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ANTROPOLOGIA E REVELAÇÃO

CRONOGRAMA DAS AULAS DE ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA

CONTEÚDO DO CURSO 
06/06 - Apresentação Objetivo do Curso
            Introdução: O Que é Antropologia e as Visões Inadequadas da Pessoa Humana 
12/06 - A Antropologia Hebráica e a Grega 
20/06 - O Ser Humano à Luz da Fé no Deus Criador Segundo as Sagradas Escrituras 
27/06 - Jesus Cristo o Homem Novo e Plural 
04/07 - O Conceito de Pessoa. 
11/07 - A Questão do Mal e da Liberdade.
            Trabalho em Grupo de Aproveitamento 
AGOSTO
01/08 - O Que é Revelação 
   a) Conceito de Revelação
   b) Estágio da Revelação
   c) Característica da Revelação
08/08 - A Escritura
            Tradição
            Magistério
            Dogmas
Conclusão e Avaliação 

BIBLIOGRAFIA BÁSICA 

RUBIO, Afonso Garcia. Unidade na pluralidade: o ser humano à luz da fé e da reflexão


cristãs. São Paulo: Paulus 2001, 4º Ed. 
PRETTO, Hermilo. A teologia tem algo a dizer a respeito do ser humano? São Paulo:
Paulus 2003. 
BRAKEMEIER, Gottfried. O ser humano em busca da identidade: contribuições para uma
antropologia teológica. São Paulo: Paulus, 2002. 
COMBLIN, José. Antropologia cristã. Petrópolis: Vozes, 1985. 
V Conferência geral do episcopado Latino-Americano e do Caribe. Brasília: CNBB; São
Paulo: Paulinas e Paulus, 2007. 
CONSTITUIÇÃO PASTORAL "GAUDIUM ET SPES". A Igreja no mundo deste tempo:
introdução, anotações e índice analítico da "actio populaire". Porto: Duas Cidades, 1966. 
FELLER, Vitor Galdino. O Deus da Revelação. São Paulo: Loyola, 1988. 
______ . Jesus de Nazaré: Homem que é Deus. Petrópolis: Vozes, 2004. 172 
______. A antropologia cristã no magistério episcopal latino-americano. Revista Encontros
Teológicos, Florianópolis, n. 45, a 21 (n. 3), p. 55-68, 2006. 
JOÃO PAULO II. Encíclica Redemptor Hominis. Vaticano, 1979. 
MONDIN, Battista. Antropologia teológica: história, problemas e perspectivas. São Paulo:
Paulinas, 1979. 
RAHNER, Karl. A caminho do "homem novo": a fé cristã e ideologias terrenas do futuro.
Petrópolis: Vozes, 1964. 
LIBANIO, João Batista. Teologia da Revelação a partir da modernidade. Belo Horizonte:
Loiola, 1992. 
CONSTITUIÇÃO PASTORAL "Dei Verbum". A Igreja no mundo deste tempo: introdução,
anotações e índice analítico da "actio populaire". Porto: Duas Cidades, 1966. 
LATOURELE, Renne. Teologia da Revelação. São Paulo: Paulinas, 1972. 
PIAZZA, Waldomiro O. Teologia Fundamental para Leigos, Petrópolis: Vozes, 1972. 
BOFF, Leonardo, Vida para além da Morte, Petrópolis: Vozes, 1973. 

1. DEFINIÇÃO DE ANTROPOLOGIA

OBJETIVO DO CURSO DE ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA 

Estudo da Pessoa, a partir de uma perspectiva humana, transcendente e cultural,


destacando o conhecimento da Antropologia em sua identidade, em seu campo de ação e
o seu impacto nos nossos dias, constituindo-se como uma das formas de interpretação do
real. Analisa o sentido da vida, os valores e a ética, procurando compreender o fenômeno
humano através dos aspectos antropológicos, filosóficos e teológicos, buscando responder
os desafios de um mundo em constante transformação e considerando as mudanças
proporcionadas pela globalização. Amplia sua visão institucional tornando possível
identificar com clareza a identidade, missão, visão e objetivos aos quais o curso se
propõe. 

1. Conceito de antropologia 

A antropologia é o estudo do ser humano, de suas características específicas, das


dimensões que o constituem e de suas manifestações e obras, como cultura, família,
educação, religião e agrupamentos humanos. O termo “antropologia” provém da língua
grega, (?????p??) “anthropos” (= homem) e “logos” (= estudo, tratado), que significa
estudo do homem, tratado do homem.

Assim, em seu sentido original, a antropologia é a doutrina sobre o ser humano. O termo
surgiu com o filósofo grego Heródoto, no século V a.C. Por ser o primeiro, pelo que se
sabe, a tratar sistematicamente do tema, Heródoto é considerado o pai da antropologia. 

2. Diferentes tipos de antropologia 

A antropologia divide-se em: 

1º) Antropologia física: é a ciência que estuda os aspectos biológicos do ser humano, a


origem da espécie humana e sua evolução, as semelhanças e diferenças entre os povos,
as raças e etnias, a formação e situações das populações humanas, o dinamismo vital
comum aos seres humanos e os animais, os mecanismo vitais o organismo humano
(processos de reprodução, de genética e de conservação), o corpo do homem e seu
habitat (geografia, cultura, história). 

2º) Antropologia cultural: é a ciência que estuda e compara o comportamento


humano, a vida social, os tipos de grupos e instituições, a organização econômica, a
cultura, os conhecimentos, as leis, os costumes, os hábitos, a linguagem, as religiões, a
arte e a moral. 

A antropologia cultural divide-se em: 

« Etnologia (do grego "ethnos" = povo): é o estudo histórico dos povos e de seus
costumes. 
« Etnografia: é o estudo descritivo de um ou de vários aspectos sociais e culturais de um
povo ou grupo social. 

« Antropologia social: é o estudo sobre as características socioculturais da humanidade


(costumes, crenças, comportamento, organização social). 

« Lingüística: é o estudo da linguagem, ou seja, da forma de expressão de ser humano. 


« Arqueologia: é o estudo do passado da humanidade mediante os testemunhos materiais
que dele subsistem 

3º) Antropologia filosófica: É a disciplina da filosofia que reflete sobre o ser humano,


sua origem, natureza, sentido, destino e lugar no mundo. É uma antropologia
filosófica pagã, mas aberta ao transcendente. Os filósofos antigos buscavam a
autonomia da razão, mas não desprezavam ou negavam a possibilidade da existência de
divindades e até as levavam em conta, chegando até mesmo à divinização do cosmos. 
c) A Antropologia Filosófica Secularista realiza a mudança da centralização em Deus
para a centralização no homem, mas sem Deus. Este passo ocorreu na época moderna em
conseqüência da secularização e do ateísmo, este último desenvolvido no seio da filosofia
européia e, especialmente, pelo comunismo. Para os filósofos secularistas, Deus
desaparece de cena e cede lugar ao homem. O espírito humano abre-se a um novo modo
de ver e agir. Dá-se um violento contraste com o modo precedente de entender todas as
coisas e acontecimentos, que tinha Deus como centro de tudo e de todo interesse
humano, e passa a assumir o homem como centro de tudo. Acontece, portanto, a
passagem do teocentrismo para o antropocentrismo. Os mais importantes filósofos dessa
virada histórica do modo de pensar o sentido e a razão de ser do ser humanos
são Descartes, Hume, Spinosa, Hobbes, Kant. Mas é Immanuel Kant, sem dúvida, quem
atinge o ápice do pensamento independente da referência a Deus, à religião, ao afirmar
que o homem não é mais simplesmente o ponto de partida, mas também o ponto de
chegada da reflexão filosófica e de toda a história. É ele que abre as possibilidades para
que dali em diante muitos filósofos dêem continuidade, aprofundem e motivem levar à
prática o secularismo ateu. 

4º) A Antropologia Teológica (de índole judaico-cristã): É a disciplina da teologia


que reflete sobre o ser humano à luz da revelação e da fé, tendo como base a Bíblia, a
Tradição da Igreja, o Magistério Eclesiástico e a contribuição dos pensadores cristãos. A
Antropologia Teológica (de índole judaico-cristã) estuda o ser
humano (Anthropos)tendo como referência fundamental Deus (Theos). Passou-se da
centralização no cosmo divinizado (fase pagã) para Deus, quando o cristianismo suplantou
a visão grega da realidade e colocou tudo o que existe na relação com o Deus
revelado (fase cristã). A Antropologia teológica trabalha sobre a profundidade do ser:
origem e fim, riquezas e limites, aspirações e linguagem, comportamentos, mas à luz da
revelação divina. Visa-se chegar a algo fundamental: o ser humano é capaz de Deus, de
acolhê-lo, conviver com ele, em comunhão e parceria com ele (cf. Catecismo da Igreja
Católica - nºs 27-73).Dísponível na área de Downloads. 
Há um pressuposto para esta vertente da Antropologia: Deus não é uma fantasia ou um
agregado mental na vida humana. Ele integra a própria estrutura humana e lhe confere a
vocação transcendente, que impulsiona o ser humano a ir além de si, a aspirar ao infinito,
a reconhecer suas limitações (fraqueza, enfermidade, erros, morte, pecado), que o
desafiam a respeito do sentido da vida, do sofrimento, da morte e da pós-morte. Deus lhe
dá ao ser humano a capacidade de reconhecer o valor de tudo o que existe e de
transcender à realidade do aqui-agora, por um valor maior e mais plenificador. É
exatamente esta busca do transcendente que ele humaniza de modo maravilhoso a si
mesmo como ser humano (o humanum), isto é, quanto mais ele se insere em Deus e no
Projeto Dele, mais encontra a felicidade. E é esta extraordinária capacidade que o faz,
também, humanizar tudo no cosmos, estudá-lo, manipulá-lo e canalizar todas as suas
riquezas em vista da felicidade, um desejo insaciável que faz parte de seu ser como
gente. 
Aos poucos apareceram dois princípios estruturais na antropologia teológica: o
arquitetônico e o hermenêutico. O arquitetônico como eixo do ordenamento de todos os
eventos da história da salvação em função de um Plano que Deus tem para a história do
cosmos, da terra e da humanidade: é o Plano Salvífico. O hermenêutico como portador da
verdade primária sob cuja luz a teologia procura compreender e interpretar e interligar os
aspectos da história da salvação. Todos os grandes pensadores do cristianismo
colaboraram com o desenvolvimento da antropologia teológica, vista no seu todo. 

Cosmovisões antropológicas inadequadas 


Na sociedade contemporânea, circulam e se propagam entre nós de diversas
maneiras visões parciais do ser humano. Houve um momento da história que teve em
destaque um humanismo triunfalista onde se desenvolveu uma visão pessimista e
diminuída do ser humano. Na afirmação de João Paulo II, despontaram, não só em alguns
filósofos mas no homem contemporâneo em geral, atitudes de desconfiança generalizada
quanto aos grandes recursos cognitivos do ser humano. Nesta perspectiva, critica-se
fortemente o racionalismo moderno. Diante desta visão parcial antropológica o que resta
então? 
A procura de satisfações imediatas; o utilitarismo, o pragmatismo e o consumismo. O novo
evangelho, a bem aventurança do consumo passa a reger a vida da pessoa. 
Um subjetivismo radicalmente individualista predomina na visão do ser humano, própria
desta sensibilidade pós-moderna. "A resposta é boa, quando ela funciona para mim". Este
é o principio que norteia a vida de muitas pessoas nos tempos atuais. Não é de se
estranhar que aumente assustadoramente a angústia, a solidão, a depressão, o
desamparo e todo gênero de doenças psicológicas. Algumas características desta nova
sociedade repercurtem mais diretamente na visão inadequada que ainda se fomenta e
alimenta a sociedade. Enumeramos algumas características: 

1- O ser humano é radicalmente instrumentalizado, reduzido a mera função de


mercado. É visto simplesmente como consumidor potencial. 
2- Uma competição feroz orienta a vida dos homens e mulheres, deixando de lado
valores tais como a solidariedade, a colaboração entre outros. 
3- Predominam os valores próprios de um individualismo associal: procura da própria
satisfação, quanto mais melhor (lucro maior, prazer maior). 
4 - O racionalismo tecnocrático ¹ continua fortemente presente, criticado pelas
correntes pós-modernas. O mercado globalizado tem suas regras próprias, com seu
dinamismo próprio. Trata-se de leis que devem ser obedecidas rigorosamente se se
quer participar da economia globalizada. 

5- O ser humano é visto numa perspectiva fortemente elitista. Valioso é somente quem
tem capacidade para consumir nesse maravilhoso mercado mundial. São as novas bem
aventuranças: bem aventurado aquele pode consumir, e mais bem aventurado ainda
aquele pode consumir mais. 

6- Quem não pode consumir é deixado de lado, faz parte da massa descartável. 
Todavia, o pior, do ponto de vista antropológico, é que as estruturas coloniais e
neocoloniais de dominação afetaram a consciência mesma do ser humano. Desenvolveu-
se, assim, a consciência oprimida caracterizada pelo mutismo, pela passividade, pelo
fatalismo e pela submissão. Afetado pela realidade que o cerca o ser humano vai
construindo uma cosmovisão deteriorada de si mesmo e do mundo. 
A cosmovisão (ou mundividência) significa a concepção que temos da realidade que nos
cerca. 
As visões parciais do ser humano são maneiras inadequadas de se perceber a realidade
da pessoa humana, capazes de influenciar e orientar suas opções, atitudes e atos. 
Umas estão presentes no senso comum, enquanto outras são forjadas pela ideologia de
grupos culturais e sociais. 

Outras ainda provêm de meios eruditos e acadêmicos, mas há aquelas que são
produzidas e mantidas no universo religioso do povo. 

Diversas visões inadequadas

Destacamos as seguintes visões parciais do ser humano. 

1º) A visão determinista ou fatalista concebe o homem como aquele que aceita tudo
passivamente, pois tudo já está fatalmente determinado. 
    a) O ser humano não é dono de si, mas vítima de forças ocultas. 
    b) Sua atitude é colaborar com essas forças ou aniquilar-se diante delas. 
    c) Tal concepção ignora a autonomia da natureza e da história, como também a
liberdade do ser humano. 

2º) Na visão psicologista, a pessoa se reduz ao seu psiquismo. Há um reducionismo


antropológico na psicologia e na biologia. O mecanicismo cartesiano 2 e o
empirismo 3inglês, fortemente representado no mundo cientifico, passa a influenciar a
psicologia na medida em que esta abandona, no século XIX, o campo da metafísica e
tenta tornar-se uma ciência, no sentido moderno. O ser humano é estudado como um
objeto entre outros objetos, dotado como todos eles de propriedades meramente físicas. 
    a) O ser humano é condicionado fortemente pelas necessidades e tendências
instintivas, que lhe tiram toda a responsabilidade. 
    b) Ele age por simples mecanismo de resposta a estímulos, carente de liberdade. 
    c) Essa cosmovisão nega que o homem possa ter a tendência de superar a si mesmo
ou que o consiga. 
    d) Desconhece a exigência de tender para valores transcendentes e de se abrir ao
relacionamento com Deus. 

