Você está na página 1de 5

RECORTES (conceito de fantasia) – Livro: Fundamentos da Psicanálise, vol. 2.

Parte I, cap. 3 e 4.

A passagem do instinto para a pulsão é tributária de uma perda sofrida por


nossa espécie, a partir da qual se instalou uma falta em todos os seus
indivíduos. Trata-se de uma falta que está na origem e, por isso, opera como
causa do desejo.
Contudo, o saber inconsciente – o simbólico –, que vem tentar preencher a
falta de saber instintual em nossa espécie, apresenta um ponto de não-saber –
real – em torno do qual toda a estrutura orbita: trata-se, precisamente, da
diferença sexual que se recusa ao saber. Esse ponto de não-saber que é,
portanto, evasivo ao simbólico, é o que devemos considerar como sendo o
próprio núcleo do inconsciente – o real.
É nesse sentido que Freud menciona, desde seus “Três ensaios”, as chamadas
teorias sexuais infantis, que são tentativas da criança de produzir um saber
sobre o enigma da diferença sexual, aquilo que precisamente não possui saber
inscrito e escapa radicalmente à possibilidade de inscrição.
No trabalho que venho desenvolvendo de retomada dos fundamentos da teoria,
construí outro emparelhamento, entre inconsciente e pulsão, por um lado –
como dois conceitos fundamentais da teoria da psicanálise; e entre
transferência e repetição, por outro – como dois conceitos fundamentais da
clínica da psicanálise. O objetivo é destacar dois níveis bastante distintos – um
nível teórico (ou metapsicológico), e um nível clínico, ambos apresentando uma
região de interseção primordial: entre inconsciente e pulsão, uma região de
interseção na qual situamos o real; entre transferência e repetição, uma região
de interseção na qual situamos o sintoma.
Na experiência psicanalítica, não temos acesso direto ao primeiro nível, isto é,
não temos acesso imediato ao inconsciente e à pulsão. A esse nível só temos
acesso indiretamente através do segundo nível, o da transferência e da
repetição, que representam a tradução do inconsciente e da pulsão no campo
da clínica. Pois a experiência da psicanálise nos dá um acesso contínuo,
inegável – até poderíamos dizer palpável – às dimensões da transferência e da
repetição.
Se o inconsciente é um saber, a transferência é, na verdade, transferência
desse saber, transferência do saber inconsciente, o que, aliás, dá ao próprio
termo “transferência” todo o seu sentido, pois transferência significa, desde o
seu primeiro uso por Freud, em A interpretação dos sonhos, deslocamento de
um lugar para outro.
A pulsão é uma radical exigência de satisfação exercida pela pressão
imperiosa de sua força constante, a libido. E, nesse sentido, podemos afirmar
que a fantasia é uma das formas privilegiadas de satisfação da pulsão.
Destacada com insistência por Freud, a onipresença da fantasia em nossa vida
psíquica, desde os mais banais devaneios (fantasias conscientes) do cotidiano
até o sonho – pois o núcleo do sonho é constituído pela fantasia inconsciente
–, dá provas da contínua busca de satisfação a que a pulsão impele nosso
aparelho psíquico. A fantasia é o efeito mais imediato do fato de haver
insatisfação – constante – da pulsão, é a ela que recorremos continuamente na
tentativa de apaziguar um pouco a radical demanda de satisfação da pulsão.
O que se depreende desses textos é que a fantasia representa a busca de
satisfação da pulsão no que esta se acha submetida ao princípio de prazer.
Temos aí a pulsão em sua face de pulsão sexual, ou, dito de outro modo, da
pulsão de morte sexualizada. Como a insatisfação da pulsão é algo que
sempre persiste, pois a pulsão não consegue obter o objeto que a satisfaria
plenamente – esse objeto é um objeto perdido desde sempre, no dizer de
Freud –, a repetição será a forma por excelência de comparecimento da pulsão
na experiência clínica.
Para ele (Lacan), toda pulsão é pulsão de morte, pois ainda que muitas vezes
