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© by Editora Escuta para edição em língua portuguesa

Titulo srcinal: Goce.

1* edição: fevereiro de 2007

E di tor es

M anoel Tosta Berlinck


M aria Cristina Rios M agalhães
C a pa
Imageriaestudio
P rodução E di to r i al
A raide Sanches

Dados internacional de Catalogação na Publicação (CIP)


B825g Braunstein, Néstor

Gozo / Néstor Braunstein ; tradução de M onica Seincman. - São


Paulo: Escuta, 2007.
344 p. ; 21 cm.

ISBN 978-85-7137-257-3
1. Psicanálise. 2. Gozo. 3. Prazer. 4. Sexualidade. 5. Histeria.
6. Psicose. 7. Desejo. 8. L acan, Jacques. 9. Freud, Sigmund.
I. Seincman. M onica. II. Título.
CDU 159.964.21
159.922.1
CDD 616.9792
(Bibliotecária responsável: Sabrina Leal Araujo - CRB 10/1507)

Editora Escuta L tda.


Rua Dr. Homem de M ello, 446
05007-001 São Paulo, SP
Telefax: (11) 3865-8950 / 3675-1190 / 3672-8345
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www.editoraescuta.com.br
Sumário

Reeditar, reescrever, atualizar 5

Pr i me i r a par t e : T e or i a

I - O gozo: de L acan a Freud 11


1. No começo 11
2. O gozo em Freud 20
3. Retorno aos princípios freudianos 35
4. A lém do princípio de prazer 43
II - Os gozos distintos 55
1. Entre gozo e linguagem 55
2. O gozo (não) é a satisfação de uma pulsão 58
3. A palavra, diafragma do gozo 67
4. A Coisa e o objeto @ 77
5. A castração e o nome-do-Pai 85
6. As barreiras ao gozo 99
7. A “causação do sujeito” ou além da angústia 109
III - Gozo e sexualidade 121
1. Os equívocos da sexualidade 121
2. O gozo do ser, o gozo fálico e o gozo do Outro 132
3. A castraçãocomo causa 145
4. Os três gozos e a banda de M oebius 153
5. Freud (Lacan) ou Foucault 159
IV - Deciframento do gozo 177
1. O gozo está cifrado 177
2. A
3. A psicanálise
carta 52 nos caminhos de Proust. 184
Gozo e tempo 196

S egunda par t e : C l í ni ca

V - O gozo na histeria 215


1. O psicanalista e a histérica 215
2. t ' função do gozo 224

3. Histeria e saber 234


V I - A perversão, desmentido do gozo 243
1. O “positivo” da neurose? 243
2. O fantasma perverso:sabergozar 250
3. O perversoe o gozo feminino 260
V II - @-dicção do gozo 267
1. Não se elege a psicose 267
2. Psicose e discurso 273
3. Droga-@-dicção 279
V III - Gozo e ética na experiência psicanalítica 289
1. Uma prática linguageira 289
2. Pulsionar e seus destinos 293
3. O dever do desejo 299
4. O ato e a culpa 304
5. A analogia i munológica 311
6. A carta ao pai 316
7. Ceder o desejo? 321
8. Para três gozos, três supereus 327
9. Do amor em psicanálise 331
Reeditar, reescrever, atualizar

Gozo era o nome original deste livro lançado no México em


1990. Em 1994 expli caram-me que a edição em francês não poderia
circular com esse título tão parcimonioso porque era pouco
explícito para o leitor leigo. A ssim, Gozo foi publicado pela editora
Point H ors-L igne com o título de La jouissance: un concept
lacanien. A partir de então sucederam -se reimpressões anto
t em
castelhano como em francês, até que a editora Point Hors-L igne
deixou de publicar. Há pouco tempo recebi uma solicitação da
Editions Erès, de muito prestígio, que propunha uma nova edição
da obra. Respondi que preferia que não fosse outra reimpressão, pois
havia detectado erros que gostaria de corrigir e que a tradução para
o francês iria se beneficiar com uma revisão. O convite da Érès
levou-me a uma releitura cuidadosa e, com ela, à convicção de que
hoje poderia transmitir de um modo mais claro os conceitos
elaborados 15 anos antes. Assim, em maio de 2005, sur giu uma nova
edição em francês, meticulosamente revisada por Daniel K oren, com
uma nova capa (K limt foi substituído por Parmigianino) e com
muitas alterações, incluindo algumas referências bibliográficas de
atualização que me pareceram imprescindíveis.
Gozo era bem recebido em toda a A mérica Latina, bem aceito
na Espanha e era freqüentemente citado na bibliografia lacaniana
internacional em inglês e francês. Meu amigo J ean-M ichel Rabaté me
fez sentir extremamente honrado ao pedir-me que escrevesse o
capítulo sobre “D esejo e gozo no ensino de L acan” para o
6 Gozo

Cambridge Companion to Lacanque ele preparava. Redigir esse


capítulo implicava resumir muitas das próprias teses do texto do livro
em espanhol; ali também descobri, especialmente pelas marcações
da tradutora, Tamara Francês, que podia e devia explicar melhor
minhas propostas mesmo que as críticas exteriores fossem
escassas.
Por todos estes antecedentes, autorizaria uma nova reimpressão
em castelhano ou subme teria todo o material a uma exaustiva revisão
de acordo com as alterações feitas na edição francesa? Escolhi esta
última opção e trabalhei avidamente em meados de 2005 na
transformaçi.o do texto. O resultado é o volume que o leitor tem
agora em suas mãos.
A organização não foi alterada; os oito capítulos foram
mantidos, conservando seus títulos originais. Mas não há nem um
parágrafo que tenha a mesma redação, algumas referências
desapareceram, vários erros e erratas foram corrigidos (nada garante
que não apareceram novos), a bibliografia foi atualizada a partir da
edição deAutres Écritsde L acan em 2001, muitos textosmportante
i s
elaborados por colegas nestes anos foram incorporados às notas do
livro e, em algum caso, concretamente no capítulo III, “Gozo e
sexualidade”, sentiu-se, mais que a conveniência, a exigência de
incluir um item especial, o quinto, para abordar as complexas
relações entre o ensino de Lacan e o pensamento deFoucault. Assim
surgiram essas páginas, articuladas com o conjunto do livro, sob o
título de “Freud (L acan) ou Foucault” que atualizam o ponto mais
debatido atualmente da contribuição lacaniano sobre o gozo.
É também nesse terceiro capítulo que aparece uma inovação
terminológica que me parece se impor, pelo menos em espanhol: a
gozología.A lguns (Jean Allouch etc.) propuseram
psicanálise é uma
que é umaerotologia, mas esses mesmos autores reconhecem que
essa dimensão que eu qualificogozeira
de da psicanálise tem pouca
relação com Eros e sim uma íntima conexão, quando não uma
consubstanciação, com a freudiana pulsão de morte. Em francês ou
em inglês seria difícil encontrar uma palavra eufônica e correta para
nomear isso
gozología. queaem
J unto esseespanhol ficasurgem
novo termo tão claro e rico
outros de significação:
sintagmas que
a timidez c o respeito por convenções linguajeiras mantiveram à
Reeditar, reescrever, atualizar 7

distância tempo atrás: aspirações gozeiras, considerações


gozológicas, gozificaçãoe desgozificação do corpoetc. Uma vez
que o gozo tomou seu lugar na conceituação freudiana e lacaniana,
a contribuição dos sufixos que nossa língua oferece converte-se em
necessidade expressiva para que não haja razões para renunciar.
A pós estas considerações podemos voltar ao princípio eNo
princípio...

NéstorA. Braunstein
Cuernavaca, M éxico, janeiro de 2006
Primeira Parte

T e or i a
I

O gozo:de Lacan a Freud

1. No começo...

Estaria tentado a começar com uma fórmula gnômica:

Im Anfang war der Genuss(No princípio era o gozo),


que, é claro, se contraporia ao começoEvangelho
do de São João:
Im Anfang war das Wort
(No princípio era a palavra).

Não me dccido a fazê-lo, porque a contraposição seria falsa e,


entre gozo e palavra, não se pode dizer qual vem primeiro à medi
da que ambos se delimitam reciprocamente e se imbricam de um
modo que a experiência da psicanálise mostra como inextricável.
Porque somente há gozo no ser que fala e porque fala. E porque
somente há palavra em relação a um gozo que por ela se torna pos
sível ao mesmo tempo que limitado. É claro que a fórmula Im
Anfang war der Genuss agradaria ao último Lacan, mas seria inima
ginável para Goethe e seu Fausto queverbodo (Wort)de São João,
passavam àforça, ao sentido e, por fim, aoato: No princípio era
o ato, um ato que também, por força, é efeito da palavra e está em
relação com o gozo.
Uma alternativa seria causar equívoco, buscando um sinônimo
que pareça aceitável e escrever:
Im Anfang war die Freude(No princípio era a alegria),
12 Gozo

um aforismo que enfatizaria o aspecto bem-aventurado e jubiloso


que acompanha o gozo. Todavia, ao escrever de tal modo minha
tentadora fórmula gnômica começaria a confundir o gozo com sua
significação corrente, inespecífica, tão distante daquela que lhe
adjudicamos ao considerá-lo um conceito central na psicanálise
contemporânea. Por certo que, tratando-se de psicanálise, a seguinte
fórmula inevitavelmente se ouve como muito parecida com a anterior:
Iin Anfang war Freud(No princípio era Freud).
E, uma vez pronunciada, deve-se buscar Genuss,
o o gozo, em
Freud, em um Freud para quem o gozo nunca foi outra coisa senão
um vocábulo da língua, não fazendo dele um conceito de sua teoria.
A significação vulgar, a do dicionário, é uma sombra daquela
que convém distinguir constantemente caso se queira especificar este
termo em seu conceito psicanalítico. E nesse trabalho de
discriminação nunca se fica de todo conforme; as duas acepções
sempre passam, imperceptivelmente, da oposição à vizinhança. A
vulgar converte em sinônimos gozo e prazer. A psicanalítica enfrenta-
os fazendo do gozo ora um excesso intolerável do prazer, ora uma
manifestação do corpo mais próxima à tensão extrema, à dor e ao
sofrimento. E deve optar: ou uma ou outra.
E eis-me, aqui, disposto a encadear um discurso sobre o gozo,
tarefa impossível, pois o gozo, sendo do corpo e no corpo é da
ordem do inefável, já que paradoxalmente somente pela palavra pode
ser circunscrito, indicado. O gozo é o que escorre do discurso, mas
contudo esse inefável é a substância mesma do que se fala ao longo
de uma análise e, tratarei de mostrá-lo, aquilo de que sempre e desd
sempre
em fala o discurs
espanhol, é umo imperativo,
da psicanálise.
uma“Goze” (“goce
ordem, ”, no
uma srcinal),que não
injunção
poderia se confundir com seu precedente mais arcaico na língua, o
“gozo” que, por ser inefável, é impossível de ser dito como presente
do indicativo da primeira pessoa do singular. Pois, ao dizê-lo,
dissolve-se, como com o impronunciável nome de Deus. “Gozo”
(“goce”, no srcinal) em espanhol, der Genuss em alemão, la
jouissance em francês. Nunca enjoyment.Gozarão os tradutores do
inglês, buscandodeem
impossibilidade sua língua
nomeá-lo e à asrcem
palavra justa. Atendendo
lacaniana do conceitoà muitos
optam simplesmente pelo uso do francês: jouissance. “Gozo” e
O gozo: de Lacan a Freud 13

jouissance
freue que , derivam
n, Freunde Freud!) edoqueverbo latino
reserva*gaudere
algumas(alegrar-se)
surpresas(sich
na língua
corrente, quando se desdobra em suas acepções segundo a
autoridade, segundo a Rea l A cademia Espanhola:
Gozar: 1. T er e possuir alguma coisa; como dignidade, bens
ou renda.// 2. Ter gosto, complacência e alegria por alguma coisa./
/ 3. C onh ecer carnalm ente uma mul her.// 4 . S entir pra zer,
experimentar suaves e gratas emoções.

E interessante que a dimensão objetiva da primeira acepção


predomine
o gozo sejasobre
algo aque
dimensão
se subjetiva da segundaseente.
tem mais do que algo que se
da quarta,
Eé que
surpreendente a terceira acepção. Não se pode duvidar do
involuntário da distração do acadêmico ao não excluir que seja
‘outra” mulher a que pode conhecer carnalmente a “uma” e
tampouco se pode duvidar de seu pudor, não isento de lacanismo no
uso do artigo indefinido “uma”, pois não se pode aceder às mulheres
senão tomando-as uma por uma. O sexismo semântico imprime sua
marca inconfessa nesta acepção: gozar, sim,demasuma mulher no
conhecimento da carne. Pareceria ser inconcebível gozar de um
homem.E, para elas, só restaria gozar “conhecendo” outra. Não há
reciprocidade no gozo. Palavra de acadêmico em que o psicanalista
deverá pensar. “Gozar” que deriva do latim
gauderee que tem uma
herança reconhecida no verbo muito castiço “foder” (“ ”, no
joder
srcinal), um vocábulo que teve de esperar que o calendário
marcasse o ano de 1984 para que a Real A cademia Espanhola lhe
desse lugar pela primeira vez na trigésima edição de seu dicionário
e com uma etimologia que se quer arbitrária, pois o faz descender
do latimfutuere(fomicar), do qual indubitavelmente deriva a palavra

francesafoutre.e Um
no dicionário queverbo que teve
finalmente pôdedefazê-lo,
esperar séculos
mas para de
precedido entrar
uma
advertência insólita: “Voz muito dissonante”1(alguma relação, ainda

* No original, o verbo está no singular, referindo-se apenas ao gozo, deixan


do de ladojouissance. (N. da T.)
1. Na última edição do Dicionário daReal A cademia Espanhol (2001) segue-
se dizendo que é vocábulo ma!sonante, mesmo tendo sido eliminado o
advérbio muito. Há uma certa atualização, correto?
14 Gozo

que por oposição, com a afirmação lacaniana sobre a psicanálise


como uma “ética do bem dizer”?). De qualquer maneira, o verbo
“foder” não teria muito do que se queixar, pois uma vez admitido,
irrompe carregado desde um princípio com quatro acepções muito
ligadas aogaudere latino e a seus derivados gozar e joidr. Essas
quatro acepções são, em síntese, as seguintes: 1. Fornicar.2// 2.
M olestar, estorvar.// 3. A rruinar, dar a perder.// 4. Interjeição que
denota assombro ou incredulidade.
A s proximidades semânticas de “gozar” e “foder” poderiam
nos levar a acrescentar a esse par o verbo “jogar” jugar
(“ ”, no
srcinal),
em francês especialmente
entrejoui r esejouer.
considerarmos a proximidade
Não obstante, fonológica
a investigação
filológica nos ensina que palavras como “jogar” e “jóia” não
procedem dogaudere, e sim dojocum que é um gracejo ou uma
troça, algo próximo ao Witz freudiano, se nos colocarmos no plano
da linguagem e de seus artifícios.
Seria também possível pensar que este “jogar” jugar
(“ ”, no
srcinal) explica o “conjugar”, a operação gramatical que se realiza
•■•;rbo mas apenaspara advertir ao final que a “conjugação”
não é jogo, mas subjugação, um submeter os verbos ao tormento
de um mesmo jugo (juguin em latim). J ogar e conjugar que
remeteriam ao célebre sentido antitético das vozes, agora não
primitivas, agora derivadas, que interessaram em seu momento ao
Freud paralingüista.
E útil o esclarecimento, a semântica e a etimologia para
introduzir este vocábulo “gozo” que receberá da psicanálise outro
valor e brilho.
Em psicanálise, o gozo entra atravessando a porta de sua
significação convencional e assim aparece às vezes na escrita de
Freud, às vezes no L acan dos primeiros tempos, como sinônimo de
uma grande alegria, de prazer extremo, de júbilo ou de êxtase.
Inútil e modesto seria fazer o assinalamento das oportunidades
em que Freud recorre à palavra Genuss. M as seria bom recordar,
independentemente dos vocábulos usados, certos momentos capitais
2. Na edição de 2001 “fornicar” foi convertido para "praticar o coito''
O gozo: deL acan a Freud 15

em que o gozo, agora lacaniano, é destacado por Freud no espaço


da clínica. Sobre isso, não se pode deixar de mencionar a
voluptuosa expressão que ele observa no Homem dos Ratos quando
recorda o relato da tortura, um intenso prazer que era desconhecido
pelo paciente no auge do horror evocativo. Ou o júbilo que Freud
percebe no rosto de seu netinho quando está envolvido em brincar
com um objeto, o famoso carretel, da mesma forma que o próprio
menino é jogado pela alternância entre a presença e a ausência da
mãe; jogo de vai-c-vem do ser que se reitera ao fazer entrar e sair
sua imagem do marco de um espelho. Ou o gozo voluptuoso,
infinito, que experimenta o presidente Schreber, também diante do
espelho, ao constatar a transformação paulatina de seu corpo em um
corpo feminino.
O vocábulo “gozo” aparece no ensino de L acan afetado
também pelo uso convencional; não podia ser diferente. Assim foi
até um momento que pode ser especificado com rigor cronológico.
M as, antes, encontramos o gozo como equivalente do júbilo, e o
júbilo encontrando seu paradigma no reconhecimento no espelho da
imagem unificada de si mesmo,moi do (alia Erlebnis). L ogo surge
o gozo no advento do símbolo (fort-da) que permite um primeiro
nível de autonomia frente aos mandados da vida.
Referência errática ao gozo nos primeiros anos de um ensino,
o de L acan, que se centra em torno do desejo: a relação do desejo
com o desejo do Outro e do reconhecimento recíproco, dialético,
intersubjetivo dos desejos. Um desejo que transcendeu os marcos
da necessidade e que somente pode se fazer reconhecer alienando-
se no significante, no Outro como ugar
l do código e da Lei.
Não é que o desejo esteja desnaturalizado pela alienação e por
ter de se expressar como demanda por meio da palavra; não é que
o desejo caia sob o jugo do significante ou que este o desvie ou o
transtorne; não, é que o desejo somente chega a ser desejo pela
mediação daordem simbólica que o constitui como tal. A palavra é
essa maldição redentora sem a qual não haveria sujeito, nem desejo,
nem mundo. E este o eixo do ensino de Lacan durante laguns anos,
até o fim da décadade 1950. Os conceitos-chave nesse período são:
desejo, alienação e significante. Seu discurso gira em torno das
vicissitudes do desejo, a refração deste na demanda articulada, o
16 Gozo

desejo de reconhecimento e o reconhecimento do desejo, o acesso


à realidade que passa pela imposição ao sujeito das condições
impostas pelo Outro (o mundo, a ordem simbólica que induz efeitos
imaginários, a regulação da satisfação das necessidades e o ajuste
das condições dessa satisfação). São as conseqüências obrigatórias
de pensar a prática analítica como molinete de palavras e de
reconhecer a função da palavra no campo da linguagem.
Não foram poucos osdiscípulos e os leitores de L acan que se
ativeram a esta apreciação menos pática do que patética dos
conceitos. Não foram muitos, se é que houve algum, os que
perceberam a sacudida da árvore conceituai da psicanálise naquele
dia, já muito distante, em que L acan anunciou quea originalidade da
condição do desejo do homem se implicava em outra dimensão
diferente, em outro pólo contraposto ao desejo, que é o gozo.
De imediato, nada pareceu notar-se. Foi muito lentamente que
se fez patente que o novo conceito redelineava o estatuto da
psicanálise e obrigava a praticar um segundo retorno a Freud,
colocando-se além da dialética do desejo na obra de subversão do
sujeito, tanto do sujeito da ciência quanto o da filosofia.

noçãoNada
do havia
gozo de arbitrari
a um edade
lugar em Lacan
central ao promover,
da reflexão as
sim,
analítica ema
contraposição ao desejo, seu “outro pólo”. Por isso é necessário que
o conceito de gozo tenha que se esclarecer em uma dupla oposição,
por um lado, com relação ao desejo e, por outro, com relação àquele
que parece ser seu sinônimo: o prazer. Definir o gozo como conceito
é distingui-lo em seu valor diacrítico diferencial nessa dupla
articulação com o prazer e com o desejo.
M as de onde vem ajouissance? Por que L acan recorre ao
termo gozo e dele faz um conceito central? Não o extrai do
dicionário da língua que se confunde com o prazer, não é da obra
de Freud na qual se liga ao júbilo e à voluptuosidade, ainda que
masoquista. Temos de admitir que jouissance
a chega aL acan por
um caminho inesperado queé o do direito: L acan se nutre com a
Genuss,
filosofia do direito de Hegel, na qual aparece o o gozo, como
algo que é “subjetivo”, “particular”, impossível de compartilhar,
inacessível ao entendimento e oposto ao desejo que resulta de um
reconhecimento recíproco de duas consciências e que é “objetivo”,
O gozo: de Lacan a Freud 17

“universal”, sujeito à legislação. A oposição entre gozo/desejo, central


em Lacan, tem, pois, raiz hegeliana. Lacan lê Freud com umafaca
afiada na pedra de Hegel.
Não se insistiu o bastante sobre este ponto, mesmo queL acan
o indicasse claramente nas primeiras lições do seminário 20. Esta
importação conceituai a partir da teoria do direito (proibições) e da
moral (deveres) poderia desenvolver-se amplamente com profusão
de citações. Contentar-me-ei simplesmente em remeter o leitor às
partes 36 a 39 Propedêutica
da filosófica de 1810.3E quando, entã
o,
o dialético toma partido contra o gozo que é “acidental” e quando
se pronuncia a favor do esquecimento de si mesmo para se dirigir
ao que considera “essencial” das obras humanas, aquilo que remete
e concerne aos demais.
Também a partir desta remota origem, vê-se que a questão do
gozo como particular éuma questão ética. A psicanálise não pode
ser indiferente nesta oposição que enfrenta o corpo gozante com o
desejo que passa pela regulação do significante e da lei. A filosofia
e o direito, em suma, o discurso do senhor, privilegia a dimensão
desiderativa. Hegel, no texto citado, afirma: “Se expresso que uma
coisa também
expresso que ame agrada
coisa ou sevalor
tem esse me para
remeto ao Com
mim. gozo,isso,
somente
suprimi
a relação possível com outros, que se baseia no entendimento”.
Gozo que no discurso do direito remete à noção de “usufruto”,
de desfrute da coisa como um objeto de apropriação. O sistema
jurídico oculta que a apropriação é uma expropriação, pois alguma
coisa somente é “minha” enquanto há outros para quem o “minha”
é alheio. Pode-se gozar legitimamente apenas daquilo que se possui
e para possuí-lo plenamente é necessário que o outro renuncie às
suas pretensões sobre sese objeto. Aqui se encontram econfluem
rapidamente as teorias do direito e da psicanálise. Coloca-se desde
um primeiro momento a questão fundamental da primeira
propriedade de cada sujeito, seu corpo, e as relações deste corpo
com o corpo do outro tal como estão asseguradas por um certo
discurso ou vínculo social. Questão da compra e da posse do outro

3. G. W. F. Hegel.P ropedêutica filosófica. M éxico: Unam, 1984. p. 59-62.


18 Gozo

na escravidão, no feudalismo ou no capitalismo e também


problemática psicanalítica do objeto da demanda; trata-se tanto do
objeto oral como do excrementício. O central é o gozo, o usufruto,
a propriedade do objeto, a disputa em torno do gozo do mesmo e
do gozo mesmo como objeto de litígio, a apropriação ou
expropriação do gozo na re
lação com o Outro. M eu corpo é meu ou
está consagrado ao gozo do Outro, esse Outro do significante e da
lei que me despoja desta propriedade que somente pode ser minha
quando arrancada da ambição e do capricho do Outro?
O direito mostra com isso sua essência: a regulação das

restriçõessocial.
contrato impostas
O queao égozo
lícitodos corpos.
fazer e até E, em se
onde outras
pode palavras, o
chegar com
o próprio corpo e com o dos demais? Tema, como se vê, das
barreiras ao gozo. Licitude e licenças.
M as não é só a teoria do direito. Também a medicina e o que
a psicanálise descobre nela atuam como fonte de inspiração para a
promoção lacaniana do conceito degozo. Foi em 5 de março de 1958
que, em seu seminário dedicado a“As formações do inconsciente”4
L acan propôs amencionadabipolaridade entre gozo e desejo. Mas
foi em uma ocasião bastante posterior, em 1966, falando de
“Psicanálise e medicina”, que ele recordou a experiência banal do
médico obrigado a constatar vez ou outra que, sob a aparência da
demanda de cura, esconde-se com freqüência um apego à doença
que derrota sem perdão os progressos que a técnica põe ao alcance
do médico. Que o corpo não é unicamente a substância extensa
preconizada por Descartes em oposição à substância pensante, mas
que “foi feito para gozar, gozar de si mesmo”.5Este gozo, disse, é
o mais evidente, ao mesmo tempo que o mais oculto na relação que
estabelecem o saber, a ciência e a técnica com essa carne que sofre
e que é feita corpo que se põe nas mãos do médico para sua
manipulação. Ali está, à vista de todos: o gozo é carta
a roubadaque
o imbecil do delegado não pode encontrar no corpo do paciente

4. J. L acan (1958). Le séminaire. Livre V. Les formations de l'inconscient.


Paris: Seuil, 1998. p. 251-2.
5. J. L acan (1966). I ntervenciones y textos. Buenos A ires: M anantial, 1985.
p. 86-99.
O gozo: de L acan a Freud 19

depois
escala de fotografá-lo,
molecular. O gozoradiografá-lo,
é o viventecalibrá-lo
de uma esubstância
diagramá-lo atéseuma
que faz
ouvir por meio do desgarramento de si mesmo e da colocação em
xeque do saber que pretende dominá-la.
A medicina surge, deve-se lembrar a lição de Canguilhem,6
como uma reflexão sobre a doença e sobre o sofrimento doloroso
dos corpos. A preocupação com a saúde e com a fisiologia é
secundária ao interesse pela patologia. A medicina define sua meta
como um estado debem-estar, de adaptação e de equilíbrio. Não é
difícil reconhecer nela o ideal freudiano inicial (médico, certamente)
do princípio de prazer, da menor tensão, da constância e o equilíbrio.
A saúde recebe da medicina sua clássica definição: “é o silêncio dos
órgãos”. M as o silêncio não é senão ignorância, a indiferença do
corpo e de suas partes ante a agitação da vida. “Gozar de boa
saúde” pode ser, assim, uma renúncia à experiência do gozo em
favor das vivências do prazer, do que alheia e aliena o sujeito da vida
do seu corpo como uma propriedade de alguém, ele mesmo, que o
usufrui. Naquela conferência L acan dizia: “O que chamo gozo no
sentido daquilo que o corpo experimenta é sempre da ordem da
tensão, do forçamento, do gasto, inclusive da proeza.
Indiscutivelmente, há gozo no nível em que começa aparecer a dor,
e sabemos que é somente nesse nível da dor que se pode
experimentar toda uma dimensão do organismo que, de outro modo,
permanece velada”.
O “gozo daboa saúde” pode ser o contrário do gozo do corpo
como experiência vivida do mesmo. A medicina vê-se, assim, dividida
entre as metas do prazer e o gozo e, normalmente, assume sem
crítica a demandaque se lhe formula: a de colocar barreiras ao gozo,
ignorando-o como dimensão corporal da subjetividade. Pode-se
aludir à pergunta sobre esta relação entre medicina e gozo e o vínculo
que esse não querer saber do médico tem com o discurso do senhor,
ou pode-se eludi-la. Prefiro aludir a ela: outros poderão tratá-la
minuciosamente.7 Não serão os primeiros, mas talvez os mais

6. G Canguilhem. Lo normal v Io patológico. Buenos A ires: Siglo X X I, 1971.


7. J. Clavreul. L ’ordre médical. Paris: Seuil, 1979.
20 Gozo

precisos. A o terminar sua conferência de 1966, Lacan definia sua


ambição: continuar e manter com vida própria a descoberta de
Freud, fazendo de si mesmo um “missionário do médico”. Era
destacando essa idéia do gozo do corpo como o que se localiza
“além do princípio de prazer”, que L acan assumia de modo radical
sua missão, contrária à empresa universal da produtividade. O saber
resiste à noção do gozo inerente aos corpos, uma idéia que somente
se pode propor a partir da “descoberta de F reud”, de Freud no
sentido subjetivo do “de”, aquilo que Freud descobriu, e também no
sentido objetivo, aquilo que L acan descobrir ao descobrir Freud.
Essa descoberta de Freud tem um nome inequívoco: o inconsciente.
Cabe então a pergunta: por que apenas a partir da novidade lançada
por Freud pode-se estabelecer o articulação entre gozo e corpo?
Para respondê-la, deve-se fazer um segundo “retomo a Freud”.

