I. Freud destaca ser corriqueira a apresentação em análise,
por histéricos e neuróticos obsessivos, de questões da infância relativas a crianças que teriam apanhado de alguém. Em se tratando de fantasias, destaca-se a presença de sentimentos de prazer associados.
A situação imaginada apresenta elementos masturbatórios,
inicialmente de forma voluntária, posteriormente contra a vontade do sujeito. Assim, há resistências, vergonha e culpa ao admitir e comunicar tais ocorrências e sentimentos.
Entendia Freud que essas fantasias começariam a ser
desenvolvidas antes da idade escolar da época, entre os cinco e seis anos de idade, tanto que, ao vislumbrar agressões de professores a outros alunos, as fantasias dos colegas se tornariam mais vívidas, inclusive ampliando-se a quantidade de narrativas desse teor.
Todavia, ainda que evocassem prazer e satisfação
autoerótica, as fantasias de espancamento não eram totalmente favorecidas pelas cenas de castigos físicos que os alunos comumente presenciavam, ou seja, mesmo que despertassem alguma excitação, elas, predominantemente, provocavam repúdio. Nas fantasias, aliás, quem era espancado geralmente não sofria lesões de maior monta.
No ambiente familiar, embora menos ausente das
declarações das crianças, também teriam elas experimentado, seja por intermédio de irmãos seja pelos próprios pais, situações envolvendo alguma violência física.
II. A fantasia de espancamento que surge na infância por
circunstâncias casuais pode ser mantida na vida adulta para fins de autossatisfação erótica. Esse componente da função sexual é uma antecipação no desenvolvimento natural da sexualidade, que pode, inclusive, ser fixada psiquicamente no sujeito. Doutro lado, essa característica prematura, que pode ser tida como uma espécie de perversão, é passível de ser posteriormente submetida ao processo repressor, modificada pela formação reativa ou sublimação. Não havendo êxito a repressão ou os outros mecanismos de defesa, dar-se-á o desenvolvimento da perversão seja pela via do fetichismo, seja por outras modalidades típicas dessa estrutura, corriqueiramente pautado por esse sadismo prematuro, o qual cria disposições à neurose obsessiva conforme observado em clínica.
III. A pressa em obter resultados costuma impedir que se
detenha na base fundamental da investigação psicanalítica que é a infância do analisando. Por isso é que as fantasias de surra precisam ser melhor exploradas na primeira infância com o intento de identificar como elas foram constituídas psiquicamente.
Na primeira fase desse processo, a criança que fantasia não
é a mesma que apanha, podendo ser tanto uma desconhecida como um familiar próximo (irmão/irmã menor, por exemplo). Embora a criança que fantasia não seja a que bate, mas um adulto, o tom sádico predomina. Mais tarde, esse adulto costuma ser identificado como o pai da menina que fantasia. Essa fase, então, pode ser expressa por “meu pai bate numa criança” (que odeio). As fantasias poderiam advir tanto de eventos presenciados quanto da dinâmica dos desejos inconscientes da infante.
Na segunda fase, a mais importante, o pai continua sendo
aquele que bate, mas a criança que apanha passa a ser aquela própria que fantasia, a qual demonstra sentir prazer nesse ato, denotando características masoquistas. A frase desse momento é “sou castigada por meu pai”. Geralmente, não corresponde a fato concreto e é inconsciente. Logo, não é algo lembrado, mas decorrente da dinâmica analítica.
Na terceira fase, não é o pai que bate, sendo uma autoridade
que a ele se assemelhe (professor, por exemplo). Quem fantasia é meramente um observador. Quem apanha são algumas crianças. Na fantasia das meninas, são garotos (não conhecidos). Podem ser apenas castigos e humilhações. Em qualquer caso, provoca excitação sexual sádica e satisfação masturbatória. A frase é “batem numas crianças”
IV. Para Freud, a fixação amorosa da menina em relação a
seu pai derivaria de uma dinâmica psíquica, e algumas vezes relacional, onde a competitividade de afetos na interação familiar estabeleceria essa tendência. Caso isso se prolongue e intensifique, a dependência pode implicar uma ligação reativa entre ambos.