ela se revele pela faceta sedutora e fascinante da pulsão sexual (que é, em
última instância, o verdadeiro nome das pulsões de vida), no fundo, o que a
pulsão deseja obter através do objeto sexual é o objeto impossível – das Ding.
A insistência da pulsão em se satisfazer acaba por produzir o sintoma, uma
forma de gozo onipresente na neurose, que representa o retorno da moção
pulsional recalcada. Já na perversão, negativo da neurose, o gozo se realiza
diretamente pela colocação em ato da fantasia. A fantasia é a matriz perversa
da neurose, por isso Freud insiste em nos lembrar que a neurose é o negativo
da perversão.
A repetição é o fenômeno clínico que dá acesso à dimensão da pulsão, do
mesmo modo que a transferência é o fenômeno clínico que dá acesso à
dimensão do inconsciente.
O sintoma favorece igualmente a homogeneização entre transferência e
repetição. Pois o sintoma é o que se repete na transferência. Daí seu valor
fundamental na psicanálise, uma vez que ele presentifica, na clínica, o real da
estrutura, o que é uma das formas de se entender a afirmação de Lacan de
que “a clínica é o real enquanto impossível de suportar”. A entrada na análise
se dá pela via do sintoma e a análise do sintoma revela sempre, como nos
mostrou Freud, a fantasia a ele subjacente. Se a análise opera, por si mesma,
a travessia da fantasia, ela desemboca no real que sustenta a estrutura
psíquica, não-toda estruturada como uma linguagem pelo simbólico.
Na psicose, a ausência de entronização da fantasia – de realidade psíquica – é
o que está na base da irrupção avassaladora do real. É essa dimensão do real
que constitui essencialmente a psicose, e não o delírio, que já representa uma
tentativa de reconstituir a matriz simbólica da fantasia.
Na perversão, o não recalque da fantasia é o responsável por essa estrutura
ser, para Freud, o “positivo” da neurose. A fantasia constitui a matriz perversa
da neurose, ela ocupa na perversão o mesmo lugar que o sintoma ocupa na
neurose, e o delírio, na psicose. Ao tematizar a distinção entre neurose e
perversão, diz Lacan: “O neurótico é alguém que não chega ao que para ele é
a miragem onde ele encontraria satisfação, é, a saber, uma perversão, uma
neurose é uma perversão falha.”
A distinção entre fantasia e delírio, que nem sempre é fácil de ser estabelecida
– e que tenderíamos a colocar na conta do acesso à realidade que a primeira
proporciona e o segundo não –, deve ser introduzida na relação que ambos
mantêm com o real.
A fantasia e o delírio constituem, ambos, modos de defesa em relação ao não-
senso do real. Ocorre que a fantasia, sendo efeito da operação simbólica do
recalque originário, preserva a capacidade de dialetização própria ao simbólico:
na fantasia, o sentido se manterá em sua dimensão eminentemente simbólica
de duplo sentido. Já o delírio apresenta um simbólico amputado desse poder
de dialetização, o que o torna altamente imaginarizado na paranoia – o sentido,
no delírio paranoico, será rígido e sem brechas –, e altamente “realizado” na
esquizofrenia – o não-senso radical do delírio esquizofrênico.
Como afirmamos anteriormente, a fantasia fundamental é uma espécie de
denominador comum de todas as fantasias subjacentes aos sintomas que
foram destacadas na análise. Mas, nesse sentido, ela “não pode ser resgatada
pela análise tal como se dá com as fantasias subjacentes aos sintomas, sendo,
em vez disso, o fruto de uma verdadeira construção por parte do psicanalista e
do analisando ao término da experiência”.
A fantasia fundamental, concebida por Lacan como “o que instaura o lugar
onde o sujeito pode se fixar como desejo”, pode ser considerada uma espécie
de prisão domiciliar do sujeito: nela ele se encontra confortavelmente instalado,
rodeado pelos objetos investidos por sua libido e pelos objetos que lhe são
familiares, desfrutando de uma tranquilidade que beira a inércia – mas está
preso! Em seu interior, ele segue uma vida regida pelo princípio de prazer,
