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Novembro, por volta do dia 15, uma tarde

Queria atravessar, mas as merdas daqueles carros não deixavam; quero


atravessar! Sentia uma atração tão forte, como se estivesse completamente hipnotizado:
preciso de um modo para atravessar todos esses carros, chegar àquela pequena casa,
pensei. Não podia ir pelos lados, havia o abismo de todos os lados, estava no último
andar de um prédio, na cobertura. Gritavam o meu nome, minha mãe me chamava,
estava havendo a uma reunião, acho que uma festa, não recordo os detalhes; mas ainda
lembro de não querer ir até lá. Meu corpo queria atravessar todos aqueles carros
gigantes enfileirados no quintal, chegar finalmente ao meu objetivo, a edícula. Quero
atravessar, mas como?, pensava. Permaneci no quintal, o tempo todo; não consegui ir
até a edícula, nem voltei para a casa com meus familiares, acordei.

Acordei, comecei a escrever este texto, o trabalho que conto minha experiência
com tal curso. Como o comecei? No primeiro parágrafo contava o sonho, e logo em
seguida interpretava-o: você era a casa menor, e eu me frustrava, frustrava-me muito;
não conseguia me aproximar de ti, sempre tinha algo que me impedia de ir até você, no
caso, aqueles carros gigantes que nos distanciava; ao redor, o abismo. Doía, muito, não
conseguia atravessar todos os carros e falar contigo, estabelecer alguma relação, tudo
era muito volátil, isso me agonizava. Preciso atravessar, pensava; ao mesmo tempo uma
raiva ia percorrendo pelo meu sangue, e pulsando, do mesmo jeito que desejava
estabelecer o vínculo queria repeli-lo. Continuei a escrever o texto até que acordei,
assustado, acordei novamente, outro sonho. Quão perturbador isto foi, havia uma
certeza que eu estava acordado, e quando me deparo com outro sonho.

“Porque a gente não sabe quando vai morrer, a gente pensa na vida como um bem incansável,
as coisas acontecem num número certo de vezes. Um pequeno número, na verdade.

Por quantas vezes você se lembrou de uma tarde de sua infância, uma tarde tão comum, mas
que você não poderia viver sem ela? Talvez umas quatro ou cinco vezes. Talvez nem isso.

Quantas vezes você vai admirar a lua? Talvez 20. E ainda assim parece sem limites.”

Bernado Bertolucci
Acordei com medo. Acordar é voltar ao mundo, como poderia dizer?... o
mundo material, o mundo real! Mas aquele sonho eu estava no real, havia uma
consciência, mesmo que fantasiosa, interpretando outras de uma maneira coerente; as
coisas faziam sentido e do nada, desperto. Estava perplexo, olhava para um canto, para
o outro, aquilo também poderia ser um sonho, eu não sabia mais; o que eu mais sentia
era muito medo. Existir me conforta; tenho tanto medo de deixar de existir. Precisava de
algo para apertar, algo que não fizesse cair na fluidez do não ser, do não real.

Lembro de uma noite no início deste semestre: estava conversando com um


garoto que cursa filosofia no IFCH, ele estuda Hegel e falava sobre “A” verdade, sobre
o real; não o compreendia, parecia que usávamos dialetos distintos. Em um momento as
coisas mudaram bruscamente; eu olhei para o chão e percebi que era matéria, eu percebi
a existência física do chão. Fiquei atordoado, o chão estava lá, matéria, no mundo, não
era uma ilusão, eu comecei a notar o chão. Geralmente os acontecimentos parecem uma
série de estímulos que nos afetam, mas naquele momento estava vendo que o chão
existia, não era simplesmente um estímulo. Olhei para este menino e para uma das
árvores que estava ao nosso lado, diferentemente de todos os outros objetos que nos
rodeavam, senti que ambos eram reais, ambos se destacavam do plano, fui até este
garoto e segurei o rosto dele. Uma vertigem muito forte foi me tomando, tive muita
vontade de beijá-lo neste momento, mas não podia, eu namorava. Pode não ser claro,
mas a melhor maneira de expressar isso é que naquele momento tive noção do espaço
ser tridimensional, ele e a árvore estavam tridimensionais. O estranho é que quando eu
comecei a contar o que estava acontecendo comigo, ele falou que o mesmo acontecia
com ele, também estava com vertigem. Em um momento eu notei a realidade de alguns
objetos, e isso despertava uma vontade muito grande de transar com ele. Sai de lá,
queria mijar, mas não queria usar o banheiro, fui andando até o bosque da economia,
subi. Sentia meus passos, pisava no chão. Lá mijei em uma árvore, senti o vapor quente
e alguns respingos na minha canela, foi tão prazeroso. Foi nesta noite que eu parei e
pude parar de viver no real e percebê-lo.

Sou uma pessoa muito iludida, extremamente. Tenho uma tendência não só de
colorir o mundo em excesso, mas também de passar a viver nele momentos extensos do
meu cotidiano, minha fuga. Tenho dificuldade, quando encontro um objeto realmente
importante na minha vida, de objetivá-lo, de passar do objeto subjetivamente concebido
para o objetivamente percebido. Isso em si não é ruim, mas Amnéris, muitas vezes eu
me perco nas minhas próprias ilusões, foi o que aconteceu contigo.