2. O gozo em Freud

Pois... lm Anfang war Freud.


No começo era Freud pregado ao discurso oficial da medicina,
aderido a uma concepção mecânica e fisiológica do sistema nervoso
como um aparelho reflexo que recebia e descarregava as excitações
que a ele chegavam. O organismo, tal como concebido pelo primeiro
Freud, está regulado por vias nervosas aferentes e eferentes que
aspiram evitar a tensão e a dor e provocar estados de distensão, de
apaziguamento, de diferença energética mínima, que se sentem
subjetivamente como prazer. Para esse Freud médico e neurologista,
cenário mais do que autor da descoberta do inconsciente, as
neuroses eram estados mórbidos que sobrevinham sob a forma do
sofrimento quando o aparelho não podia livrar-se dos incrementos
de energia que o transformavam. Recordemos esquematicamente
que ele reconhecia três organizações diferentes:8um sistema $ para
receber as excitações e dar conta das modificações que se

8. S. Freud (1896). Obras completas.Trad. J. L. Etcheverry. Buenos Aires:


A morrortu, 1976. v. I, p. 1.
O gozo: de L acan a Freud 21

produzi
facilitaram
osno entorno; de
caminhos umdescarga,
sistema para
paraequi l ibrar
fixar as carga
e avaliar s, para
as excitações;
e um sistema co para registrar os acontecimentos como experiência
memorizada e oferecer um acesso direto à realidade.
Nesta primeira exposição metapsicológica, de 1895, oeu faz
parte do sistema VF e ocupa um ul gar decisivo no processo defensivo
a serviço do princípio de prazer-desprazer. Com este aparelho,
apresenta-se uma primeira versão da srcem e funcionamento do
inconsciente.
O paciente da neurose, o “doente”, é uma criança que viveu
passivamente umasedução por parteedum adulto; a sexualidade
aparece primeiro no Outro. Essa criança registrou (em co) essa
irrupção do rea l sexual externo. A lembrança éuma marca que não
pode integrar-se no sistema de representações (ou de “neurônios”)
que é o sistema do eu ('P), porque sua presença provoca um
aumento tensional que não encontra caminhos para sua descarga.
Em outras palavras, a lembrança traumática é um tipo de corpo
estranho ao eu que ameaça o sistema em seu conjunto. Para o
princípio de prazer, que pretende o equilíbrio energético, esta
lembrança é inassimilável, não cabe na memória, e por isso é
separada do sistema reconhecido das representações. É assim que
a lembrança se torna traumatismo, ao mesmo tempo ferida e arma
ferina que não se pode tolerar; dor e tortura de uma memória
inconcil iáveis com o eu. O aparelho neurona l - ou o sujeito, caso
se queira arriscar uma premonição de lacanismo separa-se
horrorizado da lembrança. M as esse afastamento, essarepressão,
longe de fazer desaparecer a evocação do trauma, a eterniza:
impossível metabolizar e digerir, fica a lembrança como um quisto
localizado na estruturapsíquica. Já não é possível atenuá-la, dela se
esquivar com o raciocínio ou com o esquecimento.
O paradoxo é evidente: o princípio de prazer determinou o
ostracismo e a exclusão da lembrança traumática. Para se proteger
do desprazer, o aparelho decretou a ignorância dessa presença do
Outro e de seu desejo que intervém sobre o corpo de uma criança,
objeto indefeso do qual abusa para gozar. Mas, ao cindir-se como
núcleo reprimido de representações inconciliáveis com o eu, este
réprobo do psiquismo, metamorfoseado em memória inconsciente,
22 Gozo

conserva-se para sempre, torna-se indestrutível, atrai e liga a ele as


experiências posteriores e retorna, opressivo, às vezes nas
posteriormente chamadas “formações do inconsciente”, entre as
quais o sintoma é a mais sensacional. L acan insistirá em assinalar
que o reprimido não existe senão por seu retorno e quea repressã o
é o mesmo que o retorno do reprimido. O princípio econômico do
prazer engendrou a persistência onerosa e antieconômica do
intolerável que volta e faz sofrer. O sujeito, aquele do inconsciente,
experimenta a si mesmo na tortura dessa memória recorrente que
o põe em cena como objeto da lascívia do Outro.
O eu produziu o efeito paradoxal de aprisionar o inimigo
perigoso, o desencadeante de reações imprevisíveis se deixado em
liberdade. Para conservá-lo na prisão, deve viver defendendo-se de
sua possível fuga, de uma fuga que não deixa de se produzir quando
se enfraquecem as defesas. Fica submetido a seu submetido,
escravo de seu escravizado. Agora, o agente traumatizante não é
mais o Outro, mas a lembrança dasedução que ata ca - e sempre -
desde dentro, desde sua prisão. Não há escape possível. O sistema
gerou aquilo do qual, doravante, terá de se defender. O externo
tornou-se o mais íntimo, um interior inacessível e ameaçador.
Esta primeira teoria da etiologia das neuroses é o solo natal
daquilo de que a psicanálise nunca chegará a se desprender.
Incluindo aí a teoria do gozo.
A sedução. O corpo da criança é a coisa indefesa e se presta
ao abuso. O objeto reclamado por e para o Outro. Essa sedução se
faz presente com os primeiros cuidados, com os modos como se
administra .a satisfação das necessidades, com a regulação e sujeição
do corpo da criança às exigências e aos desejos inconscientes do
Outro. Há um motivo daquilo que não pode haver motivo, um
enigma sem solução. Quem poderá definir o lugar que a criança
ocupa como objeto no fantasma do Outro, em especial o Outro
materno, que é o sujeito? Quem poderá saber o que ele mesmo e
desde o nascimento representa no desejo do Outro? A se-dução
vetoriza, atrai e aliena o desejo da criança em relação ao desejo desse
Outro que chama a si (se-duz) ao mesmo tempo em que erige
defesas e emite proibições que constituem e rodeiam com cercas de
arame farpado o objeto de um gozo eventual. Desejar e desejar o
O gozo: de L acan a Freud 23

proibido.
gozo A sedução
no corpo srcinária,
e o prepara essencial,
para não caricata,
sua imediata localiza
condenação. O ogozo
chega assim a ser inaceitável, intolerável, inarticulável, indizível. Em
outras palavras: fica submetido à castração. Assim, faz-se sexual a
sexualidade, canalizando-a pelas vias que Freud batizou com o nome
de um certo rei de Tebas de sorte tão funesta como sua memória.
Parece que seguíamos no caminho de Freud, mas, sem nos
afastarmos de suas formulações, o desviamos no que se refere às
conseqüências. O aparelho psíquico que desenhamos não está

governado por um contrapostos.


por dois princípios princípio soberano, o do esquematicamente:
Colocando prazer-desprazer, mas
de
um lado, o clássico princípio de prazer, regulador ehomeostático(se
nos atrevermos a usar uma palavra que Freud nunca usou, se é que
chegou a conhecê-la); e, de outro, um princípio que está além,
chamemo-lo por enquanto de gozo, gozo do corpo, que orienta um
retorno incessante de excitações irreprimíveis, uma força constante
que desequilibra, sexualiza, torna o sujeito desejante e não máquina
reflexa. Não seria lícito figurar assim, mediante o gozo, o Aqueronta
da indelével epígrafe daTraumdeutung? a sarça ardente onde
habitam as sombras irredimidas que perturbam para sempre o sono
dos vivos?Flectere si nequeo superas, Acheronte movebo.
A carne doinfans é desde o princípio um objeto para o gozo,
para o desejo e para o fantasma do Outro. Ele deverá conseguir
representar para si seu lugar no Outro, ou seja, deverá constituir-
se como sujeito passando, imprescindivelmente, pelos significantes
que procedem desse Outro sedutor e gozante e, ao mesmo tempo,
inter-ditor do gozo. O gozo fica assim confinado por essa
intervenção da palavra, em um corpo silenciado, o corpo das
pulsões, da busca compulsiva de um reencontro sempre fracassado
com o objeto. Falo doWunschfreudiano, efeito da experiência de
satisfação. Falo do desejo inconsciente e de seu sujeito.
O sujeito, aquele que L acan introduz na psicanálise por tê-lo
ouvido falar nela, produz-se, então, como função de articulação, de
dobradiça, entre dois Outros, o Outro do sistema significante, da
linguagem e da Lei, por um lado, eo Outro queé corpo gozante,

9. S. Freud (1900). Obras completas,v. IV, p. 339-436.


24 Gozo

incapaz de encontrar um lugar nos intercâmbios simbólicos,


aparecendo nas entrelinhas do texto, suposto.

desseA excesso
teoria traumática do primeiro
de excitação e carga,Freud
desseé gozo
a colocação em cena
impossível de
manejar que seapresenta ultrapassando o sistemaamortecedo r das
representações (Freud), dos significantes (Lacan), que são o lugar
do Outro. O gozo: inefável e ilegal; traumático. Um excesso trop- (
matisme,C. Soler) que é um buraco trou-matisme)
( no simbólico,
segundo expressã o de L acan.10Esse buraco indica o lugar do real
insuportável. Deste modo, o gozo consegue ser o exterior, o Outro,
dentro de si mesmo, representante do Um resignado para entrar no
mundo
para dos intercâmbios
o sujeito que o aloja ee da
que,reciprocidade. topos
Um ainacessível
por razão alheia, do Outro exterior
internalizado, deve ser cuidadosamente exilado. Esta posição de
exterioridade interior,
tão semelhante àquilo que Freud chamou Isso
(Es), é trabalhada topologicamente por Lacan quando se fala de
extimidadeV É, sem dúvida, o obscuro núcleo de nosso(Kern ser
unseres Wesen).N ão se trata aí de palavras, não se trata do
inconsciente. M as tampouco é alheio à linguagem, pois é da
linguagem que fica excluído e é apenas pela linguagem que podemos

conhecê-lo.
ciframento doNão;
gozonãorequererá
é palavra,um
é letra, escritura
capítulo a decifrar.
especial, o quarto.O de-
A o resenhar seu seminário sobreA lógica do fantasmaem
1967, Lacan12chegou adizer que esse gozo, núcleo de nosso ser,
“é a única ôntica admissível(avouable -confessável) para nós”. A
substância da análise. M as o gozo não pode ser abordado senã o a
partir de sua perda, da erosão do gozo produzida no corpo pelo que
vem desde o Outro e que deixa nele suas marcas. O Outro não
corresponde a nenhuma subjetividade, mas sim às cicatrizes deixadas

na pele e nas mucosas, pedículos que se combinam nos orifícios,

10. J. L acan. Le séminaire. Livre XXI. Les non-dupes errent.A ula de 19 de


fevereiro de 1974. Inédito.
11. J. L acan (1959). Le séminaire. L ivre VII. L ’étique dans la psychanalyse.
Paris: Seuil, 1986. p. 167.
12. J. L acan (1967).Resehas de ensenanza. Buenos A ires: M anantial, 1984.
p. 45.Ornicur?, n. 29, p. 17, 1984.
O gozo: de Lacan a Freud 25

ulceração e usura, escarificação e lástima, mágoa e dor, penetração


e castração. Tudo
( isso é apenas paráfrase.)
O trauma freudiano explicava as psiconeuroses de defesa; agora
pode-se dizer que essa defesa é defesa frente a uma elevação no
gozo, que a defesa é neutralização de uma lembrança vivida de modo
prazeroso ou desprazeroso. Se a experiência foi de prazer, as defesas
e os controles devem erigir-se no próprio sujeito: a configuração
sintomática, centrada na formação reativa, será a da neurose
obsessiva, a de alguém que se distancia de seu próprio gozo. Se a
experiência foi desprazerosa, segundo Freud, o perigo será
representado como provindo do Outro sedutor; as defesas serão as
da aversão e da conversão somática próprias da histeria frente a um
gozo suposto no Outro. Os dois modos de relação com o desejo do
outro que caracterizam, distinguem e opõem a neurose obsessiva e
a histeria são, assim, modos de separação. O sujeito se desvia do
gozo que é deslocado e realocado no corpo como sintoma.
Com o estabelecimento da neurose, isso, o corpo, fala; o gozo
desterrado volta por seus foros, demanda um interlocutor, dirige-se
a um saber que falta para que suas inscrições possam ser decifradas
pelo único desfiladeiro possível, a palavra. Essa é a doutrina
freudiana do sintoma. A fórmula consagrada e reiterada várias vezes
por Freud para definir o sintoma é “satisfação sexual substitutiva”.
A teoria do tratamento psicanalítico está fundada, desde o
princípio, na possibilidade de habilitar o caminho da palavra a esse
gozo sexual, encapsulado e seqüestrado não disponível ao sujeito.
Em Freud, também em Lacan no início, o objetivo é a inclusão do
reprimido no contexto de um discurso amplo e coerente. A prática
da análise deveria permitir a inclusão do gozo na história do sujeito
como integrando-a a um saber que pode chegar a ser o saber de
alguém, pronto a dotar-se desentido, pronto, por isso mesmo, ao
equívoco e ao incomensurável. Wo Es war soll Ich werden.
Impossível dizê-lo com maior economia.
Esta posição do sintoma como gozo encapsulado é paradigmá
tica e vale para todas as formações do inconsciente. O inconscien
te mesmo consiste nessa atividade dos processos primários
encarregados de operar um primeiro deciframento, uma transposi
ção, umaEntstellungdos movimentos pulsionais até figurá-los como
26 Gozo

cumprimentos do desejo. A condensação c o deslocamento, opera


ções
dessaexercidas
escritura sobre uma
srcinária substância
à palavra, sãosignificante,
processos desãotransforma
passagens
ção do gozo em dizer, do gozo do corpo em dizer em torno desse
gozo. Os processos primários executam um contrabando do gozo.
O gozo, por ter de dizê-lo, é evocado, frustrado, deslocado para o
campo do perdido, ao outro pólo: o do desejo.
M as o inconsciente existe apenas na medida em que seja
escutado. Somente se isso que é dito encontra um bom entendedor,
alguém que não o afogue no marulho do sentido, alguém que resgate
sua condição enigmática e habilite um possível gozar do
deciframento. Assim, o inconsciente depende da formação do
analista. O gozo, suposto prévio, será o efeito e o produto da ação
interpretativa que produz a boa sorte, a feliz hora de um saber alegre.
Toda a teoria freudiana sobre os sonhos e sua interpretação é
re-volvida por Lacan a partir de suas conferências pelo rádio em
junho de 1970,13na qual os processos do inconsciente são postos
em relação com o gozo. E, pouco depois, no seminário 20,14

especificará
inconsciente sua
estarcolocação ao como
estruturado estabelecer que, apesar
uma linguagem, nãodeéomenos
claro que o inconsciente depende do gozo e é um aparelho que serve
para a conversão do gozo em discurso. Não creio que seja injusto
buscar aí o sentido do aforismo freudiano clássico: “o sonho é a
realização de um desejo”. A realização do desejo (
Erfiillung ) é sua
satisfação, portanto, seu desaparecimento como desejo, como falta
a ser, como cisão do sujeito. Por isso, pode-se dizer que o sonho é
alucinação do gozo e também defesa em relação a ele (em suma,
formação de compromisso), pois esbarra no impossível de
representar e dizer. E sabido que o processo de interpretação do
sonho encontra um limite no contato com a satisfação desnuda do
desejo que deve figurar e que esse é o momento do despertar e da
angústia. A angústia é o afeto que se interpõe entre o desejo e o
gozo, entre o sujeito e a Coisa.
I14.
3. J.
J. LL acan
acan (1970). Radiophoni
(1973).Le e. In:Livre
séminaire. Autres
XX.écrits.Paris:
Encore. SeuiSeuil,
Paris: l, 2001.1975.
p. 403-48.
p. 49.
O gozo: de Lacan a Freud 27

É lambem sabido que a interpretação do sonho conduz a um


enigma ininterpretável; é o ponto em que o sonho assenta no não
conhecido, em um inacessível lugar de sombras. Freud15reconhece
e batiza esse ponto com o nom e de “umbigo” do sonho; ele é, pode-
se generalizar, o umbigo de todas as formações do inconsciente.
Todas elas podem ser compreendidas como eflorescências, como
fungos que se elevam desde um micélio que está além das
possibilidades do dizer: S (A). Faltam palavras para simbolizar isso
que pelas próprias palavras chega a se produzir como impossível,
real, gozo.
Não seria trabalho inútil reler sob esta luzAtoda
interpretação
dos sonhos, mostrando a relação que há entre aEntstellung
(distorsão) operada pelo trabalho do sonho como primeiro
deciframento do gozo e pelo trabalho interpretativo do analista. Por
esse caminho desembocar-se-ia no capítulo 7 e se descobriria na
concepção do aparelho psíquico a maquinaria que converte o gozo
em um discurso que o evoca e que é a única via que permite abordá-
lo. Razão pela qual o sonho é o caminho real que conduz... ao
impossível, a esse impossível decifrado e tomado irreconhecível pelo
trabalho do inconsciente.

O inconsciente
continuar dormindo. emE o seu tear, urdindo
guardião os sonhos,
do repouso. permite
Se o sonho é
formação de compromisso a serviço do princípio de prazer, é devido
à sua natureza bifronte. Decifra o gozo, coloca-o em palavras,
cuidando ao mesmo tempo para que seu montante não exceda certos
limites de segurança, tratando de colocar o fluxo das representações
oníricas no centro desse “tijolo de segurança” por onde devem voar
os aviões para evitar a perturbação do encontro com outros objetos
voadores. E possível recordar que o primeiro Lacan (na conferência
de 6 de julho de 1953 sobre o imaginário, o real e o simbólico)
enquanto preparava seu discurso de Roma, sustentava que a leitura
de A interpretação dos sonhosmostrava que sonhar era imaginarizar
o símbolo, enquanto interpretar o sonho era simbolizar a imagem.
E bem que poderia ser assim, mas ao preço de desconsiderar o
resto, o significante doindizível com qUe se tropeça ao querer

15. S. Freud ( 1900). Obras completas,v. V, p. 5.


28 Gozo

simboli zar a imagem [S (A)] e o doirrepresentávelquando se trata


de imaginarizar o símbolo. O que ficaria de fora? O não especular,

o objeto @*
justamente que, como
o micélio sobre ocausa doeleva
qual se desejo (mais-de-gozo),
o fungo do sonho comoé
discurso e também o discurso como sonho, assento e suporte de um
primeiro decif ramento do gozo. A ssim entendemos, com L acan, a
micótica metáfora de Freud. O sonho, cogumelo do gozo.
Deslocamento? Sim; deslocar, transpor. Esse é o trabalho do
inconsciente. Um maldito sacré
( ) deslocamento. E o de L acan?
Entstellung,re-flexão de Freud a partir do gozo. Segundo retomo.
Também nós teremos de retornar.
A “Psicopatologia da vida cotidiana”16ilustra, tomando o
discurso como um sonho, a presença deste ciframento e
deciframento do gozo. O sujeito transtornado, subvertido pela
emergência de um saber inesperado lapsus
( ) ou pela falta de um
significante que traz associações perturbadoras (esquecimento de
nomes próprios, inesquecível Signorelli) ou por uma ação que falha
na hipocrisia do eu. O sujeito fica deslocado e envergonhado. A
tensão u( neasiness) do corpo confessa o gozo que escapou pelos
resquícios da função intencional da palavra que consistia em mantê-
lo cindido e desconhecido. O sujeito do lapsus é o sujeito
“embaraçado” que manifesta seu embaraço ao não saber mais quem
é, porque o Outro éxtimo se expressou. A verdade pega a mentira

* O leitor pode se surpreender ao encontrar esta grafia para se referir ao


que L acan considerava sua criação mais importante. Ele começou utilizan
do o a em itálico para indicar que se tratava de um objeto imaginário. O
uso habitual com a letra a minúscula presta-se a confusões em diferentes
contextos com a preposição “a” em espanhol, ou com a conjugação do
verto “ter” (il/elle a) em francês. Se L acan tivesse contado com nossos
dispositivos atuais de escrita, é bem possível que houvesse admitido este
signo (@) com entusiasmo: é uma letra pura, sem valor fonemático, uma
escrita carente de toda significação, o matema por excelência. Haveria de
dizer que @ é @-fônico. Gostaria que o uso da letra @ no texto que se
gue pudesse chegar a ser de uso universal em nossa álgebra Iacaniana. Na
linguagem falada, de qualquer forma, deverá seguir pronunciando a pri
meira letra do alfabeto, da mesma maneira que dizemos “zero” ou “um”
para maternas que somente podem ficar danificados pela fala.
16. S. Freud (1901).Obras completas,v. VI.
O gozo: de Lacan a Freud 29

no equívoco e o eu se revela nesse momento como função de


desconhecimento,
normalmente, tem de proteção
a missão de frente
impediraoque
excesso, A palavra,
essas fugas (cotidianas
e psicopatológicas) se repitam. Missão impossível.
Sabe-se que Freud trabalhava em 1905 sobreduas mesas. Em
uma escrevia “O chiste e suarelação com o inconsciente”,17na outra
“Três ensaios sobre ateoria da sexualidade”.18Quem observou que
as duas obras são uma? Os freudólogos preocupam-se ainda em
descobrir qual das duas foi primeiramente terminada ou publicada
sem considerar a fraternidade solidária entre as duas portas, duas
portas que são o corpo do simbólico e o simbólico do corpo. O
chiste e a sexualidade, o atamento entre palavra e gozo, revelam-se
tanto em um quanto no outro texto. Do lado Witz, do o afeto, a
alegria, a explosão prazenteira da gargalhada, a excitação da
lembrança do chiste escutado ou relatado, o riso como objeto de
intercâmbio, a demanda que está implícita ao relatar um chiste: “Dê-
me sua risada”, a sacudida corporal que é provocada pela saída
insólita e surpreendente de uma palavra estranha ao discurso. Todas
são expressões de uma sexualidade que desliza e patina no
pavimento do significante. O corpo é um efeito feito na carne pela
palavra que o habita; é o corpo constituído pelos intercâmbios e
respostas recíprocas às demandas. A sexualidade - é a tese de 1905
- tem uma genealogia, que éa da dialética da demanda e do desejo
entre o sujeito e o Outro. O sujeito é essa função de articulação entre
o corpo e o Outro, o corpo como Outro e o Outro como corpo. O
afeto é um efeito da incorporação da estrutura e da incorporação do
sujeito na estrutura. Esse é o chiste.
Que a palavra tome corpo, que o corpo tome a palavra. O gozo
decifra-se no riso que está além do sentido. Se a explicação mata o
chiste é porque o transfere desde o sem sentido, onde se goza, até
o sentido, onde sua existência já é de prazer. O gozo desconcerta,
o prazer con-certa, acalma. Cabe aos psicanalistas tirar a lição e
decidir para onde apontarão com sua intervenção: para o sentido que
dá prazer ou para o goz
o que revela o ser?

