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Introdução ao pensamento teológico

Antropologia Teológica.
Texto: Prof. Leomar Nascimento de Jesus

INTRODUÇÃO

Estudar religião é como se aproximar de um iceberg pensando ingenuamente que aquela


ponta de gelo revela a montanha glacial inteira. A visível saliência, que emerge do mar, não é
senão uma ínfima parte de uma realidade bem mais complexa e fascinante, mergulhada no
fantástico oceano da vida humana.
Trata-se de uma realidade em nada óbvia, profundamente influenciadora da sociedade
(e pela sociedade influenciada), pesquisada incansavelmente por autores de todos os tempos e
lugares, a partir de ângulos e metodologias bastante diversos, o que torna ainda mais fascinante
e complexo tal empreendimento. O “simples” vocábulo “religião” já é problemático (no sentido
acadêmico do termo), uma vez que, para muitos autores, está vinculado a um contexto histórico-
cultural específico (sobretudo identificado à Europa cristã), não sendo encontrado em outras
culturas fora do ocidente.
Na atualidade, duas disciplinas se destacam no estudo da religião: a Teologia e a Ciência
da Religião. O conhecimento teológico - inaugurado e desenvolvido pelo cristianismo - traz
em si uma característica bastante peculiar: parte da Revelação (Deus que age na história), vivida
e transmitida na comunidade cristã, integra racionalidade com experiência de fé. A Ciência da
Religião perscrutará as manifestações do sagrado por uma outra ótica, ou seja, através de
concepções e métodos próprios à concepção moderna de ciência, sem a concorrência da fé e,
portanto, sem um compromisso com qualquer visão de mundo que seja.
Em nossos textos de Introdução ao Pensamento Teológico, abordaremos o universo
religioso ora do ponto de vista da Teologia, ora por meio do método assumido pela Ciência da
Religião e/ou outras ciências.
Nosso intuito, portanto, é adentrar o universo da teologia de forma dialógica e
contextualizada, ou seja, levando em consideração outras formas de leitura da realidade e os
inúmeros desafios que se apresentam ao homem pós-moderno, que busca uma compreensão
mais acertada do mundo que o cerca e que também está em busca de um sentido para sua
existência. Eis alguns desses desafios:
O triunfo de uma razão técnico-científica com progressos gigantescos no mundo da
comunicação, da genética, da robótica, da astronomia e, ao mesmo tempo, uma desconfiança
radical para com ela, já que esta razão técnico-científica não resolveu os grandes dramas da
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humanidade, tais como, as injustiças, as desigualdades, o desrespeito para com o planeta e a


violência em geral.
A coisificação da pessoa humana e a personificação do mercado, com consequências
desastrosas e muitas vezes fatais, sobretudo para os mais vulneráveis.
Uma desconfiança acirrada das pessoas em relação a religiões institucionalizadas,
mas, ao mesmo tempo, a fuga de muitos para religiões fundamentalistas, que se apresentam
como “boias de salvação”, como as únicas portadoras da verdade, que enfatizam a prosperidade,
a satisfação imediata da felicidade. Que pregam a satanização do que é diferente e a resolução
mágica dos problemas humanos. Isso é ainda mais evidente em tempos de pandemia e se mostra
concretamente pelo negacionismo (de todos os tipos), pelo desprezo da ciência e por teodiceias
desumanizantes. Se em boa parte da Europa o grande desafio é lidar com o secularismo, com o
ateísmo prático, nos países da América Latina a grande empreitada é lidar com uma realidade
marcada por muitas crenças, mas pouca libertação, parafraseando João Batista Libânio (2001,
p. 17-18).
O descompasso entre a fé do culto e a vida concreta dos crentes, que se expressa no
total a abandono da ética, com consequências trágicas para a humanidade, de modo especial
para os mais pobres e indefesos. O Brasil é um dos exemplos: maior nação católica do mundo
(com um aumento expressivo do número dos evangélicos nos últimos anos) e, no entanto,
repleta de graves problemas sociais, que submetem tantos a uma vida de precariedade e
humilhação.
A rapidez da comunicação, que modifica comportamentos e impõe novas
exigências. O fenômeno das fake news, inclusive no mundo religioso. A realidade das grandes
cidades, com suas desigualdades e injustiças; com o narcotráfico; com o isolamento das pessoas
em seus condomínios, casas e favelas; com os fundamentalismos religiosos de todo tipo; com
uma juventude profundamente conectada ao mundo digital, mas desconectada das questões
políticas, sociais e econômicas do mundo real, frequentemente apática em relação a instituições
religiosas tradicionais e, ao mesmo tempo, ávida por algo que dê sentido à sua existência.
A inteligência artificial, que desafia o mundo dos humanos com seu potencial tanto
para construir relações, conhecimento e oportunidades, quanto para ameaçar a vida, num
sentido profundo do termo.
Eis, queridos alunos, alguns dos desafios que se apresentam aos pesquisadores da
atualidade, nomeadamente para os teólogos e cientistas da religião.
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1 - O ser humano: inquieto e angustiado

