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Abraham, K. (1925). Character-Formation on the Genital Level of Libido-Development.

In: _____. (1988). Selected Papers on Psychoanalysis (Bryan, D. & Strachey, A. trad.).
Londres: Karnac.
Formação do Caráter no Nível Genital do Desenvolvimento da Libido.
Tradução: Lucas Palma

Nas duas fases do desenvolvimento discutidas nos capítulos anteriores1, pudemos


reconhecer tipos arcaicos da formação do caráter. Eles representam na vida do indivíduo
recapitulações de estados primitivos atravessados pela raça humana em certos estágios de seu
desenvolvimento. Aqui, como em geral na biologia, nós encontramos a regra de que o indivíduo
repete de forma abreviada a história de seus ancestrais. Consequentemente, em circunstâncias
normais, o indivíduo irá atravessar esses estágios iniciais da formação de caráter em um período
de tempo relativamente curto. Neste capítulo, eu darei, em um contorno grosseiro, uma ideia
do caminho no qual o caráter de homens e mulheres em sua forma definitiva é construído sobre
essas bases iniciais.
De acordo com a visão tradicional, o caráter é definido como a direção habitualmente
tomada pelos impulsos voluntários de uma pessoa. Não fez parte dos objetivos deste artigo
dedicar muito tempo em encontrar uma definição exata do que é caráter. Acharemos, no
entanto, aconselhável não sermos demasiado influenciados pelo “hábito” de atribuir grande
importância à direção usualmente tomada por esses impulsos da vontade. Pois nossas
discussões prévias já tornaram claro que o caráter é algo variável. Faremos melhor, portanto,
em não tomar sua duração e permanência como um critério essencial dos traços de caráter. Será
suficiente para nossos propósitos dizer que consideramos o caráter de uma pessoa como a soma
de suas reações instintivas diante de seu meio social.
Nós já vimos que, no início da vida, a criança reage ao mundo externo puramente com
base em seus instintos. É apenas aos poucos que ela supera, até certo ponto, seus impulsos
egoístas e seu narcisismo e dá um passo em direção ao amor objetal. E, como sabemos, o
alcance desse estágio do desenvolvimento coincide com outro importante evento,
nomeadamente, o alcance do mais alto nível de organização libidinal - o nível genital, como é
chamado. Crendo, como nós, que os traços de caráter de homens e mulheres têm sua origem
em fontes instintivas definidas, esperaríamos, naturalmente, que o desenvolvimento do caráter
de uma pessoa estaria completo apenas quando a libido alcançou seu mais alto estágio de
organização e adquiriu a capacidade para o amor objetal. E, de fato, a visão de Freud de que a
atitude sexual de uma pessoa é refletida em toda a tendência de sua atitude mental se encontra
completamente confirmada pelos fatos observados nesse campo. No primeiro destes três
ensaios2, foi demonstrado em detalhe que o indivíduo é capaz de ocupar seu lugar e exercer
seus poderes completa e satisfatoriamente em seu meio social apenas se sua libido alcançou o
estágio genital. Mas ainda não demos atenção especial ao processo em que consiste a transição
do segundo estágio da formação do caráter ao terceiro e último deles.
A primeira função desse terceiro estágio da formação do caráter é, claro, livrar-se dos
traços remanescentes dos estágios mais primitivos do desenvolvimento, na medida em que são

1
Discussões acerca do caráter anal e do erotismo oral no desenvolvimento da libido [N.T.].
2
Abraham, K. (1921). Contribuições para a teoria do caráter anal.
desfavoráveis ao comportamento social do indivíduo. Pois ele não será, por exemplo, capaz de
adquirir uma atitude tolerante e justa para com outras pessoas e interesses fora os seus próprios,
até que que ele obtenha o melhor a partir de seus impulsos hostis e destrutivos provenientes de
fontes sádicas, ou sua avareza e desconfiança derivadas de fontes anais. Examinemos, assim,
com grande interesse, o processo pelo qual tal transformação ocorre.
Uma imensa abundância de material conectado ao processo que temos agrupado sob o
título geral de complexo de Édipo se apresenta para nós e chama nossa atenção para esse grupo
de eventos mentais. Se nos restringirmos ao caso do menino, descobrimos que as mais
poderosas fontes de afeto nos primeiros anos consistem em seu desejo erótico por sua mãe e
seu anseio de remover seu pai do caminho. E intimamente aliadas a elas estão suas ideias sobre
castração. Se ele puder controlar com sucesso as emoções centradas em torno desse assunto,
isso terá um efeito decisivo sobre a forma tomada por seu caráter. Irei me contentar com um
breve levantamento desta questão, pois posso remeter o leitor ao artigo de Alexander, já
publicado3, sobre as relações entre o caráter e o complexo de castração.
