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Imagens de um novo corpo – o pós-humano na obra de David

Cronenberg
Lillian Bento1

Resumo

Reconhecido como o cineasta da carne e do sangue, do medo e da dualidade homem/máquina, orgânico/


inorgânico, David Cronenberg apresenta em sua filmografia materiais densos sobre o conflito entre o corpo e
o cérebro e o surgimento de novas referências para o corpo biológico, constituindo o que seria uma estética do
pós-humanismo no cinema.  Autor de mais de uma dezena de filmes, dos quais também foi diretor, Cronenberg
aborda o corpo humano, suas transformações e os prazeres da carne como temas centrais nas seguintes obras:
Stereo (1969), Crimes of the Future (1970), Calafrios (1975) Rabid, enraivecidade na fúria do sexo (1977),
Fast Company (1979), The Brood (1979) Scanners (1981) Videodrome (1983), The fly (1986) Dead Ringers
(1988) Crash (1996) e ExistenZ (1999). O objetivo desse artigo é analisar até que ponto a representação do
pós-humano no cinema de Cronenberg aponta para a constituição de uma estética pós-humana no cinema.
Metodologicamente, a análise está centrada em The Brood (1979) - Filhos do medo, por ser considerado pelo
próprio diretor o filme que melhor representa seus desejos para o mundo e as relações hmanas. “Es mi guión
más autobiográfico” ( Rodley, 2000: 50). A hipótese desse estudo é que para exorcizar os males da doença e
da morte, Cronenberg aponta o estabelecimento da estética pós-humana no cinema.

Palavras-chave: David Cronenberg, The Brood, Corpo, pós-humanismo, cinema.

1. Introdução

2. O cineasta da carne-viva

Movido por uma inquietação diante da vida e da morte, da relação entre corpo e cérebro e da perecibilidade
do corpo humano, o cineasta canadense David Cronenberg traz para seus filmes novas propostas para a
relação do homem com seu corpo e de novos corpos. Os temas corpo, tecnologia, ciência, tecnogenética,
sexo, as enfermidades e a morte são recorrentes na obra do diretor, tantas vezes apontado pela crítica como
alguém obcecado por corpo, sexo e ciência. Desde seus primeiros trabalhos na Cinépix, produtora exploitation
canadense, em que produziu o curta Stereo (1969) e seu primeiro longa comercial Calafrios (1975), Cronenberg
traz o corpo como uma de suas principais temáticas.

Em entrevista a Serge Grünberg (2000), Cronenberg afirma ser o corpo o maior referencial para a vida. “Acredito
que no fim das contas é preciso ir ao corpo para verificar todas as coisas. É pelo corpo que verificamos a vida.
É pelo corpo que verificamos a morte.” (GRUNBERG, 2000:73). O diretor é autor do roteiro de onze de seus
longas metragem: Stereo, Crimes of the Future (Crimes do Futuro), Shivers (Calafrios), Rabid (Enraivecida
na Fúria do Sexo), Fast Company (Escuderia do Poder), The Brood (Filhos do Medo), Scanners, Videodrome,
sua mente pode destruir, The Fly (A Mosca), Dead Ringers (Gêmeos, Mórbida Semelhança), Crash (Crash,
Estranhos Prazeres) e ExistenZ, além de ter adaptado diversos roteiros de obras literárias que admirava e o
1 Estudante de pós-graduação - doutorado em Multimeios, no Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP), Campinas - São Paulo - Brasil. Email: lillianbento@gmail.com
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inspiraram para criar novos filmes: Naked Lunch (Mistérios e Paixões) e Cosmópolis.

Já em seus primeiros filmes, Cronenberg trouxe as temáticas da mutação genética, dos delírios sexuais, da
telepatia, da violência e do horror biológico. Em Stereo (1969) o cineasta antecipa temas que seriam caros a toda
a sua obra e começa a apontar para a discussão a respeito de um novo ser humano, que tem o corpo biológico
transformado, com capacidades ampliadas a partir de mutações genéticas. Para Perez e Gorostiza (2003) as
reflexões sobre as transformações do corpo humano é um tema que provoca cada vez mais inquietações na
obra de Cronenberg.