17. S. Freud (1905).


Obras completas, v. VIII.
IX. S. Freud (1905).O bras completas, v. VII.
30 Gozo

A sexuali dade endógenaou exógena


? A pulsão, um fato natural
ou um efeito dos intercâmbios? O gozo, emanando do sujeito ou do
Outro?
As topologias bilaterais, diádicas, opositivas, não podem senão
extraviar. O império da banda de M oebius e sua desconcertante
continuidade é aqui absoluto. A sexuali dade não afeta o corpo a partir
de dentro dele mesmo ou a partir de fora do gozo perverso do
Outro, mas é litoral de união-desunião do sujeito e do Outro. Caso
fosse possível desenhar o sujeito e o Outro como dois círculos
eulerianos, dever-se-ia tomar a precaução de não fazê-los com dois
traços fechados sobre si mesmos,

mas com um traço tão contínuo quanto o da própria borda da banda


de M oebius:

Sujeito Outro

no qual a mínima descontinuidade imposta ao arranco do vetor não


é mais do que um artifício necessário à representação intuitiva, pois
nenhuma descontinuidade pode se marcar no real entre uma e Outra
sexualidade. A sexualidade, a pulsão, o gozo. De Um e do Outro.De
um fora que é dentro e de um dentro que está fora.
O princípio de prazer revela aqui sua essência. É o modo de
conter e refrear, por meio de uma instância interposta - o eu - o
gozo. Sua operação não depende da Lei. É uma barreira queL acan
chama “quasenatural”.19Seu funcionamento é comparável ao dos

19. J. L acan (1960). Écrits. Paris: Seuil, 1966. p. 821;


Escritos 2. M éxico:
Siglo XX I, 1984. p. 801.
( i )'o/.o: deL acan a Freud 3!

liiMvcis na instalação elétrica. A Lei, Lei aqui com maiúscula, agrega-


.(■secundariamente e faz desta barra quase natural um sujeito
I urrado. O prazer é um dispositivo built-in, incorporado desde o
pi incípio, uma função da ordem vital, incoerente, mas ineludível. A
ele se agregará, em um momento logicamente posterior, uma
pmihição externaalém de toda acontestação: é a L ei. L acan escreve
Iri do prazer” e “L ei do desejo”. Deve-se observar o uso das
minúsculas e das maiúsculas que remetem umas à ordem da
n.iiureza e outras ao registro simbólico. A lei do prazer é o
lundamento, orgânico, diríamos, da Lei.
0 gozo está proibido ao que fala como tal. A L ei funda-se por
t-sia proibição; é Outra, uma segunda, interdição. É aquela que Freud
encontra quando deve reconhecer em sua teoria e na clínica o caráter
decisivo, irredutível e heteróclito do complexo de castração. E a
pmibição do gozo que traz uma marca e um sacrifício: aquele que
iecai sobre o falo que é, por suavez, o símbolo dessaproibição. A
I .ei faz, assim, a lei entrarna ordem simbóli ca. A L ei do desejo.
Tudo que foi exposto sobre a teoria lacaniana do gozo tem lu-
(■ar, em meio a esta revisão da obra de Freud na perspectiva de um
segundo retorno a ela para ressignificá-la em torno do conceito de
gozo, à medida que, como se sabe, o complexo de castração é o
ponto culminante da teoria da sexualidade na obra de Freud. Com
eleito, os trê s ensaios de 1905 não culminam senão em 1923 com
o artigo “A organização genital infantil”20que preanuncia os decisi
vos acréscimos que fez aos três ensaios, na edição de 1924, na
leescrita da psicopatologia psicanalítica em 1926 com “Inibição, sin-
loma e angústia” e na nova teoria das perversões, autêntico final dos
"Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, que é o artigo “Feti-
ihismo”21 de 1927.
Ter-se-á a oportunidade de voltar à relação entre gozo e cas
tração. Poder-se-ia dizer que tal é a oposição fundamental na clínica
lacaniana já que é o eixo sobre oqual se articula a direção do trata

mento analítico. O interessante, no momento, é marcar como a teoria
freudiana da sexualidade deve ser entendida a partir do complexo de
eastração. E adiantar, desde já, esta relação das duas leis: a do

20. S. Freud (1923).Obras completas,v. XIX , p. 145-50.


21. S. Freud (1927).Obras completas, v. X X I, p. 147-52.
32 Gozo

prazer e aL ei da castração ou do desejo. A segunda é aque se en


carna - se incorpora melhor do que se encarna no sujeito por
meio daquilo que Freud descobriu antes do complexo de castração,
ou seja, o complexo de Édipo. Incorpora-se, posto que faz da car
ne corpo, desaloja o gozo dessa carne, o barra, o proíbe, o desloca,
o promete. O sujeito deve renunciar ao gozo em troca de uma pro
messa de outro gozo queé aquele próprio dos sujeitos daLei. Pelas
vias - ambas assinaladas por Freud, ambas contestadas justificada-
mente por Lacan - da angústia decastração masculina e da inveja
feminina do pênis, o sujeito vê-se levado, primeiro, à localização do
gozo em um lugar do corpo e, segundo, à proibição do acesso a
esse gozo localizado se não passar antes pelo campo da demanda
dirigida ao Outro, ao Outro sexo, no amor. O gozo srcinário, gozo
da Coisa, gozo anterior à L ei, é um gozo interdito, maldito, quede
veria ser declinado e substituído por uma promessa de gozo fálico
que é consecutiva à aceitação da castração: “Somente lhe é lícito pro
curar aquilo que perdeu”.
O gozo fálico é possível a partir da inclusão do sujeito como
súdito daLei no registro simbólico, como sujeito dapalavra que está
submetido às leis da linguagem. O gozo sexual faz-se, assim, gozo
permitido pelas vias do simbólico.

comoOdobradiça
freudianoarticulatória
complexo deentre
Édipo encontra,
dois então, seu lugar
gozos diferentes.
A L ei, que separa do gozo da mãe e põe o nome-do-Pai nesse
lugar, ordena desejar; este desejo encontra sua possibilidade de
realização por meio do viés do amor - que será um tema a ser
tratado na perspectiva do gozo (capítulo 8) - , do amor como
sentimento encarregado de suprir a inexistência da relação sexual e
de trazer de volta o gozo a que se teve de renunciar.
A obra de Freud, “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”
encontra sua continuação lógica nos trabalhos sobre a psicologia da
vida amorosa,2 2 também três, e ne
sse texto capital sobre o amor que,
de modo aparentemente paradoxal, chama-se “Sobre o narcisismo:
uma introdução”.23

22. S. Freud (1910, 1912, 1918).


Obras completas,v. X I, p. 155-204.
23. S. Freud (1914).Obras completas,v. XI, p. 65-98.
O gozo: de L acan a Freud 33

É como
encontra clínico da história
as tendências amorosa
dissociativas nade seus
vida sujeitos
sexual dosque Freud
homens,
tendências essas que os levam a desmembrar em si mesmos a
ternura e a sensualidade e a cindir o objeto amoroso entre a mãe e
a prostituta, assegurando assim sua insatisfação e fugindo sem parar
de uma para aoutra. Apartir daí, já em 1913, Freud enuncia em seu
texto “Sobre a degradação da vida erótica” que há algo implícito na
própria pulsão sexual que conspira contra sua total satisfação.
Finalmente, com seu terceiro artigo sobre a vida amorosa, “O tabu
da
do virgindade”,
gozo que tem eleochega a distinguir
fantasma do gozonadovida sexual
Outro, daso mulheres
caráter inibidor
neste
caso, e colocará com clareza que os desejos se engendram
reciprocamente (ainda que a fórmula segundo a qual o desejo é o
desejo do Outro não seja sua), enquanto os gozos de um e de outro
(sexo) instauram-se em um plano de oposição e concorrência.
A vida amorosa não é, pois, em nenhum momento daobra de
Freud, uma promessa de bem-avcnturança e complementaridade.
Isto fica claro como o dia quando se lê “Sobre o narcisismo: uma
introdução”.
de Por meio de
absoluta felicidade do que
amor, o sujeito tenta
supostamente recuperar
dispunha o estado
His
quando era
Majesty, lhe Baby e era encarregado de suprir tudo o que faltava no
Outro. Primeiro tempo do Edipo, identificação com o falo mais do
que “narcisismo srcinário” como ali é chamado. “Deve (o bebê)
realizar os sonhos, osdesejos não realizados deseus pais”.24 Para
isso, conta com o amor por si mesmo, reflexo do amor que lhe
dispensa o Outro. A investidura sem limites que recebe sua própria
imagem especular será modelo, eu ideal que teráde se perder e er s
recuperada por meio da obediência aos ditados do Outro,
constituindo-se aí o ideal do eu. O amor do eu ideal passa pela relação
amorosa com um outro que se elege sempre segundo o modelo
narcísico. A outra, a chamada eleição de objeto por apoio ou
anaclítica, não é senão uma variação da eleição narcísica, enquanto
as figuras de predileção amorosa, a mãe nutriz e o pai protetor, não
são nada além do sustento necessário para esse eu do narcisismo.
As outras quatro formas de eleição de objeto de amor (que não é,
.’■I. S. Freud (1914). Obras completas,v. XIV, p. 88.
34 Gozo

obviamente, o objeto do desejo) que Freud distingue são, clara e


confessamente, narcisistas. Do gozo ao desejo, do desejo ao amor,
e o amor, por sua vez, recaindo sobre um objeto do qual se desloca
a imagem de si mesmo. Não; não há nada o que fazer, a relação
sexual não existe.
M as o eu é, desde o princípio da obra de Freud, desde o
“Projeto para uma psicologia científica”Entwurf),
( de 1895, uma
instância de proteção e de desvio das cargas de tensão para torná-
las inócuas e assim limitar a tensão sexual, ou seja, o gozo, que é
despertado no organismo quando se orienta para a experiência
srcinária e mítica da satisfação. A função do eu é regulada pelo
princípio do prazer, tende ao igualamento das cargas, à homeostase,
à evitação do desprazer, com o menor esforço. Seu objetivo é o de
servir economicamente ao organismo como um todo pondo limites
à tensão que seengendra no própr io organismo. O gozo, para Lacan,
é o que não serve para nada. Em Freud, não apenas não serve, como
ameaça e contraria o princípio do desprazer-prazer. O modelo
freudiano do gozo é o que encontramos, parece-me, voltando aos
“Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, no , no “prazer
Vorlust
preliminar” que Freud opõe ao prazer final da descarga orgásmica.
Desse prazer prévio, originado nas zonaserógenas, diz25que é um
efeito que carece de fim e em nada contribui (antes da puberdade)
ao desenvolvimento do processo sexual. Por isso Freud distinguia
a excitação sexual da satisfação sexual, que suprime toda tensão e
serve, sob o modo de “pequena morte” como antecipação do que
será depois o “princípio de Nirvana”, o estado relratário a qualquer
nova incitação. Não inutilmente, o capítulo dedicado ao tema do
prazer preliminar se intitula “0
problemada excitação sexual” (grifo
meu). Esse “problema” (para quem?) é a prefiguração mais clara do
conceito de gozo de L acan que aparece em Freud antes das
concepçõessubversivas de 1920, formuladas em “A lém do princípio
de prazer”.
É amplamente conhecido o equívoco que se erigiu sobre as
teses freudianas que promoviam a sexualidade a um lugar central na
constituição e na arquitetura do sujeito. Pretendeu-se fundar sobre

25. S. Freud (1905).Obras completas,v. VII.


() gozo: deL acan a Freud 35

Freud constituições de aspecto teórico que preconizavam a


liberação” da sexualidade, confundindo o orgasmo com a saúde
mental e mesmo com a felicidade. Fez-se da psicanálise um novo
evangelho da normalização genital. Deixou-se de lado o que qualquer
um poderia ver na obra de Freud: o pouco, o relativo, o ambíguo e
o pouco alentador de quanto ele escreveu sobre a cópula e o
orgasmo, e o ceticismo com que sempre teve o amor corno
caminho para ela. Podemos, agora, entendê-lo à luz da teoria do
gozo, pois o prazer aparece relacionado a ele como curto-circuito,
como corte brusco que põe limites a um corpo que se experimenta
como tal. E o prazer da chamada “satisfação sexual” que interrompe
o aumento tensional - seu modelo é a emissão seminal no orgasmo
masculi no -, trazendo, ocm a descarga, a decepção.
Ou seja, a psicanálise, com Freud e com Lacan, coloca-se
como uma corrente contrária às ilusões que permitiriam sonhar com
;i superação da cisão subjetiva por meio do encontro amoroso que,
no físico e no espiritual, suturaria o sujeito com o objeto, o exilado
tom sua pátria, o desejante com a Coisa. Sobre este fato, fatalmente
constatado na experiência da análise, funda-se o escandaloso
aforismo lacaniano “a relação sexual não existe”, pois não existe
como rapport, como relação que se estabelece na lógica, e não existe
como um novo aporte do que cada um perdeu ao entrar na vida,
como efeito da seção, da sexão, da ressecção do gozo, que se
chama castração.

y Retorno aos princípios freudianos

Voltemos ao princípio. AosAmfangenda psicanálise, ao inédito


c já citado “Projeto...”, de 1895,2
hfundamento não renunciado e não
icnunciável de todas as construções metapsicológicas posteriores.
Voltar ao princípio é retornar a esse começo mítico e absoluto
na experiência de satisfação quefiat é olux da existência. Antes era
o caos tão absoluto, que nem caos havia, o inomeado e

'<> S. Freud (1896). Obras completas,v. I.


36 Gozo

irrepresentável, o nada no obscuro claustro materno onde não havia


quem pudesse presumir que ali algo se encontrava ou faltava algo.
O ponto de partida do sujeito, o parto do psiquismo, é
concebido, então, como a vivência do desamparo absoluto de um
organismo inerme frente à necessidade, incapaz de aliviá-la e acalmar
a excitação interna sem a produção de uma alteração externa que
traga o objeto da satisfação e permita a ação específica e
apaziguadora. A incapacidade do organismo para sobreviver por sua
conta o consagra à morte. Somente o Outro poderá salvá-lo e disso
derivará “suaautoridade obscura”. V ive-se sob a premissa de que
alguém, “um indivíduo experimentado observa o estado da criança”.
Para isso, é mister que esse Outro esteja disponível e que sua
atenção seja alertada pelo choro, pelo grito que “cobra assim a função
secundária, importante ao extremo, do entendimento (ou
comunicação), e o desvalimento inicial do ser humano é a fonte
primordial de todos os motivos morais”.27
A ação do próximo auxiliador permite a vivência de satisfação
que, na perspectiva do organismo, torna possível a sobrevivência e,
na perspectiva da vida anímica, marca-se com a reprodução de um
norte absoluto para a bússola do desejo. O desejo Wunsch
( )éo
movimento subjetivo da reanimação constante de lembrança dessa
vivência fundamental. Todas as suas aventuras e desventuras serão
comparadas com o presumido Paraíso da experiência de satisfação
que nada mais é do que uma invenção retroati va. Após expor, na
terceira pessoa, elucubração sobre a vivência de satisfação, Freud
pula para a primeira pessoa do singular.Cito: “Não duvido queesta
animação do desejo produza inicialmente o mesmo efeito que a
percepção, ou seja, uma alucinação. Se, em sua raiz, se introduz a
ação refletora, é ni evitável a desilusão”.28
V ivência de satisfação-desejo-reanimação do passado como
alucinação-comparação do que há com o que houve (“ação
refletora”)-desilusão. Inevitável. O que não falta é a falta ao
comparar o que temos com a experiência mítica, mágica, fantástica,
paradisíaca, perfeita, daquilo que tivemos e perdemos. O que não

27. Idem, ibidem, p. 362-3.


28. Idem, ibidem, p. 364.
( ) gozo: de Lacan aFreud 37

pode faltar é a desilusão. É isto que há no começo. Do psiquismo. Da


psicanálise.
A ssim se dá. As percepçõesdas coisas não harmonizam com
;i lembrança fundamental. Não totalmente; “somente em parte”. Uma
parte do complexo de representações, um “ingrediente”, permane-
i c idêntico, enquanto um segundo varia. O objeto da percepção de
compõe-se: satisfaz o desejo e não o satisfaz. “Depois a linguagem
criará, para esta decomposição, o termo juízo”.29 A ssim, o ingre
diente constante será nomeado como a do mundo(das Ding)
coisa
c o elemento inconstante será sua atividade ou propriedade, “seu pre
dicado”.
Não apenas as motivações morais, mas também todo o
pensamento, “o julgar”, surgem dessa marca decisiva do Outro no
futuro sujeito, dessa representação inicial da Coisa que condena o
‘-cr a viver na desilusão. E não poderia haver desilusão, se não
houver, antes, ilusão.
Para o ser no mundo, há apenas dessemelhanças, disparidades,
desencontros, desvios, dis-cursos. Acoincidência do esperado com
o encontrado põe fim ao ato de pensar; o organismo se descarrega,

sc
paraesvazia. A discordâ
o trabalho de ncia, em contra
pensar. Para partida,
discernir , na proporciona opresente,
percepção impulso a
distância com relação à representaçãodas deDing ausente. Se se
produz um feliz encontro com o objeto, não há chance alguma para
o ato de pensar. São os setores em dissidência aqueles que
despertam
o interesse.v)
Vive-se pelo Outro, pe lo próximo, peloNebenmensch. M as este
ii;io é o único salvador. E, ao mesmo tempo, “o único poder
■iiixiliador e o primeiro objeto hostil. Sobre o próxi mo, então, aprende
o ser humano a discernir... E assim o complexo do próximo cinde-
si- em dois componentes, um dos quais se impõe por um encaixe
constante, mantém-se reunido como uma Ding (Coisa) enquanto o
miiro (componente)é compreendidopor um trabalho mnêmico... e
srcina, pelo caminho judicioso do estabelecimento de diferenças, a
ii presentação do próprio corpo”.

"I Idem, ibidem, p. 373.


'() Idem, ibidem, p. 376.
38 Gozo

Talvez tenha que me desculpar por esta revisão do primeiro


Freud que ninguém me pediu. E que me desculpe dizendo que nada
do que está aqui escrito responde à solicitude de ninguém e que
somente pretendo colocar o leitor nas srcens das
deDing, da Coisa
freudiana, para podermos adentrar nos despenhadeiros do gozo
lacaniano. Ou que continue com o desenvolvimento. Será melhor.
No começo... Im Anfang war das Ding, mas quando é a
Coisa, não há sujeito que possa julgá-la. Perdida a Coisa (e o gozo
está do lado da Coisa, assim como o de sejo estádo lado do Outro),31
depois de estabelecida uma disparidade irrecuperável com o objeto,
pode chegar a haver um sujeito. Na marca, no rastro da Coisa. O
objeto, perdido, é a causa do sujeito. De alguém que ainda não é Um,
de alguém que se conta, pensa e tem motivações éticas a partir do
que não pode subsistir sem esse Outro a quem primeiro apela com
seu grito e depois com sua palavra articulada.
Das Ding é o que fica no sujeito como marca daquilo que nunca
haverá. A “descarga” ficou vedada, viver-se-á na desilusão, dever-
se-á pensar, discernir, estabelecer a diferença entre as coisas, todas,
e a Coisa, imperatriz intangível da vida anímica, objeto absoluto.
E Freud não ficou no estabelecimento desse ponto de partida.
A bordou também, dez di as depois (entre 25de setembro e 5 de
outubro de 1895), as conseqüenci as, ou seja, a passagem dessemito
da srcem para “os processos psíquicos normais”. Processos
normais que são possibilitados pelas “associações lingüísticas”, que
permitem “o pensar observador, consciente”. Como? Porque esses
“signos de descarga lingüística... equiparam os processos de pensar
aos processos perceptivos, lhes dão uma realidade objetiva e
possibilitam sua memória”.32
V ê-se com clareza que, em Freud, os processos depensar não
têm em si “realidade objetiva”, mas que ela lhes é dada pelos signos
lingüísticos que equiparam pensamento e percepção e os fazem
assim memoráveis, históricos. (Signos =Zeichen. No capítulo
dedicado ao deciframento do gozo tiraremos proveito da
terminologia freudiana.)

31. J. L acan (1964). Écrits, p. 853;Escritos II, p. 832.


32. S. Freud (1896).Obras completas,v. I, p. 414.
O gozo: de L acan aFreud 39

A realidade
(Bahnungem) objetiva E
lingüísticos. doesse
pensamento procede
deciframento, dostransborda-
esse trilhamentos
inento do ser pela linguagem, não tem sua srcem na própria lingua
gem, em um processo de aprendizagem ou de imitação da palavra,
mas na experiência de dor, no contato com
... objctos-percepções que fazem alguém gritar porque excitam
dor, e adquire enorme importância que esta associação de um som
(...) enfatize este objeto como hostil e sirva para dirigir a atenção
para a (i magem)percepção. T oda vez que diante da dor não se
recebem bons signos de qualidade do objeto, a notícia do
próprio gritar serve como caracterí stica do obj eto. E ntão, essa
associação é um meio para tornar conscientes, e objetos da
atenção, as lembranças excitatórias do desprazer. Foi criada a
primeira classe de lembranças conscientes. Daqui a inventar a
linguagem, a distância não é grande (...) Assim, averiguamos que
o característico do processo do pensar discernente é que nele a
atenção está voltada de antemão para os signos da descarga do
pensar, os signos de linguagem.-*3

O que ficou deda s Ding para o sujeito imaturo? Nada. Não a


representação, não a lembrança. Somente o desespero pela ausência.
0 grito descarnado. O fundamento do serjaz nessa diferença entre
as representações possíveis e a coisa que desapareceu para sempre,
deixando a reprodução do desencontro e da disparidade sobre as
experiências da realidade, de uma realidade que depende de e, às
ve/.es, não é outra senão o Outro da linguagem, dessa linguagem na
qual haverá de transbordar as desrazões, estabelecer as diferenças,
lerá que alienar-se.
A incorporação do ser àlinguagem é a causade um des-terro
definitivo e irreversível com relação à Coisa. E a Coisa, na definição
dada por Lacan quando retomae comentaFreud no seminário sobre
a ética na psicanálise, é “aquilo do real que padece pelo
••ignificante”.34A ssim como se diria de alguém “que padece de
1atarro”, que “padece do sintoma”. V oltaremos a esta definição.

' Idem, ibidem, p. 414-5.


'•I .1. L acan (1960). Le séminaire. Livre VII. L ’étique ilans Ia psvchanalyse.
A ula de 27 de janeiro de 1960, p. 142.
40 Gozo

A palavra é o rastro que corre atrás do barco, o sulco que não


pode alcançar o arado que o causa. M as do arado e do barco é

impossível
A terra e o saber
mar, osenão
corpo,pelas
em umamarcas que trazem
palavra, deixam sobre
em seusi acaminho.
inscrição
do irrecuperável. A palavra grava-se nacarne e torna ssa e carne um
corpo que é simbolizado nos intercâmbios com o Outro. Falar,
pensar, passar pelos significantes da Lei; estes são os efeitos dafalta
do objeto que toma assim o lugar da Coisa ( ). Somos todos
Ding
náufragos resgatados do gozo que perdemos ao entrar na linguagem.
A conseqüência é o discernimento, a distinção linguageira da
pluralidade e variedade dos objetos do mundo. O sujeito nasce e se

integra à realidade
da Coisa, essa Coisaconsensual
que cria o esilêncio
compartilhada
ou o caosa como
partir odeque
seuhavia
exílio
anteriormente. A pátria é um efeito do exílio e da nostalgia.
É assim que L acan elabora como se constitui o gozo a partir
da “mitopsicologia” freudiana. No princípio era o Gozo, mas desse
gozo não se sabe senão a partir do momento em que foi perdido. Por
estar perdido, é. E porque o gozo é o real, o impossível, é que se o
persegue pelos criadores caminhos darepetição. A palavra, vinda do
Outro, terá de ser pharinakon,
o remédio e veneno (cf. Derrida, La

diseminación 3S), instru


gozo, mas sempre mento ambivalente
marcando-o umquecom
comminus, separuma
a e devolveque
perda o
é a diferença irrecuperável entre o significante e o referente, entre
a palavra e as coisas.
O gozo da Coisa está perdido, o gozo somente será possível
atravessando o campodas palavras. Mas seráoutro gozo: frustrado
e evocador; nostálgico. Temos de seguir com Freud e dar com ele
o salto irreversível que leva dos
Amfangenao J enseits, dos começos
ao além, além do princípio de prazer, sobre o terreno já abonado pelo

que
modossignificou a descoberta
de tratar do inconsciente
o gozo, deslocá-lo e suas
e colocá-lo formaçõesPonto
em palavras. como
talvez propício para propor um novo aforismo:
o inconsciente é um
trabalho cuja matéria-prima é gozo e seu produto é discurso.
O inconsciente não seria nada sem a teoria sexual. E vice-
versa. E da psicanálise nada resta a não ser se apoiar sobre esses

35. J. Derrida. La diseminación. M adrid: Fundamentos, 1975. p. 192-262.


O gozo: de L acan a Freud 41

dois pés:
de L acan) eo ainconsciente (que,
sexuali dade que, como
como se explica
teoria, sabe, não é deament
o esvazi Freud,
o mas
do gozo do corpo e sua passagem à articulação significante da qual
resultam o sujeito e o objeto que é a causa de seu desejo. Temas que
deixo indicados aqui antes de retomá-los no capítulo seguinte.
Freud teve dificuldades para reconhecer desde o princípio essa
fonte perturbadora que assalta o aparelho desde dentro e que não
aspira à fantasia nem à retração. O naturalismo o levou depois a
concebê-la como uma “energia” e dar-lhe o nome de “libido”,
palavra de srcem latina, mas que apenas alcança sua plena
significação quando se considera que Liebe é, em alemão, o nome
do amor.
E foi com esse termo ambíguo de libido que Freud incluiu o
gozo (naturalizado, quantificado de modo metafórico) em sua teoria.
Seus relatos clínicos, sua concepção da “eleição da neurose”, seus
postulados genéticos sobre os deslocamentos da libido por zonas
distintas do corpo para acabar no “primado genital” que, para ele,
é o do falo, porque há somente um genital, o masculino, e somente
uma libido, aquela ligada ao órgão viril tanto no menino quanto na
menina, são modos de conceber o gozo e prestar-lhe uma marcha
teórica compatível com o conjunto da doutrina e da clínica. Assim,
eis a clínica psicanalítica como uma história das errâncias do gozo,
de suas “fixações”, de suas “regressões” , de sua transformação em
sintomas, de sua “introversão” sobre fantasmas, essas formações
imaginárias que substituem a ação no exterior e que são “reservas
naturais” do gozo. No fantasma o gozo é assubjetivo, manifesta-se
em sintomas, em repressões histéricas, em formações reativas
obsessivas, em distanciamentos e precauções fóbicas, em invasões
irrefreáveis que determinam a ruptura psicótica com a realidade
exterior, em coagulações que se encenam na perversão. E a teoria
do tratamento também se impregna com esta errância da libido sobre
os objetos externos: é assim que se confere um privilégio seletivo
à figura do psicanalista. A teoria do gozo é o fundamento inconfesso
da transferência, que é ao mesmo tempo resistência e motor do
tratamento, ímã que atrai a libido e abismo insondável do qual terá
de se livrar para que um final de análise seja possível. Em suma, a
teoria da libido é a teoria do gozo. Tudo isto é muito sucinto, mas
42 Gozo

“recorra [a Freud] e o verá”,36como disse L acan em outra ocasião


sobre a qual retornaremos.

O
simbolizado sujeito nascepara
e se orienta por estar exilado da
um “primado Coisa,que
genital” do não
gozoé não
outra
coisa senão a primazia do significante, tendo esse significante como
fundamento o falo, suporte de todos os processos de significação.
A tal ponto que dizer “A significação do falo” é uma redundância,
pois não há outra, conforme falava Lacan,37 ironizando o título de
um de seus “escritos”.38Da Coisa ao falo, ou seja, à castração:esse
é o sentido da rota freudiana que acaba dando o lugar central na
psicopatologia ao complexo de castração e às suas vicissitudes. O
complexo reorganiza por retroação todo o acontecido anterior ao
estabelecimento desta primazia fálica. O processo de subjetivação
pode estender-se como uma sucessão de migrações, exílios e
esvaziamentos do gozo. Asexualidade passa, assim, por “fases” que
seguem essa longa jornada que leva do real anterior e exterior à
simbolização (a Coisa dos começos), ao real que fica como saldo
impossível depois da simbolização e que se pretende apreender com
as pinças da palavra, mas que escorre e, além disso, se produz
como efeito de discurso pela própria palavra, o objeto @, o fugidio
mais de gozo.
É por tudo sso
i quea sexualidade humana, com todas sa suas
multiformes manifestações, é ela própria mais uma sublimação do
que aquilo que é sublimado. Sublimar é sexualizar e não, como pre
tenderia uma leitura apressada, “dessexualizar”. Pois a sexualidade
é simbolização do gozo que é, assim, des-naturalizado, humanizado,
colocado em palavras na relação da mulher e do homem com seus
corpos e com o corpo do Outro. E aí que Freud se vê diante da ár
dua questão da heterogeneidade dos gozos, enigma que o leva à su ■
cessão de escritos em que trata de explicar a assimetria dos gozos
masculino e feminino a partir da assimetria que o complexo de cas ■
tração (sofrido por ambos) determina com relação ao falo. Questão

36. J . Lacan (1970). Radiophonie, p. 420.


37. J. L acan. Le séminaire. Livre XVIII. A ula de 2 de junho de 1971. Inédito.
38. J. L acan (1958). L.asigníficación du phallus, In:Ecrits , p. 685-696(Escri
tos 2, p. 665-75).
() gozo: de L acan a Freud 43

chi
para heterogeneidade
responder dos gozosfreudiana:
a pergunta que ocupará Lacan
o que em urna
quer seu esforço
mulher?
J á mencionei que a observação mais precária da vida amorosa,
0 elementar do que seescuta em uma análise, consegue mostrar que
os seres humanos, os falantes (falentes),não estão governados pelo
princípio de prazer. Freud não podia deixar de constatá-lo. E, se o
■iinor não pode ser entendi do sem que se eve
l em consideração esse
1atai destino de ter de se inscrever como gozo, pode menos ainda
iiiribuir ao princípio de prazer a outra atividade que parece sua
contrapartida: a guerra.19A s observações sobre aguerra e a morte
do período da Primeira G uerra M undial concordam com as
observações sobre a vida amorosa. O artigo dedicado ao tabu da
virgindade4 11(1919) apresenta aconclusão de queos gozos não
confluem, mas rivalizam-se entre si. Um ano antes, já havia
observado e estabelecido que o desejo feminino não estava orientado
para o homem, mas para o pênis e que o órgão podia ser substituído
simbolicamente pelo filho.41 O homem era ali, para ela, um apêndice
necessário, mas, em última instância, prescindível. Enquanto o
homem, por sua vez, não podia tampouco satisfazer, ou melhor, não
satisfazer sua
( aspiração
substituto Ersatz) da mãe sexual com uma mulher que é apenas um
proibida.