3º) Na cosmovisão economicista, o homem é resultado de suas relações de produção


ou das forças econômicas. 
    a) O critério fundamental é o consumista, pois a pessoa é um instrumento de produção
e objeto de consumo. 
    b) Tudo se fabrica e se vende em nome dos valores do ter, do poder e do prazer, como
sinônimos de felicidade humana. 
    c) Socialmente, promove-se a ilusão de que todos têm acesso ao lucro e o resultado é
compartilhado pelos esforços comuns. 
    d) Negam-se os valores humanos, culturais, estéticos e religiosos, bem a dignidade da
pessoa humana. 

4º) No individualismo, predomina a visão egocêntrica. 


    a) O indivíduo coloca-se como centro de todo o interesse, pois tudo gira ao redor de
seu próprio eu. 
    b) De matriz materialista, o liberalismo econômico defende que a dignidade da pessoa
está na eficácia econômica e na liberdade individual. 
    c) O dinheiro é considerado como bem maior. 
    d) Cega-se para as exigências da justiça social, do amor humano e da solidariedade. 

5º) No coletivismo, a pessoa é vista apenas por sua existência social. 


    a) O fundamental é sua função na sociedade e a serviço dela. 
    b) A meta existencial do ser humano coloca-se no desenvolvimento das forças materiais
de produção. 
    c) A pessoa recebe suas normas de comportamento unicamente daqueles que são
responsáveis pela sociedade e por suas mudanças políticas e econômicas. 
    d) Esse enfoque desconhece ou nega os direitos humanos, especialmente o direito à
liberdade e à expressão religiosa, como também reduz o ser humano às estruturas
externas e às forças sociais. 

6º) A visão estatista coloca o Estado acima das pessoas. 

    a) A vontade do Estado se confunde com a vontade da Nação. 


    b) Em nome de uma suposta segurança nacional, justificam-se e institucionalizam-se
atos que contrariam a democracia, os direitos humanos e as liberdades individuais. 
    c) As pessoas são controladas ou julgadas sem os critérios da ética e do direito. 
    d) Tal visão é contrária à dignidade da pessoa humana e à democracia, mantendo uma
visão arbitrária e opressora de poder e de Estado. 

7º) A cosmovisão cientificista propugna nas ciências a única salvação do ser humano. 

a) Só reconhece como verdade o que pode ser demonstrado pela ciência, o que leva a
própria pessoa humana a ficar reduzida à uma definição científica. 
b) Em nome da ciência justifica-se tudo, afrontando até a dignidade humana. 
c) Neste parâmetro, submetem-se os povos e nações à tecnocracia. 
d) A nova engenharia social, científica e tecnológica controla e manipula os espaços e
decisões dos indivíduos e das instituições. 
e) O que importa são os meros elementos de cálculos, as pesquisas dos cientistas e
as descobertas novas. 
f) Negam-se os critérios éticos, humanos e religiosos, como também exagera o papel
da ciência e da tecnologia no universo humano. 

O ESPECÍFICO DA PALAVRA TEOLÓGICA SOBRE O SER HUMANO 


Em face da complexidade do discurso sobre o ser humano, assim como, perante a
diversidade de linguagens e de mentalidades existentes, cabe perguntar: como a teologia
poderá falar com sentido sobre o ser humano? Que tem a teologia de próprio e específico
que não seja apresentado pelas ciências humanas ou pela filosofia e que justifique a sua
existência? Que palavra ela pode e deve dizer sobre o ser humano, palavra que só ela é
capaz de falar? 

As ciências humanas respondem sempre parcialmente, como é próprio do método


científico, à pergunta sobre o ser humano. O conhecimento científico sobre o homem não
esgota o conhecimento do humano. 

A palavra sobre o homem, própria da fé cristã, possui uma inteligibilidade peculiar,


irredutível tanto a metodologia científica, quanto a razão filosófica. Compete à teologia
cristã estudar critica e sistematicamente a palavra especificamente cristã sobre o ser
humano, tornando-a comunicável e significativa para homens e mulheres do nosso
tempo. 
Certamente as antropologias científicas e filosóficas podem e devem enriquecer o pensar
teológico sobre o ser humano. Mas a "palavra" da antropologia teológica não deveria
nunca ficar reduzida à palavra de outras antropologias. 

Convém repetir: a antropologia cristã tem algo específico a dizer sobre o homem, não
tanto abstratamente considerado, mas sobre seres humanos concretos. 
A teologia tem seu método próprio de captar a realidade e possui igualmente um discurso
próprio. Na antropologia cristã, o ser humano é estudado á luz da palavra da revelação
bíblico-cristã interpretada na comunidade eclesial com seu dinamismo histórico. O ser
humano é estudado não com menos rigor cientifico, porém a ótica é diferente. A verdade
teológica com o método que lhe é próprio, é chamada a comunicar, não é uma doutrina
abstrata, mas verdade viva e transformadora da realidade. 
A palavra cristã sobre o ser humano deve ser anunciada, comunicada em conexão com a
vida das comunidades. A teologia tem obrigação de realizar essa comunicação com um
rigor intelectual que não possuem outras formas cristãs de comunicação da Palavra. 
Todo discurso teológico cristão sobre o homem supõe a cristologia, Jesus Cristo, para a fé
a cristã, é o protótipo do humano, o modelo do que significa ser humano. É alguém
plenamente aberto a Deus e aos seres humanos, alguém que vive intensamente e com
toda radicalidade o amor-serviço. Para ser realmente humano, segundo a fé cristã, o
homem deverá seguir o caminho percorrido por Jesus Cristo, vivendo a existência da
"nova criatura". Jesus é o homem verdadeiro, e o Deus verdadeiro revelado na sua vida
morte e ressurreição. 

Entretanto, também a cristologia precisa de elementos antropológicos básicos para


expressar-se. Cristologia e antropologia teológica cristã são mutuamente complementares
e devem estar sempre mutuamente relacionadas. Portanto, o conteúdo que estudaremos
na antropologia teológica nos fornecerá elementos essenciais para que façamos uma boa
cristologia, que por seu lado nos fornecerá elementos para uma reflexão cristológica crítica
e adequadamente sistematizada.
1
 O ideal do racionalismo tecnocrático é a eficiência e a rapidez. Como ele visa, sobretudo
ao lucro, persegue o aumento da produção no menor espaço de tempo possível, pois
assim faturará mais. Os bordões com que ele acena para um ideal impossível do ponto de
vista humano: a “qualidade total”. A chamada “qualidade total”, obviamente, exclui o
homem. E só é alcançável na medida em que, em nome da racionalidade produtiva,
eliminam-se quanto possível os efeitos interferentes e negativos do fator humano. Voltar 

2
 O Mecanicismo foi um movimento que aconteceu no Século XVII, do qual participou a
maioria dos cientistas e filósofos daquele tempo. Representou praticamente o surgimento
de um novo "paradigma", sendo que René Descartes foi seu maior expoente. Voltar 

3
 Empirismo é uma doutrina filosófica que defende a idéia de que somente as experiências
são capazes de gerar idéias e conhecimentos. De acordo com o empirismo, as teorias das
ciências devem ser formuladas e explicadas a partir da observação do mundo e da prática
de experiências científicas. Portanto, este sistema filosófico descarta outras formas não
científicas (fé, intuição, lendas, senso comum) como forma de geração de conhecimentos.
Esta doutrina filosófica foi definida no século XVII pelo filósofo inglês John Locke. De
acordo com este filósofo, todos os seres humanos nascem com a mente em branco, ou
seja, limpa. Com as experiências e conhecimentos adquiridos em vida é que a
personalidade se forma. Logo, a sociedade interfere diretamente na formação dos
indivíduos. Voltar 

2. A ANTROPOLOGIA GREGA, HEBRÁICA E CRISTÃ

A antropologia dualista platônica 

A origem da visão dicotômica do ser humano remonta aos albores da humanidade. Numa
perspectiva teológica, encontra-se já presente na Índia e na Pérsia antigas, anteriores ao
desabrochar da filosofia grega. No âmbito helênico 1 ela é desenvolvida especialmente
entre os pitagóricos 2. Mas é com Platão que esta visão recebe uma vigorosa formulação
teórica, no campo propriamente metafísico. O pensamento platônico teve um influxo
decisivo na formação e no desenvolvimento da filosofia, da cultura, da civilização e do ser
mesmo do Ocidente europeu. No Brasil no inicio do século XXI, continuamos precisando
nos referir a Platão quando tentamos falar significativamente sobre o homem, mesmo que
se trate do homem visto à luz da fé bíblico-cristã. A visão platônica influenciou e influencia
muito ainda nos dias atuais. A antropologia elaborada por Platão faz distinção entre idéia e
coisas. As coisas pertencem ao mundo sensível, caracterizado como mutável, temporal,
caduco, descambando facilmente para o ilusório. Já as idéias pertencem a um outro
mundo, o da realidade divina, eterna e imutável. A verdadeira realidade encontra-se
unicamente além das aparências sensíveis, no mundo das idéias. As coisas do mundo
material não passam de cópias muito imperfeitas deste mundo real. Certamente existe
uma relação entre as coisas e as idéias: estas são os arquétipos imitados por aquelas. 
Os dois mundos estão presentes no homem: na alma (mundo das idéias) e no corpo
(mundo das coisas). O corpo, como coisas que é, participa imperfeitamente de uma ideia,
enquanto que a alma pertence ao mundo eterno e divino das idéias. É mediante a alma
que o homem participa, de maneira superior e mais profunda, do mundo das ideias.
Mediante a alma humana, o homem teria contemplado as idéias, numa existência anterior.
A alma incorruptível e imortal, preexistente ao corpo, perde uma vez encarnada, o contato
direto com o mundo das idéias, mas no encontro perceptivo com as coisas, imitações e
participações das idéias, ela vai lembrando (reminiscência: "anamnese") o conhecimento
anterior das coisas. 
Alma e corpo devem ser tratados separadamente, pois pertencem a dois mundos diversos,
mas no homem concreto é necessário relacioná-los. Como? No "Fedon", obra do período
médio de Platão a relação é apresentada de maneira fortemente negativa: a alma se
encontra prisioneira do corpo e dos sentidos: o corpo é limitador da alma; o sábio (o
filósofo verdadeiro) deseja a morte para se libertar do corpo. Na obra "Timeu" e,
sobretudo na obra "Leis", obra esta inacabada, a relação alma-corpo é vista de maneira
bastante positiva: a alma é comparada ao marinheiro e o corpo ao navio. A alma é
apresentada como mediação entre o mundo sensível e mundo das idéias. 
A doutrina dos dois mundos, com sua concretização antropológica na alma e no corpo,
comporta obviamente dois tipos bem diversos de conhecimento: a opinião (doxa) e a
ciência (episteme). Os cidadãos comuns são escravos das opiniões, os verdadeiros
filósofos são conduzidos pela ciência, razão pela qual afirmava Platão: o bem real dos
cidadãos da polis só poderá ser atingido na medida em que os homens abertos ao mundo
das idéias (os filósofos) detenham de fato o poder para decidir sobre os destinos da
pátria. Só o verdadeiro filósofo, conhecedor do mundo das idéias, da verdadeira realidade,
tem condições para enfrentar com radicalidade os problemas políticos, desmascarando e
superando as falácias próprias da opinião e do mundo sensível em geral. Deixar-se
conduzir pelas opiniões é condenar-se à escravidão. A humanização do homem se torna
possível quando a reta razão e o bem governam a sua existência, ordenando (embora de
maneira limitada) o mundo caótico e confuso próprio das percepções sensíveis. Vejamos o
esquema para entender a contraposição platônica: 
IDEIAS   MUNDO INVISÍVEL   IMUTÁVEL   ETERNO   DISTINTO E
TRANSPARENTE 

COISAS   MUNDO SENSÍVEL   TRANSITÓRIO   TEMPORAL   CONFUSO E


OPACO 

ORDENADO   VERDADEIRO SER   CIÊNCIA   ALMA 

CAÓTICO   SER PARTICIPADO   OPINIÃO   CORPO 

Convém notar que no esquema proposto a acentuação do valor da alma leva a diminuir ou
negar a importância do corpo. É uma estrutura que tem penetrado fundo na consciência
cristã, no decurso dos séculos e que funciona frequentemente, revelando-se um obstáculo
para a concretização das opções da Igreja atual pela salvação-libertação integral do
homem. 

Dualismo cartesiano 

O dualismo platônico e neoplatônico 3 não foi o único a influenciar na vida e na reflexão


eclesiais. Descartes desenvolverá uma visão de ser humano rigorosamente dualista. O
corpo é simplesmente matéria espacial, substância extensa (ser-extensa), mera extensão
mensurável matemáticamente, enquanto que a alma ou espírito ou consciência é uma
substância pensante (res-cogitans). Na realidade o corpo não passa de uma máquina que
pode funcionar independentemente da alma. Esta não interfere na vida biológica do ser
humano, pois sua finalidade única é precisamente pensar. 
As consequências desta antropologia são bem conhecidas: o sujeito (a consciência
humana) esta cortado da própria corporeidade e vice-versa. Ora, se o sujeito entra em
contato com outros sujeitos mediante o corpo, uma vez separado deste, fica igualmente
isolado dos outros sujeitos. Esta, assim, aberta a porta para o individualismo moderno
com suas seqüelas de dominação e opressão dos outros. A realidade ficará destarte
perigosamente cindida em pura subjetividade e pura objetividade. Divórcio nefasto que
ainda hoje perturba seriamente o diálogo entre ciências da natureza e ciências do espírito;
entre razão e fé e assim por diante. Divórcio funesto que conduzirá a instrumentalização e
manipulação destruidora do mundo da natureza. Divisão dicotômica da realidade mais
radical ainda que o dualismo platônico e neoplatônico, e que reforçará a penetração deste
na vida e na reflexão teológica eclesiais.
 

Dualismo moderado na vida e na teologia eclesiais


 
A Igreja nunca aceitou um tipo de dualismo que levasse a considerar a matéria e o corpo
como intrinsecamente maus. A fé no único Deus criador (Deus bom) bem como a fé na
encarnação real do Filho de Deus evitou sempre uma contaminação radical por parte do
dualismo. O magistério da igreja procurou defender a unidade fundamental do ser
humano, contra as separações e divisões dualistas antigas e modernas. Mas não pôde
impedir a sua infiltração na teologia, na espiritualidade e no conjunto da vida cristã,
embora na forma de um dualismo moderado. A penetração deste dualismo moderado
pode ser gráficamente representada da seguinte maneira: 

ALMA   ORAÇÃO   TEORIA   FÉ CRISTà  IGREJA   VIDA NO CÉU 

CORPO   AÇÃO   PRÁXIS   OPÇÕES SOCIOPOLÍTICAS   MUNDO   VIDA


TERRESTRE 

Frequentemente, tivemos a oportunidade de constatar, no trabalho pastoral, como


cristãos que são guiados por esta relação e que privilegiam a alma em detrimento do
corpo, têm dificuldade para aceitar que Jesus Cristo seja realmente homem "em tudo
como nós, exceto no pecado" (Hb 4,15). Observa-se este dualismo na teologia, na
catequese e na pregação cristãs, na visão de mundo, na política e nas realidades
socioeconômicas, na arte e na liturgia. Na realidade, não existe aspecto algum da
experiência e da reflexão cristãs que não tenha sido afetado, em graus diversos, por esta
visão. 
Na GS (Gaudium et Spes) do Vaticano II, decerto, a visão de homem é decididamente
unitária, sendo criticada diretamente a atitude que despreza a vida corporal (GS n. 22). A
teologia judaíco-cristã da criação elimina todo tipo de dualismo metafísico e supõe uma
visão de homem em que a unidade básica, embora reconhecendo a realidade das suas
diversas dimensões, e decididamente sublinhada. Na ótica judaico-cristã predomina a
relação integração inclusão, vejamos: 
                                

A Antropologia teológica hoje 

Não há dúvida - e o dia-a-dia o comprova - a humanidade continua sua busca do sentido


da vida e da história, do sentido da existência do cosmos e de tudo o que nele existe,
especialmente do próprio ser humano na complexidade da história do cosmos.
Multiplicam-se sem cessar artigos, livros, filmes, canções, obras de arte, que alimentam o
debate levando-se em conta a existência de Deus nesta trama misteriosa do mundo e da
vida humana ou negando-a, ridicularizando-a e considerando toda e qualquer religião
como uma invenção prejudicial ao ser humano. 