Existindo outras crianças participando desse núcleo familiar,
ao ter que dividir o amor dos pais entre si, ciúmes, raiva, ódio e competitividade tendem a se expressar. O mais novo entre os irmãos costuma ser o mais alvejado. Tais situações facilitam o desenvolvimento de fantasias de surra e da satisfação correlata. Daí o advento da expressão “Meu Pai não ama esse outro, ama somente a mim”. Portanto, de princípio, não se cuida de algo puramente sexual ou sádico, mas de um egoísmo prenhe de agressividade que conferirá as bases para tais impulsos psíquicos posteriores.
Essa circunstância de prematura escolha do objeto
(incestuoso) costuma antecipar a fase de organização genital, já que a excitação que se forma estabelece desde já tendências libidinais. Os desejos ics do menino e da menina em relação aos seus pais do sexo oposto denotam esse processo psíquico em desenvolvimento, o que se dá evidentemente sem o correlato entendimento ou disposições da dinâmica sexual. A isso, mais cedo ou mais tarde, irá se contrapor a repressão do Édipo, impedindo a satisfação. Com a introjeção da lei, é suscitada a culpa, que permanecerá no sujeito e se associará a outros aspectos de sua vida.
Psiquicamente, a culpa inverte a frase “Ele (o pai) ama
apenas a mim, não a outra criança, porque bate nela”, transformando-a em “Não, ele não ama você, pois bate em você”. É, pois, o castigo e a punição que se irrompem enquanto expressões do masoquismo. Nessa seara, a consciência de culpa faz a pessoa assujeitar-se à ira do pai de cuja violência se sente merecedora. Por conta disso, o amor devotado ao pai e a agressividade que ele exprime em relação ao sujeito acabam por se vincular. Por conseguinte, a satisfação do desejo sádico anterior se converte em satisfação masoquista.
Crianças que vivenciam tais experiências são
acompanhadas, em seu desenvolvimento, de uma predisposição de regressividade à fase sádico-anal. Ocorrendo repressão à sua organização genital, não só a representação psíquica do amor incestuoso se torna totalmente ics como também sofre uma degradação regressiva. Por essa razão, o erotismo e a consciência de culpa convergem em prol da excitação libidinal – “Meu pai me ama” (caráter erótico) com “Meu pai me bate” (caráter punitivo-masoquista).
No menino, o processo de transformação da fantasia
incestuosa para a fantasia masoquista, se dá de modo mais intenso que nas meninas, o que faz a passagem da atividade para a passividade permanecer ics pela forte repressão que o processo sofre. Na menina, os elementos mais comuns de devaneio suavizam essa transição, conferindo-lhe a sensação de satisfação porquanto a repressão não se evidenciar com a mesma frequência nos meninos, já que a satisfação pode ser obtida mesmo sem se valer da masturbação, o que implicaria menor culpa. Dessa maneira, o “apanhar do pai” torna-se mais cs, embora, via de regra, também tende se deslocar ao ics.
Por haver repressão é que a fantasia da terceira fase se
instaura de forma semelhante àquela da primeira. No entanto, só a fantasia é sádica, ao passo que, tomada a libido da repressão, a satisfação se expressa de forma masoquista por conta da culpa.
Enfim, as crianças surradas são quase sempre garotos, seja
nas fantasias de meninos, seja de meninas. Ao se afastarem do amor incestuoso ao pai, ímpetos masculinos das meninas desenvolvem-se e assim podem se presentificar nas fantasias.
V. Na fase edípica, a perversão infantil que costuma se
desenvolver como um dos seus possíveis efeitos, pode ser a base para a constituição dessa estrutura clínica, ou seja, ela pode ter vez temporariamente na vida da criança ou direcionar a sexualidade em momentos posteriores de sua vida adulta. E ainda que venha a ocorrer ímpetos para a vivência da sexualidade por vias não perversas, a fixação infantil que se inaugurou outrora irromperá novamente com mais força e estabelecerá definitivamente essa marca no sujeito.