I. Além do princípio de prazer

É necessário memorizar todos estes antecedentes para


compreender o trabalho de Freud noscomeços de 191
9, umaépoca
cm que se poderia dizer que não trabalhava em duas mesas, mas
\im cm três e que o leva a uma reformulação que implica um novo
começo para a psicanálise. Com efeito, ainda que “Além do princípio
de prazer”42 veja a luz em 1920, sua redação data dos ses me de

'•>. N. A. Braunstein. El psicoanálisis y la guerra. In:P or el camino de Freud,


M éxico: Siglo XX I, 2001. p. 28-40.
10 S. Freud (1917). Obras completas, v. X I, p. 189-204.
11 S. Freud (1917). Obras completas, v. X II, p. 118-22.
I ’ S. Freud (1920). Obras completas,v. XV III, p. 7-62.
44 Gozo

março a maio de 1919, mês que também viu a segundae definitiva


(Das Unheimlich).41 Por sua
redação do artigo sobre “O estranho”
vez, o término de “Bate-se numa criança”44teve lugar em março de
1919. Nunca se destacou o bastante, nem sequer o próprio Freud,
a diáfana unidade dos três textos e a luz que eles, como conjunto,
lançam sobre (e recebem de) o conceito de gozo.
Começando pelo estranho: por que aderiria o processo cultu
ral a essas criações comcaráter sinistro e por queteriam as repre
sentações do horroroso a pregnância que têm sobre o imaginário dos
homens, se o princípio de prazer governa como soberano? Por que
reincidiria o sujeito em pesadelos que o mostram acuado, sem saí
da, condenado a ser o objeto de sevícias c crueldades? Por que ape
gar-se às antecipações da morte e do holocausto, às premonições do
fracasso, aos fantasmas da vergonha, aos estragos c cobranças da
culpa, às possessões demoníacas, às invasões do horrendo impen
sável, inexpressável? Qual a necessidade ou a conveniência de
criar hidras e dragões, íncubos c súcubos, infernos e suplícios?
E possível que uma primeira resposta coloque em jogo a
consciência “que nos faz culpados”, o preço pago pelo prazer obtido
ou fantasiado, a presença em cada uma dessa instância revelada por
Freud nesses mesmos anos: o supereu.4 5Não é mera coincidência,
não. A primeira resposta que nos ocorre volta de imediato como
pergunta: e por que em um organismo supostamente regido pelo
princípio de prazer, o supereu? É evidente que o supereu não se
compadece na busca de uma menor tensão, mas instala no indivíduo
uma eficiente maquinaria para não dormir nos braços do prazer e para
exigir a retaliação por qualquer crime cometido, mesmo que seja mais
com o pensame nto do que com a ação. A tal ponto que não altou
f

43. S. Freud (1919).Obras coniplelas, v. X V II, p. 219-52.


44. Idem, ibidem, p. 175-200.
45. M. G erez A mbertín. Las voces dei superyó.Buenos A ires: M anantial,
1993. Nesse livro encontra-se uma minuciosa resenha do processo que
leva Freud a elaborar o conceito de supereu para dar conta do conjunto da
clínica psicanalítica. Igualmente impressionante é o trabalho sobre o su
pereu nos escritos e seminários de L acan. Insistir-se-á nesta referência no
capítulo 8 desta obra.
O gozo: de L acan a Freud 45

psicanalista (B ergler) que sugerisse que está regido por um


“princípio de tortura”.
O supereu é a instância que vigia e pune as transgressões, é
o código legal e penal e a força jurídica e policial que ordena dentro
de cada um o suplício. Na gráfica imagem freudiana (à qual não
poderíamos dar um estatuto ontológico) comanda a intranqüilidade,
exige satisfações que não são as das necessidades, nem as das
demandas e marca o desejo como perigoso e impreenchível.
Esgrimindo a ameaça de castração nos homens e a do abandono nas
mulheres, perpetua seus imperativos de sacrifício, de dívida
impagável, de posse subjugante exercida pelo Outro. Sua exortação
incessante não é senão a que se expressa com uma única palavra:
“Goze!”, agora como imperativo do verbo que conflui para a
significação homofônica do substantivo. Com mais confiança, nos
tutearia, ordenando: “Goza!”J ouis
(“ /”).
Com ele, graças a ele, o erotismo se tinge de culpa e a culpa
se erotiza, o amor se liga à transgressão, o prazer entra na caixa
registradora das dívidas, o pecado se faz gozo, a consciência
conhece o gozo oral dos re-mordimentos (remorsos), as chamas do
inferno deitam sua sombra sobre a carne inflamável de todos nós,
seres privados da relação sexual. O supereu troca o prazer por gozo,
para que não se extinga com os derramamentos da satisfação
alcançada. Daí também sua característica, assinalada por Freud,
relativizada por L acan no seminário sobre a ética, de ser mais
premente quanto maiores forem as oferendas que recebe.
O apoio ao estranho ou ominoso pela presença constante do
supereu é prova de um masoquismo primordial que abranda,
sempre, o princípio de prazer. Conhecidas são as provas que Freud
traz por ocasi
ão de sua reviravolta dos anos 1920. A compulsão à
repetição, descoberta anos antes na transferência analítica, que nos
mostra os falantes como seres carentes de inteligência, dessa
inteligência que governao reino animal, isso que nos leva a tropeçar
duas vezes na mesma pedra para, depois do segundo tropeço,
procurá-la pela terceira vez para que nos responda a pergunta sobre
o porquê de nos chocarmos com ela nas duas oportunidades
anteriores e darmo-nos por satisfeitos até havermo-nos derrotado
para tirar a pedra do caminho e estarmos, assim, habilitados para
46 Gozo

tropeçar na seguinte. Que o diga Sísifo, que o conte Prometeu, que


o expliquem as Danaídes e os mártires e os cientistas.
No mesmo sentido abunda a impossibilidade de se separar da
lembrança traumática, do acidente, da humilhação, da evocação
dolorosa que nos ataca desde dentro. Ou o jogo das crianças que
convoca os fantasmas de ser abandonado (fort-da ), de ser
devorado, envenenado, seduzido, golpeado, vigiado, perseguido,
acossado, torturado, vilipendiado, castigado.46
Ou a experiência comprovada às vezes na análise da reação
terapêutica negativa em que o sujeito não é digno do alívio de seu
sofrimento, insistindo em sustentá-lo a ponto de preferir abandonar
a análise do que permitir o restabelecimento desua saúde. Amam
seus delírios, amam seus sintomas, mais que a si mesmos, e
testemunham em suacarneesse infeliz imperativo do gozo. A defesa
é defesa do sofrimento e a técnica psicanalítica é torpe se não toma
o gozo, no lugar do prazer, como ponto de partida na abordagem de
cada caso.
O supereu marcao sujeito com ummandamento degozo. Mas
esse imperativo é também um chamado: você não está a serviço de

si mesmo,
causa, suamas presta
Causa. contas a algo
A existência lheque lhe é superi
é oferecida or e que
e deve é suacontas
prestar
dela, ainda que não a tenha pedido, deve oferecer sua libra de carne
a um Deus inclemente. O que re-liga os sujeitos é essa noção da
culpa de existir que seapagaria com a adoração e a gratidão A quele
que nos fez seus devedores, a quem se instituiu como credor. O
princípio do sacrifício é o fundamento e não o efeito das religiões.
E o gozo é consusbtancial ao sacrifício. Em sua oferenda é o sujeito
que se oferece, se submete ao jugo que o instala na comunidade, que
o inclui dentro do vínculo social, fazendo-o partícipe do socius).
clã (
E sabido que para Lacan, diferentemente de Freud, a castração
não é uma ameaça, mas, pelo contrário, é salvadora. A ameaça
verdadeira, a terrível, é que não haja castração. A clínica mostra, às
vezes, que os defeitos na função do pai, que é a de incluir o sujeito
na ordem simbólica, é a causa de um apelo desesperado, patético,

46. N. A. Braunstein. Mi papá me pega (me ama). In:Freudiano v lacaniano.


Buenos A ires: M anantial, 1994. p. 151-72.
O gozo: de L acan a Freud 47

à intervenção castradora que separe a criança do gozo e do desejo


da M ãe. É quando o sintoma vem suprir o defeito apontado. E a
esclarecedora leitura lacaniana, não freudiana, do caso do pequeno
Hans. O menino não tinha nada a temer desse pai domesticado que
tão facilmente cedia a ele seu lugar no leito junto à mãe. O cavalo
não é o símbolo ou o equivalente do pai real, mas a figura do Pai
Ideal que é chamado para corrigir a falha paterna.
Igualmente, o fantasma de “Bate-se numa criança”4 7 está cen
trado em torno do segundo tempo do mesmo, o que cai sob a re
pressão, que é a fórmula “meu pai me bate”. A í o castigo não anula
o sujeito, mas o chama à ex-sistência, marca-o como pecador, de
saloja-o do gozo mortífero da mãe. E um instrumento que funcio
na como significante (S,) e deixa como saldo o sujeito (S) que dará
conta de seus atos no mundo da linguagem, por meio da palavra. Se
o chicote produz dor, é porque o Outro pede essa dor como pren
da de reparação e redenção, porque o Outro pede esse estremeci
mento da carne machucada, esse pranto e essa promessa de
submissão. E a prova de que “você importa para alguém”. Se o nas
cimento do irmão, esse irmão que se faz castigar no primeiro tem
po do fantasma, esse irmão que era conlactaneum
o do olhar
envenenado observado por Santo Agostinho, ameaçava o sujeito com
a extinção, com o desaparecimento do sujeito do campo do Outro,
o castigo do segundo tempo do fantasma não apenas mortifica o
desejo sádico expresso no primeiro, mas devolve à existência e se
impõe adívida de viver.48
J á mencionei o seminário de 5 de março de 1958 no qual
L acan enunciou a relação e a oposição entre o edsejo e o gozo como
fundamental para compreender o que acontece na experiência
psicanalítica. Nesse dia se protocolou o nascimento do novo
conceito dc gozo. No seminário anterior, em 12 de fevereiro de

1958,4y L acan
onipotência e oassinalava
lançam na que os açoitesA arrancam
existência. o sujeito
criança, assim, da
flagelada, não
é nem tudo nem nada. As chicotadas sãodadas,têm algo de um dom

47. S. Freud (1919). Pegan a un nino. Obras


In: completas,v. XVII.
48. N. A. Braunstein. Mi papá me pega (me ama). In:F reudiano y lacaniano.
49. J. L acan (1958). Le séminaire. Livre V. L es formations de l ’inconscient,
p. 247.
48 Gozo

de significante que devolve à ex-sistência alienada, não em Um, mas


no Outro. Fazer-se flagelar é um modo de ratificar o desejo do
Outro colocado em dúvida desde o aparecimento do rival. Isto é
freqüentemente constatado nas crianças politraumatizadas, nas
crianças que devem sobrepor-se à hostilidade mortífera de suas
mães, em tantas vítimas flageladas, em tantos acidentes e
manifestações de um destino inflexível e atroz. O chicote produz a
abolição, mas também a constituição do sujeito em sua divisão; suas
chagas chamam à vida. O fantasma do flagelo está além do princípio
de prazer, certo; é gozo, certamente; mas é também o princípio de
uma segurança, a de ser um objeto que conta no desejo do Outro.
“Porque te quero, te espanco” é a significação latente dos fantasmas
de J ó que asseguram ao sujeito um lugar no discurso do senhor e
o chamam ora à resignação, ora à rebelião. Também acontece assim
no gozo de Cristo ao inverter a dívida sob a forma da invocação:
“M eu Senhor, meu Senhor, por queme abandonastes?”. A ssim,
existir é existir para a Lei, ser sujeito a ela, assegurar-se de que todos
os seres humanos estão sob a palmatória e recebem seu ser junto
com a marca do desejo do Outro. Assim é como, historicamente,
se apresentou e se justificou o discurso do senhor.
Todos esses argumentos juntos fizeram Freud postular a
existência de uma pulsão fundamental, a de morte, da qual as
pulsões de vida são desvios, ramificações que passam pela imagem
narcísica do eu. A pulsão de morte é a pulsão, pura e simples. A
psicanálise recomeça nos anos 1920, quando as explicações
naturali stas são questionadas. As tentativas do próprio Freud de
preservá-las sob o manto de uma “mitobiologia” são toscas e fazem
ressaltar, por contraste, aquilo de que se trata. Isto ocorre ao mesmo
tempo em que Freud se vê forçado a abandonar o projeto de
construir umametapsicologia fundada no princípio de prazer. A
interrupção da série de artigos metapsicológicos de Freud ao término
dos cinco primeiros50não tem outra causasenão aquela que se lê
como autêntica continuação em “Além do princípio de prazer”.
A vançando sobrecapítulos posteriores, tenho de dizer desde já que
a existência humana não aponta para a distensão, mas para a
50. S. Freud (1915-1917). Obras completas,v. XIV, p. 105-256.
O gozo: de L acan a Freud 49

inscrição histórica, historizada, do padecer subjetivo. A clínica


mostra até a exaustão esta vocação da palavra para se fazer
reconhecer como signo, como escritura, por meio das desgraças,
dos açoites da vida, das exigências de que o Outro reconheça a
passagem significativa do sujeito, das provações da resistência e
tolerância desse Outro, dos tensionamentos constantes e o máximo
da lâmina libidinal.
Em tudo isso - e o que eu estou dizendo não é a opinião de
todos os lacanianos -. salta à vista um traço particular do gozo. O
gozo é dialético ainda que se oponha à dialética do desejo.

Inicialmente
não devemos
é hegeliana, pois entender
em Lacan quenã
aoreferência
poderia sedialreconhecer
ética em Lacan
um
momento final de síntese ao qual se chegaria por alguma “astúcia
da razão”. Com efeito, creio que não se pode sustentar que a
dimensão do desejo seria em si dialética, enquanto a do gozo não o
seria. Essa é a posição sustentada por J.-A. M iller51em seu seminário
de 2 de maio de 1984: “O próprio conceito de gozo é um conceito
fundamentalmente não dialético em relação ao desejo”. Nesse dia o
herdeiro de L acan desenvolveu, com particular perspicácia, a idéia
de que o ensino de Lacan teria adotado uma li nha oposta àdialética
a partir, justamente, de eus texto de 1960, “Subversão do suj eito e
dialética do desejo no inconsciente freudiano”. Esta posição de M iller
é congruente, por outro lado, com aquela sustentada em sua
conferência “Teoria dos gozos”,52na qual defendia que é possível
dizer sem rodeio que o desejo é o desejo do Outro, mas não é
possível postular que o gozo seja o gozo do Outro. No que temos
de concordar. Claro que o gozo de um não se confunde com o “gozo
do Outro”. Sem dúvida, não para evitar essa confusão, deixa o gozo
de estar ligado à dimensão do Outro e à dialética do sujeito com ele.
E não é possível concordar com Miller, quando, nesse mesmo dia
de 1984, afirmou que o desenvolvimento do ensino de L acan de
1960 a 1964, de “Subversãodo sujeito” a“Posição do inconsciente”,
consiste na eliminação da referência dialética.

51. J.-A . Miller. Seminário L ’extimité. Inédito.


52. J.-A. Miller. Recorrido deLacan BuenosAires: M anantial, 1986. p. 149-60.
50 Gozo

O discutível dessa afirmação de M iller comprova-se ao seguir


o fio do seminário de Lacan, particularmente quando chegamos a “A

lógica
de do3Nesse
1967.5 fantasma ” e,Lacan
dia, muitorecordou
especificament
quefoie,Hegel
à lição de
quem31 de maio
introduz
iu
a noção de gozo e isso a partir da contradição entre o gozo do
senhor e o gozo do escravo, entre o ócio de um e o gozo da coisa
do outro “não apenas como essacoisa que ele leva ao senhor, mas
ao transformá-la tornando-a aceitável”. Lacan incluiu esta referência
preciosa para entender a natureza dialética do gozo:
E dipo não sabia de que gozava. C ol oquei a questão de se
J ocasta o sabia e, inclusive, por que não, se uma boa parte de seu
gozo não consistia em manter Edipo ignorante (...) que parte do
gozo de J ocasta corresponde a deix á-l o na ignorância? É nesse
nível que, graças a Freud, colocam-se agora as perguntas sérias
com respeito à verdade (...) O que Hegel entrevê é que na srcem
a posição do senhor é de renúncia ao gozo, a possibilidade de
comprometê-lo todo ao redor desta disposição ou não do corpo,
não apenas o seu, mas também o do outro. E o Outro, a partir do
momento em que a luta social introduz o fato de que as relações
dos corpos estejam dominadas pelo que se chama lei, oOutro, c

o conjunto dos corpos, (grifos meus)


Em suma, estas breves citaçõesde L acan de 1967 confirmam
a consideração do gozo em uma referência dialética, ainda que essa
dialética lacaniana e não hegeliana não leve a nenhuma síntese. Trata-
se nela do particular, mas de um particular que somente aparece
como tal à medida que é um afastamento com relação ao universal.
O gozo, sim, é do Um, mas desse Um não há prevenção possível,
se não for a partir do enfrentamento com o Outro e com a divisão
instalada no Outro entre seu desejo e seu gozo. E, além disso, há um
gozo que depende da ignorância do Outro, que se extrai, como na
J ocasta, de saber que o Outro não sabe. E essa é a dialética,
opositiva, divergente, dos gozos. Os gozos que não se definem em
si, mas diacriticamente, por diferença, com relação ao que não é esse
gozo. Oposição dos gozos entre o senhor e o escravo, entre o gozo
masculino e o feminino, entre o privador e o privado, entre o que

53. J . L acan ( 1967).Le Seminaire. Libre XIV. La logique du fantasme.


Inédito.
O gozo: de L acan aFreud 51

sabe e o que ignora, entre uma raça outra.


e Por que não estabelecer,
então, como aprendemos a fazer com relação ao significante, que
o valor do gozo não tem outra substância senão uma diferença com
relação ao que este gozo presentenão él
Há ainda algo mais a dizer em torno desta oposição binária
colocada por L acan entre o gozo e o desejo. O desejo de
reconhecimento (do desejo), noção-chave do primeiro Lacan, auxilia
a luta dialética com o desejo do Outro e, portanto, o gozo da batalha,
da guerra por fazer reconhecer o próprio desejo frente ao desejo-
não-desejo do Outro. (Desejo-não-desejo, já que o desejo do Outro

é um édesejo
Esta de ser
a chave dos reconhecido e não de
textos freudianos reconhecer
sobre mais alguém).
o masoquismo,
começando por “Bate-se numa criança”. E também a chave da
clínica da vida e da história. Com o conceito de gozo (contraposto
ao de desejo), a luta de morte entre o senhor e o escravo (com todas
as suas variantes e versões) encontra seu fundamento.
“Se me castigam é porque meu desejo existe e não foi
desvanecido no desejo do Outro. Nesse castigo recupero meu gozo
ao preço de aliená-lo na relação de oposição com o Outro”. O gozo
se faz possível uma vez que se aplaca, com esta intervenção do
Outro que é acolhida como uma salvação com relação ao Outro
gozo, este sim não dialético, que é o gozo terrorífico e irrefreado do
Um sem a intervenção diferenciadora do Outro. O flagelo é um
significante que chama à ex-sistência, a transitar por uma relação
dialética e contraposta dos gozos que se articula com a relação
dialética do desejo, mas que não se confunde com ela, com seus
“acordos” e com seus pactos simbólicos. Deve-se recordar uma vez
mais as frases de H egel, que foram citadas no começo deste
capítulo, para advertir que, na concepção jurídica do gozo, este é
particular, diferentemente do desejo que é universal. E também que,
evocando Lacan em seu breve artigo dedicado aoTrieb de Freud,54
o desejo vem do Outro, enquanto o gozo está do lado da Coisa, do
lado do Um. De acordo. Mas isso não exclui o gozo da dialética,
pois o gozo do Um apenas pode ser alcançado tirando-o do gozo do

54. J. L acan. Du Trieb de Freud et du désir de l’analyse. In:Ecrits, p. 851-4.


(Escritos II, p. 830-3).
52 Gozo

Outro c preservando-o de seus embates. O gozo procurado pelos


açoites que provêm do Outro, do destino ou de Deus, é uma marca
que rubrica este desejo-não-desejo do Outro. Uma forma de forçá-
lo a reconhecer a existência de um.
Gozar é usufruir de algo. Essa “função no uso” é o despojo de
alguém que não dispõe do mesmo direito de usufruto. O corpo é esse
bem primeiro que é, ao mesmo tempo, campo de batalha entre o
gozo do Um e o gozo do Outro. A quem pertence o corpo? É ele
meu escravo e posso dispor dele ou, pelo contrário, sou eu o escravo
do Outro que pode dispor de mim e desse corpo que eu, fantasma-

ticamente,
O e em com
que acontece minhao condição
Outro, quedecova
testa-de-ferro
cavo nele,creio que “tenho”?
se condeno este
corpo à morte (suicídio de separação) ou o mortifico com drogas
que o anestesiam e o privam de responder às suas demandas?
Não. O gozo está do lado da Coisa, como dizia L acam com
justeza, mas não se alcança a Coisa senão separando-a da cadeia
significante e, portanto, reconhecendo uma certa relação com ela.
Nada ilustramelhor isso do que o suicida, mas também se comprova
isso nos adictos, nos psicóticos, nos escritores para quem a escrita
representa um modo de escapar aos vínculos do discurso. Todas
essas formas da adicção serão abordadas no capítulo 7.
O prazer está do lado do arco-reflexo. E o que leva a pata da
rã a se contrair, quando hl e é aplicada uma correnteelétrica. Jamais
se poderá criar um objeto. Os falantes inscrevem seus trabalhos, seus
discursos, no tempo. Vivem se matando e deixando o et stemunho
de seu padecer, de seu parecer, de se u para-ser. A substância
verdadeira da pulsão de morte está do lado do gozo, da dor, da
façanha.
A morte, psicanalítica, não é a pretendida inércia de uma
natureza inanimada, mas este registro em que se inscreve a paixão
impossível de uma subjetividade por meio de suas atri(e)bulações,
de suas derivas, de suas lutas antieconômicas que vulnerabilizam o
princípio de prazer. Por isso, justificam-se os sarcasmos que L acan
dirige a Freud, quando este fala das virtudes unitivas de Eros e
quando sustenta a idéia da vida, da vida humana, como orientada para
a criação de unidades superiores e cada vez mais amplas. Não é
necessário evocar a fissão nuclear para compreender que Freud -
O gozo: de Lacan a Freud 53

aí - não é congruente nem sequer consigo mesmo e que toda asua


reflexão sobre a história da humanidade, em “O mal-estar na
civilização”, deixa manifesta essa onipresença da pulsão de morte
como substrato último de toda ação humana no individual e no
coletivo.
A meta da pulsão não é o aplacamento, a satisfação
(.Befriedigimg: F ried = paz), mas a falha que relança o movimento
pulsional, incansavelmente, sempre para frente. E a história de cada
um é a história dos modos de falhar o objeto impossível; um
resultado da inexistência da relação sexual. E isto vale também para
a história da cultura, da organização dos modos de afrontar essa
inexistência.
O sujeito tem uma sub-stância que é gozo. Se a primeira teoria
freudiana do psiquismo propunha um sujeito governado pelo
princípio de prazer e no qual a sexualidade era uma impureza e uma
tensão trazida pela sedução do Outro, o adulto perverso. A segunda
teoria mostra o incremento das excitações como algo que se srcina
no interior (é a idéia de pulsão de morte), que adere a fantasmas e
que requer do Outro que se integre dialeticamente, de um modo
especificado pelo estandarte do fantasma, no aparelho do gozo.
O comentário
do gozo e a ereescritura
são possíveis da obrapois
até necessários, completa
renovadeo Freud à luz
que Freud
disse. Estamos agora em condições de reformular a história da
psicanálise à luz dos tombos que sofreu e estabelecer quatro (ou
cinco) pontos essenciais. O primeiro é o descobrimento do
inconsciente e seus processos de composição, com o projeto
freudiano de fazê-lo andar pelos caminhos do princípio de prazer
(1895-1915). O segundo é o momento em que Freud transcende o
naturalismo srcinário e lança a teoria escandalosa da pulsão de
morte (1920-1930). Esse ponto, como se sabe, não foi aceito pelo
movimento psicanalítico oficial que preferiu inclinar-se por um
refluxo do pensar e pelo edificar psicanalíticos em função de
objetivos homeostáticos. Contra esse refluxo, ergueu-se o “retomo
a F reud” lacaniano (1953-1958) que seconcentrou em torno do
evidente, mas ao mesmo tempo do desconhecido, inclusive para o
próprio Freud, de que “o inconsciente está estruturado como uma
linguagem”, terceiro momento crucial da história da psicanálise, que
54 Gozo

abriu a possibilidade desse quarto giro (a partir de 1958) que é


aquele em que nos incluímos, analistas posteriores a L acan. A tese
central é que o inconsciente está estruturado como uma linguagem,
sim, mas depende, como tal, do gozo; é um processador do gozo
por meio do aparelho linguageiro que transmuta o gozo em discurso.
E evidente que para cada um destes quatro momentos (ou
cinco, se incluirmos como mais um o tempo de refluxo que se
produz entre o segundo e o terceiro [1938-1953]) corresponde uma
modalidade diferente de conceber a psicanálise, sua prática, o lugar
do psicanalista e o processo de sua formação. Em suma, o gozo
permite e obriga a reescrever e refazer a psicanálise.
n

Os gozos distintos

1. Entre gozo e linguagem

Todo sujeito está e é chamado a ser. Esta convocação não po


deria proceder desde dentro, desde alguma força interior que resi
diria nele ou nela, de uma necessidade biológica que o impulsionaria
a se desenvolver. A invocação é subjetivante, faz sujeito. A ele se
pede quequem
lar, dizer fale, assumindo o nome
é, identificar-se. que orequer
O Outro Outro sua
lhe palavra:
deu. Temsede fa
a lin
guagem mata a coisa ao substituí-la, tornando-a ausente, a palavra
deve reapresentá-la, ordenando necessariamente o reconhecimento
deste Outro da linguagem, aquele que confere a vida, separando-se
dela, mortificando. O sujeito advém, alcança, assim, sua ex-
sistência... mas por ela deve. O Outro indica-lhe de mil maneiras que
a vida que recebeu não é gratuita, que deve pagar por ela.
M as com que moe da poderia pagar oinfans,o sujeito anterior
à função da palavra, o preço de sua ex-sistência? Pagar quer dizer
que se aceita a dívida e o pagamento é uma renúncia. Cada moeda
entregue, não importa sua natureza, é uma renúncia ao gozo; cada
vez que é da da, não pode voltar a ser usada. A compra de um novo
objeto ou um novo empréstimo obriga a dar uma nova moeda; a
perda é inevitável. E para viver tem de pagar, despedir-se com
renúncia do gozo. É mais, a clínica mostra os efeitos devastadores
que se produz em naqueles a quem aexistência é dadagratuitamente,
56 Gozo

aqueles que não tropeçam com um Outro que seja demandante em


um sistema de equivalências, aqueles que recebem antes de pedir,
fora do regime de intercâmbios, quando a satisfação antecipada das
demandas desfaz a própria possibilidade do desejo.
“O toma lá dá cá do leite e cocô” 1de que falei em outra
oportunidade manda que a vida se desenvolva em um mercado do
gozo, no qual nada se adquire a não ser pagando. Atransação nunca
é a boa, nunca é aceita de boa vontade, nunca se sabe se o preço
pago corresponde ao valor do que se recebe em troca, mas é preciso
resignar-se com a perda que implica entregar algo real em troca de
uma recompensa que é simbólica, um quantumde gozo em troca
do brilho inconsistente das imagens e das precárias certezas que dão
as palavras de amor e os signos sempre falazes que emanam do
Outro, de um Outro que também se pergunta por que haveria ele de
renunciar a seu gozo. O Outro com maiúscula, representado sempre
para o sujeito por alguém no imaginário, por um outro com
minúscula, com o que começamos a esboçar a função e também os
impasses do amor.
O conflito entre o sujeito e o Outro seria fatal se não existisse
uma, instâ
esta ncia
ainda quesimból
cega,i ca
nãoque regulasse
éneu tra, poios
s seintercâm
trata bios.
da Lei Édoa Lei, mada
Outro, s
cultura, que é consubstanciai à linguagem e se manifesta para cada
falante como a obrigação de se apropriar de uma língua materna.
A Lei é somente a imposição destas limitações e perdas do
gozo. Ser um bom menino, um menino cuidadoso, bem educado,
ou seja, seguindo a etimologia, bem conduzido a partir de fora para
aceitar que a mãe pertence ao Outro, que a mãe chega a existir a
partir do momento em que o Outro (Lei de proibição do incesto) a
barra com sua interdição, que o peito é um objeto impossível que
existe em um reino de alucinação, que o excremento também deve
ser entregue para o gozo do Outro educador, que sua produção não
pode ser gozada por si mesmo, que se pode, em suma, especular
com esse bem, retardar sua entrega ou soltá-lo quando não é
esperado, mas que a razão logos
( ) do Outro acabará se impondo

