo, a igreja católica viu-se obrigada a
modificar sua postura. O papa João XXIII – o mais inteligente dos papas do século XX
– assumiu uma posição mais progressista. Mas, sob o pontificado atual, tudo isto se
converteu em seu contrário.

A Igreja hoje

“Não se considera correto apelar aos tribunais quando alguém te prejudicou? Mas o
apóstolo considera que é um erro. Ofereces tua face direita quando te golpeiam a
esquerda ou respondes ao ataque? O evangelho o proíbe (...) Por acaso a maioria dos
procedimentos judiciais e a lei não estão relacionados com a propriedade? Mas dizeis
que vosso tesouro não é deste mundo” (Marx e Engels. On religion. P. 35).

As atividades da Igreja na sociedade moderna se baseiam em contradições manifestas


e na hipocrisia. As tradições revolucionárias dos primeiros cristãos não guardam
absolutamente nenhuma relação com a situação atual. Desde o século IV d.C. ,
quando o movimento cristão foi seqüestrado pelo Estado e se converteu em um
instrumento dos opressores, a igreja cristã tem ficado do lado dos ricos e poderosos

19
contra os pobres. Hoje, as principais igrejas são instituições muito ricas, tanto nos
países muçulmanos quanto nos cristãos.

Na Espanha, a Igreja católica, ademais de sua enorme riqueza em terras, prédios e


contas bancárias, recebe regularmente subsídios do estado com os impostos pagos
por todos os cidadãos, independentemente de que sejam religiosos ou não, embora ao
povo espanhol nunca se lhe tenha consultado sobre esta medida. O mesmo acontece
em outros países onde a igreja alcançou um acordo com o estado. A religião é uma
violação intolerável da democracia. E mesmo que agora os contribuintes espanhóis
possam optar se doam ou não o seu dinheiro à igreja, o fato é que esta ainda mantém
uma situação privilegiada na hora de acessar os fundos públicos.

Na Idade Média, a igreja católica declarou a usura (o empréstimo de dinheiro com


juros) pecado mortal; agora, o Vaticano possui seu próprio banco e uma enorme
riqueza e poder. A igreja na Inglaterra, além de numerosos interesses empresariais, é
um dos maiores latifundiários da Grã Bretanha. Seria fácil demonstrar que ocorre o
mesmo em todos os lugares. Não é um fenômeno limitado à religião cristã. O Alcorão
também proibia a usura e em todos os chamados países islâmicos podem-se ver
grandes bancos que são propriedade dos muçulmanos. Recorrem a todos os tipos de
truque para esconder isto, embora a taxa de juros aperte à população da mesma
forma.

Politicamente, as igrejas têm respaldado sistematicamente à reação. Nos anos 30, os


bispos católicos abençoavam o exército de Franco em sua campanha para esmagar os
trabalhadores e os camponeses espanhóis. A imprensa fascista espanhola publicava
freqüentemente fotos de prelados com a saudação fascista. O papa Pio XII apoiou
Hitler e Mussolini. O papa guardou silêncio sobre os milhões de pessoas que foram
exterminadas nos campos nazistas, e, embora oficialmente o Vaticano tenha se
mantido neutro durante a Segunda Guerra Mundial, na realidade, suas simpatias pró-
nazistas estão bem documentadas por G. Lewy:

“Desde o início ao final do governo de Hitler, os bispos não se cansaram nunca de


aconselhar ao fiel que aceitasse seu governo como autoridade legítima a quem se
devia render obediência (...) Depois da falida tentativa de assassinato contra Hitler,
em Munich, oito de novembro de 1939, o cardeal Bertram, em nome do episcopado
alemão, e o cardeal Faulhaber, dos bispos bávaros, enviaram telegramas de felicitação
a Hitler. A imprensa católica de toda a Alemanha, em resposta às instruções do
Reichspresskammer, falava da milagrosa providência que tinha protegido ao Führer”
(G. Lewy. The Catolic Church and Nazi Germany. NY. 1965, p. 310-311).