Você foi tão importante para mim. Uma vez, não lembro o porquê, a Johana
contou que você não gostava que vissem uma mãe em ti; mas em certo momento,
enquanto lia Winnicott você veio em minha mente. O momento foi aquele que o bebê é
visto pela mãe e então percebe a si, passa a existir.

Meu primeiro contato com Winnicott foi durante o curso de 2009. Naquele
momento foi algo importante, mas não transformador; seus ecos só vieram nas férias de
2009-2010. A preocupação com minha mãe começou a ficar cada vez mais latente. Ela
precisa de cuidados. Vejo, com uma imensa tristeza, que ela está a um passo de morrer
psiquicamente. Há 21 anos deixou de viver recebeu uma pancada muito forte, que a
anestesiou: seu gosto pelo viver se foi, da mesma forma que seus prazeres e sentidos.
Vive uma rotina descolada da sua vida, em que nada importa; mas não está morta, há
ainda uma coisa que a mantém em pé, seu amor por mim.

A gravidez da minha mãe foi extremamente problemática, ela nem consegue se


recordar mais sobre isso. Uma vez tive uma conversa e ela contou poucos detalhes:
minha avó a condenou fortemente; meu avô estava morto, meu pai a abandonou, queria
que ela abortasse; a mãe dele destruiu minha mãe de todas formas possíveis; seus
amigos não deram um apoio e seu o mundo começou a desabar. Ao falar esses poucos
detalhes ela começou a chorar desesperadamente e foi para seu quarto. Ela só tem duas
fotos de sua gravidez, em ambas a feição de tristeza é evidente; não queria recordações
desta época, ela diz até hoje que seu desejo é esquecer. Tem uma grande relutância em
procurar ajuda terapêutica, algum analista, diz que não quer reviver tanta dor.

Completamente sozinha, sem pais, sem namorado, sem amigos; assim eu nasci,
e a única pessoa que ela teve sou eu. Assim ela passou a viver, hermeticamente na
mônoda, ela e eu. Foi passando o tempo, ela voltou a ter alegrias na sua vida, todas
relacionadas comigo, mas mesmo assim, seu corpo estava machucado. Cuidava de mim,
como ela mesma diz, sempre sozinha. Sozinha ela não estava, enquanto ela me
carregava consigo, eu a sustentava.
Não queria aparentar a dor, sempre sorria; queria ser forte para conseguir que
eu tivesse uma vida melhor que a dela. Passou a sua vida me protegendo de todos os
impactos que poderiam me causar sofrimento. Durante minha infância não pisei no
chão, como havia muitos pedregulhos minha mãe achou melhor sempre me carregar,
assim meus pés permaneceram sem calos, lisos, sem falhas.

Como gritei contigo em 2009, o ambiente em que vivi não fora nada
facilitador, enquanto eu permanecia sem ferimentos por estar recebendo tantos
cuidados, dentro de mim estava completamente esfolado. Meu corpo começou a se
fechar, meus ombros giraram para dentro, minha cabeça olhava só para baixo, fiquei
com uma cifose muito acentuada. Foi difícil para mim, muito, você sabe disso; eu
estava trancafiado em um falso-self juntamente com minha mãe; mas não
completamente, havia algo me sustentando. Minhas ilusões me sustentavam, quando me
fechava em meu quarto podia brincar e devanear. Lá todos os desejos que possuía, o
desejo de ter poder, de poder falar, de acabar com essa insegurança que me toma,
tornavam-se reais; graças a isso a vida não era intolerável.

Até que conheci você, neste momento se inicia a grande inflexão. Você foi a
segunda pessoa que teve um papel materno; antes de ti teve uma garota que foi minha
primeira amiga, seu nome é Thais Bianca, Thabi, ela me ajudou a aceitar algo que era
muito difícil para mim, a minha sexualidade. Já você, Amnéris, você me viu. Isso foi tão
importante para mim, alguém me viu e a partir daí eu me vi, eu passei a existir, tornei-
me real, foi um novo nascimento.

Não vou me alongar falando como suas aulas me afetam, isso já foi contado em
outro trabalho, neste digo sobre a relação contigo. Acredito ter tido uma vivência de
admiração infinita por ti, digo infinita porque sua face não acompanhava esta
admiração, não havia o outro. O meu desejo de ir até você e poder conversar contigo era
tão grande quanto minha insegurança, é tão difícil ser espontâneo contigo; algo muito
semelhante com um apaixonamento, que também é uma grande admiração, em que
involuntariamente você não consegue ser natural. A pressão era muito grande, até hoje
eu fico meio sem jeito perto de ti, fico um pouco na defensiva. Eu me lembro do dia que
você chamou a Mariana para o grupo de estudos, e ela me chamou para eu ir junto, eu
estava morrendo de vergonha. Você tentava nos acolher, sempre colocava-nos na
conversa, lembro com muito carinho disso.
O carinho foi acompanhado muitas vezes por repulsa, muitas vezes tive
dificuldade de lidar com o seu lado humano. Você muitas vezes foi grossa, eu acho que
sem perceber, mas independentemente da intencionalidade, me machucou muito. Meus
sentimentos por ti são ambivalentes, mais que o normal. Fico um pouco triste por não
ter conseguido me aproximar de ti, gostaria de vencer toda essa insegurança e ser mais
natural contigo, te dar um abraço e dizer que eu gosto muito de ti e obrigado ter me
ajudado a nascer novamente, de existir.