A Igreja cristã, porém, continua firme em sua fé e em sua missão, afirmando que o
mistério do ser humano só encontra sua verdadeira explicação e compreensão no mistério
do Verbo encarnado, isto é, no Filho de Deus que assumiu a condição humana na história
com o nome de Jesus de Nazaré (cf. GS 22). Para a Igreja o referencial "Adama" (homem
e mulher), portanto, é o ser humano 4 criado à imagem e semelhança do próprio Deus
(mistério da criação). Este ser humano, no uso de sua liberdade, assim o ensina a Igreja,
rompeu com o seu Criador (pecado original), Deus, porém, não somente não o
abandonou, mas deixou plasmado na natureza própria do ser humano a necessidade de
Deus e o impulso natural para buscá-lo. E ele concedeu à liberdade humana a graça do
chamado incessante para restabelecer a união homem-Deus, Deus-homem. Depois de
manifestar-se de muitos modos ao longo da história, quando chegou à plenitude do
tempo, na linguagem bíblica, Deus deu-lhe a maior prova de amor, o seu próprio Filho
divino em forma humana (cf. Hb 1, 1; 1Jo 4, 9-10), que viveu entre nós com plenitude
humana, como o ser humano perfeito, por ser ao mesmo tempo "verdadeiramente Deus e
verdadeiramente homem". 

Portanto, assim crê a Igreja, é pelo Cristo que o ser humano é "justificado" (recupera a
justiça perdida pelo pecado). E é a partir dele, nele, com ele e por ele, que o ser humano
vive da graça do Pai, do Filho e do Espírito Santo: filiação (ao Pai), fraternidade-amizade
(do, no e pelo Filho), inabitação (no Espírito Santo). É em direção a Cristo, o referencial
humano-divino que, na liberdade, o ser humano procura alcançar progressivamente e com
o impulso da graça que ele nos alcançou, "o estado adulto, a estatura de Cristo em sua
plenitude" (Ef. 4,13). É este o cerne da Antropologia teológica cristã.

É a partir do olhar antropológico-teológico que detectamos o que a Revelação diz sobre o


ser humano no contexto da obra da criação: uma criatura feita no tempo e que não teve
existência espiritual antes da corpórea para usufruir da felicidade neste mundo e da glória
de Deus na vida eterna feliz. Os textos bíblicos não pretendem apresentar dados
científicos, mas mostrar o propósito de Deus, no relacionamento dele com os homens e,
mais ainda, a sua experiência no mundo como ser humano em Jesus Cristo e,
consequentemente, a identidade profunda e única do especificamente humano assim
enriquecido com a comunhão com Deus e que abre o ser humano definitivamente e de
modo privilegiado para a comunhão consigo mesmo, com os outros, com a natureza. 
Este mesmo olhar de comunhão, assim plena, considera o homem como "imagem e
semelhança de Deus" e tem a Jesus como a imagem verdadeira do Pai, e nós, como seu
reflexo. E o ser humano como "imagem de Deus" (imago Dei), carrega em si mesmo as
marcas do Criador, do Filho Redentor e do Espírito Santificador, principalmente em sua
capacidade de conhecer e amar o Pai, por meio do Filho, no amor do Espírito Santo e
como co-criador e cooperador em seu Plano de Amor sobre o mundo e a humanidade. 

A estrutura básica do ser humano segundo a fé 

Um dos diferenciais da antropologia teológica judaico-cristã, em relação às outras


antropologias, é constituído por seu modo de entender e explicar o ser humano como um
organismo psicofísico resultado da estreitíssima união entre corpo, alma e espírito, em
constante tensão, aperfeiçoamento, complementaridade e busca de transcendência. São
Paulo, formado para ser rabino, em sua carta aos Tessalonicenses fala do ser humano
como corpo-alma-espírito: "Que o espírito, a alma e corpo de vocês sejam conservados de
modo irrepreensível para a vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo" (1Ts 5, 23). É evidente
que para ele a Antropologia não existia como discurso reflexivo e nem no decorrer do
longo tempo da elaboração e finalização dos textos que hoje constituem a Sagrada
Escritura dos judeus e a dos cristãos. Só posteriormente e muito lentamente, com a
influência da cultura grega, é que se chegou ao seu início e no ocidente ao seu
desenvolvimento. 
Expliquemos um pouco, mas com os termos em hebraico, grego, latim e português, esta
visão trinitária da pessoa humana, segundo a visão hebraica e que Paulo utiliza na carta
aos Tessalonicenses: 

    a) Corpo (bâsar, sarx, caro = corpo de carne) é a nossa realidade fisica, biológica); 
    b) Alma (nephesh, psychè, anima = dimensão psíquica, afetiva, intelectiva, volitiva,
relacional) é a dimensão vital similar a de todos os demais seres vivos, mas que possui em
si, a diferença da dimensão da auto-consciência, do afeto-relacionamento, da liberdade,
da vontade, do senso ético, da busca do bem, do belo, da verdade e da felicidade; 
    c) Espírito (ruach, pneuma, spiritus = dimensão transcentente espiritual), é a dimensão
exclusiva do ser humano, fruto da criação direta de Deus (sopro- ruach, ser vivente em
Deus e para Deus 5), que assegura a possibilidade de comunicação e comunhão dom
Deus. 
Esta reflexão é importante porque houve, na história do cristianismo, confusão entre os
intérpretes e estudiosos, alguns afirmando que Paulo tinha uma visão tricotômica do ser
humano, isto é, um composto de três partes separáveis, enquanto outros defendiam a
concepção dualista de corpo e alma. Na concepção hebraica as três realidades se
apresentam como dimensões autônomas, porém, formando uma unidade, um todo. O
refinamento da reflexão concluiu que a alma e o espírito são imortais, ao passo que o
corpo é corruptível, mas destinado à ressurreição, mesmo que de forma espiritualizada,
segundo a convicção cristã. 

E como surgiu a visão do dualismo corpo e alma? Na reflexão tradicional e oficial da Igreja
cristã, o predomínio da cultura greco latina na teologia fez acontecer uma fusão entre
"alma e espírito", por mais que muitas vezes apareçam distintas. Com isso, quando,
portanto, em teologia se fala em "alma", entende-se por (ruach, pneuma, spiritus-
espírito). É, porém, preciso deixar sempre esclarecido, que no dualismo cristão do ser
humano como corpo e alma, obviamente está subentendida a visão trinitária, pois se faz
uma clara distinção entre nephesh-psychè-anima (alma) e ruach-pneuma-spíritus, isto é, o
sopro de Deus (espírito), que, porém, só é aceitável em nivel de fé revelada. É
exatamente aqui que se destaca ainda mais a unidade na dualidade entre corpo, alma
(incluindo o espírito), ao contrário da concepção maniqueísta que ensina a docotomia
estranguladora do ser humano, ao colocar, como na filosofia de Platão, o corpo como uma
prisão da alma, e que, portanto, o espírito (ruach-pneuma-spiritus) está, também ele,
encarcerado no corpo humano e dele precisa se libertar e, mais ainda, diz o maniqueísmo,
porque o corpo é obra do deus demônio, e por isso, deve ser desprezado e massacrado,
sobretudo, em sua realidade sexual. 

O discurso filosófico e teológico sobre a estrutura antropológica cristã tradicional do ser


humano se plasmou nos escritos de são Tomás de Aquino. Ele, a partir do dualismo
clássico, não se fecha na cultura grega e diz que a alma (no sentido de nephesh-psychè-
ánima e, também, de ruach-pneuma-spiritus) é a "forma" do corpo, podendo subsistir sem
a matéria corporal, pois mantém sua operação intelectiva apreendida mediante a operação
sensorial, portanto do corpo vivo. Para ele, porém, o ser humano é um todo unificado,
prejudicado, porém, em sua harmonia pelo pecado. 

Os documentos do Magistério da Igreja afirmam que a alma é espiritual e dotado de


imortalidade. Ora, se a alma é espiritual, não pode ser corrompida, pois sendo espírito,
dotado de existência própria, autônoma e independente da matéria, não se extingue com
a corrupção do corpo. Aqui, mas sem a explicitação que deveria existir, está se falando
da ruach, portanto, do espírito humano no sentido espiritual, mas que só é aceitável,
como já aludimos acima, para quem tem o dom da fé revelada. E este é um dos
importantes diferenciais da fé cristã, qaunto à antropologia, em relação a todas as demais
religiões e filosofias. 

1
 Helenico esta relacionado à cultura grega. O helenismo é a difusão da cultura grega.
Este foi o grande sonho de Alexandre III, o Grande. Hellenizein do grego quer dizer falar
grego. Voltar 

2
 Pitágoras (580 a 500 AC). Oriundo da ilha de Samos fundou em Crotona, na Grécia,
uma escola que teve grande influência não só por suas doutrinas filosóficas como também
pela sua ética pura e austera e por suas tendências políticas. A ideologia pitagórica
constitui um progresso indubitável em relação à ideologia jônica. Os pitagóricos não
investigam de que são formadas as coisas, mas sim o que são as coisas, e sua resposta
é que as coisas são números. Aristóteles nos dá a razão dessa estranha afirmação: “Os
chamados pitagóricos se dedicaram às matemáticas e fizeram progressos nesta ciência,
mas embebidos em seu estudo, acreditaram que os elementos das matemáticas (os
números) eram também os princípios de todos os seres”. Apoiados em seu princípio os
pitagóricos desenvolvem uma espécie de análise do número, cujos resultados aplicam na
realidade. Os elementos do número são o par e o ímpar. O número par, como divisível
mais e mais, representa o infinito. O ímpar, por não ser divisível, representa o finito. A
unidade participa de ambos os elementos por ser, a sua vez, par e impar. Voltar 
3
 O Neoplatonismo foi uma corrente de pensamento iniciada no século III que se
baseava nos ensinamentos de Platão e dos platônicos, mas interpretando-os de formas
bastante diversificadas. Apesar de muitos neoplatônicos não admitirem, o neoplatonismo
era muito diferente da doutrina platônica. O prefixo neo, inclusive, só foi adicionado pelos
estudiosos modernos para distinguir entre os dois, mas na época eles se
autodenominavam platônicos. O neoplatonismo foi frequentemente usado como um
fundamento filosófico do paganismo clássico, e como um meio de defender o paganismo
do cristianismo. Mas muitos cristãos também foram influenciados pelo neoplatonismo,
entre eles Santo Agostinho. Voltar 
4
 “Adam” (originado do húmus, do barro) denominação usada em Gênesis é um termo
ambíguo já que pode ser traduzido para se referir a um indivíduo como para o gênero
humano, o ser humano. O mais comum, tanto no uso hebraico como cristão, foi aplicá-lo
a um indivíduo que passou a ser denominado de “Adão”. Isso ocasionou, portanto, a
limitação de a “imagem e semelhança de Deus” ao homem, fundamentando, em grande
parte, o machismo judeu e cristão. Aconteceu que não se prestou suficientemente atenção
ao fato de que na tradução dos 70 para o grego a distinção é realizada corretamente. A
tradução de Adam é Anthropos, portanto, gênero humano e não um indivíduo. Ora, a
partir dessa compreensão, fica claro que a mulher, integrante do gênero humano, é
antropos, portanto, imagem e semelhança de Deus igual ao homem. Voltar 

5
 Adama-adão (originário do húmus ou barro), em hebraico, é um termo ambíguo, pois
serve para denominar o ser humano como espécie, isto é, o gênero humano, como para
designar um determinado indivíduo. É preciso muito conhecimento para poder distinguir
no texto bíblico uma coisa de outra. Voltar 

3. O SER HUMANO À LUZ DA FÉ NO DEUS CRIADOR SEGUNDO A SAGRADA


ESCRITURA

Para a fé bíblico-cristã, a visão unitária do ser humano chamado a viver em relação com
Deus, com os outros seres humanos e com a natureza, encontra seu último fundamento
na autorevelação de Deus como criador e como salvador. Na revelação bíblica, toda
autocomunicação de Deus leva consigo concomitantemente a manifestação de quem seja
o homem. Focalizaremos nesta aula junto com a perspectiva unitária, a grande riqueza de
indicações a respeito do ser humano contidas na revelação de Deus como criador em
conexão com a sua revelação como salvador. 

Fé de Israel: o encontro com o Deus salvador

O Antigo Testamento, no seu conjunto, não está preocupado com o homem considerado
em si mesmo. O que realmente interessa é a relação de Deus com o homem concreto,
situado históricamente. No Antigo testamento, como também no Novo Testamento deve-
se reconhecer uma intenção e uma preocupação decididamente teocêntricas. Deus esta
no centro da realidade toda. Isto não significa desprezo pelo ser humano e pelo seu
mundo, na Sagrada Escritura, Deus não é focalizado em si mesmo, mas sempre na sua
relação com os seres humanos, de maneira eminentemente dialógica. Pois, a intenção da
bíblia é prioritariamente teocêntrica, justamente por isso é também antropocêntrica. 

O êxodo: experiência fundante de Israel

 
Os especialistas em teologia do Antigo Testamento afirmam que para compreendermos a
autoconsciência de Israel como povo precisamos partir da experiência do êxodo. Deus
intervém na história em sentido amplo: Iahweh age na vida dos indivíduos, no desenrolar
dos acontecimentos, no destino de Israel e das nações. A ação libertadora de Iahweh esta
na origem da autocompreensão de Israel como povo, uma experiência de salvação: Deus
revela-se como salvador. A experiência do êxodo desdobra-se nos acontecimentos da
libertação da escravidão do Egito, da peregrinação pelo deserto sob a condução de
Iahweh e do compromisso assumido entre este e o povo de Israel. Esses acontecimentos
formam parte da tradição mais antiga e mais fundante de Israel. A tradição mais antiga, à
base das posteriores interpretações teológicas, formou-se em torno da experiência das
intervenções salvíficas de Deus em favor do grupo de Moisés e, posteriormente, de todo
Israel, já instalado e constituído como povo de Iahweh, na terra de Canaã. Esta tradição
mais antiga chegou até nós em várias versões escritas: Javista (J), Eloísta (E),
Deutoronomista (D) e Sacerdotal (P). Todas essas versões embora em perspectivas
teológicas diversas narram a ação salvífica de Iahweh em prol do seu povo. 