1.1 - O ser humano: um indagador de si e da realidade que o circunda

O universo dos seres humanos é bem peculiar em relação ao mundo da natureza,


compreendido como universo ecológico independente da ação humana. Como bem expressa
Rubens Alves, as coisas na natureza estão lá e têm todo um dinamismo que não necessita da
intervenção humana. Ainda que o ser humano jamais tivesse existido, a água existiria (bem
limpa), o sol estaria brilhando, as chuvas continuariam a germinar a terra, enfim, talvez a
natureza estivesse numa situação bem mais favorável que na presença do ser humano (ALVES,
1999, p. 39).
Embora ele também faça parte da natureza, o homem traz em sua constituição algumas
características bastante curiosas que o tornam único em todo o universo conhecido e que o
habilitam a criar uma espécie de “segunda natureza” a qual chamamos “cultura” (BERGER,
1985, p. 22). Ao contrário da natureza, que pode muito bem existir sem a ação do gênero
humano, esta “segunda natureza” traz as marcas profundas da precariedade humana e irá
desaparecer, quando, enfim o ser humano, sucumbir. Isso inclui, é claro, a religião.
Duas características fundamentais do ser humano estão na base do edifício da cultura: a
consciência de si e de sua finitude, bem como a percepção da passagem do tempo (FERRY,
2012, p. 10). Tais aspectos humanos provocam angústia e impulsionam o gênero humano na
busca de significado para sua existência. As famigeradas perguntas existenciais o delatam:
Quem sou? De onde vim? Para onde vou? Por que existe o mal? Por que o justo padece? Qual
o sentido da vida? Porque perdemos as pessoas que amamos? Quem é este ser tão familiar e ao
mesmo tempo tão enigmático? Entre outras.
O antropólogo Roberto da Matta afirma que “o ser humano é o único ser que tem
consciência de sua própria morte e, por isso mesmo, tem enorme e definitiva necessidade de
domesticar o tempo e de problematizar a eternidade” (1997, p. 113).1 Marcelo Gleiser, físico e
astrônomo brasileiro, nesta mesma linha de pensamento, declara que tais consciências (de sua
mortalidade e da passagem do tempo), provocam no ser humano uma profunda angústia, já que
a morte está sempre à espreita, uma vez que o ser humano não pode prever o futuro.2
Mergulhado em sua angustia existencial, o ser humano passa a buscar algo que o
transcenda, que dê sentido às suas indagações. De alguma forma o homem tenta fugir da morte,