“Em dois pontos importantes os documentos alemães mostram uma semelhança


impressionante. Por um lado, a predileção que sentia o soberano pontífice pela
Alemanha não parecia ter diminuído por causa da natureza do regime nazista e este
não foi repudiado até 1944; por outro, o que Pio XII mais temia era a
bolchevização da Europa e esperava que, com a reconciliação de Hitler com os
aliados ocidentais, então todos se converteriam em uma muralha diante do avanço da
União Soviética em direção ao Ocidente” (Saul Freidhandler. Pio XII y el Tercer Reich.
La Documentassem. NY. 1958. p. 236. O sublinhado é meu).

Na história das idéias a igreja sempre desempenhou o papel mais reacionário. Galileu
Galilei teve que se retratar de suas idéias diante das ameaças da Santa Inquisição.
20
Giordano Bruno foi queimado na fogueira. Charles Darwin foi acossado sem piedade
pelo establishment religioso na Inglaterra por atrever-se a desafiar a idéia de que
Deus criou o mundo em seis dias.

Atualmente a teoria da evolução também recebe ataques da direita religiosa dos EUA.
A direita religiosa nos EUA é um movimento bem financiado que defende as causas
reacionárias. Há alguns anos, Nelson Bunker Hunt, o magnata do petróleo do Texas,
doou “mais de 10 milhões de dólares do bilhão de dólares obtidos pela Crusade
Campus for Christ. A Fundação Cristã para a Liberdade, um ‘lobby educativo’, foi
fundada por J. Howard Pew – fundador da Sun Oil Company – e outros empresários
que defendem o sistema de livre empresa”. Há muitos outros exemplos que
demonstram a estreita relação que existe entre a direita religiosa e as grandes
empresas. Estes ricos empresários não investem estas quantidades de dinheiro para
nada. A religião é utilizada como uma arma da reação.

No movimento criacionista nos EUA participam milhões de pessoas e está –


incrivelmente – liderado por cientistas, entre eles alguns geneticistas. Esta é a
expressão gráfica das conseqüências intelectuais da decadência do capitalismo. É um
exemplo contundente da contradição dialética do atraso da consciência humana. No
país tecnologicamente mais avançado do mundo, a mente de milhões de homens e
mulheres está submergida na barbárie. Seu nível de consciência não é muito mais
elevado que o dos homens que sacrificavam os prisioneiros de guerra aos deuses, que
se prostravam diante de ídolos esculpidos ou queimavam bruxas na fogueira. Se este
movimento triunfasse, como disse há pouco um cientista, voltaríamos à Idade Média.

No terreno da legislação social e, particularmente, nos direitos da mulher, a Igreja


católica romana sempre desempenhou um papel reacionário. Ainda nega à mulher o
direito de controlar seu próprio corpo, nega o direito ao divórcio, à contracepção e ao
aborto. O papa Karol Wojtyla é o seu principal porta-voz. A oposição persistente da
igreja aos métodos anticonceptivos artificiais é sobretudo desastrosa no caso da AIDS.
Em 1999, uma pesquisa entre católicos dos EUA demonstrava que 80% dos leigos e
50% dos sacerdotes estavam a favor da contracepção; em outra pesquisa da
universidade de Maryland dois terços dos católicos reconheciam que praticavam a
objeção de consciência em relação às idéias do papa e faziam o que lhes ditava a
consciência. Poder-se-iam citar números semelhantes com relação aos demais países
desenvolvidos.

No reino da política, o papa é o porta-voz reacionário e inimigo do marxismo e do


socialismo, auxiliado pelo poder da Opus Dei – esta notória máfia católica cujos
tentáculos alcançam cada rincão da vida política italiana, espanhola ou de outros
países.

Lênin e a religião

Engels em seu prefácio ao A Guerra Civil em França dizia que: “com relação ao
estado, a religião é um assunto puramente privado”. Lênin escrevia em 1905: “O
estado não deve ter nada a ver com a religião, as associações religiosas não devem
estar vinculadas ao poder do estado. Toda pessoa deve ter plena liberdade de
professar a religião que prefira ou de não reconhecer nenhuma, ou seja, de ser ateu,
como o é habitualmente todo socialista” (Lênin. Acerca de la religión. Moscou. Editora
Progresso. p. 6).
21
Contudo, com relação ao partido, Lênin assinalava que Engels recomendava que o
partido revolucionário deveria lutar contra a religião: “O partido do proletariado exige
do estado que declare a religião um assunto privado, mas não considera, nem um
pouco, ‘assunto privado’ a luta contra o ópio do povo, a luta contra as superstições
religiosas etc. Os oportunistas tergiversam a questão como se o Partido Social-
democrata considerasse a religião um assunto privado!” (Ibid. pp. 25-25).