A versão javista: mediante Israel, salvação para todos os povos 

Numa reflexão teológica de vastos horizontes, a história de Israel, a história dos


patriarcas, a história das origens bem como a história de todos os povos é interpretada
pelo javista como história da salvação. Remontando a história da humanidade, o javista
nos diz que Deus é o criador dela e guia para a salvação. Já na criação da humanidade o
javista coloca o início da história da salvação. Todos os povos, a humanidade toda
precisam de salvação. A situação de não salvação em que se encontra a humanidade não
é resultado de um destino imposto pela divindade, mas fruto do pecado humano ( cf.Gn
3). Como conseqüência, a bênção (paraíso) se torna maldição. 
À uma humanidade que vive uma situação de não salvação, oferece Iahweh a salvação
por intermédio de Abraão e de seus descendentes, isto é, por meio de Israel. A
perspectiva universalista, sublinhada nos relatos de origens da humanidade, continua
presente na história dos patriarcas e desemboca, sempre segundo o javista, na benção de
Iahweh dirigida, mediante Israel, aos povos que integram o reino davídico. 

A versão eloísta: a resposta negativa de Israel 

A história da salvação conduzida por Deus continua sendo o tema central do Eloísta.
Certamente a ótica em que o eloísta vê a história da salvação é bem menos otimista.
Sublinha acentuadamente a pecaminosidade do homem, a rebeldia e a infidelidade de
Israel. Na realidade a história de salvação, no Eloísta, parece dar lugar à história da
perdição. 
As difíceis circunstâncias políticas e religiosas em que viveu o Eloísta explicam facilmente o
fato de que sua atenção esteja voltada exclusivamente para a história da salvação-
perdição de Israel. Diante da ameaça do poder assírio (séc VIII a. C), Israel continua
fechado na sua resposta negativa à gratuita eleição de Deus. todavia o Eloísta continua
firme no seu objetivo em mostrar ao povo o único caminho de salvação, que é a fidelidade
e o compromisso com Deus.

A versão Deutoronomista: a interpelação da eleição e da aliança 

A forte penetração dos cultos cananeus na região de Israel e posteriormente o influxo dos
cultos assírios quase sufocaram a fé javista. Os profetas reagirão duramente contra essa
contaminação. Na leitura da história de Israel, o deutoronomista acentua grandemente a
importância da eleição e da aliança. A vinculação do Deus salvador com Israel é
compreendida como eleição e como aliança. Israel é o povo eleito, povo da aliança. O
escrito deutoronômico, na sua visão da história de salvação, não é tão pessimista quanto
o Eloísta. O povo não deve confiar magicamente na eleição-aliança; a salvação só pode
ser vivenciada mediante a conversão e a volta para Iahweh. Para o deutoronomista Israel
tem chance de evitar a catástrofe anunciada pelos profetas, isto é na obediência à lei
deutoronômica. 

A versão do escrito Sacerdotal: o futuro está aberto

O escrito Sacerdotal afirma precisamente que este futuro novo esta aberto. Composto
provavelmente no século V a. C., retoma outra vez a antiga tradição de Israel refletindo
acerca do seu passado remoto: as intervenções salvíficas de Iahweh, nos acontecimentos
do povo, na história dos patriarcas e nos primórdios da humanidade. O objetivo principal
desta reflexão teológica é bastante claro: infundir coragem, confiança e esperança nos
exilados. 
A visão da história da salvação é novamente otimista. O exílio é resultado da infidelidade
ao Deus dos pais. Porém a fidelidade de Deus às suas promessas é mais forte do que a
infidelidade humana. É possível o regresso à terra de Israel e um novo começo cujas
linhas organizativas o documento sacerdotal demarca. 

A interpretação profética da história da salvação 

As antigas tradições israelitas são também atualizadas e interpretadas pelos grandes


profetas individuais. O Deus dos profetas é o Deus dos pais, o Deus da antiga tradição de
Israel. É sempre o Deus salvador. Só que os profetas expressam sua fé no Deus salvador
com uma radicalidade própria e com acentuações específicas. Os profetas focalizavam a
realidade da salvação do seguinte modo. 

 a) O homem- todo homem - precisa de salvação é só em Iahweh, o salvador, o homem


encontra de fato, a salvação. O povo de Israel bem como os indivíduos na sua procura de
segurança, se iludem, perdem o rumo certo e acabam enveredando pelo caminho da
perdição. 
    b) Denunciam os ritos mágicos onde o homem busca falsas seguranças. O povo de
Israel foi sempre tentado na busca destes cultos da fertilidade com forte presença de
elementos mágicos. 

b) Pertencer ao povo escolhido pode tornar-se uma outra fonte de falsa segurança para
o israelita. A eleição de Israel foi compreendida frequentemente de maneira muito
estreita e nacionalista. 
c) Colocar a confiança e a segurança, nas normas e estratégias próprias da sabedoria
humana tampouco leva a salvação. Má compreensão na doutrina sapiencial.
Criticavam o apego ao culto e à lei, separados do compromisso ético. 
d) Fora da comunhão com Deus o homem se ilude com pseudo-salvações e se
encaminha para o desastre. O "sim" da fé e da obediência do homem, a sua decisão,
é indispensável para a concretização da salvação. 

O ser humano: decisão e diálogo-resposta 

Deus estabelece relacionamento pessoal com o homem. O homem responde pessoalmente


à proposta de Deus. A necessidade da decisão do homem para sair da situação de não
salvação para uma outra, de salvação, é constantemente proclamada e urgida pela fé
javista. Assim, um dos elementos básicos que distinguem Iahweh dos deuses do Antigo
Oriente é a importância atribuída às exigências éticas. O próprio culto sem o compromisso
ético adequado não é aceito por Iahweh. É pela prática da justiça e da misericórdia que o
homem (o povo) responde "sim" à vontade de Iahweh. A relação entre Deus e os homens
deve ser entendida como uma relação dialógica. Deus estabelece diálogo com o homem;
este toma a decisão de acolher a proposta divina e responde com sua obediência, com
tudo quanto ela implica, e com sua confiança (ou então se decide contra o diálogo e se
fecha em si mesmo) a relação dialógica Deus-homem forma parte, assim da revelação de
Deus no Antigo Testamento. O homem na sua situação de não salvação é chamado a se
abrir à proposta salvadora de Deus. O homem é "revelado" como alguém capaz de
decisão e de diálogo-resposta em relação a Deus. 

O ser humano: valorização do tempo histórico 


A decisão e o diálogo são vivenciados pelo homem na sua história. "Deus age na história",
Deus se revela na história.  A relação com Deus, desta maneira, é experimentada no
acontecimento da vida do homem e dos povos. O Deus do diálogo, da eleição e da aliança
não aniquila a história humana. É no acontecer das vicissitudes da vida do povo que Deus
vai se revelando, se bem que seja necessária a interpretação teológica dada à
ambigüidade dos acontecimentos. Toda a história de Israel será interpretada como
resposta dos homens à vocação de Deus, como história dos homens com Deus. 

Fé de Israel: o encontro com Deus criador 


Quando surge em Israel a fé em Deus criador? O relato javista do texto de Gn 2, 4b-25 é
bastante antigo, foi composto e redigido provavelmente no século X a.C. O relato de Gn
1,1-2 elaborado pela tradição sacerdotal, no século V a. C., se encontra uma verdadeira
elaboração teológica sobre a criação do mundo por Deus. A fé no Deus criador foi aos
poucos sendo elaborado. Primeiramente foi nascendo e crescendo a fé no Deus salvador e
depois relacionando a fé com o Deus criador. Isto não significa que a fé em Deus criador
não existisse nas etapas mais antigas da história de Israel. Os mitos sobre a criação,
muito difundidos no universo religioso cananeu, não podiam deixar de influenciar a
religião de Israel. Porém, a explicitação e a elaboração serão realizadas precisamente no
contexto da experiência israelita do encontro com o Deus salvador. 
Criação e salvação aparecem intimamente relacionadas. Com efeito, a fé em Deus criador
afirma que o poder de Iahweh não esta limitado há um tempo ou a um determinado
lugar. Ele que venceu o caos primitivo pode muito bem derrotar o poder babilônico.
Criação e salvação do homem não podem ser separadas, pois a criação é já ato salvífico
de Iahweh. 
A criação do mundo no relato sacerdotal (Gn 1, 1-2, 4a) 

No capítulo 1 do Gênesis, encontra-se a elaboração teológica mais densa e mais bem


estruturada sobre a criação do mundo. A criação é vista novamente como fundamento e
origem da história da salvação. De maneira toda especial, a criação é relacionada com a
história amarga vivida por Israel na época do exílio. O relato da criação abre
majestosamente esta reflexão histórico- teológica do redator Sacerdotal. A criação
fundamenta, legitima e universaliza a fé no Deus da história da salvação. 
A importância teológica de Gn 1ss fica ainda mais fortemente ressaltada quando
atentamos para o âmbito religioso babilônico. Ao deus Marduk, cultuado na Babilônia, era
atribuída a obra da criação. 
Vale ressaltar que o autor semita nos fala do universo com os dados da cultura do seu
tempo. Pensava-se na época que o universo, estava dividido em três partes: os céus, a
terra e o abismo. Seria inútil procurar o fundamento científico da origem do universo nas
primeiras páginas da Sagrada Escritura. Esta não é uma enciclopédia universal de caráter
científico, mas a palavra de Deus que nos transmite uma verdade religiosa de valor
permanente. Os autores destas narrativas certamente não visavam descrever
acontecimentos históricos no sentido da historiografia moderna. Os redatores Javista e
Sacerdotal, mediante uma reflexão teológica crente na iluminação de Deus, focalizaram os
fatos do que podemos chamar de "próto-historia". São apresentados protótipos de caráter
universal do que é a existência humana em qualquer tempo e qualquer lugar. As
narrativas têm um caráter acentuadamente etiológico 1. 

Sabemos hoje através da investigação exegética que Gn 1,1ss como também Gn 2, 4b-3,1
utiliza elementos míticos, interpretados à luz da fé em Iahweh. O que é mito? A grosso
modo entendemos que mito é um modo próprio de falar sobre as coisas, é um gênero
literário. O mito tem a sua verdade e constitui uma maneira do homem se aproximar da
realidade. O mito pode levar o homem a entrar em conexão com as experiências mais
originárias da humanidade, numa dimensão de profundidade que a razão meramente
positivista não consegue penetrar. A intencionalidade do mito não esta dirigida à
historicidade do relato, mas ao seu significado. O mito como o logos grego e a
racionalidade moderna, é também um meio de explicação da realidade, com sua
hermenêutica própria. 

Os primeiros capítulos do livro, portanto querem transmitir aos leitores um ensinamento


profundo. Está a nos dizer que a criação do céu e da terra, quer dizer, de tudo quanto
existe, é uma ação exclusivamente divina. A ação criadora de Iahweh tira do caos o
universo criado, mas o mantém fora dele. No v. 3 a ação criadora de Iahweh separa os
elementos criados do caos. Cria um espaço-tempo ordenado e regrado. 

O autor revela que a criação é realizada pela palavra de Deus. As criaturas possuem uma
transparência simbólica que as torna sinais do amor criador de Deus. 

Conteúdo teológico de Gn 1, 1-25 

Qual é a mensagem transmitida pela narrativa de Gn 1,1ss sobre a criação do mundo? 


Quer mostrar que Deus é o criador de tudo quanto existe. Como? 
    a) Deus cria o mundo e tudo quanto existe é criatura de Deus. Nada fora de Deus pode
ser objeto de adoração ou culto divino. Tudo é criatura. Só Deus é Deus. O mundo é
radicalmente desdivinizado e dessacralizado. Acentua a diferença entre criador e criatura. 
    b) Deus é o último fundamento do ser e do agir de tudo quanto existe. Toda realidade
criada depende absolutamente do criador. 

    c) A criação não é apenas o fundamento da realidade do universo, mas também o


primeiro ato salvífico do amor de Deus. 

    d) O mundo criado precede ao ser humano e possui densidade própria. O ser humano
deveria antes de mais nada receber como dom este mundo que o precede, um mundo já
"falado" pela palavra criadora divina. Este fato está a nos dizer que o homem é chamado
prioritariamente a desenvolver a experiência da receptividade.
 
    e) O mundo criado, nomeado pela palavra de Iahweh, está aberto à ação dele. O
mundo aparece como "lugar do senhorio pessoal de Deus". 

    f) O tempo não é uma repetição monótona, porém é dado ao ser humano para ser um
momento de decidir em relação a interpelação de Deus, e dos outros seres humanos e do
cosmos, tempo aberto a esperança, a plenitude escatológica. 

    g) A bondade do mundo é reiteradamente sublinhada. O mundo pertence a Deus por


isto é bom porque corresponde de fato ao desígnio criador divino. A afirmação bíblica
sobre o Deus criador elimina toda espécie de dualismo metafísico. 

    h) Insinua-se a liberdade de Deus na criação; o mundo existe porque Deus o criou
mediante sua palavra, sem lutas ou pressões de qualquer tipo.
 

A criação do ser humano segundo o relato javista de Gn 2, 4b-25


 
O Antigo Testamento destaca, de maneira especial, a criação do homem. Que se nos
apresenta um rico conteúdo teológico-antropológico. 
A história da salvação inicia-se, para o javista com a criação da humanidade. Com a
"proto-história", o javista pretende, a partir da constatação da situação ambígua e dividida
em que o povo e todo homem singular se encontram, responder à pergunta tão legítima
pela origem de tal situação. E isto com o objetivo bem prático de ver como sair deste
estado de não salvação para a vivência da salvação. Deve ficar bem claro que não se pode
compreender adequadamente a mensagem de Gn 2, 4b-25 sobre a criação do homem
separando-a do conteúdo de Gn 3. Os dois capítulos formam uma forte unidade tanto do
ponto de vista literário como do ponto de vista da reflexão teológica. 
Em Gn 3, 3-24 é feita uma descrição sumária dos males, sofrimentos e ambigüidades que
suscitam perplexidade no autor javista. A enumeração não é completa, mas apresenta
algumas das contradições básicas experimentadas pelo ser humano: a relação homem-
mulher que deveria ser vivida na solidariedade e na mútua reciprocidade fica deturpada
em dominação e sujeição de um pelo outro; a alegria de dar à luz uma nova vida humana
vem acompanhada de sofrimentos; a relação entre homem, por uma parte, e a terra e os
animais, por outra, que deveria ser harmoniosa, não o é de fato; o trabalho que deveria
estar a serviço da alegre realização do homem, frequentemente se torna um esforço duro
e penoso; ao radical desejo de viver existente no homem corresponde amarga certeza da
própria morte; até a relação com Deus que deveria estar penetrada de profunda
esperança e da resposta jubilosa e agradecida do homem acaba sendo vivenciada como
encolhimento mentiroso e medroso. 
O autor não culpa aos deuses por estas situações calamitosas vivenciadas pelo ser
humano. A causa da situação negativa em que se encontra o homem deve ser procurada
no próprio homem. A explicação está na transgressão do homem, no seu culposo e
voluntário afastamento do desígnio de Iahweh. Assim, não é a vontade divina que leva o
homem a viver uma existência marcada pelo sofrimento, pelas contradições e
ambigüidades. Pelo contrário, o projeto de Iahweh se orienta num sentido totalmente
diferente. Qual é então, a vontade de Iahweh sobre o homem e sobre o mundo? A bela
imagem do paraíso responde esta pergunta. Neste contexto é que podemos entender
adequadamente o que nos diz o Javista sobre a criação do homem. 