1
Ver também WILLIAMS, 2021, 215ss.
2
Cf. GLAISER, M. Quem é o homem? Eis o homem #1. TV NOVO TEMPO. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=a1QM3vHNKyk&t=225s>. Acesso em: 29/01/2019.
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do esquecimento, de uma vida vazia e sem sentido. Talvez seja por isso que escreve, que pinta,
que dança, que trabalha, que compõe músicas, que inventa coisas, que busca deixar algum
legado como forma de transcender sua vida restrita,3 que cria aquilo que normalmente
chamamos de “religião.”
De fato, desde que se tem registro, o ser humano sempre procurou, às apalpadelas, uma
realidade que estivesse para além da materialidade de sua existência, o contato com o divino,
com o sagrado, com o totalmente Outro. Segundo Marconi e Presotto (2014, p. 64), o Homo
Sapiens de Neanthertal já sepultava seus mortos com seus pertences, levando a indicar sua
crença na imortalidade, na existência de uma vida após a morte.4 Tal característica social é um
indício indiscutível de que há pelos menos 150 mil anos, o ser humano já se perturbava com
inúmeras questões referentes a si mesmo, à perda de seus entes queridos, ao mundo que o cerca
e ao universo que o transcende.
Habita, portanto, o coração humano a teimosa pergunta: será que não haverá um
insondável que nos escapa? Será que não haveria algo infinito, misterioso e incomensurável
que não pode ser apreendido pelo pensamento, mas com o qual de alguma forma podemos
entrar em contato? Teria, este “insondável” algo a dizer sobre o próprio ser humano? O que o
homem diz de si mesmo a partir de sua própria experiência religiosa? As ciências, começando
pela Filosofia, nascem destes questionamentos. De acordo com PANNENBERG, “a origem
da filosofia está estreitamente ligada à religião” (PANNEMBERG, apud AQUINO JUNIOR, 2018,
p. 28).
Podemos concluir este tópico concordando com Marconi e Presotto quando afirmam
que a religião é, incontestavelmente, parte integrante da vida humana, um aspecto universal da
cultura, objeto do interesse de vários cientistas (2014, p. 151). Indo mais longe, podemos dizer
que a busca pela transcendência é o resultado da racionalidade, da capacidade do ser humano
de fazer perguntas e refletir sobre o mundo que o cerca (e que está para além dele mesmo),
numa busca incansável de sentido para sua existência.

3
Cf. Cf. GLAISER, M. Quem é o homem? Eis o homem #1. TV NOVO TEMPO. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=a1QM3vHNKyk&t=225s>. Acesso em: 29/01/2019.
4
Ainda segundo Marconi e Presotto, “o Homo Sapiens de Neanthertal teria surgido há cerca de 150 mil anos no
período da Glaciação de Würn, estando relacionado com o Pleistoceno superior. Todavia, o seu apogeu teria
ocorrido entre 70 e 40 mil anos” (2014, p. 62).
1.2 – Abertura humana ao transcendente: um ser em busca de sentido

Como já tivemos a ocasião mencionar, o ser humano é um ser que não se contenta com
a materialidade e com a efemeridade de sua existência. Dotado de racionalidade, vontade,
liberdade, memória, consciente da passagem do tempo e de sua mortalidade, ele experimenta
uma angústia existencial que o impulsiona a se auto transcender. Em outras palavras, frente aos
acontecimentos que marcam sua história (conquistas, perdas, dores e alegrias, mas sobretudo a
morte), o homem busca um sentido para a sua breve passagem por este mundo. Dizíamos
também que o elemento religioso é uma constante nesta sua jornada em busca de significação
para sua vida. Ao contrário do que diziam os “profetas” da morte da religião, esta ainda continua
sendo fonte de sentido para muitas pessoas no mundo.
Pois bem, nesta aula, com a ajuda do médico psiquiatra austríaco Viktor Frankl (1905-
1977), iremos refletir sobre este tema tão importante e tão presente em nossa própria trajetória
pessoal: afinal de contas, a vida teria um sentido? E qual seria este sentido? Qual o sentido de
nossas sonhos, conquistas e perdas? Qual o sentido de viver alguns poucos anos e, simplesmente
morrer? Quem nunca se fez perguntas como estas? Lançando mão das palavras do filósofo
Nietzsche (1844-1900), Frankl repetia: “quem tem um por que viver aguenta quase todo como”
(2005, p. 75).
Dois aspectos principais nos fazem escolher Viktor Frankl, para esta reflexão. O
primeiro deles é que se trata de um homem de ciência e ao mesmo tempo de alguém capaz de
reconhecer a importância fundamental da dimensão espiritual do ser humano, para que ele
encontre o sentido de sua vida. Frankl dialoga com este universo. Ele foi o fundador da
logoterapia, também chamada “Psicoterapia do Sentido da Vida”, ou ainda “Terceira Escola
Psicológica de Viena”. As duas primeiras são a Psicanálise de Sigmund Freud e a Psicologia
Individual de Alfred Adler.
Quanto à logoterapia, trata-se de uma escola psicológica que contrasta com as
concepções psicológicas de seu tempo, quando propõe a compreensão da existência através de
fenômenos tipicamente humanos e mediante a identificação de sua dimensão noética ou
espiritual. Esta dimensão, pela sua própria dinâmica, pode despertar no ser humano a vivência
de sua religiosidade (MOREIRA; HOLANDA apud SILVA, 2017, p. 75). Em poucas palavras,
a logoterapia de Viktor Frankl supõe a autotranscedência da existência humana, numa
concepção de homem integrada pelas dimensões somática, psíquica e espiritual (SILVA, 2017,
p. 75).
6