“El cuerpo como un almacén que puede albergar vírus que lo transforman en Rabia; o tumores linfáticos
provocados por el tratamiento psicoanalítico, la sobreestimulación de las descargas emocionales a través de la
rememoración de los recuerdos olvidados, em Cromossoma – 3. El cuerpo también como soporte de la droga,
que según William S. Burroughs en Almuerzo desnudo es un vírus maligno y puede resultar un magnífico
campo para la experiência de un enfrentamiento físico, donde el dolor se va intensificando como en Crash.”
Segundo o próprio Cronenberg, em entrevista a Handling (1990), as transformações do corpo tratam de muitas
das inquietações frente a dualidade entre cérebro e corpo. Ele afirma que a base do terror para a humanidade é
o fato de não ser possível compreender a morte. “Como é possível que um homem morra tendo uma falência
física, enquanto seu cérebro conserva absoluta nitidez e clareza” (Rodley, 2000: 130).

Em Calafrios (1975), com a possibilidade de fazer um filme comercial, Cronenberg volta a evocar suas
estranhas criaturas biológicas ao retratar um estranho vírus que toma conta dos corpos de turistas e moradores
de um condomínio fechado no Canadá. Lentamente as vitimas sucumbem à loucura e sofrem acessos de
violência e desejos sexuais incontroláveis, convertendo-se em verdadeiros mutantes aficcionados por sexo.
Uma vez contaminadas, esse grupo de pessoas que prezava pela assepsia e era movido por buscas financeiras se
transforma em um grupo de pessoas com corpos mutantes que se proliferam a medida que o vírus é espalhado.

Rabid: Enraivecida na Fúria do Sexo (1977) é lançado apenas dois anos depois de Calafrios e é apontando
como parte importante na constituição de um período fértil para Cronenberg quanto a essas questões sobre
mutação genética e da possibilidade de pensar um ser humano geneticamente modificado, pensar um corpo
pós-biológico. Com uma atitude ainda mais desafiadora, o diretor convida a consagrada atriz pornô Marilyn
Ghambers para ser a protagonista do filme. Ela vive uma mulher sensual, que após sofrer um acidente de moto
se torna em cobaia de um experimento tecnogenético e se transforma em uma mulher-mutante. A protagonista
de Rabid é levada para uma clínica especializada em cirurgia plástica, de propriedade do Dr. Dan Keloid, que
trabalha no desenvolvimento de uma pesquisa para a transformação genética da pele humana, criando um
novo tecido capaz de substituir qualquer órgão do corpo humano. Após sofrer a intervenção de um desses
enxertos, a protagonista passa por uma mutação genética e desenvolve uma espécie de tentáculo fálico nas
axilas e a partir de então passa a se alimentar apenas de sangue humano, que ela obtém ao perfurar suas
vítimas com esse tentáculo. As vítimas desenvolvem uma espécie de raiva humana e sofrem deformações até
morrerem pouco tempo depois.

Nesse trabalho, Cronenberg dá um passo além na discussão sobre o corpo humano e consolida essa busca
tanto temática quanto estética que seguirá presente em seus próximos filmes. Surge novamente a discussão
sobre o futuro do corpo humano a partir da intervenção da ciência e da tecnologia. Entre os aspectos mais
importantes desse filme está o debate sobre a falta de controle do homem em relação à ciência. O cientista cria
algo para transformar o humano em um super-humano, sempre mais forte para suportar e superar doenças ou

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acidentes. No entanto, o experimento científico foge ao controle do homem que tentava dominar o corpo e que
termina dominado e aniquilado por ele. Em 1979, com The Brood: Filhos do Medo, o diretor trata dos avanços
e riscos da telepatia e da parapsicologia.
“The Brood reúne vários dos compontentes que integram a fórmula explosiva do laboratório cronenberguiano. Comparecem,
aqui, as ambições desmedidas da ciência, um médico alucinado que manipula e modifica as entranhas de uma mulher, e a
consequente produção de monstruosidades mutantes acompanhadas de forças nefastas, que escapam ao controle da razão
humana e inibem qualquer plano lógico de ação.” (in: www.carneviva.com)