Em termos gerais, podemos dizer que quando a criança foi capaz de subjugar seu
complexo de Édipo e todos os seus componentes, ela deu o mais importante passo na direção
de superar seu narcisismo primário e suas tendências hostis; e, ao mesmo tempo, rompeu o
poder do princípio de prazer de dominar a condução de sua vida.
Neste ponto, irei me deter em maiores detalhes sobre um aspecto particular desse
processo de mudança, já que sua importância para a formação do caráter não recebeu ainda
atenção alguma. Trata-se da alteração extensiva que ocorre na atitude do garoto em relação ao
corpo de pessoas do sexo oposto, isto é, em primeira instância, em relação ao corpo de sua mãe.
O corpo dela era para ele objeto de uma mistura de curiosidade e medo; em outras palavras,
despertava-lhe sentimentos ambivalentes. Mas, gradualmente, ele adquire uma catexia de seu
amor objetal como um todo, isto é, com a inclusão dessas partes que a princípio lhe
despertavam esses sentimentos contraditórios. Se isso foi atingido, surgem nele expressões de
sua relação libidinal com esse objeto que são inibidas em sua meta - sentimentos de ternura,
devoção, e assim por diante - e estas coexistem com seus desejos diretamente eróticos. E, de
fato, durante o período de latência no garoto, esses sentimentos “inibidos em sua meta”
predominam sobre seus sentimentos sensuais. Se o desenvolvimento da criança continua a ser
normal, esses novos sentimentos que foram estabelecidos em relação à sua mãe, em seguida
começam a ser dirigidos para seu pai. Eles gradualmente estendem seu campo e a criança adota
uma atitude amigável e simpática, primeiro com as pessoas de seu ambiente mais próximo e
então com a comunidade em geral. Esse processo me parece ser uma base muito importante
para a formação final e definitiva do caráter de uma pessoa. Ocorre no momento em que ele
sai da fase de seu desenvolvimento libidinal que Freud nomeou como estágio fálico. Isso
implica que ele atingiu um ponto em suas relações de objeto em que ele não tem mais uma
atitude ambivalente em relação ao órgão genital de seu objeto heterossexual, e sim o reconhece
como uma parte daquele objeto que ele ama como uma pessoa como um todo.
Enquanto que nos primeiros níveis do desenvolvimento do caráter os interesses do
indivíduo e os da comunidade iam de encontro uns aos outros, no nível genital os interesses de
ambos coincidem em grande medida.

3
Alexander (1922). The Castration Complex in the Formation of Character.
Somos, então, levados à conclusão de que o caráter definitivo desenvolvido em cada
indivíduo depende da história de seu complexo de Édipo e, particularmente, da capacidade que
ele desenvolveu de transferir seus sentimentos amigáveis para outras pessoas ou para todo seu
ambiente. Se ele falhou nisso, se ele não obteve sucesso em desenvolver suficientemente seus
sentimentos sociais, ocorrerá, como consequência direta, uma marcante perturbação de seu
caráter. Entre nossos pacientes, com cada aspecto da vida mental dos quais nos familiarizamos
no tratamento psicanalítico, há um grande número dos quais estão sofrendo, em maior ou menor
grau, de perturbações desse tipo. A história de sua primeira infância nunca deixa de mostrar
que certas circunstâncias ocorreram para impedir o desenvolvimento de seus sentimentos
sociais. Sempre verificamos que os impulsos sexuais de tais pessoas não são acompanhados
por qualquer desejo de relações afetivas. E, da mesma maneira, em sua vida cotidiana eles têm
dificuldades para obter um contato afetivo adequado com outras pessoas.
O quanto um desenvolvimento favorável do caráter, de um ponto de vista social,
depende do grau em que esses componentes instintivos “afetuosos” se desenvolvem é mais
claramente visto em um grupo de pessoas cuja infância foi marcada especialmente pelas
circunstâncias de seu nascimento. Refiro-me aos filhos ilegítimos. Desde o início, essas
crianças sofreram de uma falta de simpatia e afeição das pessoas para com elas. Se uma criança
não tem exemplos de amor diante de si, ela terá dificuldade em nutrir tais sentimentos por si
mesma, e, além disso, será incapaz de descartar aqueles impulsos primitivos que são
originalmente dirigidos contra o mundo externo. E, então, ela vai prontamente sucumbir a uma
atitude antisocial. Vemos o mesmo ocorrer com o paciente neurótico que, embora nascido e
educado em circunstâncias comuns, sente que ele não é amado, que ele é a “Cinderela” da
família.