mas, sem se dar conta disso, encontra-se radicalmente limitado por tudo aquilo
que é prazeroso. O sujeito só perceberá que se trata efetivamente de uma
prisão ao fim da análise. Também é bastante comum ouvir-se no cotidiano
alguém dizer: “Tudo o que eu quero é paz!” Analiticamente, é possível ouvir
nesse pedido de paz o eco de outro pedido: “Não me tirem de meu conforto
fantasístico.”
Com a travessia da fantasia, o sujeito passa a ter um domicílio que não é mais
uma prisão domiciliar: isso significa que a estrutura da fantasia inconsciente
permanece um lugar de referência privilegiado para o sujeito no qual ele pode,
doravante, entrar e sair quando quiser, já que não se acha mais encerrado em
seu interior. Trata-se de uma redução brutal de sentido, constituído pela
articulação simbólico-imaginária, para fazer face à falta de sentido do real.
Na neurose, o sujeito tem acesso ao real através de determinadas figuras
clínicas repertoriadas por Freud – os sintomas e a angústia. Os sintomas
representam e, ao mesmo tempo, elidem o real na vida cotidiana do sujeito, ao
passo que a angústia implica a emergência, ainda que pontual, do real. Ela é
sinal, alarme de que algo da ordem do não-senso está prestes a esburacar a
homeostase psíquica constituída pela massa consistente de fantasias. Ela
pode ser igualmente da ordem de uma invasão súbita, abrupta e devastadora –
como nos violentos ataques de angústia que ocorrem em algumas histerias de
angústia, hoje travestidas pela nova denominação de síndrome ou ataque de
pânico. Sintoma e angústia se alternam, nos diferentes quadros de neurose,
nessa possibilidade (sintoma) e impossibilidade (angústia) de tamponar o real.
Conseguem mais êxito na neurose obsessiva, menos na histeria de conversão
e quase nenhum na histeria de angústia.
Uma história proveniente da observação cotidiana é extremamente
esclarecedora em relação à questão da perda de gozo inerente à entrada do
sujeito no campo da linguagem, sobre a qual Lacan tanto insiste. Um menino
de cinco anos olhava atentamente o irmãozinho de leite mamando, cena de
inveja e ciúme primitivos que já inspirou tantas observações famosas, de santo
Agostinho a Lacan. Ao ver essa cena, ele vira para a mãe e diz: “Mamãe, eu
também quero mamar!” E a mãe, surpresa com sua súbita manifestação,
exclama afetuosamente: “Mas você já mamou!” E ele diz, na bucha: “Mas eu
não sabia!”
Se a fantasia é um elemento que se instaura para a criança como uma
verdadeira contrapartida ao gozo que ela perdeu, a fantasia se constrói,
essencialmente, como uma fantasia de completude.
Faço a hipótese de que, na neurose, a fantasia de completude é, em essência,
uma fantasia de completude amorosa. O neurótico quer resgatar a completude
perdida pelo viés do amor, por isso ele se fixa no amor. Dito de outro modo, ele
se fixa no polo inconsciente da fantasia e elide o polo do gozo da fantasia.
O perverso tem uma fantasia de completude de gozo, ele almeja resgatar a
completude (supostamente) perdida pelo viés do gozo, através do ancoramento
fixo num determinado objeto a, pois o objeto a, precisa Lacan, “é aquilo que,
quaisquer que sejam as ditas perversões, está lá como causa delas”. Mas a
fantasia tem dois lados: ela é uma salvação, mas também é patogênica. Pelo
próprio fato de ter salvado o sujeito da derrelição (abandono) absoluta à qual
estava fadado pela pulsão de morte, ele vai agarrar-se a ela com unhas e
dentes – isso mantém uma relação com o que Freud chamava de fixação.
Agarramo-nos à fantasia com tanta intensidade que a tornamos o reduto mais
importante de nossa vida e passamos a produzir uma série de “sintomas”, que
consistem na perpetuação constante da nossa relação com a fantasia. Por isso
mesmo, a análise propõe a travessia da fantasia, através da qual o sujeito
tenha acesso a algo mais além desse reduto restrito no qual se acha confinado.

Você também pode gostar