1. N. A. Braunstein. L ingüistería (L acan y el lenguaje). In: El lenguaje v el


inconsciente freudiano. M éxico: Siglo X X I, 1982. p. 172.
Os gozos distintos 57

sobre o gozo da acumulação e da tensão, que ao limite dessa barreira


natural que é a lei do prazer se sobrepõe a L ei do Outro,
promulgando o impossível de sua franquia, e que os gozos de olhar,
ser visto, bater, cuspir, morder, vomitar, ser batido, falar, escutar,
ser ouvido, gritar e ser gritado, todos eles estão submetidos à
educação, à repressão de seus representantes pulsionais, à supressão
discursiva das palavras inconvenientes, à retorsão sobre si mesmo,
à transformação no contrário, ao deslocamento sublimatório dos
objetos e dos fins, ao desconhecimento, à conversão do gozo em
vergonha, asco e dor, e da mordida em remorsos.
Os parágrafos precedentes podem se resumir em sua
conclusão: a incompatibilidade entre gozo e L ei, que é L ei da
linguagem, a que obriga desejar e abdicar do gozo. Ela obriga a viver
convertendo as aspirações ao gozo em termos de discurso articulado,
de vínculo social. A demanda está condicionada pelo que se pode
pedir. Do gozo srcinário não resta senão a nostalgia que o cria
retroativamente, que o mitifica, a partir de quando foi perdido, já que
é irrecuperável nessa forma e que tem de ser vertido por outro
canal, pervertido. O corpo, em princípio um reservatório ilimitado
do gozo, vai progressivamente sendo esvaziado dessa substância

(mítico
meandrosfluido libidinal)
e se agrupa quesupassava
va em as bordaspor seus poros,
oriliciais. Agora, inundavar seus
poderá se
alcançado, sim, mas passando pelo caminho do narcisismo, pelo
campo das imagens e das palavras, como um gozo linguageiro, posto
fora do corpo ( hors-corps ), submetido aos imperativos e às
aspirações do ideal do eu que o comandam com falsas promessas
de recuperação [I(A )].
Do gozo do ser ter-se-á passado para o gozo fálico. Da Coisa
absoluta do ponto de partida, absoluta porque não conhecia
obstáculos nem mercados da renúncia, apenas ficam os objetos
fantasmáticos que causam o desejo desviando para outra coisa, as
coisas do Outro, as que somente são marcadas, quando alcançadas,
pela diferença frustrante, pela perda relativa à Coisa que pretendiam.
O objeto @, oferecido como mais-de-gozo p ( lus-de-jouir ), é a
medida do gozo faltante e, por isso, por ser manifestação da falta-
a-ser, é causa do desejo. Pois o gozo de @ é residual, é
compensatório, indicador do gozo que falta por ter de transacioná-
58 Gozo

lo com o Outro quesó dá tirando. Assim como amais-valia é o mais


de valor que produz o trabalhador, sendo-lhe arrebatado no próprio
ato da produção pelo Outro (assim o estipula o contrato de trabalho)
e restando para ele somente um remanescente de prazer sob a forma
de salário que relança o processo e que o obriga a regressar no dia
seguinte, o mais de gozo é esse gozo que é a razão de ser do
movimento pulsional e, ao mesmo tempo, o que o sujeito perde, seu
minus,a libra de carne, o valor usurário às vezes entregue à cobiça
insaciável do Outro Shylock.
M as ninguém se resigna de bom grado à renúncia que lhe é
exigida. O gozo
fundamento rechaçado àvolta
da compulsão por seus
repetição. foros, não
O perdido insiste.
é o Éesquecido;
o
mais ainda, é o fundamento mesmo da memória, de uma memória
inconsciente que está além da erosão, de um desejo infinito de
recuperação que se manifesta em outro discurso, o do inconsciente,
o da cadeia da enunciação que corre subterrânea e que alimenta e
perturba a cadeia do enunciado.
Para ter e conservar a vida teve de se aceitar a perda da bolsa:
nunca se termina de perdoar o ladrão.

2. O gozo (não) é a satisfação de uma pulsão

Difundir, comentar e estender, tirando novas conclusões do


ensino de L acan, ir além da letra de seus textos, não é operação
isenta de riscos. M uitas vezes o expositor cita uma frase, um
aforismo de fácil memorização e o leitor é seduzido pela facilidade
da expressão. M as uma citação é, em princípio, uma interpretação
(o analista sabe bem quando recorta uma expressão de seu
analisante e a devolve subentendendo as aspas), e, além disso, é um
recorte que apenas conserva seu sentido à medida que se conserve
o contexto em que o citado recebe seu valor. O problema se agrava
quando, como acontece muitas vezes, o primeiro comentarista
conhece e maneja perfeitamente o texto do qual extrai sua citação,
mas o entrega a um público que, por sua vez, torna-se o segundo
comentarista, citador de segunda mão, fundador de uma doxa
corrente que desfigura o ensino sem alterar a literalidade.
Os
gozos
distintos 59

Seja este prólogo uma introdução ao comentário de uma sen


tençade L acan que está alcançando um triste destino entreos laca-
nianos a partir dos comentaristas. Refiro-me à expressão multicitada
de O gozo é a satisfação de uma pulsão que aparece como frase
subordinada no meio de uma oração no seminário da ética.2
E sta frase é retomada por J acques-A lain M iller em seu
seminário de 19843e é levada quase ao absoluto em um texto de
Diana Rabinovich4em que se lê: “O gozo, definido sempre por Lacan
como gozo de um corpo, recebe sua definição claraA em ética: o
gozo é a satisfação de uma pulsão”. É atraente ter uma definição tão
concisa, aparentemente irrefutável e avalizada pela palavra do

M estre.deMintitular
modo as nadaosseria tão perigoso.
seminários que têmO Jequívoco se com
.-A . M iller agrava pelo
o editor.
É sabido queL acan nunca ni titulou as aulas, apenas o seminário em
seu conjunto. E, ainda assim, de um modo não definitivo como o
prova o fato de os seminários III, VIII e XI terem sido editados com
títulos diferentes dos que tinham quando eram aulas de seminário.
É muito menos possível evitar os equívocos quando se escandem
os seminários em fragmentos e os nomeiam.
O seminário de 4 de maio de 19605nos chegaassim com o
título, talvez pouco discutível, de “A pulsão de morte”. O que sim

édeproblemático é que, como


seu texto, aparece segundo
“O gozo, subtítulo,
satisfação de umarelativo a uma parte
pulsão”.
É necessário, então, voltar à precisão da palavra lacaniana para
não ficar com a falsa idéia de que a pulsão é compatível com a idéia
de satisfação, idéia profundamente antifreudiana, já que para Freud
é a necessidade que é satisfeita, enquanto a pulsão é um ser mítico,
grande em sua indeterminação, uma força constante, uma exigência
incessante imposta ao psiquismo por sua ligação com o corporal que

2. J . L acan (1960). Le seminaire. L ivre VII. L ’élique dans la psychanalyse.

3. JParis:
.-A . MSeuil,
iller. 1986. p. 248.
Seminário L es réponses dit réel. Inédito, mimeogratado,
1983-1984.
4. D. Rabinovich. Sexualidady significante. Buenos A ires: M anantial, 1986.
p. 47.
5. J. L acan (1960). Le seminaire Livre VII. L ’étique dans la psychanalyse,
p. 243-256.
60 Gozo

estimula além de qualquer domesticação possível, sempre para frente.


A pulsão não se satisfaz, insiste, repete-se, tende a um branco que

sempre
a paz (Ffalha
ri ede)e de
seusua
objetivo não se
satisfação alcança com
(Befriedgung a saciedade,
), mas com o com
relançamento da flecha, sempre tenso o arco de sua aspiração.
Freud6pôde dizer que “a meta de uma pulsão é, em todos os casos,
a satisfação que apenas pode-se alcançar cancelando o estado de
estimulação na fonte da pulsão” para se referir imediatamente depois,
às pulsões de meta inibida que “também” se associam a uma
satisfação parcial. Há uma distinção entre ter uma meta e alcançá-
la. A meta (Ziel) é uma aspiração.
M as não é inútil, ou tarefa de estudiosos, dissipar oequívoco.
Pelo contrário, se o gozo não éa satisfação de uma pulsão, podemos
aprender da discussão aquilo que sim é ou, melhor dizendo, em que
sentido muito particular e restritivo pode-se dizer, como
efetivamente o disse Lacan, que o goz o é a satisfação deuma pulsão,
sim, mas de uma muito específica, a pulsão de morte, que não é
aquela em que se pensa em princípio quando se fala em geral da
pulsão e, muito menos, é a satisfação de toda e qualquer pulsão, de
uma Trieb indefinida no conjunto pulsional.
Para esclarecer isso definitivamente deve-se recorrer ao texto,
em vez de percorrer seus despenhadeiros. Impõe-se a citação em
seu contexto:
C oi sa paradoxal , curi osa, ma s é impo ssível r egistrar a
experiência analítica de outro modo, a razão, o discurso, a
articulação significante como tal, está aí no começo ab ovo, está
aí no estado inconsciente, antes do nascimento de algo de seja
experiência humana, está aí fundida, desconhecida, indomada,

ignorada inclusive por aquele que é seu suporte. E é em relação


a uma situação estruturada de tal modo que o homem tem, num
segundo tempo , que si tuar sua s neces si dades. A tomada d o
homem no campo do inconsciente tem um caráter primitivo,
f und amental. M as este camp o, à medi da que está desde um
começo organizado logicamente, sofre uma Spaltung, que se
mantém em todo o desenvolvimento posterior, e é com relação a

6. S. Freud (1915). Obras completas. Trad. J. L. Etcheverry. Buenos A ires:


A morrortu, 1976. v. X IV , p. 118.
Os gozos distintos 61

esta Spaltung que se deve articular a função do desejo como tal.

E ste desejo apresenta


precisamente assim certasfreudiana
aí que a experiência arestas, um ponto complicar
consegue cego, e é
a direção dada ao homem por sua própria integração.
Problema do gozo, quando este se apresenta fundido em um
campo central de inacessibilidade, de obscuridade e de
opacidade, em um campo cercado por uma barreira que torna mais
difícil seu acesso ao sujeito, inacessível talvez à medida que o
gozo se apresente não pura e simplesmente como a satisfação
de uma necessidade, mas como a satisfação de uma pulsão, no
sentido em que este termo necessita a elaboração complexa que
trato aqui de articular diante de vocês.1 (Grifos meus.)
A pulsão propri amente dita é algo mui to compl exo... para
quem quer que se aproxime dela de modo estrito, procurando
compreender o que Freud articula sobre ela. A pulsão não é
redutível à complexidade da tendência entendida em seu sentido
mais amplo, o da energética. A tinge uma dimensão histórica, de
cujo verdadeiro alcance temos de nos precaver.
E sta di mensão se marca na i nsi stênci a com que se
apresenta, ao se relacionar (a pulsão) com algo memorável, posto
que memorizado. A rememoração, a historização, é coextensiva ao
funcionamento da pulsão no que se chama psíquico humano. É
também aí que se registra, que entra no registro da experiência, a
destruição.
Isto posto, L acan passa a ilustrar o conceito por meio do
sistema do papa Pio V I, fábula do marquês de Sade em que se
propõe que é pelo crime que o homem vem a colaborar nas novas
criações da natureza. Lacan então lê, para seus ouvintes, o que
talvez seja a citação mais extensa de seus 28 anos de seminário para
lhes ensinar, a respeito da pulsão de morte, que ela deve cindir-se
entre o que resulta do princípio energético ou princípio do Nirvana,
que conduz ao zero, ao inanimado, à aniquilação pore,outro lado
(grifos meus), a pulsão demorte. E acrescenta
:
A pulsão de morte deve situar-se no domínio histórico, já
que se articula em um nível que somente é definível em função

7. J. L acan (1960). Le seminaire. Livre VII. L'etique dans la psychanalyse,


p. 247-248.
62 Gozo

da cadeia significante, ou seja, como um sinal, um sinal de ordem,


podendo ser colocada em relação com o funcionamento da
natureza. Faz falta algo além, de onde ela própria possa ser
captada em uma memorização fundamental, de modo que tudo
possa ser retomado, não simplesmente no movimento das
metamorfoses, mas a partir de uma intenção inicial."

Para L acan, então, seguindo Bernfeld, “um dos freudianos


mais ortodoxos”, deve-se distinguir entre o movimento energético
até o zero e aquele que nós, como analistas, podemos chamar em
nosso registro de pulsão, algo que está além da tendência a retornar
ao inanimado. Com a pulsão, que detectamos em nossa experiência,
encontramos algo que se aproxima da vontade de destruição, “de
Outra-coisa à medida que tudo pode ser questionado a partir da
função do significante”. Esta vontade de destruição que é, segundo
Sade, uma vontade de criação a partir do nada e recomeçar. Esta
força destrutiva e criadora está ligadaà história como memorável e
memorizada, suspensa da existência da cadeia significante. L acan9
vê, assim, a pulsão de morte como “uma sublimação criacionista”.
Devemos relembrar as posições suste ntadas por Lacan em seu
seminário de 4 de maio de 1960 para articular os três sentidos do
termo pulsão caso se considere o nível energéticoque está fora do
registro da experiência psicanalítica e que é uma especulação que
poderíamos chamar “metabiológica” de Freud; esse o nível
é da
pulsão como descrito em “As pulsões e suas vicissitudes”1" de 1915,
cujo eixo é a pulsão sexual, sempre parcial. Dela Lacan deverá dizer"
que contorna o objeto, o objeto @, que tende a ele e que
necessariamente falha, em contraposição àpulsão de morte,
memorizada, historizante, assimilável a uma vontade de destruição
que conduzà inscrição do sujeito na cadeia significante. Estas duas
últimas, a parcial e a de morte, são pertinentes ao nosso campo e,
no fundo, podem reunir-se já que a meta última de toda pulsão é este

8. Idem, ibidem, p. 250.


9. Idem, ibidem, p. 251.
10. Sigmund Freud (1915).Obras completas, v. XIV, p. 113-134.
11. J . L acan (196 4). L e séminai re. L ivre XL L es quatre concepts
fondamentaux de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1973. p. 163.
Os
gozos
distintos 63

registro da vida no simbólico não por meio da obediência, mas da


transgressão do princípio de prazer.
Creio ser conveniente citar aqui um comentário anterior:12
A história, postula Freud em “O mal-estar na civilização”, é o
resultado da luta eterna entre a pulsão de morte e as pulsões de vida.
A história, diz Heidegger em sua Introdução à metafísica,
é o resul
tado da luta eterna entrediké e tekhné,entre a norma instituída que
aglutina unidades cada vez mais complexas tekhné,
e a atividade
dissolvente do homem que impugna as ordens e as ordens do esta
belecido para destruir o existente e criar novas formas de existên
cia... A mbas conceituações se recobrem e convergem, mas a
heideggeriana é mais ajustada porque evita os equívocos biologistas
inevitavelmente vinculados aos conceitos de vida e morte.
Se, como acreditamos, a pulsão é o próprio da demanda que
provoca o desvanecimento do sujeito (S 0 D), ela, a pulsão, tropeça
no impossível de sua realização. A falta é estrutural; está inscrita no
Outro a que a demanda se dirige [S (A )]. Em outras palavras, se
considerarmos a pulsão em relação com o campo da linguagem e não
cm uma discutível transcrição biológica e hedonista, não podemos
aceitar
sintagmasem
nãoobjeções o sintagma
é nem lacaniano nem“satisfação
freudiano,depois
uma pulsão”.
parte Esse
da confusão
entre pulsão c necessidade, e a distinção entre os dois registros
sempre esteve clara em nossa experiência. Se o gozo tem a ver com
a pulsão e na medida em que a pulsão deixa um saldo de insatisfação
que estimula a repetição, e é nesta medida que a pulsão é
historizadora, já que msatisfaz. Em lodo caso, poder-se-ia afirmar
que o gozo é o saldo do movimento pulsional ao redor do objeto
porque isso que se delineia neste caso é o vazio da Coisa, o tropeço
com o real como impossível.
A outra consideração que nos ajuda aentender apulsão como
sendo essencialmente pulsão de morte é a que parte também de
Freud quando ele nos indica o caráter fundamentalmente conserva
dor das pulsões; elas tendem ao restabelecimento de um estado an
terior. Qual é esse estado anterior último a que pode se referir o
12. N. A. Braunstein. Las pulsiones y la muerte. In: La re-flexión de los
conceplos de Freuden la obra de Lacan. M éxico: Siglo XX I, 1983. p. 47.
64 Gozo

falante? Não é necessário considerar um estado mineral anterior à


vida e aos intercâmbios metabólicos tomando emprestada de um
duvidoso discurso biológico a resposta para um segredo que pode
mos elucidar com termos psicanalíticos. A morte não é senão aquilo
que restringe todo gozo possível do falante, pois não há gozo senão
do corpo vivente. Daí a consubstancialidade entre a pulsão de morte
e a ordem simbólica situada por Lacan a partir de seu segundo se
minário,13dedicado ao eu. Se a vida fica definida para nós a partir
do ingresso nas estruturas da subjetividade que são as da transação
com o Outro, ou seja, a partir de que a carne se faça corpo pela in
tromissão do significante no processo vital, o movimento pulsional
pode ser visto como esta força que tende à recuperação do estado
anterior à palavra, ou seja, no que viemos trabalhando, à recupera
ção da Coisa como objeto absoluto do desejo, à recuperação desse
gozo do ser a partir do qual o sujeito chega a ex-sistir.
gozo
Coloca-se novamente a antinomia entre o gozo primeiro,
do ser, e a palavra como vinda do Outro e consagrada ao Outro,
obriga à renúncia ao gozo e dá em troca o prazer e bloqueia o gozo
do ser, exigindo que este seja encaminhado e desencaminhado pelas
vias doumpensar.
gozo, Será acessível
gozo segundo, ao sujeito,
secundário, sim, mas
semiótico, como outro
linguageiro,
palanfrório, já que fora do corpo, que a teoria - e já veremos por
quê, pois não é algo evidente, dando lugar a muitas discussões e
mal-entendidos - considera e designa de um modo que poderíamos
chamar forçadamante com o nome duvidoso, ambíguo, e contudo
necessário, degozo fálico.
Há um ponto departida insondável e insuperável: os casos em
que a função dapalavra não existe ou foi anulada e o vivente, ainda
quando está dentro do campo da linguagem, não se inclui em
intercâmbios discursivos. Pense, à guisa de exemplo e paradigma,
no autista ou no catatônico. Ou, para estar plenamente no ponto de
partida absoluto, no recém-nascido e em sua situação com relação
ao Outro: a de um objeto deixado à sua disposição e arbítrio ou
arbitrariedade.
13. J . L acan (1954-1955). Le seminaire. Livre II. Le moi...Paris: Seuil, 1978.
Os gozos distintos 65

É o estado de uma indistinção entre eu e o “mundo”, sendo o


mundo, essencialmente, o corpo da mãe. Esta Coisa srcinária e
mítica, anterior a qualquer diferença, é chamada por Freud em seu
texto de 19 1614com o nome de eu-real, que é inicial, ou seja, um
ser no real, anterior a qualquer reconhecimento do Outro, anterior
à entronização posterior do princípio de prazer que construirá um
eu-prazer e que será o eu definitivo, aquele que aceitará em maior
ou menor medida as coações da realidade que modifica e continua
o princípio de prazer (poderemos nos deter neste ponto no item 7).
Em relação a este eu-real inicial é que incide a chamada
invocante do Outro que iniciou este capítulo, o apelo subjetivante.
A intervenção do Outro é assim antitética do gozo; desaloja desse real
pleno, expulsa do paraíso e o constitui como o que se perdeu.
A palavra é sempre palavra da Lei que proíbe o gozo. O Paraíso
existe a partir de duas árvores que há nele, cujos frutos não devem
ser comidos. A partir de então, está fechado o caminho de volta à
Coisa {eu-real), restando apenas o do desterro e da resignada
habitação na linguagem. Um anjo de espada flamejante assegura o
cumprimento da Lei.
E stamos neste momento nesta barreira além da qual está a
C oi sa analítica, onde se produzem freios e se organiza a inaces
sibilidade do objeto como objeto de gozo. É justamente aí que se
coloca o campo de batalha de nossa experiência (...) Para compen
sar esta inacessibilidade, é além desta barreira que se projeta toda
sublimação individual, e também as sublimações dos sistemas de
conhecimento e, por que não, a do próprio conhecimento analí
tico.15

Ouo aOutro
assim, C oisaéinacessível
o objeto deouum
o Outro. M as, sendo
ódio primitivo que ejustifica
por ser a
negatividade absoluta como vocação srcinária do ser. Tal é a razão
de toda pulsão ser no fundo pulsão de morte, ataque à exigência
alienante de fazer passar o gozo pela cadeia do discurso. Freud diz
o mesmo: “O ódio é, como relação com o objeto, mais antigo do que

14. S. Freud (1915).Obras completas, v. XIV, p. 129.


15. J. L acan (1960). Le seminaire. Livre VII. L'étique dans la psychanalyse,
p. 239,
66 Gozo

o amor; brota da repulsa primordial que o eu narcísico opõe


inicialmente ao mundo externo pródigo de estímulos”.16
Se Eros tende à ligação, à constituição de nexos, trata-se de
nexos entre significantes, do vetor que vai de um significante (S,)
a outro significante (Sj. L acan poderá ironizar com razão o caráter
delirante que assume neste ponto o enunciado freudiano ao pretender
que as ligações entre as células que levam à constituição de
organismos multicelulares ou de sociedades complexas pudessem
ser uma prova da ação de Eros. Está bem. as pulsões são seres
míticos, mas sobre elas sabemos apenas a partir de nossa prática
linguageira. Os biólogos não podem dizer nada, não é seu campo,
sobre nosso Eros e Tanatos tal como surgem da experiência
psicanalítica. A ação da pulsão de morte recai, então, sobre o
intervalo da cadeia, tende a dissolver esse vínculo que é o do
discurso. E assim como nega o Outro e expressa este anseio
irredimível de retorno ao gozo do ser. E uma atividade iconoclástica
que pede para recomeçar. A negatividade destrutiva que se apodera
do desejo, destacadapor Freud,17L acan e Hyppolite1“ na discussão
em torno daDie Verneiming pode ser entendida a partir desta
inclusão do gozo
A pulsão nãodo ser na
, pois,
é teoria.
algo quese satisfaz e dá acesso ao gozo,
mas sim, essencialmente, uma aspiração de gozo que fracassa por
ter que reconhecer o Outro e pagar-lhe com a quota “gozosa” que
ele exige a título de aluguel pela residência que oferece. Em seu
fundamento a pulsão é destrutiva e não apaziguável. Novamente,
deve-se recorrer a Freud em uma expressão surpreendente por sua
clarezaem relação ao gozo. Está em “O mal-estar na civilização”,19
quando trata sobre a pulsão de morte:
M as, ainda onde emerge sem propósito sexual, inclusive na
mais cega fúria destrutiva, é impossível desconhecer que sua

16. S. Freud (1915).Obras completas,v. XIV, p. 133.


17. S. Freud (1926).Obras completas,v. XIX , p. 253 258.
18. J . L acan (1953). Écrits. Paris: Seuil, 1966; (L acan) p. 381-400 e
(Hyppolite) p. 879-888;Escritos 1. M éxico: Siglo X X I, 1984 (L acan) p.
366-383 eEscritos 2. M éxico: Siglo XX I, 1984 (Hyppolite) p. 859-866.
19. S. Freud (1930). Obras completas,
v. XX I, p. 117.
Os gozos distintos 67

satisfação se enlaça com um gozo narcisista extraordinariamente

elevado, na medida em que ensina ao eu o cumprimento de seus


antigos desejos de onipotência. M oderada e domada, inibida em
sua meta, a pulsão de destruição, dirigida aos objetos, vê-se
forçada a procurar para o eu satisfação de suas necessidades
vitais e o domínio sobre a natureza.
A parece, no item anterior, o sintagmaque dissemos não ser
freudiano, satisfação (mas não da pulsão,satisfação do eu).
Concluindo este item podemos definir o sentido de nossa empresa
ao analisar o aforisma de L acan que lhe dá título: evitar que a
repetição de uma fórmula fácil e descontextualizada faça perder de
vista o sentido específico que tem em Lacan e em Freud a ligação
entre a pulsão e o gozo. C oncretamente, tratei de recalcar a
srcinalidade do conceito freudiano de pulsão, uma vez que o mesmo
é transformado de raiz a partir da introdução da noção de de
pulsão
morte, pois esse conceito se divorciou da idéia de aspiração a um
apaziguamento ou satisfação e se vinculou com o gozo como “além
do princípio de prazer”. Os comentaristas de L acan o sabem bem,
mas a doxa que se cria chega a ser contraditória com o ensino de
L acan em um ponto fundamental.

A pulsão
memorável não transgressão,
como tranqüiliza nem sacia.com
confina A pulsão historiza,
o fracasso faz o ao
ao levar
real como impossível e é assim que alcança sua meta.
J á é hora de passar ao ponto seguinte para evitar um novo
equívoco: o de uma conceituação maniqueísta e apressada do Outro
como o “mal” que separaria desse supremo “Bem” que seria a Coisa.