E acrescentou que: “A raiz mais profunda da religião em nossos tempos é a opressão


social das massas trabalhadoras, sua aparente impotência total diante das forças
cegas do capitalismo (...) Nenhum folheto educativo será capaz de desentranhar a
religião do seio das massas esmagadas pelo trabalho forçado do regime capitalista, e
que dependem das forças cegas e destrutivas do capitalismo, enquanto essas massas
não aprendam a lutar unidas e organizadas, de modo sistemático e consciente, contra
essa raiz da religião contra o domínio do capital em todas as suas formas” (Ibid. pp.
21-22).

Os marxistas fizeram todo o possível para implicar todos os trabalhadores na luta


contra o capitalismo, incluídos os que professam uma religião. Não devemos interpor
barreiras entre nós e estes trabalhadores, mas animá-los a participar ativamente na
luta de classes.

Como vimos em 1905, a classe operária russa entrou no cenário da história com um
sacerdote à cabeça, portando em suas mãos ícones religiosos e uma petição ao czar –
o “paizinho de todos os russos”. Desconfiavam dos revolucionários e, inclusive em
alguma ocasiões, deram-lhes surras. Mas tudo isso mudou em vinte e quatro horas
depois do massacre de nove de janeiro. Os mesmos trabalhadores, na noite de nove
de janeiro, converteram-se em revolucionários e exigiram armas. Assim é como a
consciência pode mudar rapidamente no fragor dos acontecimentos!

A propósito, o padre Gapon, que tinha organizado a petição e a manifestação pacífica


e que tinha trabalhado para a polícia czarista, transformou-se repentinamente depois
do domingo sangrento. Fez um apelo aos revolucionários para derrubar o czar e
inclusive num momento determinado esteve próximo dos bolcheviques. Lênin não o
afastou e mesmo tentou conquistá-lo mesmo que Gapon continuasse como religioso.

A posição flexível de Lênin pode ser comprovada quando combatia a atitude sectária
contra aqueles trabalhadores que eram religiosos, mas que participavam das greves.
‘Em tal momento e em semelhante situação [isto é, uma greve], o pregador do
ateísmo somente favoreceria à igreja e aos padres, que desejam unicamente
substituir a divisão dos operários em grevistas e não grevistas pela divisão em crentes
e ateus” (Ibid. p. 24).

Aqui está o ponto central da questão. Lutamos pela unidade das organizações
operárias acima de todas as divisões: religiosas, nacionais, lingüísticas ou raciais.
Nossa tarefa é a de unir a todos os oprimidos e explorados em um só exército contra a
burguesia.

Para os marxistas, o ateísmo nunca foi uma parte do programa do partido. Este
disparate sempre caracterizou o anarquismo. Com freqüência, um trabalhador que
ainda é crente aproxima-se do movimento, convencido de seu programa geral e
22
entusiasmado com a luta pelo socialismo, mas que não está disposto a renunciar à
religião. Que atitude deveríamos adotar? É claro que não o afastaremos. Este
trabalhador não deseja unir-se ao movimento para ganhar conversos à religião, mas
para lutar contra o capitalismo. Provavelmente chegará um momento em que verá a
contradição entre a sua política e as suas crenças religiosas e, aos poucos,
abandonará a religião. Mas é uma questão delicada e não há que forçá-la. Como
explicou Lênin: “Somos inimigos incondicionais da menor ofensa as suas crenças
religiosas” (Ibid. p. 24).

É totalmente diferente quando um intelectual de classe média procura introduzir


confusão na ideologia do movimento, como foi o caso quando Lênin escrevia sobre a
religião. Um grupo de bolcheviques (Bogdanov, Lunacharsky etc.,) tentou revisar o
marxismo e introduzir noções filosóficas místicas. Lênin corretamente lutou contra
esta tendência.