Mensagem de Gn 2, 4b-25
Analisando o conteúdo de Gn 2, 4b-25 destacamos os seguintes pontos: O texto, como foi
assinalado acima, não trata diretamente da criação do mundo. O interesse esta centrado
no homem. Ou melhor, na atitude benevolente de Iahweh para com o homem. Embora
nos relatos seja perceptível a presença de mitos mesopotâmicos, estes mitos são
reinterpretados à luz da fé monoteísta. 
    a) O autor relata depois da criação do "paraíso", a criação do homem. Deus é
apresentado sob a imagem do oleiro. Como o animal o homem é argila que respira, mas à
diferença dos animais, o homem é capaz de conhecer a natureza destes, é senhor do seu
destino, vive uma existência dialogal. O que supõe que o homem não é apenas um ser
que vive, mas também um ser livre e responsável, com uma responsabilidade em relação
ao mundo que os animais não podem ter. O homem é terrestre (‘adam’), da "argila do
solo"(adamah), não é divino nem emanação do divino. Mas recebe como dom de Iahweh,
o "hálito da vida" (rûah). Vida proveniente da ação amorosa de Iahweh para com o ser
humano. 
    b) De Iahweh o homem recebe não só o dom da vida, como também o dom que
significa o jardim a ser trabalhado e guardado. Comer da árvore do bem e do mal, seria,
em última análise, colocar-se no lugar de Deus, não aceitando o dom da criação e
rejeitando a própria criaturidade. Ora, tentar suplantar Deus, autodivinizando-se, significa
erigir a mentira como princípio do próprio existir. Não aceitar Deus como Deus, isto é o
pecado na sua última radicalidade. 
    c) "Não é bom que o homem esteja só", é clara a posição bíblica, o ser humano foi
feito para o diálogo, não para o isolamento negador com outros seres humanos. É
necessário o encontro com o "outro" para que a experiência humana seja humana mesmo.
O ser humano tem necessidade do outro para sua humanização. Os animais são também
criaturas como o ser humano, porém o ser humano não encontra neles relação de
reciprocidade buscada. Não encontra o "outro". 
    d) Criação da mulher. Formando a mulher a bíblia quer mostrar que ela não é um
animal, pois foi tirada do homem ( mulher, ‘ishsha). A mulher é tão humana quanto o
pode ser o homem. Sublinha-se a igualdade fundamental, na qualidade de seres humanos.
A mulher é para o homem uma "auxiliar" vital. Esta íntima união não resume somente a
procriação, mas esta realidade deve ser experimentada como uma realidade penetrada de
alegre e admirado contentamento, apontando para aquilo que hoje conhecemos como
dimensão relacional própria da sexualidade humana. Ambos pertencem a mesma espécie. 
    e) O Javista apresenta o ser humano numa perspectiva fortemente relacional. Quatro
tipos de relações básicas, necessárias para autoconsciência do ser humano como
humano: 
1- A relação para com Deus: o homem pertence à terra, é criatura de Deus, não é
divino, mas recebe de Iahweh o rûah da vida que o torna um "ser vivente" (nefesh). 
2- A relação com os animais: como o homem, eles também são da terra; são auxiliares
do homem. 
3- A relação inter-humana: especificamente a relação homem-mulher. 
4- A relação com a terra do campo: o homem deve trabalhá-la e volta para ela na
morte. 
O homem não é celeste nem divino, mas terrestre e frágil. Deve aceitar a sua limitação,
assumindo a realidade de que não é Deus. No reconhecimento prático desta verdade está
o caminho da bênção. Ceder à tentação do ilimitado leva à destruição e a morte. 
O homem é um ser de decisões. É chamado a se decidir. Não é obrigado a dizer "sim" ao
seu criador. Esquece com facilidade que deve simplesmente responder (tal é sua grandeza
e sua pequenez) e se autoengana, julgando-se no lugar de Deus. é chamado, por uma
parte, a viver a diferença, pois ele não é o outro, e os outros não são ele. Por outra parte,
no entanto, o homem está inclinado a se fechar na própria identidade (falsa neste caso)
negadora da diferença. 

A criação do ser humano segundo a narrativa Sacerdotal 


Na narrativa sacerdotal, a descrição da criação do ser humano inicia-se em Gn 1,26.
Apresentada a criação dos outros seres coloca no ápice a criação do ser humano. O ser
humano na perspectiva teológico Sacerdotal é criatura como todas as criaturas. Porém
existe uma distinção muito clara, pois, só ele é criado a "imagem e semelhança de Deus".
Existe uma semelhança correspondência entre o Deus criador e o ser humano, sua
criatura especial. Em que sentido o ser humano (homem e mulher) é considerado pelo
texto Sacerdotal como "imagem de Deus"? A afirmação de que o ser humano foi criado à
imagem e semelhança de Deus comporta os seguintes aspectos fundamentais: 
    a) O ser humano é uma criatura chamada a responder à interpelação que Deus lhe
dirige. É uma criatura capaz de escutar essa interpelação e de responder a ela. Guardando
as devidas proporções o ser humano é convidado por Deus a ser cocriador. 
    b) Deus é Senhor da criação, o ser humano exerce domínio como administrador do
Criador. Não um domínio arbitrário, mas uma administração responsável. O homem deve
lembrar sempre que não é o dono, mas somente administrador. Deve reconhecer-se
criatura, não pretendendo ocupar o lugar de Deus. O ser humano é mesmo humano
quando aceita, por uma parte, que é criatura, e por outra que não é animal. Quando se
ilude e pretende ficar no lugar de Deus acaba violentando e destruindo o mundo criado e,
concomitantemente, se autodestruindo. Quando quer ficar só nível animal, não assumindo
a sua responsabilidade sobre o mundo, acaba imperando entre os homens a lei brutal do
mais forte. 
    c) Homem e mulher são criados a imagem de Deus. A administração responsável sobre
o mundo é confiada tanto ao homem quanto à mulher. A transformação do mundo (pela
cultura) em morada apropriada para todos os seres humanos é tarefa comum a homens e
mulheres. 
    d) O significado do termo "semelhança" é muito discutido. A interpretação mais
provável parece a seguinte: o homem, embora criado à imagem de Deus, é diferente dele.
Não existe identidade entre Deus e o homem. Mas também pode significar um reforço da
expressão "imagem" para sublinhar a proximidade e a relação íntima com Deus. 

O sábado como conclusão-coroamento da criação do mundo e do ser humano


(Gn2,2-3) 
Terminada a criação do mundo e do ser humano, o sábado é apresentado como conclusão
e coroamento de toda a criação. O escrito sacerdotal vê a criação em função do sábado e
não ao contrário. O repouso sabático é um elemento novo, não redutível à atividade
criadora divina. Compreender o significado deste repouso é indispensável para a correta
valorização da fé bíblica em Deus criador. 
Visto numa perspectiva antropológica, o sábado está a nos dizer que, uma vez que Deus
não só cria, como também repousa, o ser humano, imagem de Deus, deverá estar
caracterizado não apenas pela criatividade, pelo trabalho transformador do mundo e da
cultura, pela produtividade, mas igualmente pelo descanso, pela celebração e pela festa.
O repouso sabático implica vivência do descanso penetrado de paz em relação a Deus, aos
outros seres humanos e à natureza. O sábado é bênção e santificação. Benção e
santificação que fazem do repouso sabático o símbolo da libertação interior articulada com
o êxodo, símbolo da libertação exterior. 

1
 Na linguagem filosófica, etiologia é a ciência que estuda a origem e as causas das coisas,
dos fenômenos etc. Voltar 

4. JESUS CRISTO, O HOMEM NOVO, SINGULAR E PLURAL

Segundo o relato joanino da paixão de Cristo, imediatamente após Jesus ter sido
flagelado, coroado de espinhos e vestido com um manto de púrpura, Pilatos o trouxe para
fora do pretório e disse aos que ali estavam: "Eis o homem"(Cf. Jo 19, 1-5).
Provavelmente, mal sabia Pilatos que ali fazia uma afirmação antropológica e teológica
fundamental para o cristianismo, bem como um reconhecimento do destino de toda a
humanidade em Jesus 1.

É com essa afirmação, apontando para Jesus de Nazaré, que Moltmann( veja


também: Teologia da Esperança) responde à pergunta "que é o homem?": "Ecce homo!
Aqui tens o homem", sustentando que, "para a fé, portanto, o conhecimento de Deus e o
conhecimento próprio [do homem] vêm a coincidir num ponto: o conhecimento de Cristo".
E, citando Blaise Pascal, sugere que o conhecimento de Cristo permite o equilíbrio entre a
presunção e o desespero - aquela pelo conhecimento de Deus sem o da miséria humana,
e este pelo contrário -, por nele encontrarmos Deus e a miséria humana. 
De fato, os reconhecimentos de Deus e do próprio homem no crucificado-ressuscitado são
inusitados, sendo que, nos primórdios do anúncio cristão, eram um escândalo para os
judeus e uma loucura para os gregos. Mas a verdade é mesmo a de que Jesus irmanou-se
aos miseráveis, no mistério do Emanuel (Deus conosco). Referindo-se à afirmação joanina
de Jesus como imagem de Deus, Comblin defende que "para ver a Deus, não é preciso
sair da condição humana, mas apenas ser plenamente homem no sentido que Jesus
explica". E, voltando-se novamente a Cristo, Moltmann vai mais além, dizendo que "o filho
do homem é aquele que se identifica com os não-homens, para chamá-lo homens". 
A fé no crucificado-ressuscitado, portanto, comporta tanto um Ecce homo, em que se
compreende o homem em seu abandono, como um Ecce Deus, em que se compreende
Deus em seu amor infinito, com o qual se auto-abandona para assumir os abandonados.
Para Moltmann, então, a cruz é o distintivo maior do cristianismo, no que este mais se
imbui de humanismo, sendo também a diferença entre fé e superstição. E "a antropologia
cristã é uma antropologia do crucificado: por relação a este ‘filho do homem’ o homem
conhece sua verdade e se faz homem verdadeiro". 

É este o ensinamento da Gaudium et Spes: Jesus Cristo é a resposta aos interrogativos


mais profundos do ser humano; nele se encontram a chave, o centro e o fim de toda a
história humana 2; e, especialmente, no número 22: o mistério do homem só se esclarece
verdadeiramente no mistério do Verbo encarnado; Cristo revela o homem a si mesmo e
descobre-lhe a sua vocação sublime; tais verdades têm nele a sua fonte e nele atingem a
sua plenitude. Alguns teólogos classificam essa relação entre o mistério de Cristo e o
mistério do homem como "o ponto mais decisivo do ensinamento conciliar sobre o ser
humano". Dizem mais: "o homem verdadeiro, o homem ‘perfeito’, aquele que verifica
totalmente a natureza e a vocação do homem é Cristo". E García Rubio expõe que "só em
Jesus Cristo podemos encontrar a realização plena do que significa ser imagem de Deus,
do que significa viver uma existência dialógico-relacional" 3. 

O número 22 da Gaudium et Spes, inclusive, é considerado não apenas um ornamento


arquitetônico do Documento, mas a pedra angular de todo o seu conjunto. Da mesma
forma, é tido como o sentido último do esforço antropológico do Concílio Vaticano II.
Apresenta Cristo como a chave de todo o mistério humano, sendo que o mistério de Cristo
e o mistério do homem formam, finalmente, um só mistério. Dele se depreende que a
plena finalidade da história é dada pelo homem novo, que é Cristo, o qual, pela
encarnação, uniu-se de certo modo a cada homem, manifestando assim a suprema
verdade sobre o mesmo, bem como recriando e transfigurando o homem velho,
desfigurado pelo pecado. "Por sua encarnação, o Verbo mostrou toda a nobreza, todas as
riquezas da natureza humana, que nós temos em comum com ele". 
Ademais, se o homem é revelado a si mesmo por Cristo, isto se deve à sua relação com
Deus, que é de filiação. Daí um antropocentrismo não fechado em si mesmo, mas
reconhecedor de que o segredo do homem está em Deus, uma vez que se entenda que a
verdadeira revelação do homem é a revelação do verdadeiro Deus, e que as duas são
amarradas em Jesus Cristo, o Filho de Deus feito homem. Assim como a pessoa de Cristo
se funda na relação com o Pai, também o ser humano criado na direção de Cristo atinge
sua plenitude na relação com o Pai e o seu amor, pois é chamado a ser filho no Filho (no
Cristo). É, pois, "uma antropologia que encontra sua verdade última na cristologia" 4,
como diz Dom Cláudio Hummes, Cardeal. Dialogando com o homem moderno e pós-
moderno, a Gaudium et Spes aponta que a verdade, a identidade, a vocação e a missão
do ser humano são reveladas em Cristo, o homem novo. Desse modo, integra a realidade
humana atual na concepção cristã de homem, bem como aponta os limites e desvios
daquela realidade à luz desta concepção. 

Jesus Cristo é o ser humano por excelência, plenamente relacional, igual a nós - seres
humanos - em tudo, menos no pecado. Ele é a máxima possibilidade para o ser humano,
a dizer, aquele que é como o ser humano mais é chamado a ser. Jesus Cristo é quem
convida para uma vida digna e feliz, a dizer, correspondente à originalidade da criação e
plena de realização e sentido 5. Ele traduz, em sua vida, o perfeito equilíbrio na
integração-inclusão das dimensões da relacionalidade humana, mas não sem conflitos,
como as tentações, os sentimentos de abandono e a própria cruz o demonstram. Jesus
Cristo é a plena realização e o pleno caminho do ser humano, não conhecendo o egoísmo,
nem o imediatismo. Nele, o pecado fez um "curto-circuito", foi interrompido, não penetrou
em sua vida (Cf. II Cor 5, 21).
Eis como se expressou João Paulo II, referindo-se ao texto de Gaudium et Spes 22,
entendendo a redenção como renovação da criação, e ressaltando a presença salvífica de
Cristo no coração do homem: O II Concílio do Vaticano, na sua penetrante análise do
‘mundo contemporâneo’, chegava aquele ponto que é o mais importante do mundo visível,
o homem, descendo — como Cristo — até ao profundo das consciências humanas,
tocando mesmo o mistério interior do homem, que na linguagem bíblica (e também não
bíblica) se exprime com a palavra ‘coração’. Cristo, Redentor do mundo, é Aquele que
penetrou, de uma maneira singular e que não se pode repetir, no mistério do homem e
entrou no seu ‘coração’. Justamente, portanto, o mesmo II Concílio do Vaticano ensina:
‘Na realidade, só no mistério do Verbo Encarnado se esclarece verdadeiramente o mistério
do homem. Adão, de fato, o primeiro homem, era figura do futuro (Rm 5, 14), isto é, de
Cristo Senhor. Cristo, que é o novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu
Amor, revela também plenamente o homem ao mesmo homem e descobre-lhe a sua
vocação sublime’. E depois, ainda: ‘Imagem de Deus invisível (Cl 1, 15), Ele é o homem
perfeito, que restitui aos filhos de Adão a semelhança divina, deformada desde o primeiro
pecado. Já que n'Ele a natureza humana foi assumida, sem ter sido destruída, por isso
mesmo também em nosso benefício ela foi elevada a uma dignidade sublime. Porque, pela
sua Encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-se de certo modo a cada homem. Trabalhou
com mãos de homem, pensou com uma mente de homem, agiu com uma vontade de
homem e amou com um coração de homem. Nascendo da Virgem Maria, Ele tornou-se
verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, exceto no pecado’. Ele, o
Redentor do homem 6. 