3. A palavra, diafragma do gozo

Do gozo do ser, pela intromissão necessária do Outro e de sua


L ei que exigem que tal gozo seja entregue no mercado dos
intercâmbios, fica uma falta a ser que é o desejo. Pelo Outro há algo
perdido como desfrute do corpo. E o fundamento da velha aspiração
do Wunsch freudiano: a de recuperar, seja pelo curto-circuito da
alucinação, seja pelo amplo caminho das transformações da
realidade, a (identidade de) “percepção”, ou seja, o gozo da Coisa.
68 Gozo

O gozo, o que dele fica inscrito, o Isso freudiano, o pulsional que


impressões
foi resignado, tudo isso é caótico, está desarticulado. São
(cf. capítuloIV ) que não podem ser subjetivadas e assumidas como
sendo de alguém. A s “representações de coisa” freudianas
(,Sachvorstellungen , nãoDingvorstellungen,pois da Coisa não há
representação) devem ganhar o acesso ao sistema pré-conscientc,
articulando-se com as “representações de palavra”
(Wortvorstellungen ), mas este processo não é simples. As
representações de palavra, ou seja, os significantes da língua não
vêm tão-somente sobreinvestir, dar uma carga extra de “energia” aos
significantes do desejo, como aspiração à recuperação do gozo. O
sgnificante substitui as representações de coisa e lhes impõem outras
leis que não são as pretensões do (qui
gozon 'a jamais connu de loi),
mas as do discurso e da linguagem. Do gozo não ficam senão estas
metáforas e metonímias, estas moedas que do simbólico vêm para
encarregar-se e “desnaturalizar” esse real prévio que é agora
simbolizam; o simbolizado é o gozo
inacessível e irrecuperável. Elas
perdido, renunciado, entregue à exigência do Outro. Para Freud,
Triebverzicht, renúncia pulsional.
E é assim que a linguagem articulada, a fala, é um caminho que
desencaminha. Para percorrê-lo deve-se ir aonde ele leva, ou seja,
ao exílio, à realidade, às coisas do mundo que não são senão outro
nome da perda originária. A rticulado como está em “representações
de coisa” (para conservar a terminologia freudiana), o desejo in
consciente é inarticulável, deve aceitar as leis da cadeia significan-
te, traduzir o gozo em palavras e perífrases que necessariamente o
desvirtuam. Deve-se articular como demanda, reconhecer o Outro
e torná-lo condição da satisfação. A idéia central que quero desta
car neste momento é que a cadeia significante não tem medida co
mum e não tem possibilidade de significar o gozo a que aspira; que
o significante é incomensurável com o gozo e que a falta de tal me
dida comum é o que define o gozo como um tipo de substância que
corre por baixo, algo que constantemente se produz e ao mesmo
tempo escapa e é barrado como impossível, indizível, pelo discur
so. E que nome, que nome senão olibido de corresponderia a essa
substância fabulosa e escorregadia, a essehommelettel
Repetindo o elementar da concepção lacaniana do discurso: o
sujeito é o efeito da cadeia significante, está no lugar do significado
Os gozos distintos 69

de um significante um (S,) que o representa para outro significante


(S2); entre os dois se faz a cadeia. O produto desta operação de
articulação dos dois significantes é um resto irredutível, um real que
é o resto in-significante, o objeto inalcançável que causa o desejo e
representa o gozo perdido sob a forma demais um (minus)de gozo.
Entre o sujeito e o objeto @ assim produzido como saldo que cai
do encontro dos dois significantes há uma disjunção, um
desencontro essencial que permite escrever a relação entre os dois
efeitos da função da palavra (o sujeito como significado e o objeto
como gozo faltante), ora com a dupla barra da disjunção, ora com

o losango da fórmula
excetuando-se do efantasma.
a psicose conforme Oserá
encontro de capítulo
visto no ambos é,
correspondente (capítulo
VII), impossível.

___ S, -> S,
8 // @
(S0@)

Cabe insistir na heterogeneidade radical nesta fórmula entre os


significantes e o sujeito que é seu efeito de significação, por um lado,
e, por outro, o gozo, indicado pelo objeto @. Recordemos aqui, que
tudo é estrutura, mas nem tudo é significante,2 0 @ é, precisamente,
justamente, aquilo da estrutura que não é significante.
Com Freud, a partir de Freud, sabemos que este transvaza-
mento que também é um vazamento do gozo na articulação signifi
cante vai, no discurso, se escandindo, se repartindo em momentos,
pontos dramáticos de corte e interrupção, que a teoria psicanalítica
delimitou como fases ou estádios da evolução psicossexual. Qual
quer um se lembra dos esquemas cronológicos que colocam nas
abscissas
de modo adeterminadas
parecer que idades e nas ordenadas
a psicanálise tais fasesdoevolutivas
é outra cronologia desen
volvimento, uma a mais. Com Freud, a partir de Freud, sabemos que
todas estas fases, marcadas como estão pela renúncia ao gozo oral
primeiro e anal depois, com incisos nunca bem determinados sobre

20. J. L acan (1958). Remarque sur lê rapport de Daniel L agache. In: Écrits,
p. 659;Escritos 2, p. 638.
70 Gozo

o gozo uretral, muscular, visual e alguns etcéteras mais, são todas


preparatórias de uma renúncia final que ressignifica retroativamen
te todas
lúdio elas e ossobrevem
pré-genital fantasmas
o que lhes correspondem.
atravessamento Depois
edípico da do pre
castração,
condição do período de latência, no qual, idealmente, todas as re
núncias ao gozo corporal já foram produzidas, restando apenas uma
pura disponibilidade do sujeito para assimilar-se à palavra “forma
dora” (alienante) do Outro. Não por casual coincidência, esse pe
ríodo de latência coincide com a chamada “idade escolar”. O não
sepultado pela castração é o que retorna da repressão sob a forma
de sintomas, monumentos que comemoram o gozo abandonado,
ainda que transposto também, de outra maneira, nos termos lingua
geiros. Os sintomas são traduzíveis, interpretáveis, efeitos de “con
versão” do gozo (a que sempre remeterão), formas também elas do
gozo fálico. Tudo aconteceassim, até que a pressão da puberdade
reativa as demandas da sexualidade; estas deverão canalizar sob os
ditames da primazia da genitalidade, ou seja, do único genital que é
o masculino, ficando a menina dividida entre um gozo que também
é fálico, o do clitóris, igual ou comparável ao do homem, e outro
gozo, vaginal, que seria complementar do gozo fálico e, portanto,
incluído em sua órbita, sob a égide e supremacia (teses freudianas
que L acan corrigirá e às quais dará outro alcance). Com Freud e a
partir dele, temos ouvido falar deste processo de renúncia ao obje
to mais arcaico do desejo, cuja dinâmica se desenrola no cenário do
complexo de Édipo e que acabará, do lado masculino, cm uma iden
tificação com o pai rival e, do lado feminino, com uma demanda feita
ao pai depois de aceitar a decepção pela castração inevitável da mãe
com seu saldo de inveja do pênis e aspiração de recuperá-lo sob a
forma de um equivalente simbólico que é o filho.
A sexualidade, com suas disposições polimorfas, com seus
componentes sexuais “perversos”, com sua multiplicidade srcinária
de zonas e objetos foi, depois deste processo, arrasada. A í onde o
gozo se derramava de modo anárquico no verde paraíso dos amores
infantis, tem agora uma lei, efeito da castração e da proibição do
inccsto, que determina os objetos e os modos de satisfação
acessíveis àquele que fala.
Este processo é descrito por Freud de muitos modos e em
diferentes textos, mas talvez fique mais claro em “Dois princípios
Os gozos distintos 7I

do funcionamento mental”,21 em que descreve a troca do princípio


dc prazer por seu substituto modificado, que é o princípio de
realidade. Nesse artigo, o vocábulo
Lmsí do Lustprinzipnão deve ser
entendido como “prazer”, ou seja, como limite e barreira ao gozo,
mas como o próprio gozo, enquanto a realidade, senhora das
conveniências e reguladora dos ideais, é esta escura razão do Outro
que se superpõe e desloca o gozo do corpo fazendo com que o
sujeito fique dividido entre dois Outros difíceis de conciliar: o corpo
como Outro que é um estranho ao sustentar aspirações proibidas de
gozo (gozo do Outro) e o Outro da linguagem que reclama renúncias

ao
dosgozo que sempre
sintomas se darão a contragosto
e da psicopatologia e que são
da vida cotidiana. o fundamento
Este processo
de “dcsgozificação” (criemos um neologismo necessário) justifica
que leiamos assim, transgressivamente, o artigo sobre os dois
princípios. O Lustprinzip corresponde nesse texto ao gozo inicial,
ao que Freud em 191522chamou Eu-ideal. O princípio de realidade
é o verdadeiro nome do princípio de prazer-desprazer. Os dois
princípios, o de prazer e o de realidade (ambos entrelaçados) aluam
consonantemente como barreiras interpostas no caminho do gozo.
Os gozos sucumbem à castração e se metamorfoseiam ao
terem que se significar passando pelo funil da palavra, aceitando sua
L ei, a da cultura, e evocando sempre a renúncia pulsional que os
desvia (perverte) por esse estreito desfiladeiro. Daí Freud ter
proposto a essas “pulsões parciais” como “precursoras” da
castração, já que apenas com esta alcançam sua significação
definitiva que é a dc incluir sempre a função imaginária do -(j).
Passando pela castração simbólica os objetos do desejo se marcam
com o lastro de suaimpossibilidade. Em relação com < i>
, com o Falo
como significante do gozo que está proibido para o falante como tal,
é que tudo do gozo que é acessível está barrado e deve deslocar-
se ao longo da cadeia significante, fora do corpo
hors-corp. E por
isso que o objeto @, o do fantasma, carrega subentendida esta
função da castração. A inda que não se escreva de tal modo por
razões de economia, seu nomecompleto é: objeto @ / (-(})).

21. S. Freud (1911). Formulaciones sobre los dos princípios dei acaecer
psíquico. In: Obras completas, v. XII, p. 223.
22. S. Freud (1915). Obras completas,v. XIV, p. 129-130.
72 Gozo

A carne n
i corpora-se à linguagem e assim se faz corpo. A s as

pirações pulsionais
as demandas. requerem
Por isso do Outro,
a escritura esse Outro
lacaniana a que
da pulsão éSse0dirigem
D, e o
sujeito se constitui a partir do modo em que o Outro significa e res
ponde à demanda, impondo suas condições, mostrando por onde
sim e por onde não. O sujeito apenas chegará a existir como uma
conseqüência da ação do Outro da linguagem sobre essa carne que
se fará corpo na medida em que acolha os cortes que a linguagem
faz no fluxo vital. O corpo se tornará mapa, pergaminho em que se
escreverá a letra que com sangue entra. Um corpo é humano ao se
incluir nesse sistema de transcrições que trocam o gozo pela pala
vra. A divisão subjetiva (S) alude, entre outras coisas, a esse pro
cesso de estranhamento que constitui como Isso, o pólo pulsional
e que deixa o eu encarregado das relações com o Outro e organi
zador das defesas contra os excessos no gozo. Desde o reprimido
procede a pulsão como exigência de trabalho, como tensão impos
ta ao psiquismo por sua relação com o corporal, como transgres
são ao princípio de prazer,23como aspiração ao gozo que não se
compadece dos mandamentos e restrições que o Outro impõe. A
“dinâmica” da metapsicologia freudiana é este conflito entre o gozo
transgressivo e o prazer homeostático, entre o tudo menos quieto
desejo sexual infantil e a aspiração de seguir dormindo.
O gozo é decli nado (em suas duas acepções: a gramatical e a
subjètiva de “declinar”); agora tem uma clínica do gozo, dos modos
de julgá-lo e conjugá-lo, evocá-lo e frustrá-lo, recusá-lo e
reconquistá-lo sem nada querer saber sobre ele. Reaparece depois
de metamorfoses linguageiras nas formações do inconsciente, esse
inconsciente que trabalha com uma matéria-prima que é gozo e a
transforma em um produto que é discurso, utilizando esse
instrumento que está estruturado como ele e que é sua condição (“a
linguagem é a condição do ni consciente”, insistia L acan24): a bateria
do significante que terá que servir a seus fins, a seus fins de gozo.
Não se trata da língua, mas de alíngua da lingüisteria lacaniana, essa
23. J . L acan (1964) . L e seminai re. L ivre XI . L es quatre concepts
fondameiitaux de la psychanalyse, p. 167.
24. J . L acan (1970). Autres écrits (A.E.). Paris: Seuil, 2001. p. 393-403.
Os gozos distintos 73

alíngua que é a carne do anta


f sma.2 5 O inconscienteconseguepassar
algo de seu contrabando gozoso, mas, de qualquer forma, para dizer
não à L ei deve aceitar queé sim súdito dela e que se reconhecem
suas coações. O sonho transgressivo noturno não a anula, mas
confirma seu império, assim como o chiste. O reprimido a
reconhece com muita dor no sintoma; o incomensurável do gozo
está condenado a vegetar nos parques bem delimitados do fantasma,
essas reservas falsamente “naturais”. O gozo refugiou-se na fantasia
inconsciente, cujos arquivos e protocolos Mclanie K lein explorou,
fantasia louca, irredutível à razão, retaliadora, corrosiva, selvagem,
associai, que evoca um gozo do Outro sufocante e devorador
vinculado pela “tripeira” ao corpo mítico daM ãe como representante
da Coisa. Sobre estas formações imaginárias terroríficas e terríveis
do gozo recairão as repressões e renúncias que tornam o sujeito
dividido, em outras palavras, um bom menino da neurose.
Estamos, com ele, no mundo da comunicação, do sentido e da
recíproca satisfação especular dos eus. O sujeito se desconhece ao
colocar-se sob os emblemas de um si-mesmo, de selfum
que gruda
seus pedaços gozosos em uma imagem unificada e totalizante de si
e do outro, o “objeto”, como dizem os partidários de uma assim
chamada “teoria das relações objetais” que pretende ser um “novo
paradigma” para a psicanálise e que rapidamente conquistou a
maioria das disposições na mundial de psicanálise, sempre ávida por
qualquer novidade que lhe permita retroceder a tempos teóricos
anteriores a Freud. Não é este o escrito adequado26 para fazer o
relato e a crítica desta psicologia da pessoa total que floresce em
nossos tempos, portando a bandeira renovadora de um inconfesso

“retorno a... científica”


“regressão Adler”, nãocomo
por vergonhoso
a chama um menos
dosflagrante, de uma
seguidores da
repressão anterior, a da psicologia do ego, tão vituperada por Lacan
em seus tempos. Pois estamos na época em que os partidários do
modelo que imperou nos anos 1950 e 1960 resultam demasiado
freudianos, conservadores (dois vocábulos que se tornam sinônimos

25. N. A. Braunstein. L ingüistería (L acan y el lenguaje). In: El lenguaje y el


inconsciente freudiano, p. 213.
26. Cf. N. A. Braunstein. Freud desleído. F reudiano y lacaniano, p. 133-150.
parais “inovadores”), tradicionais etc. Com o o objeto total27
selfo
(queá “a pessoa do outro”), têm-se os artefatos que permitem
rejeilr o inconsciente e o objeto sempre parcial da “antiquada” teoria
freuoana das pulsões. Não posso deixar de apontar agora que o
centn de tal empresa teórica é a deportação do gozo para fora da
teoriída psicanálise para convertê
-la em uma concepçã
o das relações
intcressoais dominada por ideais de harmonia e completudc. Já
podetios imaginar quão bela fica a psicanálise quando conseguimos
tirarJ ela as pulsões, a castração e o Edipo, o gozo e o desejo
incoisciente e, livres de tal fardo, mostrar que o tratamento pode
se reluzirsimpático
teraputa a um relatoe umpormenorizado
paciente quedas interações
aprende entre
com ele um
a integrar
um el f previamente dissociado pela falta de uma mãe
suficsntemente boa.2 8
1 assim vamos, de digr essão em digressão, até nossa
compeensão já adiantada de um gozo apalavrado, de um gozo do
qual rio sabemos senão pelo discurso que lhe impõe sua legalidade
e ques divide entre um gozo anterior, mítico efeito retroativo da
palavu, e umgozo posterior, que se produz ao mesmo tempo em
que ecapa, por ter que atravessar o campo minado, para ele, da
lingugem. No entanto, do gozo nada se poderia saber se não fosse
por ete apalavramento. L acan pôde especular sobre o gozo da
árvortou da ostra. Não seria o caso de segui-lo: o gozo não é uma
funçãt vital\aparece enquanto a vida está mortificada pela palavra
e pelaL ei. E coisa de falantes. A palavra tira o gozo docorpo e se
encarega de dar corpo ao gozo, outro corpo, um corpo de
discuco. Este processo nuncaé nem completo nem pacífico c ficam
as fomações do inconsciente como memoriais da tradução
imposível, como emergências do gozo que não convém. O discurso
é, ret<rica interposta, o portador e o produto deste gozo passado
pela hguagem, administrado segundo uma rigorosa economia.

27. H K ohut. La restauracion del st-mismo.Barcelona: Paidos, 1980, L.


Rngell. The object in psychoanalytic therapy. J . of the Am. Psa. Ass.,
3; p. 302, 1985.
28. M Gill e I. Z. Hoffman. Analysis of transference, Internat: U niversity
Pcss, 1982. 2 vols.
Os gozos distintos 75

A palavra articulada tem, ao mesmo tempo, que deixá-lo passar


c controlá-lo, regular sua voltagem. O significante não existe no céu
das
que idéias platônicas. pensante
as substâncias Seu lugar ée difícil
extensa de especificar
de Descartese L acan
não dirá
conseguem
localizá-lo, pois “o significante se situa no nível da substância
gozante”, ou seja, do corpo que se sente, irredutível à física e à
lógica ou, cm outras palavras, suporte de uma lógica diferente da dos
lógicos. Se o significante está aí e se o gozo somente existe por sua
intermediação, é porque “o significante é a causa do gozo”, ao
mesmo tempo em que lhe põe um limite e lhe dá razão de ser, ou

seja, que “oésiganificante


O que é o que
“substância detém oAgoz
gozante”? o”.29 ilustração que posso
melhor
propor é a analogia muito usada que compara o falante com o
computador. O que tem nela? Um corpo, efeito da criação
significante, sem dúvida, um produto da indústria que é sua
materialidade física, h oardware,totalmente estúpido em si mesmo
quando é suporte das atividades da máquina. É um corpo bruto que
não serve para nada até que se lhe incorporam os programas, uma
organização estruturada de significantes, uma informação codificada
e sem corpo, osoftware.Com o “sou” dohard e com o “penso” do
soft, temos à vista as duas substânci as cartesianas. A máquina pode
funcionar perfeitamente, muito melhor, mais rápida e mais
eficientemente do que essas máquinas tontas que somos os falantes.
Para ela, o que não serve, o que erra. o ambíguo, é matéria de
descarte, de descartes. Se é suficientemente avançada, aprende com
seus erros e os corrige, não se compraz nem se aferra a eles. Seu
hardwareé indiferente à composição e às operações de software.
seu
Um não incide sobre o outro, tendo em conta sua compatibilidade
técnica. Não há aí fantasma, não há imaginário, estão descartadas
a neurose e a compulsão à repetição. Esta é a diferença entre a
máquina e o falante: este último é o assento (não o sujeito) de um
gozo que passa por ele, que se sente na confluência do corpo e da
linguagem, que não reconhece um princípio de eficiência e que é a
fonte de uma complacência no erro e no errar. Para que serviria uma
29. J . L acan (1973). Le seniinciire. Livre XX. Encore. Paris: Seuil, 1976,
p. 26-27.
76 Gozo

máquina gozante, se é que a algum cibernético lhe ocorreu inventá-


la? No computador, o pensar - não o saber, segundo aespecificação
de
umL absoluto
acan3 " em deserto
seu seminári
do ogozo,
de 20nadecópula
março feliz
de 1973 - prolifera
hardware
do e doem
software.No homem e na mulher, feitos de substância gozante nem
imaginada por Descartes, o significante faz a cópula, não a felicidade.
Neste sentido é que proponho que a palavra seja o filtro -
recorrendo a uma analogia fotográfica - (não sem que me escapem
as outras conotações), que a palavra é o diafragma do gozo. Isto
é, que cumpra com relação a esta “substância gozante”, ao fluido
libidinal freudiano ou à mítica e tão elástica lâmina lacaniana, a
função de interceptação e de proteção contra excessos indesejáveis
(ou demasiado desejáveis).Diaphrasein em grego é, precisamente,
separar, interceptar, estabelecer uma barreira.
A palavra, o fármaco oferecido pelo Outro, a droga instilada
desde o berço no falante, considerada agora um termostato
regulador, o diafragma que regula a passagem da luz, essa pupila
que se dilata na obscuridade e se contrai com os raios luminosos.
Sabemos que luz em demasia inunda a placa fotográfica e a imagem
fica velada, e que a falta de luz não permite que a placa se
impressione, fazendo com que a imagem careça de definição.
Sabemos também que o diafragma deve ser sensível, como a pupila,
e graduar seu diâmetro esfincteriano para adequar-se a diferentes
condições e às horas do dia.
A ssim funciona apalavra: deixa de atuar ou não existe ou está
destruído seu aparato no psicótico. Assim, o gozo inundao falante
e varre a subjetividade; rompem-se as barreiras que permitem limitar
a penetração da palavra do Outro, fica o corpo submetido a
metamorfoses incontroláveis que o sujeito presencia atônito. Na
neurose, pelo contrário, assistimos a um espasmo ou contratura
desse diafragma que perde flexibilidade e nos mostra a
fenomenologia inteira dos clássicos mecanismos de defesa do eu que
não são mais do que operações linguageiras que tendem a refrear um
gozo vivido como perigoso ou intolerável. Situações especiais e não
redutíveis a esta simples oposição do diafragma fechado ou aberto

30. J. Lacan ( 1974). Le seminaire. Livre XX. Encore, p. 89.


Os gozos distintos 77

são encontradas nas perversões, toxicomanias e doenças


psicossomáticas. Dever-se-á falar sobre isso nos capítulos dedicados
à clínica, mas é importante sublinhar desde já a utilidade clínica da
oposição e da composição entre gozo e discurso, porque ela está no
cerne da experiência mesma da análise que consiste em operar sobre
o diafragma do gozo. A s condições do trata
mento não apenas não
são as mesmas, mas devem ser radicalmente opostas para o caso
em que o diafragma não exista (psicose) ou esteja fechado
(neurose). O dispositivo freudiano surge da experiência das neuroses
e consiste em criar as condições de possibilidade que permitam a
passagem do gozo à palavra. E esta também a idéia que nos oferece
um outro caminho de acesso ao que se desenrola na transferência
que é transferência do saber, certamente, e constituição do sujeito
suposto saber, mas somente na medida em que esta suposição seja
a de umsabergozarque tanto abre para o ato perverso quanto para
o ato analítico, e onde somente o desejo do analista poderá
estabelecer a diferença.

4. A coisa e o objeto @

O gozo existe por causa do significante e à medida que o


significante não o detenha e o submeta à sua norma que é a norma
fálica. A linguagem é o que funciona como barreira a um gozo que
não existiria sem ela. No entanto, no que vimos, falamos de um gozo
que inunda o ser e que é devastado pela exigência de apalavrá-lo.
Não há mistério nem contradições, já que também dissemos que a
linguagem é o que produz o gozo como o que havia antes de sua
intervenção. É a função da linguagem: matar a coisa, dando-lhe uma
nova existência, uma vida deslocada. Era o meu problema ao
começar o primeiro capítulo. Era primeiro o gozo ou o verbo?
Problema clássico da galinha e do ovo, ou seja, de estruturas que
não reconhecem antes nem depois, ainda que a pergunta sobre sua
gênese retorne sempre. Se o gozo é um efeito retroativo da palavra
que o limita, cabe se perguntar sobre sua srcem e ponto de partida.
(Se o universo está em expansão, cabe se perguntar sobre o
momento em que tudo estava concentrado em um só ponto. ítalo
78 Gozo

Calvino escreveu, a respeito disto, um conto menorávil em Á s


cosmicômicas.)A pergunta pel a origem remete neessari mente a
uma resposta que é da ordem do mito. Bem s: sabtque os
psicanalistas não recusamos os mitos. As pulsões sã sere míticos
e magnos em sua indeterminação, dizia Freud. Edipo: comjlexo por
ser mítico. O fantasma fundamental começou a er traado por
L acan como “o mito individual do neurótico”.31A libdo laaniana é
um fluido mítico etc. Por seu lado, o mito originárn do g>zo e de
sua perda posterior recebede L acan uma resposta ae art;ula um
termo freudiano com uma ampla tradição filosófica: a Coia. K ant

com Freud.aCoisa
mostrando quecom
relação na amais breveé:de
palavra, suas definiões,
“aquilo jácitada,
do realprimorial que
padece pelo significante”.32
A Coisa como umreal puro, anterior a qualqueisimboização,
exterior a qualquer tentativa de apreensão, apagada pra semre por
qualquer palavra, núcleo de mi possibilidadeencerrad; como>s mais
íntimo e o mais inacessível ao sujeito, extima, ccmo a ciamou
neologicamente L acan no seminário VII, A ética a psicoiálise.
Qualquer representação dela a desnaturaliza. Quahuer un pode
imaginar o seio, o corpo da mãe, a vida intra-uteriia, o caustro
materno e o que quer que seja, mas sabendo qui toda estas
imagens não são da Coisa, mas que brotam a partir daexistâcia de
um mundo produzido e estruturado pelo simbólico qc habiita tais
produções imaginárias, tais representações em torn de un real
impossível de recuperar. Os fantasmas, incluindo o da 3oisa,;ão um
efeito do sofrimento do real pela ação do significante. Aimbo zação,
a intrusão da linguagem na carne, induz à falta a ser qie carcteriza

o sujNietzsc
por eito e o lança
he33em por
um vereda
brevese de desejo.texto
essencial A idéia
dejá
18 bra adantada
3, pulicado
postumam ente: nadasabemos do eral, senão pormeio e consruçõ es
fictícias habilitadas pela linguagem. Vivemos em m muido de

31. J . L acan. Le mythe original du névrose. Ornicar?, n. 17/8, p. 39-307,


1979. [Intervencionesy textos.BuenosAires: Manantial, 1'85. p. 7-59].
32. J . L acan (1960). Le seminaire. Livre VII. L'étique dans Upsychnalyse,
p. 142.
33. F. Nietzsche (1873). La verdad y la mentira en el sentido;xtrarmral. In:
Obras completas.Buenos A ires: Aguilar, 1947. v. I, p. 39-408.
Os gozos distintos 79

mentiras, deficções. Lacan dirá que todo discurso é do semblante3


4
e tem como função representar e mascarar a verdade da qual deriva.
Por isso, o conhecimento iémpossível, ficando apenas
o saberque
é um fantasma.
Como voltar se não for por um discurso especial a uma
realidade pré-discursiva? E aí onde está o sonho, o sonho fun
dador de toda idéia de conhecimento. M as é aí também que deve
ser considerado mítico. Não há nenhuma realidade pré-discursi
va. C ada realidade se funda e se define por um discurso.” (G ri 
fos meus)

Como
a Coisa se lugar de um
apresenta gozoa não
como metalimitado e mito
absoluta da falta
do desejo, da falta,
o lugar ou o
estado em que se cumprirá a abolição da falta a ser, estado de
N irvana, supressão de toda tensão diferencial com o mundo,
indistinção do se
r e do não-ser, morte. A tendência à Coisa é a pulsão
de morte como destino final de todos os afãs vitais humanos. Este
mito de uma satisfação plena que a lógica do mito, a que pede uma
concepção da srcem, obriga a considerar como o ponto de partida
e lugar que está aquém dc todo desejo é, ao mesmo tempo, o ponto
de chegada, o estado de repouso absoluto que se alcançaria uma vez
consumi da aque
para o ser chama
fala,daévida e alcança
eleger da a quietude
os caminhos para aúltmorte,
ima. Viver,
deambular
pelas veredas do extravio e a errância do gozo com vistas à sua
recuperação.
A Coisa, como objeto absoluto do desejo, abre ao pensamen
to a dimensão insólita e abismal de um gozo do ser, anterior ex- à
sistência,um efeito retroativo da linguagem que, ao colocar-se além
da própria coisa, isso que os lingüistas chamamreferente,cria a in
tuição de um aquém. Esta suposição, insiste L acan,16é insuprimí-
vel e “a linguagem, em seu efeito dc significado, sempre fica ao lado
do referente. Sendo assim, não seria verdade que a linguagem nos