O futuro da religião

Qual será o futuro da religião? Sobre esta questão, de imediato, haverá uma profunda
diferença de opinião entre os marxistas e os cristãos e demais religiões.
Naturalmente, não é possível olhar para o futuro através de uma bola de cristal, mas
é possível dizer o seguinte. Embora, a partir de um ponto de vista filosófico, o
marxismo seja incompatível com a religião, sobra dizer que nos opomos a qualquer
tentativa de proibir ou reprimir a religião. Lutamos pela liberdade completa do
indivíduo de ter sua própria crença religiosa ou nenhuma.

O que devemos dizer é que deve haver uma separação radical entre igreja e estado.
As igrejas não devem ser apoiadas direta ou indiretamente pelos impostos, nem
tampouco se deve ensinar a religião nas escolas. Se a pessoa quer religião, esta deve
ser aprendida exclusivamente nas igrejas através das contribuições da congregação e
pregar suas doutrinas em seu espaço próprio. As mesmas observações são boas para
o Islã ou qualquer outra religião.

No que nos diz respeito, o diálogo sobre a religião continuará, mas isto não deve
obscurecer o problema fundamental de nossa época. Nossa principal tarefa é a de unir
na luta todos aqueles que desejam por fim à ditadura do Capital, que mantém a raça
humana numa situação de escravidão. O socialismo permitirá o livre desenvolvimento
dos seres humanos, sem a restrição das necessidades materiais.

Durante séculos, a religião organizada tem sido utilizada pelos exploradores para
enganar e escravizar as massas. Periodicamente, têm explodido rebeliões contra esta
situação. A partir da Idade Média até os nossos dias, têm-se levantado vozes de
protesto contra a subordinação da igreja aos ricos e poderosos. Também vemos isto
na atualidade. O sofrimento dos trabalhadores e camponeses, o martírio da raça
humana sob o infame despotismo do Capital, está provocando indignação entre
amplas camadas da população. Muitos deles não estão ao corrente da filosofia do
marxismo, mas desejam lutar contra a injustiça e a exploração. Entre estes há muitos
cristãos honestos e inclusive padres dos escalões mais baixos, que diariamente
presenciam os sofrimentos das massas.

A teologia da libertação é a expressão da fermentação revolucionária na América


Latina. Os graus mais baixos do sacerdócio estão horrorizados pelo sofrimento das
23
massas oprimidas e tomaram lugar na luta por uma vida melhor. A hierarquia
eclesiástica, com suas centenas de anos, desenvolveu uma relação cômoda com os
ricos latifundiários, os banqueiros e os capitalistas, e combatem esta nova tendência
ou a toleram de má vontade. Assim, a luta de classes penetrou nas fileiras da própria
igreja católica romana.

O mesmo ocorre entre os muçulmanos. As idéias do marxismo começaram a


encontrar eco. Quando as massas oprimidas do Oriente Médio, Irã, Indonésia,
comecem a entrar em ação para melhorar suas vidas, procurarão um programa de
luta para derrubar os seus opressores.

É necessário derrubar o capitalismo, o latifúndio e o imperialismo. Sem isso, não há


saída possível. O único programa que pode assegurar a vitória nesta luta é o
marxismo revolucionário. A colaboração frutífera entre os marxistas e os cristãos,
muçulmanos, hindus, budistas, judeus e seguidores de outras religiões, na luta para
transformar a sociedade, é absolutamente possível e necessária, apesar das
diferenças filosóficas que nos separam. Os cristãos honestos sentem-se
profundamente ofendidos pela terrível opressão sofrida pela maioria da raça humana.

Camilo Torres, antigo sacerdote colombiano, disse uma vez: “Pendurei o hábito de
sacerdote para me converter em um verdadeiro sacerdote. O dever de todo católico é
o de ser um revolucionário; o dever de todo revolucionário é o de levar adiante a
revolução. O católico que não é um revolucionário vive em pecado mortal”.