Viktor Frankl fez de sua permanência nos horrendos campos de concentração uma
espécie de laboratório para a composição das bases teóricas da logoterapia. Ele relatou e
analisou suas experiências, nos campos de concentração, pelo viés da fenomenologia
existencial, entendida como descrição da realidade, como reflexão a partir da vivência, sob a
influência de filósofos existencialista, tais como Kierkegaard (1813-1855), Heidegger (1889-
1976) e Sartre (1905-1980). Ao contrário da concepção filosófica essencialista, cujo imperativo
é “eu sou assim, por isso faço isso”, ou seja, a essência vem antes da existência), a filosofia
existencialista tem como pressuposto o fato de que “primeiro o ser humano vive”, primeiro
experimenta, primeiro vivencia e, à medida que existe, vai criando, formatando sua própria
existência. Na filosofia existencialista, pois, a existência precede a essência.
Viktor Frankl, que no início de sua carreira se aproximou de Freud e de outros cientistas
da mente de seu tempo, acabou se distanciando do fundador da psicanálise (Freud), sobretudo
no que diz respeito à origem sexual das neuroses e também no que se refere às considerações
quanto à religião.
Freud acreditava que o desejo sexual é a energia motivacional primária da vida
humana.5 Para ele, a contradição entre esses impulsos e a vida em sociedade (que, com suas
convenções e normas, impedem o ser humano de dissipar tal energia), gera nele um tormento
psíquico, uma neurose. A religião seria a expressão mais significativa das forças que se opõem
aos impulsos sexuais humanos. Assim, Freud via na religião uma ordem cultural imposta que
se equipara a uma enfermidade psíquica, a uma neurose. Para ele, ainda, a religião seria uma
forma de manter os homens na imaturidade, como se fossem eternas crianças. Deus estaria na
posição dos progenitores: os homens permaneceriam crianças, sem precisar se tornar adultos.6
Viktor Frankl, ao contrário, não só não desprezará a dimensão religiosa do ser humano,
como também destacará a fundamental importância desta para que o ser humano construa o
sentido de sua vida. Ele concorda com Freud de que existe um inconsciente pessoal; também
está de acordo com Jung (1875-1960), de que existe um inconsciente coletivo, mas introduz um
outro elemento: existe também no ser humano um inconsciente espiritual.7 “Frankl fala de uma
espécie de ‘fé inconsciente’ e de um ‘inconsciente transcendental’ que inclui a dimensão
religiosa” (FRANKL, 1985, p. 8). A esta inclinação inconsciente para Deus Frankl chamou de