No filme, o psiquiatra Dr. Hall Raglan trata seus pacientes a partir de um método inovador - ele estimula
o sentimento de raiva humilhando-os, até que esses sentimentos sejam materializados em forma de feridas
na pele e outras manifestações corpóreas. O fenômeno revela o poder e o domínio da mente sobre o corpo,
que seria usado para um tratamento de complicações e distúrbios mentais. Em meio a essa trama o recém-
divorciado, Frank Caverth fica intrigado com o surgimento de estranhas criaturas semelhantes a crianças, mas
com rostos envelhecidos e monstruosos que são capazes de matar e torturar pessoas com as quais Nola, a
paciente de Dr. Hall, tenha desavenças psiquicas. Após o divórcio ele leva sua filha Candice, de 5 anos, para
visitar a mãe, internada no hospital psiquiátrico do Dr. Hall. Ao chegar em casa ele percebe que a filha tem
hematomas pelo corpo e volta ao hospital para falar com a ex-esposa, mas é impedido de vê-la. A situação
fica pior quando essas criaturas, que se vestem como sua filha Candice, invadem a escola da menina e matam
a professora.

O mistério é resolvido quando Frank descobre que Nola, submetida a terapia do Dr. Hall, materializava
essas criaturas em uma espécie de útero externo acoplado a seu abdôme. O fenômeno ocorria quando Nola
manifestava sua raiva e teria ligação direta aos abusos que Nola sofria quando criança, colocando o pai e a
mãe da personagem como os desencadeadores dos seus distúrbios psíquicos. The Brood reforça ainda mais a
admiração que Cronenberg tem da Psicanálise, sempre citada em seus filmes ou inspiradora de suas tramas.

3. Pós-humano – a busca da nova carne: elucidando conceitos

As discussões sobre o corpo pós-biológico seguem para além do cinema e do domínio das artes. Para o filósofo
Jair Ferreira dos Santos (2003) a noção contemporânea de corpo está sendo reconfigurada a partir dos avanços
nas ciências da computação, na microeletrônica, na comunicação e na biotecnologia. No livro Culturas e artes
do pós-humano (2003), Lucia Santaella afirma que o pós-humano surge frente ao corpo biológico, que se torna
obsoleto e dá lugar ao corpo biocibernético2. A autora afirma, ainda, que ao transgredir as fronteiras entre o
natural e o artificial, esse ciborg coloca em questão o dualismo entre o orgânico e o inorgânico, evidenciando
que não há mais natureza, nem corpo no sentido iluminista dos termos. (Santaella, 2003: 187).
“Séculos de humanismo tornaram o homem referência única para o homem, numa autocontemplação
um tanto autista. Aquém dele estão os animais, além dele estão os deuses ou, com maior probabilidade,
apenas o Universo fascinante e razoavelmente infenso ao conhecimento. Mas depois do humano teríamos
precisamente o quê? Um novo ser ou animal que o sucederia no mundo natural? O Homo sapiens expulso
da História pelo Robô sapiens e os supercomputadores? Uma paisagem assolada pela devastação onde a
vida assumiria formas surreais? O pós-humano flutua numa atmosfera semântica que nos leva a anexá-la
sempre, com um ligeiro desgosto ao inumano.” (Santos, 2003: 58)

Adauto Novaes na apresentação do livro O Homem-Máquina: A ciência manipula o corpo (2003) afirma que

2 “No seio das reconstituições da vida social e cultural, uma questão candente, que tem ocupado a mente dos teóricos e a
imaginação dos artistas, está voltada para as transformações pelas quais o corpo humano está passando e, Segundo os prognósticos,
ainda deverá passar. O corpo humano se tornou problemático e as inquietações sobre uma possível antropomorfia têm estado no
centro dos questionamentos sobre o que é ser humano na entrada do século XXI. A esse corpo sob interrogação estou aqui chamando
de corpo biocibernético.” (SANTAELLA, 2003: 181)