A experiência que a leitura de Winnicott me proporcionou foi um tanto quanto


curiosa, tive um desejo muito grande de ser pai; de poder cuidar de um bebê, de oferecer
o holding a alguém. Fiquei muito feliz em saber que este ano você daria um tópico
sobre Winnicott. Desde as férias de 2009-2010 gostaria de conhecer mais sobre esse
autor para poder ajudar minha mãe, mas estes sentimentos ainda estavam latentes,
apenas neste semestre este desejo se aflorou.

Minha mãe projetou muito em mim, ao ter começado a cortar o cordão


umbilical que nos ligava, seu mundo passou a ser um inferno. Minha mãe não deixou de
sonhar, o que aconteceu é que desde que eu nasci, era eu o sujeito de seus sonhos. A
mudança de curso foi um baque muito grande para ela. Meu nascimento foi a morte da
mônoda, ou ela sai da mônoda e passa a viver ou ela morrerá. Não quero que ela sofra,
depois de tudo que ela fez por mim, todo o amor que me proporcionou. Aqui os
sentimentos são ambivalentes, também sinto raiva, nojo, asco pela condição tão
submissa da minha mãe; quero sair de perto dela. Estes sentimentos andam juntos a uma
compaixão por ela. Quero ofertar um holding para ela, sustentá-la nesta separação, não
quero sair sem antes ela conseguir a continuidade do seu ser.

Ao mesmo tempo, estou vivendo um momento muito difícil em minha vida,


um dos mais agonizantes que já passei. Há um ano eu me sinto vivo, e quero continuar a
existir por muitos e muitos anos, não quero morrer. Senti-me muito incomodado em
certa aula em que vocês falavam que viver cansa, que é necessário morrer. Tinha
vontade de gritar: NÃO!, VIVAM!. ISSO TUDO QUE VOCÊS ESTÃO DIZENDO É
BOBAGEM! Acho que nem tudo é cíclico, como no jogo da espátula, a vida não pode
ser encarada desta forma. O que acontece quando a vida acaba? Ninguém sabe, são
apenas crenças que dizem saber o que ocorrerá após, há uma grande chance de
deixarmos de existir. Pode ser, que somo seres que apareceram misteriosamente neste
mundo, tivemos algo chamado vida, e depois disso acabou, deixamos de existir por
completo. Isso é horrível, dói muito em mim; eu tenho muito amor à minha vida, não
quero deixá-la ir, não quero não existir, tenho muito medo.

Há dois meses me chamaram para eu ir a uma festa, fiquei com vontade de ir,
mas algo me dizia: “não vá”. Fui, lá beijei um garoto; em um momento ele disse que
havia aberto um corte em sua boca, fiquei tranqüilo, sabia que não tinha nenhum
ferimento na minha. No dia seguinte, ao acordar, havia um corte no meu lábio; não
sabia se fora cortado à noite ou enquanto dormia, não olhei no espelho antes de dormir.
A partir daí tive a certeza que tinha sido contaminado pelo vírus HIV. Que eu tive uma
intuição, um sinal falando, não vá, é melhor para você, mas eu fui. Isso mudou
radicalmente minha vida, senti uma tristeza muito grande, não quero contagiar ninguém,
mas ao mesmo tempo estou apaixonado, quero me aproximar, mas novamente há coisas
que me impedem, mas desta vez não sei se são ilusões ou não. Está insuportável, só
posso fazer o exame daqui um mês, e isto está me deixando louco.

Finalizo este trabalho reinterpretando o sonho que tive. Enquanto sonhava eu


interpretei que você estava sendo representada pela edícula que eu queria alcançar; mas
agora percebo que você simboliza algo neste sonho também; você simboliza a
possibilidade de eu existir. Há um conflito em mim, quero viver, mas são tantos
obstáculos. O que me agoniza não é simplesmente a existência deles, mas não saber se
eles são ilusões. Não saber se o que tive é uma intuição, ou se é bobagem, algo da
minha cabeça; se eu fui ou não contaminado. Ao mesmo tempo ouço a voz da minha
mãe me chamando para dentro da casa, para dentro da mônoda protetora. E eu fico no
quintal, nesta encruzilhada. Eu quero viver, mas não quero que minha existência
termine. Independentemente, quero dizer que sou muito grato em ter conhecido você,
você realmente representa para mim, não só no meu sonho, mas na minha vida, a
possibilidade de eu existir, de eu estar vivo. Muito obrigado, Amnéris.

Com muito carinho

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