Estes são os verdadeiros sucessores daqueles primeiros cristãos revolucionários que


lutaram pela causa dos pobres sobre a terra, os pecadores e os oprimidos, e que não
temiam dar suas vidas na luta contra a opressão. São os mártires modernos e todo
aquele que queira a causa da liberdade e da justiça deve guardar sua memória. Entre
1968 e 1978, mais de 850 sacerdotes, religiosas e bispos foram presos, torturados e
assassinados na América Latina. O jesuíta salvadorenho, Rutílio Grande, antes de ser
assassinado disse: “Hoje em dia, é perigoso (...) e praticamente ilegal ser um cristão
verdadeiro na América Latina”. O importante é a palavra “autêntico”.

Uma vida alternativa?

Embora nos últimos anos a religião organizada tenha perdido terreno, as idéias
religiosas têm ressurgido através de um conjunto de seitas e cultos desconcertantes.
Alguns oferecem um “estilo de vida alternativo”. Algumas vezes refletindo a crescente
insatisfação no seio de camadas de jovens com o sistema capitalista, com sua
perspectiva da vida desumana e desalmada, com a vã comercialização de todos os
aspectos da existência, com o cru materialismo, a deterioração do meio ambiente etc.,
pode representar o primeiro passo em direção à consciência. Mas, depois, começa o
problema. Não basta rechaçar o capitalismo; é necessário dar passos concretos para
aboli-lo.

A característica comum de todos estes movimentos “alternativos” – Nova Era etc., - é


que se baseiam na salvação individual. Por este caminho, não há saída possível. E, em
última instância, tampouco isto é uma alternativa. O capitalismo pode viver feliz com
um punhado de pessoas que tenham decidido “se retirar”. Isto não representa uma
ameaça, porque os donos do poder continuarão controlando a vida da sociedade da
mesma forma que antes.
24
Inclusive aqueles que professam a “retirada” perceberão na prática que não há
retirada. Estão obrigados a usar o dinheiro, comprar os produtos básicos para a vida
nas lojas, encher os tanques de combustível de suas camionetes nos postos de
abastecimento, onde comprarão os produtos das grandes companhias petrolíferas que
contaminam os meio ambiente, serão desviados de uma área para outra pela polícia,
como todas as demais pessoas.

A idéia de que é possível separar-se da sociedade e da política é uma ilusão. Basta


tentar para entender que um dia a política baterá em sua porta (se não a derruba
antes).

A tentativa de encontrar uma solução individual é essencialmente reacionária porque a


única forma de lutar contra o capitalismo e o estado burguês é a de unir a classe
trabalhadora e organizá-la em um movimento revolucionário. Qualquer alternativa te
colocará à mercê do Capital e ajudará a perpetuar a ordem existente.

Para esconder sua nudez, os pregadores da Nova Era apresentam-se com valores
espirituais especiais – é o que imaginam! – que lhes poderiam colocar à margem dos
“comuns” mortais e em linha de comunicação direta com as coisas sobrenaturais que
ultrapassam toda compreensão. Sentem-se superiores ao resto da humanidade que
não são confidentes destes grandes mistérios.

Na realidade, estas idéias não são superiores ao pensamento dos mortais normais;
pelo contrário, são inferiores. A primeira regra para quem deseje mudar a sociedade é
a de compreendê-la e a de viver nela. Ao tentar dar as costas à sociedade, a única
coisa que se consegue é converter-se em algo impotente diante da ordem existente e
renunciar eternamente, sem esperança, irrevogavelmente, a toda possibilidade de
transformá-la. Por este caminho não há alternativa e somente mais do mesmo, para
sempre.

A religião e a crise do capitalismo

A religião é o que os marxistas chamam de falsa consciência, porque dirige a nossa


compreensão para fora do mundo real, âmbito este do qual nada se pode saber e
muito menos fazer perguntas. Toda a história da ciência parte de duas presunções
fundamentais: a) o mundo existe fora de mim mesmo; e b) posso compreender este
mundo, e, inclusive, mesmo que haja coisas que atualmente não posso compreender,
pelo menos serei capaz de compreendê-las no futuro. Estabelecer um limite além do
qual o conhecimento humano não pode ultrapassar é o mesmo que abrir as portas ao
misticismo e à religião. Durante mais de dois mil anos, a humanidade tem lutado para
adquirir conhecimento sobre nós mesmos e do mundo em que vivemos. Durante todo
este tempo, a religião tem sido inimiga do progresso científico, e isto não é uma
casualidade. Na medida em que o pensamento científico nos permitiu compreender
coisas que no passado pareciam “mistérios”, a religião tem sido empurrada para trás
e, agora, encontra-se na retaguarda tentando salvar a si mesma.