5
Para aprofundamento do assunto ver: DIDATICS. Freud: pulsão de vida, pulsão de morte, inconsciente.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XxDP90soZJk. Acesso em: 18 fev. 2021.
6
Cf. ZIRKER, H. A crítica de Freud à Religião. Revista de Humanidades UNISINOS:
<http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=643&secao=207>. Acesso
em: mar. 2019.
7
Aliás, sua tese de doutorado em 1948 se intitulava: “O Deus inconsciente”.
7

“estado inconsciente de relação com Deus ou ‘presença ignorada de Deus’” (FRANKL, 1985,
p. 8). Trata-se, como já afirmamos acima, da dimensão noológica do ser humano: dimensão que
situa o ser humano para além do psicofísico, numa visão mais ampla que inclui o espiritual
(FRANKL, 1985, p. 8). Este espiritual é entendido não apenas com dimensão religiosa, mas
valorativa, intelectual e artística (FRANKL, 1985, p. 8).
Para este autor subsiste no ser humano um desejo e uma “vontade de sentido". Como
ele mesmo afirma: “para a logoterapia, a busca de sentido na vida da pessoa é a principal força
motivadora do ser humano” (2005, p. 92). Em seus atendimentos, ele se dá conta de que as
pessoas não padecem única e exclusivamente de frustrações de cunho sexual (como dizia
Freud), mas por não encontrarem um sentido em suas vidas.
Assim, a frustação existencial também pode provocar neuroses, ou seja, as chamadas
“neuroses noogênicas”. “Estas não surgem de conflitos entre impulsos e instintos, mas de
problemas existências” (FRANKL, 2005, p. 93). Ao contrário do que dizia Freud, o fundador
da logoterapia pondera que a neurose individual poderia ser, em determinados casos, justamente
a expressão do desprezo e da recusa da religião. Dessa forma, Frankl defende que o terapeuta
não pode desprezar a espiritualidade do seu cliente. Ele precisa estar atento à sua experiência
religiosa.
O segundo aspecto que nos leva a escolher ViKtor Frankl é que ele teria todos os
motivos para não encontrar um sentido para sua vida, já que passou três anos de sua existência
submetido aos horrores dos campos de concentração nazistas, sofrendo, com seus
companheiros, as mais terríveis humilhações e perdendo pessoas queridas, particularmente sua
amada esposa, seus pais e seu irmão.8 No livro “Em busca de sentido” ele oferece detalhes desta
sua experiência e apresenta aqueles que considera os “conceitos fundamentais da logoterapia”
(2005, p. 92-115).

A vida no campo de concentração: as três fases da experiência em Auschwitz

Viktor Frankl, a partir de suas constatações, distingue três fases nas reações psicológicas
daquele que está na condição de prisioneiro no campo de concentração: a recepção do campo,
a vida no campo, e a fase após a libertação do campo de concentração (cf. 2005, p. 20).

8
Viktor Frnakl era de origem judaica e ficou preso nos campos de concentração – de modo especial em Aushwitz
- de 1942 a 1945, quando terminou a IIª Guerra Mundial.
8

Estas três fases estão detalhadamente relatadas pelo autor, em seu livro “Em busca de
sentido”. Silva o resume no texto aqui já mencionado: “Há um sentido para a vida?” (SILVA
apud SILVA, 2017, p. 75) .Vale a pena ler e refletir sobre o assunto.9

Qual o sentido da vida?

Diante deste sofrimento atroz surge a pergunta de Frankl sobre o sentida da vida: “Será
que a pessoa nada mais é do que um resultado de múltiplos determinantes e condicionamentos,
sejam eles de ordem biológica, psicológica ou social?” No meio de tantos sofrimentos, existe
sentido para a vida? Ou talvez a vida devesse ser preenchida de sentido? Gordon Allport, que
prefaciou a obra de Viktor Frankl em 1984 afirma:

O escritor e psiquiatra Viktor Frankl costuma perguntar a seus pacientes que estão
sofrendo muitos tomentos, grandes e pequenos: “por que não opta pelo suicídio?” É
a partir das respostas a esta pergunta que ele encontra, frequentemente, as linhas
centrais da psicoterapia a ser usada.” (2005, p. 7)