Já que estamos no tópico do estágio definitivo do desenvolvimento do caráter, seria
bom evitar um possível mal-entendido. Não é objetivo desta discussão o que exatamente é um
caráter “normal”. A psicanálise nunca estabeleceu normas desse tipo, mas se contenta em
apurar fatos psicológicos. Ela simplesmente verifica o quão longe um indivíduo ou um grupo
de pessoas pôde ir na linha do desenvolvimento desde o mais primitivo até o mais recente
estágio na estrutura de seu caráter. É precisamente a experiência analítica que nos ensina que
mesmo o mais completo desenvolvimento caracterológico, em um sentido social, representa
meramente um sucesso relativo na superação dos tipos mais primitivos de estrutura mental, e
que circunstâncias particulares de natureza interna e externa determinam o quão
completamente a meta final será alcançada ou até que ponto essa conquista será duradoura.
Em 1913, Freud4 chamou atenção para o caso de uma paciente em que no período da
menopausa apareceram, lado a lado a sintomas neuróticos, certos fenômenos de involução do
caráter. Essa foi a primeira vez que tal observação foi feita. Vemos os sintomas neuróticos
como produtos de uma regressão na esfera psicossexual. Unindo ambos os processos sob o
nome geral de regressão, Freud foi capaz de explicar porque uma mudança no caráter ocorre
ao mesmo tempo em que sintomas neuróticos são formados. Essa observação de Freud tem
sido frequentemente confirmada desde então. Mas não é apenas em um período específico da
vida que o caráter de uma pessoa depende da posição geral de sua libido; essa dependência
existe em todas as idades. O provérbio que diz “A juventude não conhece a virtude” (Fugend

4
Freud, S. (1913). A Predisposição à Neurose Obsessiva.
kennt keine Tugend) expressa a verdade de que na infância o caráter ainda não possui forma
definida ou estabilidade. Todavia, não devemos superestimar a fixidez do caráter mesmo em
anos mais tardios, mas deveríamos, sim, ter em mente certos fatos psicológicos que abordarei
brevemente a partir de agora.
Foi Freud quem primeiro apontou que importantes mudanças podem ocorrer em
qualquer tempo da composição mental do indivíduo através do processo de introjeção. As
mulheres, particularmente, tendem a assimilar seu caráter ao do homem com quem estão
vivendo. E quando mudam seu objeto de amor, pode ocorrer de mudarem seu caráter
conformemente. Vale a pena notar que maridos e esposas que viveram muitos anos juntos
tendem a assemelhar o caráter um do outro.
Psicanalistas estão familiarizados com o fato de que quando uma neurose se estabelece,
ela traz consigo uma mudança regressiva de caráter; e, por outro lado, uma melhora da neurose
pode ser acompanhada de uma mudança de caráter em uma direção progressiva. Certa vez 5,
pude apontar que, nos intervalos entre os retornos periódicos de sintomas, pessoas sofrendo de
distúrbios cíclicos apresentam um caráter similar ao de neuróticos obsessivos, de modo que, de
acordo com nossa visão, elas progridem do do nível oral para o sádico-anal.
Mas há outras razões pelas quais não podemos estabelecer uma norma para o caráter.
Como sabemos, indivíduos apresentam variações extraordinariamente amplas de caráter, de
acordo com sua classe social, nacionalidade e raça. Precisamos apenas considerar quão
amplamente nações ou grupos de pessoas diferem umas das outras em seu senso de ordem,
amor pela verdade, indústria e outras qualidades mentais. Mas, além disso, cada grupo de
pessoas irá variar seu comportamento em diferentes momentos. Uma única nação, por exemplo,
mudará suas concepções de limpeza, economia, justiça, etc., mais de uma vez no curso de sua
história. A observação tem mostrado, além do mais, que alterações das circunstâncias externas
de um povo, uma classe social, e assim por diante, podem implicar mudanças radicais em suas
características dominantes. O efeito da Grande Guerra a esse respeito ainda está fresco em
nossa memória. Portanto, vemos que assim que alterações apropriadas ocorrem em suas
relações internas ou externas, um grupo de pessoas demonstra a mesma mutabilidade de caráter
que um indivíduo.