Na luta da ciência contra a religião, ou seja, a luta do pensamento racional contra a


irracionalidade, o marxismo se colocou com entusiasmo do lado da ciência. Mas não só
isso. Ao se adquirir uma concepção racional do mundo o objetivo é o de transformá-lo.
O sentido de toda a história da humanidade nos últimos cem mil anos – talvez mais –
25
é a luta infindável da humanidade para a conquista da natureza, o controle de seu
próprio destino e se converter, dessa forma, em seres livres. As origens da religião
encontram-se no passado remoto, quando os humanos lutavam para se libertarem do
mundo animal de onde procedemos. Para explicar os fenômenos naturais que se
encontram além de nosso controle, os humanos tinham de recorrer à magia e ao
animismo – as primeiras formas de religião. Nesta época, isto representou um passo
adiante na consciência humana. Este estado infantil da consciência deveria ter
desaparecido há tempo, mas a mente humana é infinitamente conservadora e
conserva conceitos e preconceitos que há tempo perderam sua razão de ser.

Na sociedade de classes, o conceito de “amor ao próximo” é uma declaração vazia. A


economia de mercado, dada sua moralidade servil, faz desta aspiração uma proposta
impossível. Para mudar a conduta e a psicologia de homens e mulheres é necessário,
inicialmente, mudar a forma em que vivem. Nas palavras de Marx, “o ser social
determina a consciência”. Todo o mundo está dominado por um punhado de
gigantescos monopólios que saqueiam o planeta, deterioram-no, destroem o meio
ambiente e condenam milhões de pessoas a uma vida de miséria e sofrimento.

As damas e cavalheiros que se sentam nos conselhos de direção destas


multinacionais, em sua maioria, são cristãos praticantes ou, em número menor,
judeus, muçulmanos, hindus e outros credos. Contudo, a verdadeira religião do
capitalismo não é nenhuma destas religiões. É o culto a Mamon, o deus da riqueza. O
capitalismo revolve as relações humanas. De maneira deformada e destorcida,
converte o homem num ser que “vale um milhão de dólares”, como se falasse de uma
mercadoria. A televisão fala da bolsa de valores, do mercado, do dólar e da libra como
se fossem seres vivos (“a libra está hoje um pouco melhor”). Isto é a alienação:
coisas mortas (Capital) que parecem vivas e coisas vivas (pessoas, trabalho) que
parecem mortas, triviais e sem sentido.

O desenvolvimento humano alcançou a curva descendente. A camada de cultura


moderna e a civilização fabricada durante milhares de anos ainda são muito finas. Por
baixo delas, encontram-se todos os elementos da barbárie. Se alguém tem dúvidas,
estudemos a história da Alemanha nazista ou os recentes acontecimentos nos Bálcãs.
Em sua etapa ascendente, a burguesia abraçou o racionalismo, inclusive o ateísmo.
Agora, no período de decadência capitalista, aparecem por todos os lados tendências à
irracionalidade – inclusive nos países “cultos” mais avançados. Se a classe operária
não conseguir transformar a sociedade, todas as conquistas do passado estarão
ameaçadas e o futuro da civilização humana não estará garantido.

A devastação infligida pelo capitalismo em todo o mundo produziu numerosas


monstruosidades. Em seu período de declínio senil, também vemos a ascensão de
tendências místicas e religiosas retrógradas. O papel reacionário da religião pode ser
visto hoje em todo o mundo, desde o Afeganistão à Irlanda do Norte. Em todos os
lugares vemos a monstruosidade do fundamentalismo; não somente o
fundamentalismo islâmico, como também o cristão, o judeu e o hindu. A mensagem
de amor fraternal e de esperança se converteu em desespero, ódio, matança. Por este
caminho, nada é possível, exceto a barbárie e a extinção da cultura e civilização
humanas.