Jesus Cristo é a meta e o clímax da autocomunicação de Deus à humanidade 7,


diz Rahner, recorrendo à expressão potentia obedientialis para significar uma capacidade
objetivamente identificada com a essência do ser humano, que é a de ser "sublime, livre e
plena autotranscendência para Deus", a qual foi possibilitada ao ser humano pelo próprio
Jesus Cristo. Jesus é aquele que "ouviu bem" o desejo de Deus para a humanidade,
conforme a noção de obediência explicada por Raniero Cantalamessa, permitindo ao ser
humano trilhar o verdadeiro caminho na direção dessa autotranscendência. E propõe essa
obediência como garantia da alegria completa ao ser humano, fundada na sua própria
alegria messiânica, de Filho de Deus (Cf. Jo 15, 9-11). 

Todo homem de boa vontade, em tese, deseja viver o humanismo. Mas, antes, é preciso
saber quem é o homem. Jesus Cristo, o novo e verdadeiro homem, dá-nos essa ciência. É
o Verbo de Deus encarnado o modelo para a humanidade, a dizer, o protótipo à imagem
de quem foi modelado o ser humano original. Cristo é imagem do ser humano e, ao
mesmo tempo, imagem de Deus, tornando a humanidade uma "imagem da Imagem de
Deus". "Ele é a imagem do Deus invisível, o Primogênito de toda criatura, porque nele
foram criadas todas as coisas, (...) tudo foi criado por ele e para ele" (Cf. Cl 1, 15-16).
"Ele é o primeiro na ordem da intenção de Deus, apesar de não o ser na ordem de
execução pessoal". 
Daí a relação entre Adão e Cristo, o homem velho e o homem novo. Adão, nome coletivo
para toda a humanidade, que vem da terra (adam, adamah), tido como nome próprio do
primeiro ser humano, foi criado à imagem e semelhança de Deus, mas, em sua liberdade,
foi-lhe desobediente, pelo que toda a humanidade restou marcada pelo mesmo pecado.
Cristo, por sua vez, modelo dessa criação, por sua encarnação, assumiu a natureza
humana, redimindo-a por sua vida plenamente obediente, e restituindo-lhe a dignidade,
então manchada pelo pecado fundamental, novamente para o estado de justiça ou de
graça. Donde vem a catequese paulina de que "onde avultou o pecado, a graça
superabundou" (Cf. Rm 5, 20).

García Rubio destaca, inclusive, que é na cruz que aparece mais claramente o paralelo
antitético entre Jesus e Adão: basta comparar a atitude de Jesus na paixão, tal como é
narrada por Marcos, e a atitude de Adão focalizada pelo Javista em Gn 2 e 3. Jesus é
interpelado para que se salve descendo da cruz (cf. Mc 15, 29-32). Mas Jesus permanece
na cruz. Adão, pelo contrário, quer ‘salvar-se’ a todo custo tentando ser como Deus. E
deslancha, assim, um processo de perdição e de destruição. Jesus, fiel à vocação que vem
do Pai, se salva e nos salva a todos. Adão se perde (convém lembrar que Adão é cada um
de nós pecadores) porque não aceita os seus limites e quer ser Deus 8. 
Essa antítese entre Adão e Cristo se denota, como dito, no contraste entre o pecador e o
salvador, o pecado e a justificação ou a graça, a morte e a vida, a desobediência e a
obediência, a condenação e a salvação. Trata-se de um comparativo apoiado na
solidariedade tanto no pecado com Adão, quanto na graça com Cristo. E é preciso
conhecer a Cristo como fonte da graça para conhecer Adão como fonte do pecado, assim
como é preciso aceitar o pleno reconhecimento de Deus - o que fez Jesus Cristo - para
perceber a recusa de reconhecer a Deus - o que fez Adão. Tudo isso sem esquecer a
primazia da graça, como destacado, apesar de toda a maldade que há no mundo e que é
fruto do pecado. A certeza de fé dessa primazia permite, em que pesem as destruições
causadas por todo tipo de pecado, vislumbrarem-se sempre ao ser humano a alegria e a
esperança, e não a tristeza e a angústia. 

A atitude de Adão não raramente diz respeito a uma confusão entre o livre arbítrio e a
verdadeira liberdade humana, esta que vai além daquele, compreendendo-o, inclusive.
Quatro são os elementos constitutivos da verdadeira liberdade humana, a saber: pobreza
nativa (carência de todo ser humano); capacidade de escolha (liberdade de opção);
obediência fiel (disposição à opção fundamental); e transformação escatológica (inclinação
à plena realização). Vitor Feller destaca que a caracterização do livre arbítrio se limita à
pobreza nativa e à capacidade de escolha 9. De fato, todo ser humano, a priori, é imbuído
dessa vontade livre. Mas importa, à frente, dar o salto de qualidade na direção dessa
verdadeira liberdade, que coincide com a plena relacionalidade, passando pela obediência
fiel e pela transformação escatológica, salto este que é dado pelos santos. Esse salto
implica sacrifícios e renúncias, como a cruz, em vista de bens mais perenes e de uma
realização definitiva do ser humano, mas precisa ser assumido, embora os tempos atuais
não lhe sejam convidativos. 

Jesus é exatamente "o ser humano em renovação escatológica", o homem novo. Mesmo
sendo de condição divina, fez-se obediente e assumiu a sua cruz (Cf. Fl 2, 6-11), em
conseqüência de sua fidelidade incondicional, elevando a natureza humana à sua máxima
dignidade. Conforme o mesmo autor, Jesus se solidariza com toda a humanidade em suas
alegrias e tristezas 10, esperanças e angústias. "Jesus acolheu a não-imagem para restituir-
lhe a dignidade perdida". "Ele é simultaneamente norma do ‘humano’ e redentor da
‘desumanidade’". Mais que isso, "nele temos o humano em definição divina", a dizer, o
Filho de Deus. Na atitude de Jesus, portanto, estão por Ele colocadas as "balizas para o
que deve ser considerado verdadeiramente humano". 

Andrés Torres Queiruga é um que afirma que a revelação de Deus acontece na história e
na realização humana, sendo que ela é máxima na pessoa de Jesus, razão pela qual a
revelação cristã é a plenitude escatológica do humano. Eis o que diz o teólogo galego
sobre o sentido concreto e histórico dessa culminação em Cristo: 

O longo processo no qual o homem como ser emergente chega ultimamente a si mesmo a
partir do encontro com Deus, que se lhe comunica livremente, alcança em Cristo sua
plenitude insuperável; plenitude da qual, mediante ele, participa na história a comunidade
dos crentes. (...) Se em Cristo falamos de plenitude, significa que a possibilidade humana
é exercida nele até o extremo. Cristo como plenitude da revelação quer dizer então que
nele acontece de modo insuperável e total o encontro revelador de Deus e o homem. Em
outras palavras: a livre decisão divina de comunicar-se totalmente e sem reservas à
humanidade encontra em Cristo uma abertura total e sem reservas. Cristo é o homem
capaz de experimentar em toda sua radicalidade a presença ativa de Deus que se nos
quer dar, e capaz também de acolhê-la com a entrega absoluta de sua liberdade.
Constitui, pois, o caso culminante e insuperável desse processo pelo que o homem como
ser emergente alcança sua realização última no encontro com Deus, que em Cristo
aparece como o que livremente e desde sempre quis dar-se ao homem com um amor
irrevogável e definitivamente salvador. Tomado com toda seriedade, isto significa algo
enorme em sua simplicidade: tudo antes de Cristo foi caminho rumo a ele, tudo depois de
Cristo é viver a partir dele 11. 

Jesus é a particularidade que se torna universal, segundo a


expressão hegeliana do "universal concreto". Não se pode compreender Deus em si,
senão pela mediação de uma realidade particular. É na encarnação (na contingência
histórica de Jesus de Nazaré) que se torna possível assegurar a universalidade de Cristo.
Não há como separar Jesus, em sua particularidade humana e concreta, do Cristo,
considerado em seu significado divino e universal. Fazendo referência a Von
Balthasar, Jacques Dupuis assim salienta: 
O mistério de Jesus Cristo é o mistério do total dom de si do Deus do amor à humanidade
em seu Filho feito homem, no qual ele chama, por meio de um ‘maravilhoso intercâmbio’,
todos os seres humanos a uma comunhão pessoal com ele, como entre um ‘eu’ e um ‘Tu’.
Aquilo que é particular do cristianismo e constitui seu caráter absoluto é o ‘Cristo
trinitário’. Jesus Cristo é o ‘universal concreto’. Nele coincidem, para além da dialética do
único e do histórico, o fatual e o normativo. Ele é pessoalmente ‘o todo no fragmento’,
pois nele todas as coisas são integradas no Verbo de Deus que é amor 12. 
Nesse sentido, como universal concreto, Jesus Cristo é a plenitude do humano autêntico.
As virtualidades crísticas estão presentes no humano autêntico, e constituem fatores
necessários para manifestar todas as riquezas do mistério de Jesus Cristo. O humano
autêntico é o critério da existência cristã e religiosa como um todo, ou a capacidade de
entender o senso do religioso como participação na totalidade das coisas, sendo, assim, o
critério da unidade na pluralidade. É o que remete à inteligência do coração, e a
possibilidade de descobrir o valor de coisas aparentemente insignificantes da vida
cotidiana, mas sempre carregadas de humanidade. É aquilo que vai ao encontro da
verdade mais profunda do ser humano, na direção da coincidência entre a potência e a
ação humanas. É o ético, que é inseparável do teológico. O humano autêntico é a vocação
mais sublime do ser humano, que é revelada por Jesus Cristo, o universal concreto , como
mencionado. 
Contudo, apesar de toda a riqueza e profundidade dessas verdades antes expostas, falta
"uma teologia da vida e da existência cristã no mundo que seja cristologicamente
conseqüente", pois não há ‘existência’ cristã possível fora dele, como alerta, de forma
realista. Isso pressupõe aceitar "que é possível pensar e viver a partir de Jesus Cristo"
como diz esse autor, resgatando-se a unidade cristã perdida, como no caso da relação
entre imanência e transcendência, natural e sobrenatural etc, em vista de uma nova
condição cristã, conforme o intuito da própria Gaudium et Spes. O cristão deve saber que
"Cristo nos deu o exemplo, que devemos seguir pelo novo caminho por ele aberto; nossa
vida e morte santificam-se e recebem nova santificação". E esse exemplo vale para todos
os homens de boa vontade, como já destacado. 

Faz-se necessária, no dizer de Rahner, uma cristologia existencial, a dizer, uma "relação
pessoal com Jesus Cristo" própria do verdadeiro cristianismo, em sentido de seguimento
de Cristo. E, assim como, de fato, o cristianismo não é mera teoria abstrata, a realização
concreta dessa relação não é exclusiva dos cristãos, estendendo-se, obviamente, a todos
aqueles que são obedientes a essa orientação na graça, ainda que de modo não refletido
expressamente. 
O ser humano, como existencial sobrenatural, é "evento da absoluta autocomunicação de
Deus" e precisa acolhê-la livre e responsavelmente, em vista de sua verdadeira liberdade,
antes frisada, e de sua máxima realização. Cabe bem ouvir o que diz o Cristo - "eu vos
digo isso para que a minha alegria esteja em vós e vossa alegria seja plena" - e, bem
ouvindo, observar concretamente a Palavra, em seu amor. O Verbo provoca o ser humano
à ação. E, nesse amor, o ser humano pode fazer o que quiser. 

Imanência e transcendência, interiorização e abertura

É própria da revelação judaico-cristã a afirmação no sentido de que o ser humano é um


ser unitário. Mais que própria, trata-se de uma noção fontal à mesma fé. A Gaudium et
Spes assim dispõe o seu ensinamento: "o homem, ser uno, composto de corpo e alma,
sintetiza em si mesmo, pela sua natureza corporal, os elementos do mundo material, os
quais, por meio dele, atingem a sua máxima elevação e louvam livremente o Criador 13. 
O ser humano é uma unidade pessoal constituída de corpo e alma ( corpore et anima
unus). Inclusive, é por ele que os elementos materiais são maximamente elevados,
conforme a profissão conciliar, o que permite concluir acerca da máxima dignidade do
gênero humano perante todas as criaturas, ou seja, da condição do ser humano como
obra-prima da criação. Importa, pois, destacar que o ser humano não se confunde com a
realidade divina, como se esta fosse a única realidade existente, e tudo o que é visível
fosse mera manifestação ou emanação do mesmo e único ser de Deus. Assim,
o monismo e suas derivações são concepções que não conferem com a visão
antropológica do judeu-cristianismo, uma vez que "têm a tendência de negar uma
autêntica existência a tudo o que não seja Deus e ignoram, pois, necessariamente a
realidade criada como tal". Diante do monismo , importa afirmar que o ser humano é
constituído de corpo e alma, ainda que nele não se separem essas realidades, uma vez
que formam um ser uno. 

Na descrição da pessoa, portanto, está o seu específico, que é a relacionalidade, o que


"aparece bem destacado quando se articulam adequadamente os dois aspectos básicos
constitutivos do ser pessoal: a interiorização ou imanência e a abertura ou
transcendência". Nem só imanente, e nem só transcendente. O ser humano, todo inteiro,
constitutivamente relacional, é sempre imanência e transcendência, visão esta de fé que,
inclusive, torna com ela incompatíveis outras abordagens a respeito do ser humano,
próprias de determinadas ideologias e de certas posturas religiosas. 
Conforme a dimensão de interiorização ou imanência, "a pessoa deve estar centrada em si
própria, orientada para a própria interioridade", diz García Rubio. "Mas isto não significa
um convite para o isolamento ou o fechamento. Pelo contrário, a pessoa só pode ser
verdadeiramente ela mesma quando se autotranscende". 14 Rahner, além de definir o ser
humano como pessoa e como sujeito, e como ser de responsabilidade e liberdade, afirma-
o como ser de transcendência. Inclusive, põe aqueles outros atributos referidos a este
último, a saber: 

À medida que o homem se caracteriza por essa transcendência, confronta-se consigo


mesmo, é responsável por si, e assim é pessoa e sujeito. Pois unicamente no face-a-face
com a infinitude do ser, que se desvela e se esquiva, é que um ente se situa em uma
posição e sobre um ponto de apoio desde onde pode assumir-se e responsabilizar-se15. 
Diz Rahner que "o homem é o ser de transcendência à medida que todo o seu
conhecimento e ato de conhecer se fundam na pré-apreensão do ‘ser’ em geral, em um
saber atemático, mas sempre presente acerca da infinitude da realidade". Inclusive,
segundo a reflexão rahneriana, o ser humano só sabe de sua finitude por entender que se
origina de uma realidade diversa dele, a qual, posteriormente, reconhece - pela fé - como
Deus, e como o "Aonde" da transcendência, infinito, indefinível e inefável. E reconhece,
assim, também, a sua condição de criaturidade, na diferença e na dependência de Deus,
ambas radicais na sua origem. 

Nesse sentido, apresentam-se as dimensões constitutivas do ser humano, em sua


imanência e transcendência, ou em sua interiorização e abertura, tal como se pode
visualizar, esquematicamente, no já aludido "gráfico da relacionalidade: 

García Rubio, ao tratar da imanência e da transcendência do ser humano diz que, a


imanência se caracteriza por três aspectos: "o ser em si, o ser por si e o ser para si". E a
transcendência, por sua vez, "move-se em três direções: para o mundo (com seu ser
material e seu valor espiritual), a comunidade e Deus". 