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vivemos um tempo em que a Biopolítica é um conceito dominante e mobiliza além da ciência, lutas políticas
e estratégias econômicas. Ao evocar-se a relação entre o homem e a tecnologia é a própria forma da vida que
está em jogo.
“O próprio conceito de cultura genética, que, ao longo da história do pensamento, procurou opor-se à idéia de natureza,
tende hoje a se dissolver e dar lugar aos “objetos técnicos”. Tudo caminha – principalmente o corpo- para o artifício. Ou
melhor, observamos o início de uma substituição do Ser e de suas experiências de vida – isto é, da antiga relação, em nós,
da natureza e do espírito (espírito entendido como inteligência, potência de transformação) – por mecanismos implantados
em nós.” (Novaes, 2003: 8)

Para João Luiz Vieira (2003) o cinema transforma o corpo humano e o corpo das coisas ao construir espaços
de luz e sombra, escuridão e visibilidade, criando, assim, uma geometria de formas, volumes, texturas e linhas
em uma “relação epistemológica entre o olhar cinematográfico e o olhar da anatomia”. Desde de filmes que
buscaram um realismo para tratar do interior do corpo humano, como Viagem fantástica (1966), de Richard
Fleischer e Viagem insólita (1987), de Joe Dante, até as primeiras ficções da história cinematográfica criadas
por Georges Mélies, que fazia corpos desaparecerem, cabeças aumentarem e realizava desmembramentos,
diversos filmes apresentam essa fascinação pelo corpo.
“O corpo como atração encontra-se assim presente desde os primórdios do cinema, constituindo-se em sua maior atração,
conforme o termo empregado por Tom Gunning (1955). Desde os primeiros tempos, o cinema foi antropomórfico,
materializando na tela imagens do corpo humano que agradavam aos espectadores. A história do cinema demonstra quanto
buscamos prazer ao ver o corpo humano projetado numa tela, quanto nos identificamos com esse duplo projetado.” (Vieira
in Novaes, 2003: 323 - 324)

Em 1910 Thomas Edison foi o primeiro a adaptar para o cinema o clássico Frankenstein, de Mary Shelley
apontando para a criação de seres humanos a partir de animais. As inquietações e temores a respeito dos
avanços da ciência também esteviveram presentes na temática cinematográfica desde os primeiros tempos.
Em 1920, O médico e o monstro trata dos avanços da ciência a partir do horror e coloca em xeque as melhorias
científicas. Ao mesmo tempo em que há uma celebração dos ideais de velocidade, produtividade e eficiência, o
cinema passa a questionar esses novos ícones da sociedade de consumo, tratando também da ansiedade gerada
por essa aceleração da tecnologia.
“Como observamos, a ficção científica no cinema tem chamado atenção, desde seu início, para a natureza problemática do
ser humano e a tarefa difícil que é ser humano. Ao mesmo tempo que as certezas sobre nós mesmos se tornam cada vez
mais efêmeras, o mesmo acontece com o agir de forma humana. A ficção científica enfatiza o artifício, com um fascínio
absoluto pelo nosso próprio nível de construção.” (Vieira in Novaes, 2003: 331)

Com uma eficaz combinação de linguagem, iconografia e narração, Cronenberg ao mesmo tempo promove
a estetização e a investigação desse novo corpo, desse ser pós-humano. Longe de substituir o corpo, essas
tecnologias pós-industriais são tratadas nos filmes do cineasta como algo que intensifica a experiência visceral
das transformações e uso do corpo no mundo.
“O espaço narrativo nos filmes de Cronenberg produz uma complexa função metafórica na medida em que a expressão,
ou o desejo, do corpo é espacializada e interpelada pelas forças do espetáculo num jogo dialético de mostrar aberrações,
anomalias, cortes, feridas, reentrâncias e vísceras.” (Vieira in Novaes, 2003: 336)

Assim, com esse cinema literal e visceral, Cronenberg não poupa o espectador dos detalhes das diversas
metamorfoses por que passam os corpos presentes em seus filmes, criando uma carne fluída, aberta à novas
formas orgânicas e passível de transformações da biotecnologia.