A causa destes horrores não é a religião em si mesma, como poderia tentar defender
um observador superficial, mas os crimes do capitalismo e do imperialismo, que
26
devastam países inteiros e comunidades e destroem o tecido social e da família sem
por nada em seu lugar. Diante do temor ao futuro e o desespero pelo presente, as
pessoas procuram o consolo das chamadas “verdades eternas” de um passado não
existente. A ascensão do chamado fundamentalismo religioso é somente a expressão
concreta do beco sem saída da sociedade, que leva as pessoas ao desespero e à
loucura. Mas, como vemos no Irã e no Afeganistão, as promessas de um paraíso
religioso acima da terra é um sonho vazio que somente leva a um pesadelo.

A religião não pode explicar nada do que está acontecendo hoje no mundo. Seu papel
não é o de explicar, mas o de controlar as massas com sonhos e untá-las com o
bálsamo de uma falsa promessa. Mas as pessoas sempre despertam dos sonhos, e os
efeitos do bálsamo mais eficiente logo desaparecem. A condição prévia para
ganharmos nossa liberdade como seres humanos é a de romper radicalmente com os
sonhos e ver o mundo e a nós mesmos tal como somos: mortais em luta por uma
existência de seres humanos sobre esta terra.

A humanidade alienada de si mesma

Desde tempos imemoriais, os homens (e também muitas mulheres) têm sido


educados no espírito do servilismo. Inclusive chegamos a pensar que somos débeis,
impotentes, que não importa o que façamos, não faz diferença, pois o “homem propõe
e Deus dispõe”. A idéia dominante é a do fatalismo. Um dos grandes problemas que
enfrentamos é o de que nada se pode fazer. Este sentimento de aceitar de forma
fatalista e de adorar servilmente tudo o que está estabelecido, está imerso em todas
as religiões. Ao cristão aconselha-se que, se for golpeado, oferecer a outra face. A
palavra Islã significa “submissão”, e os profetas do Antigo Testamento asseguram-nos
de que “tudo é vão”. Além deste sentimento de impotência, encontra-se a necessidade
de um ser superior que é tudo o que não somos. O homem é mortal; Deus é imortal.
O homem é fraco; Deus é forte. O homem é ignorante diante dos mistérios do
universo; Deus sabe tudo. A fé dos seres humanos deve buscar no céu a salvação e,
assim, surge a fé em milagres.

E isto não se limita somente às classes menos cultas. Encontram-se superstições


semelhantes na mente de analistas econômicos e corretores de bolsa, que apenas se
colocam em um nível um pouco mais elevado da mentalidade do jogador que leva um
rabo de coelho numa mão enquanto com a outra lança os dados. Na Bíblia, o faminto
comia, o cego via, o mudo falava... tudo com a intervenção de milagres divinos.
Atualmente, não mais se requer a intervenção de elementos sobrenaturais para se
conseguir estes milagres. As conquistas da ciência moderna e da tecnologia já nos
permitem fazer todas estas coisas. São apenas as restrições impostas pela
propriedade privada dos meios de produção e a luta pelo lucro máximo o que
impedem a extensão destas vantagens a todos os homens, mulheres e crianças sobre
o planeta.

Quando homens e mulheres se tornarem capazes de controlar sua vida e de se


desenvolverem como seres humanos livres, acreditam os marxistas que o interesse
pela religião – a busca de consolo em outra vida – cairá por si mesmo. Enquanto isso,
os desacordos nestas questões não devem impedir todos os cristãos, hindus, judeus
ou muçulmanos honestos, que desejem participar na luta contra a injustiça, unam
suas mãos às dos marxistas na luta por um mundo novo e melhor.

27
****************
Por um paraíso neste mundo!

“Se tivesse de começar tudo de novo, trataria, é claro, de evitar tal ou qual erro, mas
no fundamental minha vida seria a mesma. Morrerei sendo um revolucionário
proletário, um marxista, um materialista dialético e, em conseqüência, um ateu
irreconciliável. Minha fé no futuro comunista da humanidade não é hoje menos
ardente, embora seja sim mais firme, que na juventude... Esta fé no homem e no seu
futuro dá-me ainda agora uma capacidade de resistência que nenhuma religião pode
outorgar” (Trotsky. Escritos. Bogotá. Editorial Pluma. 1976. Tomo XI. Volume 1. pp.
216-7).