Na imanência, compreende-se a relação do ser humano consigo mesmo, na sua


profundidade ou subjetividade, a qual tem origem vertical, como dito acima, mas está
naturalmente presente na sua horizontalidade. Isso porque, conforme demonstra a
pesquisa feita, embora essa pluralidade de dimensões faça referência a aspectos diversos
do ser humano - às diferentes relações humanas -, cada uma delas diz respeito ao ser
humano inteiro, compreendido em seu todo de ser uno. É "o homem, em sua radical
unidade e na pluralidade de suas dimensões".
Como ser imanente, o ser humano se autopertence, é capaz de se autodecidir livre e
responsavelmente, e tem em si mesmo sua própria finalidade. São as características da
dimensão de imanência que García Rubio classifica como autopossessão, liberdade e
responsabilidade, e perseidade (qualidade daquilo que existe de per si). Cada uma delas
possui significado e conseqüências muito relevantes na afirmação da dignidade da pessoa
humana. São as características que marcam cada ser humano como "único, insubstituível,
irrepetível e merecedor de todo respeito". 

Na autopossessão, tem-se a autonomia da pessoa, isto é, sua independência e


incomunicabilidade, tendo como conseqüência o fato dela não ser propriedade de
ninguém mais. Na liberdade e responsabilidade, está a capacidade de escolha e de opção,
o que implica em responder pelos seus atos volitivos, trazendo como conseqüência a
necessidade do respeito às suas decisões, as quais não deveriam ser exteriormente
manipuláveis, inclusive. E, na perseidade, compreende-se a auto-realização da pessoa
como tal, com a conseqüência desta não ser mensurável utilitariamente, por não ser,
justamente, objeto de uso e descarte. 

Na transcendência, compreendem-se as relações do ser humano em seus três níveis de


abertura: verticalmente, a Deus, em sua espiritualidade ou mística, e horizontalmente, aos
outros, em sua intersubjetividade, e ao mundo, em sua materialidade. Note-se que a
espiritualidade ou mística, a intersubjetividade e a materialidade são, próprias do ser
humano. Mas também não há dúvida de que são relações próprias do ser humano com o
"outro" de si, sejam realidades pessoais ou meramente materiais, inclusive com o "Outro",
que é Deus, fonte de sua transcendentalidade. 

Como ser transcendente, o ser humano vive sua abertura a Deus, a qual é sua dimensão
mais fundamental, inclusive, por sua fontalidade. Vive também sua abertura aos outros,
como ser social que é, o que se dá tanto interpessoalmente, como sócio-politicamente. E
vive sua abertura ao mundo, no meio ambiente onde tem seu habitat, vivendo em uma
determinada cultura, e apreendendo a natureza através da ciência, bem como a
transformando através do trabalho. 

 Cf. COMBLIN, J. Antropologia cristã. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 256-257. Voltar 


1

 Cf. Gaudium et Spes, n. 10. Voltar 


2

3
 RUBIO, A. G., Elementos de Antropologia Teológica. Petrópolis: Vozes, 2004, p.
109. Voltar 

4
 HUMMES, C. Contribuições da Gaudium et Spes para a compreensão pastoral do homem
de hoje. Revista Teocomunicação, Porto Alegre, v. 35, n. 150, p. 625-637, dez. 2005, p.
630. Voltar 

5
 Cf. CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. V Conferência Geral do Episcopado
Latino-Amerciano e do Caribe. Síntese das contribuições recebidas. São Paulo:
Paulinas/Paulus, 2007, p. 54-63. Voltar 

 Cf. Redemptor Hominis, n. 8. Voltar 


6
 Cf. RAHNER, K. Curso fundamental da fé. São Paulo: Paulinas, 1989, p. 213. Voltar 
7

8
 RUBIO, A. G. Unidade na Pluralidade: o ser humano à luz da fé e da reflexão cristãs. São
Paulo: Paulus, 2001, p. 186. Voltar 

9
 Cf. FELLER, V. G. Deus-Pai e o sofrimento do mundo. Revista Encontros Teológicos,
Florianópolis, n. 26, p. 15-34, 1999. Voltar 

 Cf. BRAKEMEIER, G. O ser humano em busca de identidade. São Leopoldo/São Paulo:


10

Sinodal/Paulus, 2002, p. 31-32. Voltar 

 TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana. São Paulo: Paulus,


11

1995, p. 239; 241. Voltar 

 DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso. São Paulo:


12

Paulinas, 1999, p. 199-200. Voltar 

13
 Cf. Gaudium et Spes, n. 14. Voltar 

14
 RUBIO, op. cit., p. 308. Voltar 

15
 RAHNER, op. cit, p. 49 Voltar 

5. CONCEITO DE PESSOA HUMANA

Origem da palavra

De acordo com os estudos lingüísticos, o vocábulo "pessoa" origina-se da


língua etrusca. O termo grego "prosopon" em ("paneh" em hebraico; "persona" em latim)
significa máscara, figura, personagem de teatro, papel representado por um ator.
Era a máscara que o autor usava, servindo para identificar a personagem. 
A palavra passou para a língua portuguesa em 1267.
A partir de seu sentido original, a pessoa designa a identidade do sujeito que atua. 

Definição de pessoa humana

A pessoa humana é o sujeito pleno, livre, consciente e único, capaz de pensar, sentir,
relacionar e agir no mundo. 

Constitui o ser humano racional e livre, definido pela sua dimensão de sujeito moral e
espiritual, plenamente consciente do bem e do mal, autônomo e responsável. 
    A pessoa traz traços bem peculiares do indivíduo da espécie humana, mas distinto dos
indivíduos das espécies animais, que se encontram essencialmente subordinadas ao bem
geral do grupo. 
   Tem todas as faculdades necessárias para viver: inteligência, vontade, liberdade,
sentimentos, imaginação, memória, percepção e ação. 

Concepção clássica de pessoa humana 

No pensamento clássico, pessoa foi definida como substância individual de natureza


racional. 
Esse conceito foi dado pelo pensador romano Severino Boécio (470-525), que foi cônsul e
primeiro ministro do rei ostrogodo Teodorico. 

Sua contribuição influenciou toda a antropologia filosófica e teológica dos últimos dois mil
anos. 
Quando se fala de substância individual, quer dizer que toda a pessoa humana é única e
distinta, com características singulares, irredutíveis, intransferíveis e concretas.
É diferente de outros seres, com algo próprio e incomunicável. 
Ao destacar a natureza racional, significa que a pessoa humana é dotada de razão, capaz
de compreender as coisas, de se comunicar e de se relacionar com os outros. 
A razão humana é a faculdade que tem a função de perceber, analisar, refletir, resumir,
comparar, julgar, formular, estudar e apreender. 

Visão moderna 

Em nossos dias, sem negar os elementos da definição clássica, os pensadores sublinham


com preferência o aspecto dialogal da pessoa humana: ser de relação. 
Trata-se de uma concepção antropológica que vem da filosofia humanista e personalista
(E. Mounier, M.Buber, E.Brunner, E.Levinas). 
O pensamento atual concebe a pessoa como ser de relação. 
Toda a pessoa é ser de comunhão e de diálogo, que é um "eu" que se relaciona com um
"tu" e ambos formam um "nós".

Todo ser humano se desenvolve como pessoa em todas suas dimensões, isto é, em seu
relacionamento com Deus, com os outros, consigo mesmo e com o mundo. 
A pessoa não só é um ser em diálogo intelectual e racional, mas de compenetração no
amor. A base da pessoa humana é o amor, que dá sentido à sua existência e a abre para
a convivência com os outros.

O amor é a atitude ou a atividade na qual um sujeito particular encontra sua realização


plena como pessoa. Os pensadores atuais insistem que a sociedade pressupõe a
existência e o valor da pessoa humana. Não existe contraposição entre os dois conceitos,
mas um exige o outro. A sociedade deve respeitar a dignidade e os direitos das pessoas
humanas que a compõem. 

Visão da antropologia teológica 

a) Imagem de Deus 
Na visão da antropologia teológica, a pessoa humana é concebida como imagem e
semelhança de Deus.
A pessoa é criatura de Deus, criado à sua imagem e semelhança, dotado de corpo, mente
e alma, tendo vida dependente do Criador. A pessoa humana é um projeto divino,
idealizado perfeito pelo Pai. 
Danificado pela falha livre do pecado, Deus o renovou em Jesus Cristo, Filho de Deus feito
homem. Como filho de Deus em Cristo, o ser humano é chamado à comunhão com a
Trindade Santíssima, participando de sua felicidade.

    b) Ser inteligente, livre e responsável 


De acordo com a antropologia teológica, a pessoa é ser inteligente, livre e
responsável, que assume seu papel de sujeito de sua própria identidade e agente da
construção da sociedade. O ser humano é a consciência do universo, é responsável por
transformar a natureza com ordem, respeito e equilíbrio. A pessoa humana é chamada a
ser agente de transformação da história.
O ser humano é convocado por vocação a viver em solidariedade e comunhão, auxiliando
assim na implantação do Reino de felicidade.

    c) Dignidade e igualdade do ser humano


A Igreja proclama a igualdade e a dignidade do ser humano, sem nenhuma distinção
fundamental. A Igreja professa que todo o homem e toda a mulher têm em si a nobreza
inviolável que eles próprios devem respeitar. A Igreja valoriza a vida humana como um
valor incomparável. 
Por isso, a Igreja censura, denuncia e combate todas as formas de violação da integridade
das pessoas, reprovando quando as pessoas se tornam objeto das pesquisas científicas,
do consumismo, da política, da economia, do erotismo e da magia. 

    d) Ser corporal e espiritual 


A pessoa humana é um ser ao mesmo tempo corporal e espiritual (Gn 2,7). A unidade
da alma e do corpo é tão profunda que se deve considerar a alma a forma do corpo, isto
é, é graças a alma que o corpo, que é material, torna-se humano e vivo. Na pessoa
humana, o corpo e a alma formam uma única natureza. O corpo humano participa da
dignidade da imagem de Deus porque está destinado a ser templo do Espírito Santo e a
ressuscitar no último dia. A alma que é o princípio espiritual que anima o ser humano, não
vem dos pais, mas é criada diretamente por Deus no momento da concepção humana,
sendo imortal. 

    e) Igualdade entre homem e mulher 


Na antropologia teológica, o homem e a mulher são iguais em dignidade de pessoas (Gn
2,23). O homem e a mulher foram criados por Deus numa igual dignidade como pessoas
humanas (Gn 1,27). Deus os criou numa recíproca complementaridade como homem e
mulher, pois os quis um para o outro, para uma comunhão de pessoas (Gn 2,18). Juntos,
o homem e a mulher são chamados a transmitir a vida humana, formando no matrimônio
uma unidade profunda, e a dominar a terra como intendentes de Deus (Gn 1,28;2,24).
Cada gênero, ser homem e ser mulher, reflete atributos característicos da sabedoria e
bondade de Deus.

    f) Pessoa humana, dotada de consciência moral 


Como ser moral, a pessoa humana tem a capacidade para distinguir entre o bem e o
mal (consciência moral). A pessoa humana é dotada de consciência moral, que a leva a
ter o senso daquilo que é certo ou errado. Pela sua consciência moral, o ser humano é
capaz de saber o que deve ser e fazer. Por isso, é chamado a agir de acordo com os
critérios de verdade e de bem, de justiça e de solidariedade. A consciência moral da
pessoa influencia e dirige sua conduta humana no dia-a-dia. 

    g) Pessoa humana, ser livre 


A pessoa humana é um ser livre. Todo o ser humano, e somente ele, é um ser moral,
uma vez que está chamado a assumir e a construir a sua própria existência. 
É um ser livre e responsável, pois tem a capacidade para tomar suas próprias decisões e
responder por elas. Só a pessoa humana é sujeito de moralidade. Só ela é capaz de fazer
ações morais. 

6. A QUESTÃO DO MAL E DA LIBERDADE SEGUNDO SANTO AGOSTINHO

Desde o princípio, Deus criou o homem e o deixou livre, ao sabor de suas próprias
decisões (Eclo 15,14).

Diversas correntes filosóficas, bem como um ponderável número de teólogos, cientistas,