Qual seria a resposta do fundador da logoterapia? Em primeiro lugar, para Viktor Frankl,
o sentido da vida não pode estar desconectado do contexto vivencial da pessoa, precisa estar
nele ancorado. A pessoa precisa partir da sua própria condição existencial, presente, para
entender a si própria.” (SILVA apud SILVA, 2017, p. 79). Além disso, conforme, Lazzari
Junior:

[Portanto], Viktor Frankl não tem uma fórmula mágica ou uma verdade pronta sobre
o sentido o qual crê ser presente na vida de qualquer indivíduo, mas convida cada
pessoa a buscar a direção para onde caminhar, aquilo que direcionará sua vida. E não
só isso, mas seria mais correto afirmarmos que existem sentidos para a vida, pois ela
muda sempre.10

Sendo assim, o sentido da vida difere de pessoa para pessoa, de momento para momento.
Segundo as palavras do próprio Frankl, “o sentido da vida difere de pessoa para pessoa, de um
dia para outro, de uma hora para outra. O que importa, por conseguinte, não é o sentido da vida
de um modo geral, mas antes o sentido específico da vida de uma pessoa em dado momento.”

9
Eis alguns trechos que separei da obra “Em busca de sentido”: a) a recepção: a nudez era a real manifestação de
sua condição existencial: uma existência nua e crua: “Abrem-se violentamente.....” (p. 21); b) a vida no campo de
concentração: “a pessoa aos poucos vai morrendo interiormente” (p. 29); “a apatia e a insensibilidade emocional,
o desleixo...” (p. 31). c) após a libertação: difícil acreditar em um sonho tão desejado: a liberdade. “O caminho
que vai....” (p. 86) (FRANKL, 2005).
10
LAZZARI JUNIOR, Julio Cezar. Psicologia e religião em Viktor Frankl: a relação entre ciência e espiritualidade
na logoterapia. Revista Eletrônica Espaço Teológico. Vol 7, n. 11, jan/jun, 2013, p. 60-65. ISSN 2177-952X.
Disponível em: <https://revistas.pucsp.br/reveleteo/article/view/15714/11779>. Acesso em: mar. 2019.
9

(2005, p. 98). Não existiria, pois, um sentido da vida em termos gerais. Assim se expressa o
autor:

Formular esta questão em termos gerais seria comparável a perguntar a um campeão


de xadrez: “diga-me, mestre, qual o melhor lance do mundo?’ Simplesmente não
existe algo como o melhor lance ou um bom lance à parte de uma situação específica
num jogo e da personalidade peculiar do adversário. O mesmo é válido para a
existência humana (2005, p. 98).

A partir do que afirma Frankl, podemos concluir que na empreitada pela busca de
sentido, a responsabilidade da pessoa aí implicada é total. O autor provoca uma mudança de
paradigmas, uma forma diferente de enxergar a própria existência, composta de dores e alegrias,
de ganhos e perdas, de luzes e de sombras, de virtudes e vícios.

Falando em termos filosóficos, se poderia dizer que se trata de fazer uma revolução
copernicana. Não perguntamos mais pelo sentido da vida, mas nos experimentamos a
nós mesmos como os indagados, como aqueles aos quais a vida dirige perguntas
diariamente e a cada hora – perguntas que precisamos responder, dando a resposta
adequada não através de elucubrações ou discursos, mas apenas através da ação,
através da conduta correta. Em última análise, viver não significa outra coisa que
arcar com a responsabilidade de responder adequadamente às perguntas da vida, pelo
cumprimento das tarefas colocadas pela vida a cada indivíduo, pelo cumprimento da
exigência do momento” (2005, p. 76).