4. The Brood e a materialização dos novos corpos

Ainda que, declaradamente David Cronenberg não tenha tido a intenção, The Brood (1979),  é o filme mais

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autobiográfico de sua carreira. Escrito quando o cineasta passava por um processo de divórcio e lutava pela
guarda da filha, o filme trata dos conflitos do casal Nola e Frank Carveth, que vivem o processo de divórcio ao
mesmo tempo em que ela passa por um tratamento psicológico inovador e bizarro que a transforma em uma
espécie de mulher-mutante. O marido luta pela guarda da filha. Cronenberg passava pelo mesmo processo e
afirmava temer o futuro da menina porque a ex-mulher havia entrado para uma espécie de seita zen budista e,
segundo o próprio diretor, não teria condições psicológicas para cuidar da menina.  “Não pensava que minha
ex-mulher estivesse em condições de ocupar-se da menina devido a seu estado, por causa dos esforços que
tinha que fazer para ocupar-se de si mesma”, disse o cineasta em entrevista a Grunberg em 2000.

Da realidade para a ficção, The Brood é uma espécie de exorcismo. Uma obra visceral em que o diretor
materializa angústias de forma grotesca trazendo para a tela criaturas monstruosas e corpos bizarros
cientificamente modificados.  No livro O Artista como Monstro (2006),  William Beard afirma que todo esse
envolvimento de Cronenberg pela guarda de sua filha, levou o diretor a se afastar pela primeira vez de uma
esfera social e tratar de uma calamidade pessoal, sem deixar, no entanto, de tratar da relação entre o corpo e
a mente, tema central em sua obra. “Esse movimento é acompanhando por uma grande mudança de tom. The
Brood  é menos colorido, menos irônico, muito menos Filme B de horror genérico, mais sério e concentrado,
mais sombrio, mais angustiante. (…) Na verdade o que ele  (Cronenberg) apresenta é uma paisagem psíquica
maldita onde o sofrimento e a perda estão em todos os lugares e onde não há nenhuma perspectiva de alívio –
nem no passado, nem no presente, nem no futuro.” (BEARD, 2006: 71)

A partir de um método desenvolvido pelo psiquiatra Dr. Hal Raglan, fundador do Instituto Somafree, os
pacientes passam por mutações corpóreas, que acontecem a partir da materialização da ira, princípio básico
do método apresentado no filme. O médico incentiva os pacientes a darem formas físicas a todo o ódio e
medo presentes no inconsciente de cada um. Assim, esses pacientes são levados a produzir feridas e tumores
cancerosos, de aspecto grotesco, até mesmo pequenos monstros, os “filhos do medo” no caso da protagonista
do filme, a paciente Nola Carveth, que desenvolve uma espécie de útero externo, acoplado a seu ventre, que
a permite gerar crianças com corpos monstruosos, que crescem até o tamanho de uma criança de cinco anos,
alimentadas apenas por um reservatório de energia, onde é depositada a ira da paciente. Essas criaturas infantis
representam a encarnação ambulante de seus sentimentos internos e são completamente comandadas pelo
inconsciente da personagem.

Esse tipo de criatura controlada por forças externas é um dos elementos presentes na Ficção Científica B da
década de 1950, que influenciou a formação e o trabalho de Cronenberg. Em Invasores de Corpos, também
traduzido como Vampiro de Almas, de 1956, dirigido por Don Siegel, por exemplo, invasores alienígenas
promovem uma substituição de pessoas por outras iguais fisicamente, porém, sem impressão digital, sem
alma e que eram comandadas por forças desconhecidas, representando uma ameaça para a humanidade.
Em O Planeta Proibido, também de 1956, de Fred M. Wilcox os medos e criaturas do inconsciente são
materializados como uma força desconhecida que vaporizou quase todos os membros da expedição àquele
planeta desconhecido. “Não havia me dado conta de que o filme tem uma premissa similar a Planeta Proibido
tanto que escolhi esse nome para o colégio (...) então fiz a conexão: criaturas do inconsciente, fazendo do
mental físico.” (Sammon, 1981:31)

Da mesma forma, em Filhos do Medo, as crianças deformadas de Cronenberg possuem faces monstruosas e
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nascem das entranhas do corpo modificado de Nola, passando a viver alimentadas por seu inconsciente. Tudo
promovido pelo método do Dr. Raglan que, levado a extremos lógicos, resulta uma vez mais na criação de
uma força destrutiva anti-racional que ataca sem pensar e gera uma calamidade que, apesar de estar centrada
no drama de Frank e Nola, representa uma ameaça potencial para a humanidade.