pesquisadores, místicos e exegetas tentaram, a partir das formulações literário teológicas
de Aurélio Agostinho, o Santo Agostinho de Hipona († 430), obter respostas sobre a
questão do mal. As obras desse iluminado "doutor da Igreja" nos remetem a algumas
pistas sobre esse intrincado mistério.
Na abertura de O Livre-Arbítrio aparece a pergunta: É Deus o autor do mal? A resposta
dada por Agostinho a Evódio, que tematiza todo o trabalho, é paradigma para o
cristianismo de todos os tempos: Sendo Deus bom, como tu sabes e acreditas, nem é
possível ser de outra forma, não pode fazer o mal. Mais ainda, se declararmos que Deus é
justo, e o contrário seria blasfêmia, de tal maneira que assim como premia os bons
condena os maus; condenação que para os que sofrem é um mal. Entretanto, se ninguém
é castigado injustamente, como necessariamente devemos crer, uma vez que acreditamos
ser a Providência quem governa o mundo, de nenhuma forma poderá ser Deus o autor da
primeira espécie de mal, muito embora o seja da segunda.
Só, a fé também não chega; é preciso ainda a compreender; e o Livre-Arbítrio é um
esforço da inteligência em direção à verdade. Esta obra importante tem como objeto o
problema da origem do mal. Sabemos que Agostinho desde a sua adolescência se
preocupou com esta questão e uma das causas da sua adesão ao maniqueísmo 1 foi de ter
tido a esperança de encontrar a solução. Entretanto os heréticos não o satisfizeram e
continuou a procura da verdade que nos descreveu nas “Confissões”, sua obra-prima.
Religiosamente convicto, após sua conversão, Agostinho não podia suportar a idéia que
Deus fosse à causa do mal, mas sabia que, afirmando que a origem fosse o nosso livre-
arbítrio, várias questões se levantariam, contrárias a esta resposta. É fácil mostrar que o
mal físico é substituído pela divina providência porque visto no conjunto não é mais um
mal, mas contribui ao bem comum e à ordem cósmica: a tese neoplatônica é até aqui
satisfatória. Mas que poderemos dizer do mal moral que se opõe diretamente à vontade
de Deus? Examinando minuciosamente esta questão Agostinho propõe uma solução
racional dentro dos limites que a cultura da época e sua fé lhe permitiam. A partir deste
ponto de vista, o projeto geral do Livre-Arbítrio aparece claramente. Fiel e devoto,
Agostinho não podia suportar a idéia que Deus fosse a causa do mal, mas sabia que,
afirmando que a origem fosse o nosso livre-arbítrio, várias questões se levantariam,
contrárias a esta resposta. Segundo os dados da fé, todas as coisas criadas por Deus são
boas. O pecado não pode ser imputado à criação. Trata-se de compreender a origem do
pecado e o seu papel, nitidamente na contramão ao projeto de Deus. A psicologia
agostiniana está em harmonia com o neoplatonismo cristão. Certamente o corpo não é
essencialmente mau, visto que é uma criatura de Deus, que fez boas todas as coisas. Mas
a união da alma com o corpo é, de certo modo, extrínseca, acidental. A alma e o corpo
não formam a unidade metafísica, substancial, como na concepção aristotélico-tomista,
graças à doutrina da forma e da matéria. Entre as faculdades da alma, a vontade tem a
primazia e não o intelecto. Entra aí a questão da liberdade. 
O mal é, fundamentalmente, privação de bem - privação de ser. Tal bem pode ser não
devido (mal metafísico) ou devido (mal físico e moral) a uma determinada natureza. Se o
bem é devido, nasce o verdadeiro problema do mal. A solução desse problema é estética,
para o mal físico; é moral (pecado original e redenção pela cruz), para o mal moral e,
também, físico. A solução do problema da história constitui outra grande glória
especulativa de Agostinho. Tal problema é, fundamentalmente, o problema do mal na
história. 
Agostinho resolve-o, naturalmente, mediante os dogmas do pecado original e da redenção
pela cruz, isto é, mediante a Revelação, e a teologia. Ele trata desse assunto na Cidade de
Deus, que se pode considerar a obra-prima especulativa do grande doutor. Quanto à
natureza de Deus, Agostinho tem uma idéia perfeitamente exata: Deus é poder racional
infinito, eterno, imutável, espírito, pessoa. Assim sendo, Deus também é Trindade do Pai,
Verbo e Espírito Santo, esforça-se por descobrir filosoficamente as imagens da Trindade
em todo o mundo; toda criatura seria, essencialmente, ser, saber e vontade. Para a
fenomenologia de Santo Agostinho, o mal não é ser, mas privação do ser, como a
obscuridade é ausência da luz. Por não-ser, o mal não pode ser visto como criatura, mas
mera contingência de atitudes. Sobressai-se de sua obra, a teoria da privatio boni.
Agostinho tem uma afirmação, no mínimo paradoxal: Já que Deus é o Bem Supremo, ele
não permitiria a existência de mal algum no mundo, a menos que sua onipotência e
bondade fossem tal, que conseguisse tirar algo bom até do mal. 
Para o teólogo de Hipona, o mal só pode provir do homem, livre porém limitado, e não de
Deus, que é puro ser e produz unicamente o ser. Mesmo assim, o testemunho dos santos
não cessa de confirmar que do mal Deus sempre tira um bem: assim, Santa Catarina de
Siena († 1380) nos diz textualmente que: Aqueles que se escandalizam e se revoltam com
que lhes acontece: tudo procede do amor, tudo esta ordenado a salvação do homem,
Deus não faz nada que não seja para esta finalidade. Para Santo Agostinho, a ocorrência
do mal no mundo é resultado da liberdade humana. Uma liberdade mal conduzida. Deus
criou o homem livre. E este, por ser livre escolheu o pecado. Com isso surgiu o mal moral
e o mal físico. O mal metafísico é, apenas uma conseqüência, o castigo de Deus. Embora
o cristianismo aposte mais na capacidade misericordiosa de Deus (ao invés da teologia do
castigo), esta interpretação situa-se muito próxima da instrução bíblica. Sob a visão
teológica, Agostinho foi um dos que mais profundamente impressionou-se pelo problema
do mal. Para o bispo de Hipona, o mal não é ser, mas privação de ser, como a
obscuridade é ausência de luz. Tal privação é imprescindível em todo ser que não seja
Deus, enquanto criado, limitado.
Desta forma, ele busca explicar o assim chamado mal metafísico, que não é verdadeiro
mal, porquanto não tira aos seres o que lhes é devido por natureza. Quanto ao mal físico,
que atinge também a perfeição natural dos seres, Agostinho procura justificá-lo mediante
um velho argumento, digamos assim, estético: o contraste dos seres contribuiria para a
harmonia do conjunto. Esta, segundo os especialistas, é a parte menos afortunada da
doutrina agostiniana do mal. Quanto ao mal moral, finalmente existe realmente a má
vontade que livremente faz o mal; ela, porém, não é causa eficiente, mas deficiente,
sendo o mal não-ser. Este não-ser pode unicamente provir do homem, livre e limitado, e
não de Deus, que é puro ser e produz unicamente o ser.
A teologia bíblica revela que o mal moral entrou no mundo humano através do pecado,
original e atual, razão ;pela qual, a humanidade foi punida com o sofrimento, físico e
moral, além de perder os dons gratuitos de Deus. Como se pode observar, o mal físico
tem, deste modo, uma outra explicação mais profunda. Remediou este mal moral a
redenção de Cristo, Homem-Deus, que restituiu à humanidade os dons sobrenaturais e a
possibilidade do bem moral; mas deixou permanecer o sofrimento, conseqüência do
pecado, como meio de purificação e expiação. A explicação definitiva dessa questão (do
mal moral e de suas conseqüências) estaria no fato de que é mais glorioso para Deus tirar
o bem do mal, do que não permitir o mal. Sintetizando a doutrina de Agostinho a respeito
do mal, se poderia afirmar que: o mal é (embora muitos não concordem),
fundamentalmente, uma privação do bem (de ser); este bem pode ser não devido (mal
metafísico) ou devido (mal físico e moral) a uma determinada natureza; se o bem é devido
nasce o verdadeiro problema do mal; a solução deste problema é estética para o mal
físico, moral (pecado original e Redenção) para o mal moral (e físico). Uma oposição
radical entre bem e mal tem, na filosofia, o nome de maniqueísmo. 
Agostinho não podia suportar a idéia de que as pessoas fizessem uma ligação de Deus
com o mal ocorrido. Por esta razão ele enfatiza a liberdade do homem (o livre-arbítrio)
para, tirando a culpa das costas de Deus, colocá-la em cima do homem. Deus não faz o
mal; quem o faz é o homem, que é livre para fazê-lo. Livre para fazer o mal ou o bem.
Não seria essa teoria agostiniana uma tentativa de retirar das costas de Deus a culpa de
nos haver criado tão vulneráveis: A privatio boni de Agostinho enfoca o mal moral (o
pecado do homem) que resulta num mal físico (um castigo natural oriundo do pecado),
mas esquece-se do mal metafísico. Não se trata de descobrir os culpados. Há casos em
que o mal acontece, nem por "vontade de Deus" nem como resultado "da ação livre do
homem". Há males que acontecem naturalmente. Se Deus permite ou não que eles
aconteçam, isto já é outra coisa. O que fica pendente é o entendimento a respeito do
sofrimento, do mal cometido contra o inocente. Podemos saber por que o perverso
estuprou e matou a menininha de quatro anos. Porque o delinquente cometeu o crime, a
polícia, a sociedade, a psicologia, todos sabem, atribuindo o ato criminoso a desajustes de
toda ordem. O que não se sabe ou não se pode explicar é a razão de um sofrimento tão
cruel haver sido infligido a uma criança inocente. Não se poderia deixar de mencionar o
fato de Santo Agostinho ter uma "solução" para o sofrimento, a qual é vista como
demasiadamente simplista: 
Deus, pretende, às vezes, corrigir ou ensinar os adultos pelas dores ou morte das
crianças; As aflições temporárias das crianças servem para tornar melhores os adultos; A
criança que sofre é feliz, recompensada por Deus pela ajuda que prestou ao ensinamento
dos adultos. 
Vivemos em um tempo de descobertas e duvidas, euforia e ansiedades, certezas e
enganos. Com a abundância de informações criou-se uma espécie de império da cultura.
Nessa instância, alguns institutos elegem seus "especialistas", cuja palavra assume
conotações dogmáticas, gerando a ilusão da idéia acabada, da causa finita, e do "estamos
conversados". Isto, além de gerar um imobilismo de pensamento, que bloqueia o debate e
a pesquisa, assume, em muitos casos, uma feição de fanatismo radical e fundamentalista.
A esse respeito, há uma importante advertência do pensador judeu-francês Edgar Morin,
cuja filosofia se aplica à maioria das nossas questões : "Tenho constatado em mim um
crescente desconforto! É que passei a desconfiar de quem só tem certezas absolutas" . Na
melhor das hipóteses, este infalível é um despreparado e na pior hipótese, mesmo que
não o queira, é uma pessoa perigosa, porque sua visão é delimitada por aquilo que ele
pensa que sabe! 
Na contramão do raciocínio, há que os que afirmam que o ser humano não é livre, mas
condicionado a fatores, circunstanciais (emoções), acidentais (casos fortuitos)
comportamentais (interesses) e até irremovíveis (o destino). Como se vê, a propalada
liberdade de agir, é relativa. Relativa na medida em que vem condicionada por vários
fatores sociais, culturais e psicológicos. Também nas crenças religiosas, a virtude, em
alguns casos, é praticada nem sempre por vocação, mas por temor. Muitas vezes, por
detrás daquilo que as pessoas afirmam agir com isenção ou liberdade, está um poderoso
condicionamento ou uma irresistível coação moral. 
Na psicologia, existe uma figura curiosa chamada "síndrome de Estocolmo", em que o
seqüestrado se apaixona pelo seqüestrador, para assim livrar-se da tortura e da morte. Há
muita gente que age, não livremente, mas perfilada a um programa preestabelecido, para
não sofrer represálias e não ser excluída do grupo. Isto pode ser tudo, menos liberdade. 
Para contornar esse mascaramento da liberdade, onde a pessoa age até de forma
incoerente, com o objetivo de obter algum proveito, é preciso que se estabeleça um
ponderável "senso crítico", pois só assim o agente pode avaliar se age livremente ou
induzido pela ideologia de outrem. O condicionamento, com o tempo, anestesia a
capacidade de refletir, e a pessoa age segundo escolhas dos outros. 
Quando se estabelece uma análise teológica sobre o livre-arbítrio, uma pergunta sempre
aparece: por que existe o mal? Santo Agostinho formula uma questão que caracteriza
seus argumentos religiosos: o mal existe porque o homem não sabe usar adequadamente
sua liberdade. Sendo dotado de livre-arbítrio - prossegue o santo - ele não consegue
administrar esse dom. Esta é provavelmente a resposta mais comum dada pelos cristãos,
de todos os tempos, à questão do mal. 
A essência deste argumento é mais ou menos a seguinte: Deus concedeu o livre-arbítrio
aos seres humanos, e eles escolheram o mal por livre e espontânea vontade. Assim, o mal
foi criado livremente pelos humanos, e, por conseqüência, não é atribuível a Deus. Terá, e
a pergunta é crucial, o ser humano, condições de discernir entre a mão direita e a
esquerda? Sabe a pessoa, a essência valor ativa de todos os atos que pratica? Ora, se o
mal é criação do homem e este é criação de Deus, há alguma relação entre Deus e o mal?
A questão é que, propor o livre-arbítrio não vai realmente quebrar essa corrente causal,
simplesmente porque a mesma resposta admite que o livre-arbítrio seja algo criado por
Deus. Esclarecendo este ponto, vamos supor que o mal tenha sido mesmo introduzido no
universo pelos seres humanos. Então, por que eles criaram o mal? E por que, sendo
assim, eles tiveram essa capacidade de livre-arbítrio? Porque Deus os fez tê-la. Por que o
homem não disse não ao mal primevo? Sendo o mal uma obra do Diabo, por que Deus
não os protegeu desse ataque? Se o homem pecou por causa da liberdade, então o livre-
arbítrio é a causa da introdução mal. Ora, se Deus criou o livre arbítrio, ele criou também
o mal. A questão, entretanto, não é tão simples assim. A teologia cristã, e esse é o ponto
crucial, vai refutar: Deus não é a causa do mal, portanto, o mal não pode ser algo pelo
qual ele é responsável. Para essa objeção ser correta, de qualquer forma, se deve crer
que não é aceitável responsabilizar alguém pelos atos dos quais não é causa direta. 
A grande questão é que as teorias sobre a origem do mal e sua disseminação no mundo
são confusas, contraditórias e geralmente capazes, mais de dificultar o raciocínio do que
auxiliá-lo. Não é difícil identificar algumas raízes de livre-arbítrio nas páginas do Antigo
Testamento. O direito natural e a Bíblia já estatuíam: tens dois caminhos à tua frente...
escolhe o bem, e viverás... O homem sabe escolher? Se souber, por que a maioria escolhe
tão mal? Por sua capacidade de ser livre, o ser humano pode escolher outros caminhos,
rejeitando sua finalidade, abafando sua consciência, adotando outros valores. Nessa gama
de escolhas, o bem retrata a construção do próprio ser; é um crescer e, portanto, algo
real. O mal é um vazio; é a inexistência do bem, a falta do ser. Se o ser é, e o ser é o
bem, o mal - por negação do bem - não é. 

No contraponto, é possível argumentar: se não tivéssemos liberdade (a faculdade do livre-


arbítrio) seríamos como robôs, presos a um fatalismo inexorável, onde tudo estaria escrito
e só cumpriríamos o script. Sem o risco do mal e da perdição, seria o homem mais feliz?
Ou é esse risco-de-vida (ou seria risco-de-morte?) que torna a existência mais
emocionante? 

1
 O Maniqueísmo é uma filosofia religiosa sincrética e dualística que divide o mundo
entre Bem, ou Deus, e Mal, ou o Diabo. A matéria é intrinsecamente má, e o espírito,
intrinsecamente bom. Com a popularização do termo, maniqueísta passou a ser um
adjetivo para toda doutrina fundada nos dois princípios opostos do Bem e do Mal. Voltar 

CONCLUSÃO
A humanidade continua sua busca do sentido da vida e da história, do sentido da
existência do cosmos e de tudo o que nele existe, especialmente do próprio ser humano
na complexidade da história do cosmos. Multiplicam-se sem cessar artigos, livros, filmes,
canções, obras de arte, que alimentam o debate levando-se em conta a existência de
Deus nesta trama misteriosa do mundo e da vida humana ou negando-a, ridicularizando-a
e considerando toda e qualquer religião como uma invenção prejudicial ao ser humano.
Não obstante, a Igreja cristã, continua firme em sua fé e em sua missão, afirmando que o
mistério do ser humano só encontra sua verdadeira explicação e compreensão no mistério
do Verbo encarnado, isto é, no Filho de Deus que assumiu a condição humana na história
com o nome de Jesus de Nazaré (GS 22).
É a partir do olhar antropológico-teológico que detectamos o que a Revelação diz sobre o
ser humano no contexto da obra da criação: uma criatura feita no tempo e que não teve
existência espiritual antes da corpórea para usufruir da felicidade neste mundo e da glória
de Deus na vida eterna feliz. Os textos bíblicos não pretendem apresentar dados
científicos, mas mostrar o propósito de Deus, no relacionamento dele com os homens e,
mais ainda, a sua experiência no mundo como ser humano em Jesus Cristo e,
consequentemente, a identidade profunda e única do especificamente humano assim
enriquecido com a comunhão com Deus e que abre o ser humano definitivamente e de
modo privilegiado para a comunhão consigo mesmo, com os outros, com a natureza.
Sendo o ser humano, mais que, a soma das partes que é dada pelas ciências, sem dúvida
é um ser complexo, porém é um ser transcendente. Nenhum sistema finito poderá realizar
um ser criado para o infinito. O ser humano é criado finito, mas não fechado; esta
verticalidade, como abertura ao Criador, que o faz apontar para o céu, mesmo sendo da
terra, é distintiva do ser humano. A própria dignidade do ser humano está implicada na
sua condição de imagem e semelhança de Deus, mas de uma imagem de conformidade ao
Filho de Deus, naquilo que diz respeito ao seu modo de ser e agir. Santo Agostinho
expressou de uma forma simples maravilhosa o que é o desejo antropológico de cada
pessoa afirmando: "fizeste-nos para ti, [Senhor,] e inquieto está o nosso coração,
enquanto não repousa em ti".

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