34. N. A. Braunstein. El concepto de semblanteen L acan. In: Por el camino


de Freud, p. 121-152.
35. J. L acan (1973). Le seminaire. Livre XX. Encore, p. 33.
36. Idem, ibidem, p. 44.
80 Gozo

impõe o ser e nos obriga a admitir que, do ser, nunca temos nada?”.
O que nos lança não a parecer, mas a para-ser, a existir de lado, no
campo do semblante, dada a “insuficiência” da linguagem.
Creio que já é desnecessário insistir. A Coisa é um efeito da lin
guagem que introduz a falta e que, assim, separa dela. A Lei da lin
guagem, a das sociedades humanas cujo efeito final e cujo
fundamento é a lei da proibição do incesto, a proibição da reintegra
ção com a mãe, é a que cria a Coisa e a define como perda. Desde
que se produz o primeiro acesso ao simbólico, a primeira intrusão
do símbolo na vida, a Coisa fica obliterada, o gozo fica marcado por

um dizer-se,
de minus e odeente humano
articular é chamadoque
significantes a ser por meio sempre
expressam da obrigação
um
único conteúdo fundamental: o da falta no gozo, único referente,
“única ontologia confessável” para nós, psicanalistas. E é pela falta
que se produz no ente por ter que se dizer que resulta o ser de to
dos os exilados da Coisa, os falantes. Já no item anterior, aborda
mos a questão do discurso e vimos que o trabalho de articulação dos
significantes supõe um real prévio, um aquém, o da Coisa e produz
um saldo inassimilável e incomensurável, o gozo perdido, causa do
desejo, que é o objeto @, um real posterior. E assim que corre o fio
do desejo, por meio de demandas que se repetem em direção ao
Outro e que recebem dele signos, manifestações, doações, que não
podem preencher o vazio aberto no gozo por ter que sc tornar pa
lavra. E não é que o Outro seja malevolente, não; é simplesmente que
não tem com que responder ao que lhe é pedido, que manca por falta
de um significante, que está barrado.
Sendo a Coisa irrepresentável - cenário vazio, um espaço que
está além da infranqueável superncie do espelho cujo espaço virtual
que faz surgir não é nada além da miragem os objetos que
pretendem substituí-la, povoar e mobiliar esse espaço, apenas
conseguirão um estatuto espectral, imaginário. São os objetos do
fantasma ante os quais o sujeito se desvanece (SO @). Introduz-
se assim a distinção essencial entre a Coisa e os objetos
(das Ding
e, por outro lado,die Sache, die Objekte, die Gegenstände).
É aqui
que podemos co nsiderar o objeto @ que causao desejo e quemove
a pulsão. Por ser a Coisa aquilo que falta, os objetos do mundo
aparecem e se multiplicam, os falantes, pela via da linguagem, dão-
Os gozos distintos 81

se um mundo, entram no mercado do gozo com o Outro. Pela


expulsão srcinal se constituem como sujeitos em sua divisão que
é, agora, divisão entre a Coisa e os objetos (inclusive o eu, seguindo
como sempre Freud, que considerou o eu um objeto particular sobre
o qual recaía uma classe particular de investimentos, os narcísicos).
Os objetos, todos, são derivados da perda, seus sucedâneos, seus
representantes fantasmáticos. Do Gozo, do Grande Gozo inicial e
mítico, aos gozinhos, aos pequenos @ dos objetos que causam o
desejo e o vetorizam.
Desde o princípio Lacan se propôs explicar essa diferença em
termos topológicos. É por isso que no mesmo ano 1960 em que
reintroduzia a Coisa, concebeu um apólogo que já era uma topologia
grosseira, mas que ilustrava de modo convincente a diferença entre
a Coisa e o objeto. Refiro-me a seu famoso vidro de mostarda. Sabe
Deus por que tinha que ser vidro e de mostarda. O que importa é
que nesse objeto da indústria podemos reconhecer três elementos:
a) o vidro, suas paredes, que é uma invenção humana, uma
manifestação do poder criador da linguagem; em suma, um
significante que produz; b) algo que intuitivamente teria estado
antes, o vazio, envolto pelas paredes do vidro e que, no entanto, não

o seria
seja senão com
enchido pela algo
açãodefinido,
do significante; e c) convida
a mostarda, que nãoe teria,
permite
semque
o
frasco e o vazio, outro destino que o de esparramar-se e perder-se
de modo irremediável. Este apólogo mostra a função criativa ex
nihilo do significante que produz o vazio como essa Coisa que teria
estado desde antes (e isso é falso) e que propõe ao objeto como
aquilo que pode povoar (de modo enganoso) esse vazio. Dois anos
mais tarde, no seminário da identificação,'7mostraria a existência de
uma figura topológica que, considero, é mais rigorosa para dar conta
deste desencontro estrutural entre os objetos da pulsão (variáveis,
sempre substituíveis, segundo o ensino freudiano) e a Coisa como
objeto absoluto ao redor do qual giram todos estes movimentos
pulsionais.
O que proponho, sabedor de que não é em relação a esta
distinção entre aCoisa e o objeto @ trazida por Lacan em 1962, é

37. J. L acan (1962).Seminário IX, aula de 23 de maio.


82 Gozo

ilustrar a excentricidade de ambos por meio do toro. Para quem não


sabe do que falo, é necessário remeter-se à imagem intuitiva de um
anel, ou melhor, de uma câmara de roda de automóvel. Para quem
busca referências mais precisas posso recomendar o livro de J.
Granon-L afont.3S Na câmara, no toro, existem dois vazios que, como
o vazio do vaso de mostarda, são criados pelas paredes, pela
superfície do toro. Um vazio periférico, fechado, envolto pela
borracha da câmara, chamada “alma” do toro e outro que é o buraco
central, o “furo pelo qual corre o ar”, como uma vez o chamou
L acan, que nada envolve. É claro que os dois vazios não têm

nenhuma comunicação entre si e estão em dimensões diferentes.

O que nos mostra esta estrutura tórica? A atividade do


demandaque se repete e insiste, articulada, vale como
significante, a
algo que caminhasse pela superfície interna, girando constantemente
em torno do vazio fechado que é a alma do toro. O espaço interior
que ela gera é o espaço desejo
do , dessa atividade pulsional que
contorna permanentementeo objeto @ e que o perde, tornando a
lançar-se incansavelmente em seu encalço. Os ciclos da pulsão
abraçam o objeto sem alcançá-lo. O retorno erra tanto em relação
ao ponto de chegada quanto ao ponto de partida e é assimilável ao
arco descrito por Lacan no seminário XI.39Sua repetição, ou seja,
a repetição das demandas que deixa o saldo incobrável do desejo,
volta a tensionar o arco do qual sairão disparadas as flechas que

38. J. Granon-L afont. La topologie ordinnaire de J acques Lacan. Paris: Point


H ors-L igne, 1985. p. 45 -67.
39. fondamentaux de laLe
J . L acan (1964). semina ir ,e.p. L163.
psychanalyse ivr e XI . L es qii air e concept s
Os gozos distintos 83

novamente voltarão como bumerangues a um lugar próximo ao da


partida. Esta repetição, nunca se insistirá o bastante, não é o ato
intencional de um sujeito psicológico, mas o sujeito é o efeito dos
sucessivos lançamentos daflecha. A pulsão é acéfala. A história de
cada um é resultado dos modos de fracasso dos encontros com o
gozo e do voltar a se lançar atrás dele. (Por isso tive de dedicar um
item inteiro deste capítulo para esclarecer que o gozonão é
satisfação de uma pulsão.) O toro não existe desde sempre ou desde
um princípio, mas é o efeito deste eterno retorno da pulsão e é por
ele que se configura o outro espaço vazio, central e aberto, que é o
da Coisa totalmente
demanda. alheia
A excentricidade queaos infinitos
háentre retornos
o des circulares
ejo e o gozo, entre da
os
objetos e a Coisa, entre o gozo permitido (posto em palavras,
insatisfatório) e o gozo proibido (vazio central) se manifesta com
total clareza nesta figura topológica.

Ao redor daalma do toro giram as pulsões, aspirações degozo


submetidas à respostado Outro, $ 0 D, que Freud chamou eróticas
ou de vida. Em seu orbitar, elas criam o espaço central, o buraco
impreservável que é seu atém inabordável. A representação topológica
nos permite também apreender a diferença entre o campo do
princípio de prazer, de seu fracasso inevitável, figurado pela alma do
toro, isso que chamamos seu vazio periférico, e de seu além que é,
precisamente, a área da Coisa, do gozo inominado, no qual impera
84 Gozo

o silêncio das pulsões, irracional na medida em que aí não há nada


e que é aí onde se confirma que o gozo é o que não serve para nada.
M as esses espaços vazios são, como no vidro de mostarda, lugares
de uma atração enigmática. O vazio pede para ser enchido e o sujeito,
animado por uma paixão quehorror é vacui, lança-se a preenchê-
lo, anula-se na tarefa gozante de povoá-l o. E a atividade pulsional,
já que deslocada de todo fim natural ou da satisfação de
necessidades, um trabalho de sublimação que é, segundo a definição
dada por Lacan em 1960, a elevação deum objeto à dignidade da
Coisa.40Não é o lugar reservado para os exímios artistas ou para os
seres excepcionais, mas a residência do falante como tal, o espaço
transicional de Winnicott, a área de gozo onde brinca a criança, onde
prolifera o fantasma, onde se confrontam o gozo do Um e o gozo
do Outro: um espaço de impossibilidade localizado na confluência do
imaginário e do real, sem mediação simbólica, onde o sujeito se
precipita e se dissolve.
Rodeado por esse espaço da criação significante que o espreita
sem penetrar nele alça-se o império de Tanatos, aí onde as águias
não se atrevem, aí onde, vivente ainda, baixa A ntígonapara encontrar

sua sepultura,
a palavra fascinante
permite e perigosa,
vislumbrar assento
e, também, de uma gozo
sustentar uma letal ao que
distância
respeitosa. A rrisquemos umatradução deum texto bemconhecido
a título de ilustração:
Gatsby acreditava na luz verde, no futuro orgástico que ano
a ano recua à nossa frente. Ele nos escapara então, mas isto não
importava - amanhã correremos mais rápido, estenderemos mais
adiante nossos braços... E numa bela manhã -
E assim prosseguimos, barcos contra a corrente, arrastados
incessantemente para o passado. [F. Scott Fitzgerald, palavras
finais de O grande Gatsby.]
Esta imagem da vida rodeando, evitando e postergando o
encontro final e definitivo coloca a questão das barreiras ao gozo que
será abordada no item 6.

40. J. L acan (1960). Le seminaire. Livre VII. L 'étique dans la psychanalyse,


p. 133.
Os gozos distintos 85

M as, antes de chegar aí,temos que fazer a visita que estamos


devendo ao Mestre Falo.

5. A castração e o nome-do-pai

Sei que a topologia não é popular, mas acho que a maneira mais
sensata e exata de abordar o tema-eixo deste capítulo que distingue
formas do gozo passa pela figura estranha e inquietante,

erecentemente evocada, do toro


de espaços incomunicáveis. com começamos
A ssim sua criação adefazê-lo
novasno
dimensões
parágrafo anterior e assim continuaremos agora de modo congruente
com o que a li colocamos. Uma pessoa pode passar a vida viajando
pela superfície interior de uma câmara de pneu de automóvel sem
ter a menor intuição ou representação do buraco central, ou do eixo
ao redor do qual se girou. Em comparação com o que seria
descobrir que vivemos em um espaço tórico, a famosíssima
revolução copemicana pareceria uma modificação pouco importante
da concepção do mundo em que existimos.
Vou entrar rapidamente no assunto com uma afirmação dog
mática que poderá parecer apressada, mas que na seqüência tenta
rei desenvolver de modo razoável: a superfície da câmara de ar que
separa de modo irreversível os dois vazios, colocando-os em dimen
sões heterogêneas é a função da linguagem, separadora da Coisa,
efeito da lei da cultura, da linguagem como instauradora de um corte
que não é outro senão a castração simbólica, a que gira em torno
do significante do Falo ((])). Trata-se do Falo simbólico, impossível
de fazer negativo, que representa o gozo como inalcançável para
aquele que fala, pois, tendo ou não pênis, órgão que o representa no
imaginário, é impossível sê-lo. Toda relação com o gozo passa por
esta proibição, por essaimposição de que os objetos @ aos quais
o sujeito poderia aceder suportam sempre a dimensão da castração,
o nome do @ (-()>) de que falamos em um ti em anterior.
Este é um ponto complexo e debatido da articulação lacaniana
e de sua leitura de F reud. M uita tinta foi gasta em torno do
“falogocentrismo” da teoria, da assimilação da função da linguagem
86 Gozo

e da função fálica.41As objeções (Derrida,42Irigaray43-44-45-46) não


deixam de reconhecer o fato evidente e maciço desta prerrogativa
fálica. Nas palavras de Derrida,47 “O falogocentrismo não é um
acidente nem uma falta especulativa imputável a este ou àquele
teórico. E uma enorme e antiga razão sobre a qual também deve se
informar”. Este é o argumento que Derrida reconhece como válido
ainda que não esteja de acordo com sua utilização, pois o que
acontece como descrição de uma situação de fato (“a enorme e
antiga razão”), acaba induzindo “uma prática, uma ética e uma
instituição; portanto, uma política que assegure a tradição de sua
verdade” (ibid.). A queixa é corretae vale como uma advertência em
torno dos riscos de passar do faloccntrismo da teoria ao falocratismo
opressivo na vida concreta. Caríbdis e Scila são agora a renúncia a
pensar o que de fato acontece e vem acontecendo (falocentrismo)
e, por outro lado, acabar aceitando com conformismo que a razão
estrutural impõe a passividade aos modos de transformar as injustiças
do falocratismo. A pergunta é: como poderiam enfrentar-se os
desmames da dominação, já que os princípios fundamentais de seu
poder são desconhecidos?

O questionamento
falo somente destadepois
pode se fazer solidariedade entre
de aceitar queo asignificante eo
ordem humana,
a L ei, foi falocêntrica. Obviamente, isso não avaliza nenhum
androcentrismo, o que historicamente aconteceu em todos os cantos
do planeta. A psicanálise não tomapartido, mas explica anecessidade
da articulação e é sabido que apenas o conhecimento da necessidade

41. Cf. N. A. Braunstein. El Falo como S.O.S. (símbolo, objeto, semblante).

42. JIn: P or el camino


. Derrida. de ,lap. vérité.
de F reud
Le facteur 112-120.
P oétique, Paris, n. 21, 1975. Em
castelhano emLa tarjeta postal. De Sócratesa F reud y más allât. México:
Siglo XII, 2001. p. 387-485.
43. L. Irigaray. Spéculum, de l’autre femme. Paris: Minuit, 1974,
44. L. Irigaray. Ce sexe qui n 'en est pas un. Paris: M inuit, 1971.
45. C. Soler. Ce que Lacan disait des femmes.Paris: Editions du Champ
L acanien, 2003.
46. D. L uepnitz. Beyond the Phallus. Cambridge Companion to Lacan.
Cambridge (U K ), Cambridge U niveristy Press, 2003. p. 221-237.
47. J. Derrida. La tarjeta postal. De Sócrates a F reud y más allá, p. 403.
Os gozos distintos 87

pode abrir o caminho para uma possível liberdade com relação ao


que se apresenta como fatalidade. É justamente a chave da posição
lacaniana relativa ao gozo feminino que abordaremos no próximo
capítulo. E é o centro da aposta teórica, clínica e inclusive política
da consideração da diferença entre os gozos que devem ser
distinguidos em sua especificidade.
A L ei tem um efeito temível, não ang
ustiante, queé a castração.
Simbólica, sem dúvida, que mais poderia ser? Por ela se instala a
separação entre o gozo e o desejo. O proibido faz-se fundamento do
desejo e este deve ser posto em palavras. Conforme vínhamos
recordando, em Freud e a partir de Freud, toda renúncia ao gozo,
todo pagamento feito na conta do Outro, todo este esvaziamento do
gozo que é a educação das pulsões, culminam no complexo de
castração que ressignifica todas as perdas anteriores em relação ao
falo, significante da falta como universal para os falantes, que divide
o campo da sexuação em duas metades não complementares que
são a do Um e a do Outro, a do homem e a das mulheres. A
sexualidade e a diferença entre os sexos passam a ser, assim, um
fato de lógica que significa e ressignifica a diferença anatômica. Entre
o homem e a mulher há um significante que os divide conforme o
modo particular que têm de se posicionar com respeito a ele; há um
muro de linguagem que os separa.
O Falo, como significante, tem a impossibilidade do gozo da
Coisa ou gozo do ser como significado. A castração não quer dizer
outra coisa senão isto: todo ser humano, todo aquele que fala, está
sujeito à L ei de proibição do incesto e deve renunciar ao objeto
primeiro e absoluto de desejo que é a M ãe. Tendo ou não falo,
ninguém, nem a criança, nem a M ãe, nem o Pai, poderá sê-lo. O
Falo é o significante dessa proibição absoluta; substitui assim esse
ponto zero daque,
nome-do-Pai linguagem quemetafórica,
na função é a Coisa. substitui
Seu valoro ésignificante
idêntico aodo
do
Desejo da M ãe. Atenção! Coloco aqui uma equação:

Falo = Nome-do-Pai

que em essência é correta, mas à qual se deverá impor, seguindo


L acan, alguma correçã
o que explique por que ateoria necessita dois
88 Gozo

termos diferentes e qual é a razão derivada da prática clínica que


impõe sua dualidade. Não tardaremos a fazê-lo.4S

tempoO marca
Falo (O)o élugar
o tampão, tronco do significante,
e a impossibilidade da Coisa. que ao omesmo
Ocupa lugar
central do toro, o buraco “por onde corre o ar”, por onde passa o
dedo no anel. Daí sua função desuporte daLei e também que sirva
para designar a falta no Outro, a castração daM ãe, seu caráter de
incompletude, o que a faz desejante de algo que não se completa na
relação com o filho. Ou seja, S (A), materna que expressao gozo
como impossível de subjetivar, obrigando a transitar os estreitos do
desejo e do intercâmbio. Ou, em outras palavras, que se deseja em

função
-(p. da castração
Os giros e cujos
da demanda, doobjetos
que ficadoinsatisfeito
desejo levam sua marca,
da pulsão, são
realizam-
se ao redor da alma do toro, de seu vazio periférico que tem a forma
do anel e que vão cingindo e delimitando o vazio central da Coisa
tamponado pelo significante Falo, significante do Desejo da M ãe, que
é continuado e deslocado pelo significante nome-do-Pai.
Com o que vimos até aqui, posso propor uma dupla
equivalência e com ela uma proporção que não deve se apressar para
assumir sentido matemático, mas que é para ser pensada como
relação topológica entre lugares irredutíveis. No buraco central do
toro, encontramo-nos com a C oisa como o real que acha seu
significante no Falo (d)) simbólico, enquanto na alma do toro temos
esse incessante girar em torno do objeto @, real, perdido
retroativamente a partir das voltas em seu redor. O significante que
polariza essa busca é o falo como parte faltante à imagem desejada
((p), um significante imaginário que para o sujeito apenas pode
presentificar-se com o signo da negação, da castração que o faz
desejante e que faz do @ a causa do desejo. Insistindo tratar-se de
uma relação topológica, elástica, e não de uma pretensão calculadora
com intenções de exatidão é que podemos propor que

(p : O @ : Coisa

48. Cf. E. Porge. Le noms du père chez Jacques Lacan. Ramonville: Érès,
Fin du dogme paternel.
1997. M. Tort. En una perspectiva crítica. In:
Paris: Aubier, 2005.
Os gozos distintos 89

É fato que a rota que leva ao gozo está fechada e deve-se


tomar o desvio da palavra, sair do gozo do corpo e entrar no
deslizamento dos significantes, de um em outro, buscando o elusivo
ponto de estofo. Esse gozo, conotado de castração, é ofálico
gozo
ou gozo do significanteou gozo semiótico,gozo hors-corps para
distingui-lo dos outros, gozo do ser e gozo do Outro, que são gozos
do corpo e, portanto, gozos
hors-langage,fora da palavra, inefáveis.
(Distinguir e separar gozo do ser e gozo do Outro é um risco
teórico em que incorro, sabedor de que o que vem sendo
estabelecido como o ensino de Lacan por parte damaioria de seus
discípulos
sinônimos.4exegetas e comentaristas
9 Nas páginas do capítulo tende a identificá-los
seguinte, e recorrendoe àfazê-los
topologia da banda de M oebius, sustentarei a necessidade de
diferenciá-los para assim dar conta da diferença clínica que existe
entre o gozo do ser, vinculado à Coisa, e o gozo do Outro que é
também o do Outro sexo, feminino. O gozo feminino poderá ser
louco e enigmático, mas nem por isso as mulheres são loucas nem
necessitam injeções de inconsciente como se ouve dizer.)
O Falo, significante a que remetem todos os demais, função
organizadora (no sentido lógico-matemático) dos avatares do falante,
está ausente da cadeia, é impronunciável, é o círculo que se traça
como -1, com relação ao que se pode dizer.5" Não é um significan-

49. Em 1998, quatro após o surgimento da primeira edição francesa , tradu


ção da primeira em castelhano deGozo, Patrick V alas publicou Les
dimensions de la jouissance.Ramonville: Erès. Essa obra está repleta de
citações tiradas de meu livro sem nenhuma menção a ele e sem qualquer
alusão às fontes pesquisadas pelo autor. Nas páginas 78-80 discute com
a posição que aqui exponho sobre a distinção do gozo pré-li nguajeiro do
ser e o gozo do Outro, pós-linguajeiro. No tenho inconveniente em deba
ter o ponto, mas me pergunto: será que não valeria a pena incluir a refe
rência do autor e da obra com a qual difere? O mesmo é válido para o
ensaio de M arc-L épold L evy, Critique de la jouissance comme une,
Ramonville: Érès, 2005. Ao assinalar estas flagrantes e suspeitas omis
sões, quero deixar a certeza de meu reconhecimento a todos os autores
que sim reconhecem - tanto a favor como contra - a existência das pri
meiras edições deste livro.
50. J. L acan (1960). Écrits, p. 823;Escritos 2, p. 803.
90 Gozo

te, tampouco é o órgão (pênis) nem a imagem deste, mas o que in
duz em toda imagem o efeito de aparecer marcada por uma falta,
por uma completude. Se é -1 é porque designa, no Outro, uma fal
ta de significante. Significante, pois, da falta de significante; pura
positividade que marca de negatividade, que condena a não ser ou
tra coisa senão semblante a todo o articulável. M arca-o de negati
vidade e o faz “para-ser” no sentido de que tudo o que se afirma,
seja no sentido da atribuição ou da existência, atura uma sombra:
“isto que é, como significante, é por não ser Falo”. E reconhecen
do o Falo neste lugar central, e ao mesmo tempo excêntrico, que se
explica e se mostra a falta de fundamento de todo falocratismo e se
confirma que, sim, efetivamente, a teoria é “falogocêntrica”. Pois a
castração está no centro do advento do falante e não é nem patri
mônio nem motivo de infâmia para nenhum dos sexos.
O significado do falo como -1 não é um zero, não é uma
ausência; é uma afirmação de que o conjunto do significante, o
sistema do Outro, é inconsistente, suporta uma ausência que faz dele
um conjunto fechado já que sem essa ausência o conjunto não teria
limites e, conseqüentemente, não existiria como conjunto. É assim

que Falo, S(A)F alo


equivalentes. e proibição
é o nomedodogozo (da Coisa)que
significante como absoluto,
desvia são
da Coisa
intangível para os objetos do desejo.
O sujeito da demanda, o que resulta da repetição dos arcos na
alma do toro da demanda de satisfação pulsional (essa satisfação que
não existe, mas que nem por isso se deixa de pedi-la, é mais, é só
o que se pede), esse sujeito que se desvanece para ficar substituído
pelo que pede ao Outro (S O D), tropeça necessariamente com o fato
da falta de significante no Outro, esse Outro que é desejante, que
está
mim]?”barrado, mas cujo
). A significação desejo
desta é um éenigma
falta (S[A]) (“Ocom
ado gozo que querdo[de
o proibi
“ou também que não pode ser dito senão nas entrelinhas para quem
quer que seja sujeito da Lei, já que a L ei se funda nessa proibição
mesma”.51
Estas distinções submetem-se a uma difícil intuição na me
tade superior do gráfico do desejo,52aí onde o vetor horizontal

51. Idem, ibidem, p. 821; Escritos 2, p. 801.


52. Idem, ibidem, p. 817;Escritos 2, p. 797.
Os gozos distintos 91

superior que vai do gozoà castração intersecciona o vetor retroa


tivo que corre da direita para a esquerda e conduz da pulsão ao sig-
nificante da falta no Outro. Avalia-se no esquema a diferença
topológica que há entre a pulsão, o desejo(d) como resto que se
produz pela insatisfação da demanda,o fantasma (S 0 &>) como res
posta imaginária ao desejo, por um lado, à falta
e do gozo, por ou
tro, o gozocomo o que deve ser abandonado no ato da enunciação,
sendo que o gozo é a causa e a razão de ser da própria enunciação
e, por fim,a castraçãocomo resultado deste atravessamento pela
pulsão, sempre insatisfatória, e pela falta do significante no Outro
que permitiria uma feliz alienação e daria completude ao conjunto e
suporte ao gozo. A s letras maiúsculas que corresponde m à pulsão
e à proibição do gozo ou Lei indicam que se trata de termos sim
bólicos, enquanto as letras minúsculas e as cursivas d do
dodese
jo e do @ do objeto do fantasma estão para indicar graficamente,
como escritura, seu caráter de imaginários.

d (desejo)
(fantasma)
T
Parte superior do gráfico do desejo

A condição da enunciação é que não falte a falta, que a


castração simbólica se tenha efetuado, que tenha existido o corte que
faz do sujeito um súdito da Lei. Em termos mais freudianos, me nos
lacanianos, que o complexo de Edipo tenha cumprido sua
incumbência. A Coisa ficou interdita e o Falo, significante
impronunciável [S(A )], tomou seu lugar e instaurou, no sujeito, a
dimensão da falta irremissível. E a esta falta, efeito do Falo que pôs
92 Gozo

a Coisa a uma distância inevitável, que responde outr<significante


que se constitui em eixo de articulação da palavra faada, que é o
significante que estruturalmente realiza a castraçãi, ou seja, a
separação em relação ao desejo da M ãe: é o nomedo-Pai. Um
significante, este sim, articulável, que funciona como ui (S,), como
lugar inevitável para o enganche de um segundo signifiante (S2) que
é o modo econômico de escrever todo o conjunto de;ignificantes
que apenas alcançam significação à medida que se artiulam com o
Sj primordial, o nome-do-Pai. O inconsciente, o inconciente como
o não-sabido, é este S, que tem como suporte o S, qe é o nome
do-Pai, palavra articulável que vem no lugar da falta abeta pelo Falo
como -1 no conjunto do significante, no Outro, signifiando aí a Lei
que decreta a exclusão da Coisa como Real impossível.E que deixa,
como o outro eleito da articulação da cadeia significnte S, —* S2,
um resto que é o objeto um real contornado pila pulsão e
também exterior ao simbólico, vivido muitas vezes peb sujeito sob
a forma do afeto que é seu efeito, o efeito de sua qeda. A ssim
parece desde o próprio princípio da leitura que L acan53az de Freud:
“O afetivo neste texto de Freud [Die Verneinung]é conebido como
aquilo que de uma simbolização primordial conserva ses efeitos até
na estruturação discursiva”. No esclarecedor comenírio que fez
deste texto em seu seminário A exúmidade,54J .-A. Mi er fez notar
que esta “simbolização primordial” é a que se faz de un real prévio
(a Coisa, podemos dizer), enquanto os “efeitos” posteiores (desse
real) que subsistem na estruturação discursiva, o que rejresenta nela
o que no discurso é inarticulável, “o afetivo” do dizeide Freud, é
um real que o discurso gera, mas que não é discuso, é o @
(objeto) que cai dele. E vale a pena conservar sempre esa distinção
entre o real prévio e o real posterior ao discurso que, reta dizê-lo,
remete a um tempo lógico e não cronológico, mostramo a função
de corte que tem a palavra entre a Coisa (anterior) e >objeto @
(posterior), entre um gozo do ser e outro gozo efeito a castração
(Lei da linguagem) queé o gozo fálico, este que corre atrs do objeto
@ que causa o desejo. Não custa descobrir portrás desta
53. J . L acan (1954). Écrits, p. 383;Escritos 1, p. 368.
54. J .-A . M iller. Seminário L ’extimité, 1986. Inédito.
Os gozos distintos 93

especificação inicial de L acan a fórmula do discurso do senhor,


consubstanciai ao discurso do inconsciente, onde S, (neste caso o
nome-do-Pai) ocupa o lugar do agente, ou seja, o lugar do
semblante.