Frankl oferece dicas importantes para esta dura jornada do ser humano. Eis suas próprias
palavras: “De acordo com a logoterapia, podemos descobrir este sentido na vida de três
diferentes formas: 1. criando um trabalho ou praticando um ato; 2. experimentando algo ou
encontrando alguém; 3. pela atitude que tomamos em relação ao sofrimento inevitável” (2005,
p. 100).
Como terapeuta experiente, “descobriu a religiosidade em estado latente no interior do
sujeito, muitas vezes só revelada através da análise dos sonhos, inclusive de pessoas
irreligiosas” (FRANKL, 1985, p. 8). Diante desta constatação, ele faz uma crítica à tendência
geral de desprezo e perseguição por parte da sociedade moderna no que diz respeito à
religiosidade humana. Segundo ele, “o sentimento religioso natural tem sido vítima da repressão
por parte da razão absoluta ou da inteligência tecnicista” (FRANKL, 1985, p. 8).
Com esta alta consideração à dimensão espiritual do ser humano, Frankl, sem perder o
rigor da metodologia científica, acaba abrindo uma brecha para um profícuo diálogo entre fé e
ciência, entre ciência e teologia.
10

Quanto aos fins da psicoterapia e da religião, Frankl os destaca com muita clareza. O
fim da psicoterapia é a saúde mental, enquanto o da religião é a salvação das almas. 11
Portanto, não se confundem. Entretanto, poderão resultar efeitos profiláticos ou
psicoterapêuticos, quando o homem experimenta alívio psicológico ao considerar sua
transcendência, ao encontrar o SENTIDO ÚLTIMO da vida em Deus ou ao sentir-se
ancorado no ABSOLUTO. Na Logoterapia o tratamento psicoterapêutico permite
liberar a fé primordial reprimida no inconsciente. A Logoterapia, portanto, é uma
psicologia que sem perder o vigor científico, introduz a noção de transcendência na
ciência do homem” (FRANKL, 1985, p. 8 - prefácio).

EM BUSCA DE SIGNIFICADO12
“A ciência nos ensina sobre a nossa íntima relação com o Universo: a matéria da qual
somos feitos é também a de estrelas, planetas e luas”

Aqui na coluna, abordamos tanto questões mais imediatas, como o aquecimento global e a
crise energética, como as mais fundamentais, como o significado do tempo e o debate entre
a ciência e a religião. Hoje, gostaria de abordar uma questão que, a meu ver, está no cerne do
antagonismo entre a ciência e a religião: será que o desenvolvimento científico criou um
vazio espiritual? Será que a ciência só serve para gerar fatos e dados sobre o mundo natural?
Ou será que pode ir mais fundo, talvez criando uma nova forma de espiritualidade? Para
começar, cito meu livro "O Fim da Terra e do Céu": "O desenvolvimento da ciência nos
séculos 18 e 19, baseado na interpretação racional dos fenômenos naturais, foi seguido, ao
menos no Ocidente, por um abandono progressivo da religião. O conforto espiritual
encontrado na fé foi gradualmente abandonado, em nome de um sistema de pensamento
secularizado.
O historiador da religião S. G. F. Brandon expressou claramente tal preocupação quando
escreveu: 'Para os pensadores do Ocidente, nenhuma missão pode ser mais urgente do que a
resolução desse dilema, se possível produzindo uma filosofia da história adequada, isto é,
que justifique o sentido da vida dos homens dentro de sua duração temporal finita.'" Logo a
seguir, pergunto se, ao vermos a ciência além de seu papel de quantificadora da Natureza,
podemos talvez encontrar ao menos parte desse "sentido": "Talvez fosse isso que Einstein