Em seu livro, A Metafísica, Aristóteles fez um profundo e maravilhoso comentário,


quando disse que o homem começa a filosofar quando suas necessidades vitais estão
satisfeitas. Ao eliminar a antiga dependência degradante de homens e mulheres das
coisas materiais, o socialismo estabelecerá as bases para uma transformação radical
na forma de pensar e agir. Trotsky adiantou o que poderia acontecer numa sociedade
sem classes:

“Sob o socialismo, a solidariedade será a base da sociedade. Todas as emoções que


nós, os revolucionários, na atualidade, sentimos apreensão de mencionar, que têm
permanecido cheias de hipocrisia e vulgaridade, como é a amizade desinteressada, o
amor ao próximo, a simpatia, serão o coro poderoso da poesia socialista” (Trotsky.
Literatura e Revolução. p. 60. Na edição inglesa).

As cadeias da opressão de classe e da escravidão não são materiais e sim psicológicas


e espirituais. Custará tempo, inclusive depois da abolição do capitalismo, para eliminar
as cicatrizes morais desta escravidão. Homens e mulheres que se formaram, durante
toda sua vida, no espírito servil, não emanciparão sua mente e alma imediatamente
de todos os preconceitos. Mas, uma vez que estejam dadas as condições materiais e
sociais para permitir aos homens e mulheres entrar numa relação verdadeiramente
humana, sua conduta e forma de pensar transformar-se-ão da mesma forma. Quando
chegar esse dia, as pessoas não necessitarão de polícia – seja material ou
espiritualmente.

Os antigos sofistas gregos, que realmente eram filósofos perspicazes, consideravam


que o “homem é a medida de todas as coisas”. Numa sociedade sem classes, seria
exatamente este o caso. Mas onde homens e mulheres controlam suas vidas e destino
de forma consciente, que espaço sobra para o sobrenatural? Em lugar de desejar uma
vida imaginária além túmulo, as pessoas concentrarão sua energia em fazer esta vida
tão maravilhosa e plena quanto possa ser. É este o significado do socialismo: tornar
realidade o que sempre foi potencial.

Em sua forma mais elevada de sociedade, homens e mulheres alcançarão sua


verdadeira dimensão. Limparão nosso mundo de toda pobreza, ódio e injustiça.
Recuperarão o planeta; seus rios, mares e cascatas serão puros novamente, e toda a
maravilhosa diversidade da vida será protegida e cuidada. As cidades aglomeradas e
contaminadas deixarão de existir e serão reconstruídas com toda a criatividade
artística respeitando o meio ambiente. As profundezas dos oceanos serão exploradas e
28
redescobriremos seus segredos passados. E, por último, mas não menos importante,
tocaremos o céu com a mão – não em uma oração –, mas em naves espaciais que
levarão a humanidade aos confins remotos de nossa galáxia e talvez mais além.
Quando homens e mulheres desfrutarem desta visão ilimitada do progresso humano,
que poderemos conseguir com nossos próprios esforços e recursos, sem ajuda de
espíritos, que lugar sobrará para a religião?

Na Bíblia, podem-se encontrar palavras de grande sabedoria, como nos Coríntios,


onde podemos ler: “Quando era criança, falava como criança, compreendia como
criança, pensava como criança. Quando me tornei homem, deixei de lado as coisas
pueris”. Acontece o mesmo com a evolução de nossa espécie. Quando a raça humana
realizar definitivamente o seu destino e se tornar capaz de se por sobre os dois pés e
viver plenamente a vida, já não será necessário o apoio da religião, um ser
sobrenatural a quem rezar ou o falso consolo de uma vida noutro mundo. Quando
chegar esse momento, a humanidade deixará a religião com a mesma facilidade que,
quando as pessoas crescem, deixam de lado os contos de fada que amavam quando
eram crianças e tenham superado sua necessidade.

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22 de julho de 2001.

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“A teoria se
transforma em
força material
quando penetra
nas massas”

Karl Marx

WWW.MARXISMO.ORG.BR

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