Na construção de sua história, Cronenberg revela a natureza dessas criaturas, gradativamente, criando, assim,
uma atmosfera de suspense que logo é revelada ao espectador, mas permanece misteriosa para os personagens,
um recurso cinematográfico clássico e muito utilizado nos filmes de horror para extrair da impotência dos
personagens, as consequências da trama. O primeiro indício da monstruosidade das criaturas é a mão de uma
delas, que aparece no momento em que ela mata a mãe de Nola, a primeira vítima de seu desejo inconsciente
de vingança.

Uma mão primitiva coberta com uma pele enrugada e ao mesmo tempo infantil. Ela segura com força e firmeza
um martelo de cozinha e golpeia a vítima até a morte. Com o desenrolar da trama, as características físicas
das criaturas são reveladas até que, após golpearem e matarem o pai de Nola com um objeto de decoração,
Frank encontra uma das criaturas mortas e a face deformada daquele humanóide é revelada pela primeira vez
– de uma aparência monstruosa e grotesca causa repulsa em Frank. Na sequência, essa criatura é examinada
em uma clínica, onde é revelada sua natureza não humana - ela não tem umbigo, o que demonstra que nunca
nasceu, ao menos não como nasce um humano, não enxerga cores e possui uma espécie de reservatório de
energia que não a permite viver muito.

Em The Brood essa intencionalidade maligna, que provoca mortes e destruição não vem desses pequenos
monstros, que vivem com uma mínima reserva de energia, a força maligna vem da ira de Nola, que os gerou.
É, portanto, no interior de Nola que reside esse mal. Assim como as Ficções Científicas B dos anos 1950
tratavam do inconsciente como uma especulação, em uma sociedade que estava descobrindo a Psicanálise,
Cronenberg traz também esse tom de descoberta ao tratar dos perigos do desejo humano levado a cabo. No
período em que trabalhava no filme, Cronenberg realizava suas primeiras leituras da obra de Freud, que esteve
presente em toda sua carreira de forma subjetiva e até mesmo de maneira direta, como quando em 2012 ele
realiza o filme Um método perigoso, sobre a relação pessoal e intelectual de Freud e Jung.

Outra influência dos filmes de Ficção Científica B é a presença do conhecido cientista maluco. Dr. Raglan,
criador do Instituto Somafree, é o personagem que conduz a intervenção da ciência no corpo, pelas mãos de
quem a nova carne poderia ser materializada. No entanto, ao perceber que perde o controle do próprio método
tem sua imagem associada ao colapso tecnogenético, principalmente nos jornais que começam a noticiar as
mortes, ele busca conter os pequenos monstros. Sua vaidade, quase inabalável, o leva a seguir com seu método
até as últimas consequências – as mortes do pai e da mãe de Nola, da professora de Candy, de Nola e a própria
morte.

“O caráter de Dr. Raglan marca também uma ampliação da figura do cientista homem e controlador que
inventa e inicia o projeto médico experimental. (...) Além disso, há algo irônico ou até mesmo cômico sobre
cada um desses projetos científicos e os próprios cientistas.” (Beard, 2006: 88) Raglan devido a sua soberba
busca o lado perverso da ciência e cria esse espaço repleto de enfermos que o tem como verdadeira e única
salvação. Um deles chega a dizer: “esse homem é um gênio, um gênio de verdade”. Autor do livro O Rosto da
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Ira, que aparece em diversas cenas, tomado de vaidade o medico acredita em sua própria genialidade até ser
morto pelas criaturas que criou – é a derrota da ciência, sempre questionada nos filmes de Cronenberg.