Nos dois artigos anteriores, mostrei como o estágio final da formação de caráter foi
construído sobre as fases anteriores de seu desenvolvimento e absorveu em si elementos dessas
fases precedentes. E fomos levados a atribuir especial importância na formação do caráter às
várias vicissitudes que se abatem sobre o complexo de Édipo. Então, estabelecer uma norma
fixa para o caráter humano seria negar não apenas o já conhecido fato de que o caráter é
variável, mas também tudo o que sabemos sobre a maneira pela qual tais variações surgem.
Devemos estar inclinados a considerar como normal, no sentido social, uma pessoa que
não é impedida por qualquer excentricidade muito grande de seu caráter a se adaptar aos
interesses da comunidade. Mas uma definição como essa é muito flexível e permite um grande
número de variações. Do ponto de vista social, tudo o que é exigido é que os traços de caráter
de um indivíduo não sejam levados a um excesso; que ele seja capaz, por exemplo, de encontrar
algum meio termo entre os extremos da crueldade e da bondade excessiva ou entre aqueles da
avareza e da extravagância. Devemos sobretudo evitar o erro de estabelecer uma norma no que

5
Abraham, K. (1924). Um breve estudo do desenvolvimento da libido à luz dos distúrbios mentais.
diz respeito à proporção em que as várias qualidades mentais devem ser combinadas em
qualquer pessoa. Não é preciso dizer que, com isso, não pretendemos proclamar o ideal da
“norma áurea” em todas as relações do homem com seu meio.
Decorre do que foi dito que não há uma linha de demarcação absoluta entre os diferentes
tipos de formação de caráter. No entanto, na prática, descobrimos de fato que eles caem
naturalmente em classes distintas.
Os melhores sujeitos para a investigação psicanalítica são aqueles pacientes que trocam
certos traços de caráter por outros de tempos em tempos sob a observação direta do analista.
Um jovem rapaz que me procurou para análise gradualmente mudou de atitude a tal ponto, sob
a influência do tratamento, que se livrou de certas características marcadamente anti-sociais de
seu caráter. Antes disso ele era inamistoso, mal-intencionado, arrogante e ganancioso em suas
relações com os outros, e, de fato, exibia um grande número de características orais e anais.
Essa atitude foi mudando cada vez mais com o passar do tempo. Mas, em certos intervalos
irregulares, violentas resistências apareciam e eram acompanhadas toda vez por uma recaída
temporária naquela fase arcaica do desenvolvimento do caráter que ele havia abandonado
parcialmente. Nessas ocasiões, ele se tornava desagradável e hostil em seu comportamento e
arrogante e desdenhoso em seu discurso. Por ter se comportado de maneira amigável e educada,
ele se tornava desconfiado e irritável. Enquanto durou sua resistência, todos os seus
sentimentos amigáveis em relação a seus colegas - incluindo o analista - cessaram, e ele tomou
uma atitude completamente oposta em relação ao mundo externo. Ao mesmo tempo em que
reagia desse modo aversivo e odioso para com os seres humanos, ele centrou seus desejos em
um grau desmedido em objetos inanimados.Todo seu interesse foi tomado por comprar coisas.
Desse modo, ele estabelecia o máximo possível uma relação de possessão entre ele e seu
ambiente. Durante esse tempo, ele se enchia de medo de que algo que lhe pertencia pudesse ser
perdido ou roubado. Toda sua atitude em relação ao mundo externo foi, deste modo, dominada
por ideias de possessão, aquisição e possível perda. Imediatamente, sua resistência começou a
diminuir, seu traço oral de caráter de cobiça e o anal de avareza em relação aos objetos
recuaram para segundo plano, e ele começou, mais uma vez, a considerar relações pessoais
com outras pessoas e sentimentos normais sobre elas, que continuaram a se desenvolver e se
estabelecer.
Casos como esse são particularmente instrutivos, não apenas porque mostram a ligação
entre certas características do caráter e um nível particular de organização de libido, mas
também porque são evidência da mutabilidade do caráter; eles demonstram como o caráter de
uma pessoa pode, em certa ocasião, ascender a um nível mais alto do desenvolvimento ou cair
para um nível mais baixo.