A construção do masoquismo é outro aspecto pertinente à
vida infantil como já visto, surgindo como reversão do sadismo contra a própria pessoa, ou seja, da regressão da libido antes voltada ao objeto para o eu, dada a influência da consciência de culpa e da repressão. A passividade, então, não representa a totalidade do masoquismo, já que a dor associada à satisfação sexual é, certamente, a sua característica mais marcante e original.
Pessoas que mantêm, em sua vida adulta, a fantasia da
surra, são mais propícias para o desenvolvimento de sensibilidades e irritabilidades em relação a figuras que lhes podem representar o pai, o que as faz sentir desconforto em suas presenças, inclusive como meio a provocar situações em que possam ser punidas e, assim, experimentarem o prazer da dor, concretizando a fantasia supramencionada.
VI. Nas meninas, as características das três fases são as
seguintes: a) a primeira e a terceira são lembradas conscientemente, ao passo que a segunda fica ics; b) as duas cs são de teor sádico, sendo a ics masoquista; c) o conteúdo é apanhar do pai, a que se liga a carga libidinal e a consciência de culpa; d) a criança surrada na primeira é uma outra; na segunda, ela própria; na terceira, praticamente só meninos; e) quem bate é o pai; depois, um substituto dele; f) a segunda fase (fantasia ics) começa com significação genital, mas por sofrer repressão, regride ao estado de desejo incestuoso de ser amada pelo pai; g) no fim da segunda e começo da terceira, as meninas fantasiam ser meninos.
A segunda fase (ser a própria criança o objeto) de meninos e
meninas diverge no aspecto de ela permanecer cs para eles. Além desse aspecto, as pesquisas de Freud levaram-no a concluir que as fantasias de surra lhes acarretariam um masoquismo típico de perversão sexual. No caso deles, identificou-se que encontravam satisfação pela via masturbatória atreladas a fantasias masoquistas ou combinando masoquismo e atividade genital que possibilitavam a ereção e a ejaculação, o que os habilitariam ao coito regular.
Masoquistas com características perversas apenas
costumam buscar a análise por dois motivos básicos: i) quando, ao se masturbarem imaginando cenas de dor, ficarem impotentes na tentativa de relação sexual com outra pessoa; ii) quando aqueles que conseguiam êxito anteriormente na intimidade sexual com o(a) parceiro(a) valendo-se da imaginação de dor não mais obtiver excitação. Como lembrete clínico, é apropriado ressaltar que analisandos que demonstram impotência sexual por razões psíquicas precisam ter as suas queixas investigadas até a origem, principalmente quando se constatar que se trata de hábitos muito arraigados em suas vidas.
Em suas fantasias masoquistas e arranjos para efetivá-las,
os homens adotam a posição passiva da interação sexual, tendo principalmente as mulheres como aquelas que praticam o ato. Aliás, isso advém desde a figura materna, embora, e depois, passe pela figura paterna tal como sói ocorrer com as garotas, ou seja, para ambos, a fantasia de surra tem componentes incestuosos.
Na garota, a fantasia masoquista ics vem da atitude edípica
regular. No garoto, da atitude inversa que toma o pai como objeto de amor. O processo de repressão, entretanto, ao atuar para manter longe da cs fantasias e desejos, repercutirá em sintomas sinalizadores do que lhes conferiu origem. As fantasias substitutas que irrompem após a repressão, por sua vez, far-se-ão mediante conformações que negarão o caráter sexual anterior. Daí a constatação psicanalítica de que a repressão à sexualidade infantil se torna a força motriz de sintomas, tendo a parte fundamental de seu conteúdo, o Édipo, como o complexo nuclear das neuroses.
Nação tarja preta: O que há por trás da conduta dos médicos, da dependência dos pacientes e da atuação da indústria farmacêutica (leia também Nação dopamina)