11
Nos tempos atuais, ao menos dentro do ensino oficial da Igreja católica, a salvação trazida por Cristo não se
restringe à alma, mas envolve o ser humano em todas as suas dimensões e o projeta para o “fim último”, para a
plenitude de Deus, na vida futura (cf. JOÃO PAULO II, Redemptoris Missio, n. 14).
12
GLEISER, M. Em busca de significado. Folha de São Paulo. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe3107201104.htm#:~:text=Paulo%20%2D%20Marcelo%20Gleiser
%3A%20Em%20busca,significado%20%2D%2031%2F07%2F2011&text=AQUI%20NA%20coluna%2C%20a
bordamos%20tanto,a%20ci%C3%AAncia%20e%20a%20religi%C3%A3o.&text=O%20historiador%20da%20r
eligi%C3%A3o%20S.%20G.%20F>. Acesso em: 10 fev 2021.
11

tinha em mente quando introduziu o seu 'sentimento cósmico religioso', a inspiração


essencialmente religiosa por trás do ato racional de compreendermos o Cosmos. A ciência e
a religião nascem das mesmas ansiedades que torturam e inspiram o espírito humano.
E a conexão entre as duas é a nossa existência finita em um Cosmos aparentemente infinito."
Obviamente, o tempo também complica as coisas, pois a perda dos que amamos e a nossa
própria mortalidade são causas de muita dor.
Nessas horas, encontro consolo em muitas coisas. Mas uma das mais significativas é o que a
ciência nos ensina sobre nossa íntima relação com o Universo: a matéria da qual somos feitos
é também a matéria das estrelas, dos planetas e de suas luas, e de todos os seres vivos.
O tempo que usamos para descrever as transformações que experimentamos é o mesmo da
expansão cósmica. O tempo passa para o Universo também. Como escreveu o naturalista
americano John Muir, "ao movermos uma única coisa na Natureza, descobrimos que ela está
presa ao resto do Universo."
Não existe uma solução única para os nossos anseios. Não sei onde você encontra sentido
para a sua vida. No meu caso, a busca se desdobra em muitas trilhas.
Ao tentar entender um pouco mais sobre os mistérios do mundo natural; na convivência com
minha família e amigos; em saber que sou um ser humano no nosso raro planeta Terra. Para
mim, o sentido não está na ciência em si, mas na busca pelo conhecimento. Talvez seja assim
também com um músico, que dá sentido à sua busca tocando o seu instrumento. As técnicas
nos dão os meios, mas não são um fim em si mesmas. É tocar, e dividir a música com os
outros, que importa.

MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover


(EUA), e autor do livro "Criação Imperfeita"

REFERÊNCIAS

 FRANKL, Viktor Emil. Em busca de sentido. 21ªed. São Leopoldo: Editora Sinodal;
Petrópolis: Editora Vozes, 2005. (Coleção Logoterapia).
 HENRIQUE, Daniel. Viktor Frankl. https://www.youtube.com/watch?v=oyfnD-
Lg_q8&t=499s.
 LAZZARI JUNIOR, Julio Cezar. Psicologia e religião em Viktor Frankl: a relação
entre ciência e espiritualidade na logoterapia. Revista Eletrônica Espaço Teológico.
Vol 7, n. 11, jan/jun, 2013, p. 60-65. ISSN 2177-952X. Disponível em:
https://revistas.pucsp.br/reveleteo/article/view/15714/11779.
 MAIRA GIOVANNA. Sua vida, nossa história. In:
https://www.youtube.com/watch?v=kq5y_fV-3mQ
12

 SILVA, Antonio Wardison C.; BARBOSA Luís Fabiano S.; ZACHARIAS, Ronaldo.
Antropologia Teológica: pensar o humano na universidade. São Paulo: Editora Ideias
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 ILVA, Antonio Wardison C. A teologia tem algo a dizer sobre o ser humano? IN:
SILVA, Antonio Wardison C.; BARBOSA Luís Fabiano S.; ZACHARIAS, Ronaldo.
Antropologia Teológica: pensar o humano na universidade. São Paulo: Editora Ideias
e Letras, p. 15-24.
 MARCONI, Maria de Andrade; PRESOTTO, Zélia Maria Neves. Antropologia: uma
introdução. 7ed. São Paulo: Editora Atlas, 2018.
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https://www.youtube.com/watch?v=kmU1zEGdqJo&t=3591s. Acesso em: 21 fev.
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 FERRY, Luc. Aprender a viver: filosofia para os novos tempos. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2012, [recurso eletrônico].

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