O estágio final da formação do caráter mostra, por toda parte, traços de sua associação
com os estágios precedentes. Ele empresta deles tudo o que conduza a uma relação favorável
entre o indivíduo e seus objetos. Do primevo estágio oral ele toma a iniciativa e a energia; do
estágio anal, resistência, perseverança e várias outras características; das fontes sádicas, o poder
necessário para continuar a luta pela existência. Se o desenvolvimento do caráter foi bem
sucedido, o indivíduo é capaz de evitar cair em exageros patológicos dessas características, seja
numa direção positiva ou negativa. Ele é capaz de manter seus impulsos sob controle sem ser
levado a uma completa negação de seus instintos, como é o caso do neurótico obsessivo. O
senso de justiça pode servir como uma ilustração; em um caso de desenvolvimento favorável,
esse traço de caráter não é elevado a uma meticulosidade excessiva e não é suscetível de
explodir de forma violenta em alguma situação trivial. Apenas temos que pensar nas várias
ações feitas por neuróticos obsessivos em um sentido de “equidade”: supondo que a mão direita
fez um movimento ou tocou um objeto, a mão esquerda deve fazer o mesmo. Já dissemos que
sentimentos amigáveis comuns permanecem completamente distintos de formas exageradas de
bondade excessiva. E, semelhantemente, é possível seguir um caminho intermediário entre os
dois extremos patológicos de atrasar tudo ou estar sempre com muita pressa; ou ser super
obstinado ou facilmente influenciável. No que diz respeito aos bens materiais, o compromisso
alcançado é que o indivíduo respeita os interesses dos outros até certo ponto, mas ao mesmo
tempo garante sua própria existência. Ele preserva até certo ponto os impulsos agressivos
necessários para a manutenção de sua vida. E uma considerável parcela de seus instintos
sádicos é empregada não mais para propósitos destrutivos, mas construtivos.
No curso dessa alteração geral de caráter, apresentada aqui como um esboço, também
observamos que o indivíduo alcança uma conquista estável de seu narcisismo. Nos primeiros
estágios, seu caráter ainda estava em grande medida governado por seus impulsos narcísicos.
E não podemos negar que em seu estágio definitivo ele ainda contém certa porção de tais
impulsos. A observação nos ensinou que nenhum estágio do desenvolvimento, cada qual tendo
uma base orgânica própria, é inteiramente superado ou completamente apagado. Pelo contrário,
cada novo produto do desenvolvimento possui características derivadas de sua história
primeva. Todavia, ainda que os sinais primitivos de amor próprio estejam até certo ponto
preservados nele, podemos dizer que o estágio definitivo da formação do caráter é
relativamente não narcisista.
Outra mudança de grande importância na formação do caráter é aquela na qual o
indivíduo supera sua atitude de ambivalência (falo, novamente, em um sentido relativo).
Exemplos já foram dados para mostrar de que maneira o caráter de uma pessoa evita extremos
de ambos os lados após ter atingido seu estágio final de desenvolvimento. Também gostaria de
chamar a atenção aqui para o fato de que, enquanto um severo conflito de sentimentos
ambivalentes continuar a existir no caráter de uma pessoa, há sempre um perigo, tanto para ela
quanto para seu ambiente, de que ela subitamente passe de um extremo para seu oposto.
Assim, se uma pessoa tem que desenvolver seu caráter mais ou menos até aquele ponto
que tomamos como seu nível mais alto, ele deve possuir uma quantidade suficiente de
sentimento afetuoso e amistoso. Um desenvolvimento desse tipo se dá lado a lado com uma
conquista relativamente bem sucedida de sua atitude narcisista e sua ambivalência.
Vimos que o senso comum sobre a formação do caráter não nos deu nenhuma pista das
fontes desse processo como um todo. A psicanálise, por outro lado, baseada em uma
observação empírica, tem demonstrado a estreita conexão que a formação do caráter tem com
o desenvolvimento psicossexual da criança, em especial com os diferentes estágios libidinais e
com as sucessivas relações da libido com seu objeto. E, além do mais, ela nos ensinou que
mesmo após a infância o caráter de um indivíduo está sujeito a processos de evolução e
involução.
Na psicanálise, vemos um caráter anormal em estreita e constante relação com todas as
outras manifestações da vida psicossexual de uma pessoa. Isso, e o fato de que o caráter não é
algo fixo, mesmo em adultos, nos permite exercer uma influência corretiva sobre as formações
patológicas do caráter. A psicanálise não é de modo algum simplesmente confrontada com a
tarefa de curar sintomas neuróticos no sentido estrito da palavra. Ela muitas vezes tem que lidar
com deformidades patológicas de caráter ao mesmo tempo, ou mesmo em primeira instância.
Até aqui, nossa experiência mostra que a análise do caráter é um dos trabalhos mais difíceis
que o analista pode realizar, mas que, sem dúvida, provou-se ser em alguns casos o mais
compensador. Atualmente, entretanto, não estamos em posição de fazer nenhum juízo geral
sobre os resultados terapêuticos da análise do caráter; devemos deixar isso para a experiência
futura.

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