Essa ironia, também uma das marcas do diretor, conduz a um final ameaçador, uma vez que, cessado o perigo
maior, com as mortes de Nola e do próprio Dr Raglan e o extermínio das criaturas, o espectador é conduzido
pelo olhar da câmera a perceber que das mãos de Candy brotam feridas parecidas com os primeiros sintomas
da doença da mãe, Nola. Depois de viver toda aquela situação de tensão, a menina levará marcas psicológicas
e não há como saber como elas se manifestarão no futuro. Trata-se de um devir sempre presente nos filmes
do diretor, como quando em A Mosca (1986) a namorada do cientista revela estar grávida de um ser que é
híbrido entre humano e mosca. O que irá nascer? Não é possível saber, a ciência saiu do controle humano e as
mutações grotescas devem continuar à revelia dos controles humanos.

Para Muniz Sodré e Raquel Paiva, no livro O Império do Grotesco (2004) há nos filmes do diretor uma
mistura dos elementos do horror, do fantástico e do terror biológico, o que faz com que sua obra esteja
situada “a maio-caminho entre a fantasia, o terror e grotesco”. (p. 95) “Meio-caminho porque não há neles
a determinação rígida de um gênero ou a presença do sobrenatural típico das histórias de terror (...), mas
registram-se elementos dessas categorias, com predominância de uma constante típica do grotesco, ou seja, a
corporalidade tematizada em aberrações orgânicas e simbioses do mecânico com o humano.” (p. 96) Trata-se
de um grotesco centrado no corpo pós-biológico. Esse corpo modificado pela ciência e pela tecnologia e que
ultrapassa a dimensão física conhecida.

Todas essas mutações levam ao medo, que para Luiz Nazário (1986) trata-se do Medo da transformação,
porque quando se processa num corpo humano uma mutação há também uma consequente perda da identidade
ou caráter, uma degradação física e muitas vezes moral, no entanto, quando observamos a filmografia de
Cronenberg percebe-se que para o diretor a transformação física mais que suscitar uma estética do medo,
há uma busca por uma estética de um novo corpo humanno. “Estou falando da possibilidade de que ao ser
humano seja possível a vontade, ainda que demore cinco anos para completar essa transformação. A força da
vontade nos permitirá mudar nosso físico” (Cronenberg in Rodley, 2000: 133). Para o diretor a inquietação do
humano frente ao próprio corpo biológico move a humanidade para construir uma nova casa, um novo corpo
por não aceitar essa espécie de enfermidade chamada morte.

5. Conclusão

Se no cinema o corpo humano é dissecado pela câmera e reconstruído durante o processo de montagem,
criando um novo corpo, ao pensarmos o cinema de David Cronenberg esse a projeção do corpo na tela torna-
se ainda mais central. O olhar da câmera para esse corpo mutante e hedonista é ainda mais pulsante. Ele cria
assim uma imagem corpo-mutante a partir das relações do homem com a tecnologia, com os prazeres e com
a própria centralidade desse corpo, que é protagonista. Um corpo que sente, que pulsa, que se move em busca
de formas para suprir sua própria perecibilidade.

Em Filhos do Medo (1979), David Cronenberg volta a câmera para esse corpo-mutante, que se transforma
inicialmente para dar liberdade a mente, para promover a cura psíquica e libertar o paciente das mazelas da
ira. Presenciamos, assim, a materialização dessa raiva a partir de uma conexão direta entre o cérebro e o corpo,
que passa a ser, então maltrado e sofre as consequências desse método de tratamento. Enquanto alguns corpos
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são tomados por feridas cancerosas e purulentas, o corpo da protagonista Nola Carveth passa a produzir novos
corpos, movidos por sua psiquê e que são capazes até de matar as pessoas que provocaram na paciente algum
tipo de distúrbio psiquíco, que despertam a ira.

6. Bibliografia

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XAVIER, Ismail (org.). A Experiência do Cinema. São Paulo: Graal Editora, 3ª ed., 2003.

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