8 @

Disse e inclusive escrevi sob a forma de uma equação que o


nome-do-Pai é o mesmo que o Falo, mas não sem uma mínima
diferença cuja hora de especificar chegou, pois “o privilégio do falo
é que se pode gritar chamando-o e ele nunca dirá nada”.55 E
inarticulável; para dizer deve-se unir um significante com outro
significante, já que um significante não pode significar-se a si
mesmo, por isso o Falo é um significante mudo e sem par.
Enquanto o nome-do-Pai “é o Falo sem dúvida, mas é igualmente
o nome-do-Pai... Se este nome tem alguma eficácia é justamente
porque alguém se levanta para responder” (idem) e é por isso que,
sendo o Falo, cumpre ao mesmo tempo uma função que o Falo não
pode cumprir, a de ser o tronco e o ponto de referência a partir do
qual se possibilita a articulação discursiva. Podemos considerar o
F alo como o significante zero e o nome-do-Pai como sua metáfora,
o significante umque vem em seu lugar.
A ntes de repassar e sintetizar o que venho propondo, é
necessário que me detenha neste ponto, porque encontro aqui uma
confusão que se difunde com freqüência em um aspecto-chave da
teoria do gozo. A cabo de citar uma afirmação inequívoca em que
L acan postula, em 1971, a identidade entre nome-do-Pai e Falo.
Quando Lacan o formula assim, sabe que está modificando um
ponto essencial de suas teses anteriores; concretamente, o modo
habitual de entender a metáfora paterna proposta em seu artigo sobre
as psicoses. Por isso, ri-se do desconcerto de seus discípulos
(“Deus
que sabe que estreme
o nome-do-Pai é ocimentos
Falo] emdecertas
horror almas
provoquei [ao escrever
piedosas” [ibid.]) e

55. J. L acan (1971). Seminário XVIII, aula de 26 de junho.


94 Gozo

expli ca que quando propôs a metáfora paterna, em 1957,56não podia


articulá-la melhor. Com efeito, nessa fórmula anterior encontramos

a razão
uma para que uma
conferência utora
a tão
proferida emcuidadosa
Bruxelas,coe
momuitos
Colettedepois
Soler,57em
dela,
repitam que o nome-do-Pai realiza “a produção do significante
fálico”, que o Falo é secundário à metáfora. Citemos: “O nome-do-
Pai produz outro significante sem par, o falo. Produze-o (...) como
significação. Isso também se vê na escritura da metáfora: o falo está
abaixo da barra, no lugar do significado. Portanto, produção do falo
como significação, mas também produção da significação como
fálica”. A própria autora oferece mais tarde, na mesma conferência,
uma solução que permite conciliar a contradição e que é essencial
para nossa exposição. E a de distinguir o Falo (O), com maiúscula,
“impossível de tornar ne gativo, significante do gozo”58e o falo (-cp),
com minúscula, significante do desejo, que, ele sim, é consecutivo
à intervenção do nome-do-Pai e se apresenta para o sujeito como
“imagem do pênis, negativado em seu lugar na imagem especular”,
sendo isto “o que predestina o falo a dar corpo ao gozo na dialética
do desejo”,59o que permite que, experimentando sua fal ta, o sujeito
possa investir o objeto, carregando-o com o valor do que nele falta,
possa tornar-se desejante. “E pois mais a assunção da castração o
que cria a falta na qual se institui o desejo”.6“ A falta impostapela
castração e assumida pelo sujeito como tal no imaginário é indicada
algebricamente como -(p, menos phi.
Temos que aceitar a idéia de um desdobramento do falo, como
significante, como conseqüência da intervenção metafórica do nome-
do-Pai. Por um lado, como Nasio afirmou em outra conferência
desse mesmo ano de 1982,61 na fórmula da metáfora paterna, “o
nome-do-Pai é o significante que se substitui e se condensa ao falo

56. J . L acan (1958). Écrits, p. 557;Escritos 2, p. 539.


57. C. Soler. A bords du Nom-du-Père. Quarto, B ruxelas, n. 8, p. 61, 1982.
58. J . L acan (1958). Écrits, p. 557;Escritos 2, p. 539.
59. J . L acan (1960). Écrits, p. 822;Escritos 2, p. 802.
60. J . L acan (1960). Écrits, p. 852;Escritos 2, p. 831.
61. J .-D. Nasio. La forclusion y el N ombre-del-Padre. In: La re-flexion de
los conceptos de Freud en la obra de Lacan,
p. 312.
Os gozos distintos 95

como significante do desejo da M ãe”, e é nesse sentido que é


significante do gozo como proibido, que é um significante sem par
e consubstanciai à L ei de proibição do incesto, do gozo como
absoluto, e, por outro lado, por sua operação, marca os objetos do
desejo como seus representantes no imaginário, concede-lhes
significação fálica. E é isso o que se encontra na fórmula da
metáfora paterna:

NomedoPai

Esta, à luz do que vimos dizendo, poder-se-á entender assim:


o nome-do-Pai, significante que chama alguém a responder,
articulável, substitui o Falo como desejo da M ãe (é a primeira parte
do desenvolvimento da metáfora paterna no artigo de L acan [idem]
em que apresenta) e advém aí como significante um que toma o
lugar da Coisa, desse elemento do Real que padecia pelo Falo,
significante inarticulável, colocando-se no lugar do limite do
conjunto significante, por fora de A, fora do parêntese, conforme
se vê na escritura da fórmula anterior. Seu efeito é que, no nível do
significado, debaixo da barra, vem todo o significável como investido
pela função fálica e, por isso, à luz do que estamos avendo,palavra
falo deveria escrever-se aí com minúscula, como significante do
desejo (q>) que se representapara o sujeito sob a forma dacastração
(-cp). “A quilo que a experiência analítica testemunha é que a
castração é, em todo caso, o que regula o desejo, no normal e no
anormal” .63 Ou, em outras palavras, que o nome-do-Pai não
“produz” o significante fálico (C. Soler), mas a significação fálica
que não estofa, não permite apreender, mas que está sempre no
menos (-cp) em relação ao real, lançando o desejo. Em suma, que na

62. J . L acan (1958). Écrits, p. 557;Escritos 2, p. 539.


63. J . L acan. (1960). Écrits , p. 826;Escritos 2, p. 806. A expressão de Lacan
não é feliz. Q uem pode - psicanaliticamente - falar de “normal” e
“anormal"? Se todos somos falantes, para quê a distinção que está
carregada ideologicamente pelo discurso normativo?
96 Gozo

fórmula lacaniana da metáfora paterna haveria um


erro de ortografia
consistente em escrever a palavra falo com maiúscula. O que o
nome-do-Pai
um substituto“produz” é a dizível,
articulável, significação fálica,
do Falo, mas ele é,
significante do por suafonte
gozo, vez,
inarticulável da palavra.
Por isso é que a função do nome-do-Pai é, para o sujeito, pa-
cificante, nas palavras deL acan (que brinca com “pacificante” e seu
homófono,pas si fiant, “não tão fiável”). Pacifica porque, ao induzir
a castração simbólica, põe limites ao gozo desenfreado que é o
“pior”, o que, na clínica, se manifesta como invasão psicótica de
significantes que não encontram seu ponto de ancoragem, que é
necessariamente este significante forcluído nos casos do nome-do-
Pai. E o caos dos S2pela falta do S, que apenas culmina e se esta
biliza quando odelírio vem tomar o lugar desse nome-do-Pai faltante,
de S„ produzindo-se esse remendo que é a metáfora delirante.
R epassando este percurso amplo e árido, sem dúvida -
preferiria que fosse de outro modo- , encontramos: 1) a Coisa, real
e ao mesmo tempo mítica, efeito retroativo da simbolização
primordial, objeto absoluto e para sempre perdido do desejo; 2) o
Falo, significante ímpar, grau zero, indicador da radical
impossibilidade do acesso à Coisa, símbolo que instala a divisão dos
sexos e dos gozos, executante do corte da castração simbólica que
coloca em níveis distintos o ser (do gozo) e o pensar (da palavra)
e que, ao estabelecer com relação a ele a falta no falante, a carência
que se imaginariza como castração, como falta na imagem desejada,
induz a significação fálica e lança o desejo; 3) o nome-do-Pai,
significante um (S,), articulável, diacrítico (isto é, caracterizado por
sua diferença com o resto dos significantes), indutor, produtor e, ao
mesmo tempo, representante de um sujeito (S) ante o conjunto dos
significantes, ante o Outro da linguagem; 4) o saber inconsciente
(S2), palavra que expressa a impossível integração do sujeito no real,
o necessário desterro que o leva a habitar no Outro da linguagem
depois de haver recusado (pela ação do Falo) o gozo do ser para
tratar de alcançar outro gozo, o do para-ser por meio do semblante,
e 5) o @ como efeito real que se produz pelo discurso mesmo, que
suporta sempre a castração, objeto que seguramente se perde e que
é um mais de gozo dependente do vínculo social estabelecido entre
o S, oSujeito e o A, o Outro, castrado e desejante.
Os gozos distintos 97

A Coisa, como o passado, é irrecuperável; o objeto, em sua


condição de real, como o futuro, é impossível. O sujeito está
dividido, também, entre um gozo passado e um gozo futuro, e de
ambos está excluído. O nome desta exclusão, que impõe uma falta
a ser, édesejo.Os dois, a Coisa e o objeto, escapam ao alcance da
simbolização. A palavra, sempre no presente, cortadora do tempo,
fabricante do futuro, é a tesoura que dividegozoodo ser(da Coisa)
e o outro gozo,gozo do Outro (feminino) que abordaremos mais
adiante. M as, em si mesma, na sua articulação dos significantes, no
exercício do corte, na evocação dos gozos possíveis e ausentes,
passados e futuros, na linguagem, há também um gozo
essencialmente distinto dos dois mencionados e que, como marcado
pela castração, é gozo
o fálico, fora do corpo. Este gozo na palavra
é uma tradução que desnaturaliza(se é que algo do gozo possa ser
“natural”) e ao mesmo tempo torna possível a parte do gozo que é
acessível ao falante.
Este gozo linguajeiro requer a anuência do Outro, um Outro de
quem o sujeito sabe sem nada querer saber; é o gozo não-sabido do
qual depende o inconsciente, estruturado como uma linguagem e
encarregado da função de decifrar o gozo. Será o tema do quarto ca
pítulo. Pois é verdade que, falando, o sujeito goza, mas que, ao mes
mo tempo, se defende de braços abertos deste gozo, limita-o e o freia
porque é associai e maledicente. A fala (parole), o discurso corren
te, opõe a seriedade da língua e da razão consensual à desrazão da
alíngua, do dizer poético, do chiste e das emergências da verdade
no discurso. Enfim, outra vez, a palavra é o diafragma do gozo.
Isso é a castração, a citação deve recitar-se neste contexto:
“quer dizer que é necessário que o gozo seja rechaçado para que seja
alcançado naescala invertida da Lei do desejo”.64N esta síntese
sensacional aprendemos que não se trata de um gozo, mas de dois,

oseparam
recusado e o pelo
senão que deve ser alcançado,
aparecimento de umae função
que estes
quedois não se de
os divide,
uma tesoura ou gadanha que impõe o requisito de atravessar pelo
funil da castração, submetendo o órgão que representa o falo, o
pedacinho de carne que pode estar ou faltar, ser saliente ou ficar

64, J . L acan (1960), Écrits , p, 827;Escritos 2, p. 807.


98 Gozo

meio escondido entre as mucosas, a restar sempre debaixo da função


que lhe atribui ocasionar o gozo. Em tomo dele, traça-seo corte que
produz a divisão impreenchível dos sexos (mitificada pelo andrógino
platônico e seu destino de incompletude) e se motiva a angústia do
neurótico que pretende ignorar que já sofreu de saída a castração
que teme e que, com seu desejo, tem pouco a perder e tudo a ganhar,
enquanto a neurótica, acreditando estar fora do gozo fálico, lança-
se a invejá-lo e fecha o caminho para seu próprio gozo que requer
o falo, mas que não se limita a ele, conforme se verá no próximo
capítulo, dedicado ao gozo e à sexualidade.
Se enunciamos este discurso sobre a distinção dos gozos é
porque nos parece essencial para uma nova abordagem da clínica
psicanalítica à medida que as estruturas clínicas (neurose, psicose
e perversão) são modos de se posicionar ante o gozo.
Sucintamente, e como um novo adiantamento do que se verá
em detalhes nos capítulos correspondentes, deve-se falar de um
gozo que se produz pela não instauração (forclusão) do nome-do-
Pai, um gozo não regulado pelo significante e pela castração, fora
da linguagem como submissão às leis do intercâmbio e às
regulações
espera nemrecíprocas, fora da Ldo
aspira a receber ei Outro
do desejo,
uma um gozo que
resposta não a ser,
à falta
gozo psicótico, enfim, aquém da palavra, inundante, invasor,
ilimitado. Deste - discuti do - gozo do ser sabemos não apenas pela
necessidade lógica de concebê-lo, mas porque aparece clinicamente
nesses sujeitos cujo corpo é um cenário de onde se derrama, sem
limites, a palavra do Outro, suas ondas, vibrações e raios que
dispõem nele insólitas transformações, onde a palavra opera como
um real alucinatório e onde a linguagem pode chegar, pela via do
delírio, a colocar um freio precário ao gozo.
E há o gozo posterior à castração, o gozo fálico, sim, mas que
não pode ser simbolizado por meio da palavra e de seus intercâmbios,
em que a castração não é o caminho para um bem dizer, mas uma
ameaça que bloqueia a insistência no desejo e em que o gozo fálico
fica sequestrado, reprimido,e se manifesta, simbolizado, mas retido,
em sintomas que recaem sobre o corpo (e temos a histeria) ou
sobre o pensamento (e temos a neurose obsessivo-compulsiva).
(Veja o capítulo V)
Os gozos distintos 99

Há, além disso, a saída voluntária do regime dos intercâmbios


por meio dessa mercadoria que é a droga e que pode transformar-
se em uma a-dicção (A-dición, @-dicción)definitiva; ali o gozo do
ser é alcançado por meio de um curto-circuito que deixa o corpo à
mercê do Outro e de seu desejo. (Veja o capítulo VII)
Há, por outro lado, a tentativa de se apoderar das influências
do gozo, fazendo-o prenda e presa de um saber à disposição do
sujeito, que, por meio de técnicas corporais, conseguiria liberar-se
da intolerável castração, deslocando-a sobre um objeto degradado e
submetido mediante práticas perversas. Sem saber que o fantasma
de sabergozar é, por sua vez, defesa contra o ameaçador do
insondável gozo do Outro. (Veja o capítulo VI)
E há, por fim, depois da intervenção do nome-do-Pai, um gozo
que é di-versão desse gozo srcinário, regulação do gozo pela
castração simbólica, deslocamento, mudança de registro, tradução
para outro código, desnaturalização, metamorfose irreversível que
leva a transacioná-lo no mercado em que se discute e se decide qual
é o quantum de gozo que pode ser alcançado pelo caminho do
desejo. Deste gozo, a força das tradições nosológicas obrigar-nos-
ia a dizer que é “normal”, com o que estaríamos qualificando de
“anormai
podemoss”af lar
os em
demais. Mas
tais te sabe-se bem
rmos/’5ainda queque os
poss psicana
amos, simlistas não
, recorrer
ao trocadilho de L acan, nunca tão claro como nestecontexto: trata-
se danorme mâle,da norma do macho.
Uma clínica do gozo que regul a eticamenteo ato analítico e que
distingue os significados psicótico, perverso, adicto, neurótico ou
apalavrado do gozo em cada estrutura.Uma clínica que é a razão
de ser de todos estes capítulos e itens, deste longo percurso pelos
despenhadeiros do gozo.

6. As barreiras ao gozo

O gozo está proibido e não somente, como acreditam os im


becis (estou tirando as aspas como observa qualquer leitor avisado),

65. J. Lacan. Court eniretien a la R.T.B. Quarto, Bruxelas, n. 22, p. 31, 1985.
100 Gozo

por um mau arranjo da sociedade. Não é que o Outro não leixa go
zar, mas o gozo também falta ao Outro, a completude naia mais é
do que um fantasma do neurótico neste tempo espantosamnte ator
mentado por exigências idílicas. O essencial, como Freul mesmo
diz, é que a relação sexual não existe, que o amor não é ura via re
comendável para atenuar o mal-estar na cultura, que o disejo, es
preitado por um deus maligno, erra na desventura pelos deertos do
gozo. “Este dramanão é o acidenteque se acredita. E essêicia: pois
o desejo vem do Outro, e o gozo estádo lado da Coisa”.66
Por aí começamos nosso percurso, por distinguir ogozo do
que pode lhe parecer, mas que são seu contrário: em primero lugar,
o prazer; em segundo, o desejo. E agora encontramos ests velhos
conhecidos em seu caráter de barreiras interpostas no caninho do
gozo. Pois o prazer, ligação vital, lubrificante dos inómodos,
nivelador das diferenças, é a trava quase natural que faz dc sujeito
um travado, um S barrado, S. Ao pôr li mites ao gozo, ao jrocurar
na experiência paradigmática da cópula, com o orgsmo, a
detumescência, o prazer é o antídoto do gozo.
A essa lei homeostática, e levantando-se sobre ela, sona-se a
Lei da linguagem que impõe a renúncia aos gozos, quedes;ozifica
o corpo e se significa ao redor do Falo com seu correlato}ue é a
castração, a qual faz aparecer o sujeito como carente e, assm, ins
titui o desejo, esse girar incansável pela superfície interiorio toro
ao redor de seu obscuro objeto. Sim; o desejo colocador en pala
vras é uma transação e uma defesa que mantém o gozo em;eu ho
rizonte de impossibilidade; o desejo deve dobrar-se àL ei, jraças à
função do Pai. O desejo ser desejo do Outro significa dizer iue está
submetido e que aceitou a Lei, que tratade ajustá-la como jode no

exílio Deve
dem. da Coisa, deslizando-se
aceitar até os de
o despojo inicial, objetos que opara
estrutura, causamj o ilu
logo elacio-
nar-se com esses objetos da pequena economia de perdas e [anhos.
Dizia L acan67em seu seminário dedicado à angústia; “O deejo e a
Lei são uma única barreira que obstrui nosso acessoà Cois”.

66. J. Lacan (1964). Écrils, p. 853;Escritos 2, p. 832.


67. J . L acan (1962). Seminário X, aula de 19 de dezembro. Inédito.
Dsjozos distintos 101

O desejo marca os caminhos para a pulsão que são caminhos


ieinsatisfação. '‘Por esta razão a pulsão divide o sujeito e o desejo,
ieejo que não se sustenta, senão pela relação que ele desconhece,
•on esta divisão com um objeto que o causa. Esta é a estrutura do
àitasma”: SO @.6S
A ssim, o desejo se desconhece a si mesmo em uma formação
inginária, o fantasma, que coloca em cena a aspiração ao gozo e
at, conseqüentemente, é outra barreira ao gozo. E isso tanto se o
ueito se limita a imaginá-lo neuroticamente e renuncia, assim, a
npor-lhe na realidade (“introversão da libido”, dizia um Freud
jt>guizado), quanto se o atuasse de modo perverso, pois em ambos
iscasos acaba se dando conta de que se tratava de outra coisa, de
ic o objeto está perdido tanto no fantasma masturbatório quanto
atentativa perversa de demonstrar que o gozo pode ser conseguido
c meio do saber fazer com os corpos, o próprio epartenaire.
o do
O fantasma propõe objetos @ como condições ou
ntrumentos de gozo, e estes objetos são um efeito, como visto, do
rdo e da castração que os carrega de valor fálico negativo. Estes
iljetos, como demonstr ava Freud em191769em seu célebre traba
lho
ore as transmutações das pulsões (sua aproximação máxima da

uiçã o e do concei
ibstituições to do objeto @simbólicos
e deslocamentos de L acan), em
estãoumsubme tidos de
sistema a
■CLiivalências como o que existe entre o pêni
s, o filho
-Lumpf,o cocô,
nresente, o dinheiro e, para a mulher, o varão como apêndice do
ao cobiçado.
E os objetos, as coisas deste mundo, não são mais que telas
);recidas ao fantasma como promessas de gratificação imaginária,
i f assumem seu preço as mercadorias que a publicidade se
: carrega de “encarecer” e recomendar o seu consumo, sendo
;imo é uma atividade que opera, sem o saber, sobre o objeto @ de
Lican. Vê-se com clareza que arealidade e a não proliferação dos
;»jetos operam também como defesas contra o gozo.
O discurso deL acan se aproxima aqui ao de M arx e o de M arx
acde Freud. Mais-valia e mais de gozo, mercadoria e fetiche,

68J. L acan (1964). Écrits, p. 853; Escritos 2, p. 832.


69 S. Freud (1917).Obras completas,v. X V II, p. 113-119.
102 Gozo

dinheiro e falo, ouro e cocô, exploração e ganhos ou perdas, salário


e despojo, gozo do Um e gozo do Outro, contrato e roubo e a
propriedade como um roubo, valor de troca e valor de uso (ou de
gozo?) são todas referências que se aproximam da economia política
e desta outra que é seu fundamento e que é uma economia de gozo.
Nas palavras do economista K arl Polanyi: “Há um ponto negativo no
qual todos os etnógrafos modernos estão de acordo: ausência do
móbil do benefício; a ausência do princípio de trabalhar pela
remuneração; ausência do princípio do menor esforço; e sobretudo
a ausência de qualquer instituição separada e diferenciada, baseada
em motivos econômicos”711e nas de Norman de O. B rown,71 que

otambém
poder cita
nãoPolanyi:
é uma“Acategoria
categoriaeconômica...
última da economia é sua
é, em o poder; mas uma
essência,
categoria psicológica”. Enfim, todo o capítulo 15 desteLife against
dealh (título srcinal da obra que estamos citando) poderia ser
incluído neste texto sobre o gozo. Por isso é melhor causar um
curto-circuito e convocar um convidado inesperado, Aldous Huxley,72
que em seu Contraponto(de 1928) nos diz:
O instinto de adquirir comporta, a meu ver, mais perversões
do que o instinto sexual. Pelo menos, as pessoas me parecem, no
entanto, mais estranhas a respeito do dinheiro do que de seus
amores... N inguém se encontra de igual modo (que os entesou-
radores) incessantemente preocupado pelo sexo; suponho ser
porque nas questões sexuais é possível a satisfação fisiológica,
enquanto não existe isso com relação ao dinheiro. Quando o cor
po se encontra saciado, o espírito deixa de pensar no alimento ou
na mulher. M as a fome de dinheiro ou de posse é quase puramen
te uma coisa mental. N ão há satisf ação física possível. N ossos
corpos obrigam, por assim dizer, o instinto sexual a se conduzir
normalmente... N o que se refere ao i nstinto de adquirir não exi s
te corpo regulador, não há uma massa de carne bem sólida que
deva ser tirada dos trilhos do hábito f isiológico. A mais leve ten
dência à perv ersão põ e-se i medi atamente de ma nif esto. M as

70. K. Polanyi. La grau tansformación.M éxico: Fondo de Cultura Económica,


2003. p. 91.
71. N. O. Brown. Eros y Tánatos. M éxico: Mortiz, 1967. p. 293.
72. A. Huxley. Contrapunto. Barcelona: Seix Barrai, 1983. p. 302.
Os gozos distintos 103

talvez a palavra perversão não tenha sentido neste contexto. Por


que a perversão implica a existência de uma norma, da qual se se
para. Qual é a verdadeira norma do instinto de aquisição?

A economia, a atividade de produção e de consumo, encontra


sua razão além do princípio de prazer. A psicanálise questiona tanto
a economia política clássica quanto seu revestimento marxista. O
número, a contabilidade, a acumulação reconhecem seu fundamento
na castração ena investidura do dinheiro como @/-cp.
Um caso particular que poderia alentar a reflexão de Huxley é
o de don Juan que classifica as mulheres segundo ageografia (por
países) e as contabiliza de modo que seus desvelos de conquistador
não apontam ao objeto, mas ao catálogo que leva seu serviçal no qual
se inscreve o registro de suas vitórias. T rata-se, em seu caso, de
rebaixar esse limite que a relação com o corpo impõe à sexualidade.
No catálogo, na coleção de fotografias de “suas” mulheres que um
neurótico pode levar, acreditando havê-las “possuído”, no fato de
passar o sexo à contabilidade, encontra-se uma maneira especial de
enfrentar o prazer como barreira ao gozo e sustentar a imagem
túrgida do falo além de seu decadente destino. Nada a dizer da
angústia de castração que sustenta e que quer desmentir este
colecionador singular que é don J uan.
Os objetos, os fetiches, as mercadorias, constituem a realidade
que tem a mesma substância que o fantasma, que servem como ele
para encobrir o real, como telas que distanciam da coisa vedada pela
L ei. Essa Lei que não proíbe, mas que impõe o desejo e o desejo em
vão: esforçar-se, ir atrás do objeto que, por outro lado, nada mais
é que engano, aparência, semblante. Escorregadiço.
Frente a essa impossibilidade e ao decepcionante das coisas,
alça-se um fantasma particular, um modo especial de imaginarizar

um gozo
posse, o do qual o de
fantasma sujeito poderia
chegar se apoderar
ao gozo por meioe do
exercer
saber,domínio
da e
articulação de significantes que permitiriam a apropriação do real e
a umadicção que confirme ao sujeito que está de posse da verdade.
O fantasma de um sabergozar que fundamenta e aproxima os
discursos do senhor, da ciência e da perversão. Este saber teria que
cegar o poço impreenchível que ordena a relação sexual como
impossível porque o Falo é um significante sem par que ordena
104 Gozo

posições assimétricas e gozos não conciliáveis entre o homem e a


mulher (que, precisamente por isso, por não haver Outro
significante, que seja o próprio, não existe).
Em suma, que o gozo está defendido, que a Coisa está rodeada
de arames farpados, círculos de fogo, cercas eletrificadas, muros
de Berlim, que a tornam objeto eminente do desejo precisamente
pelo halo de impossibilidade que a circunda.A Lei e a ordem
simbólica, por um lado, o conjunto fantasmático das funções
imaginárias, saber e realidade inclusos, e, finalmente,
o desejo
mesmo, por outro, constituem um conjunto de defesas que o gozo
encontra além da primeira defesa, “quase natural”, oque prazer.
é
Neste contexto,a sexualidade, função vinculada tanto ao desejo
como ao prazer, regulada pela Lei, é também chamariz oferecido e,
às vezes, barreira ao gozo.
Com tantos obstáculos, devendo atravessar-se tantas camadas
concêntricas da cebola para alcançar o núcleo do gozo, o vacúolo
central da Coisa, é fácil conceber que seja inalcançável. Talvez,
como o Falo é o significante do gozo como impossível, reste dizer
que a barreira erigida no caminho do gozo a castração
é e assim é
como aparece no vetor horizontal superior, aquele da enunciação (o
da cadeia inconsciente), no gráfico do desejo comentado há pouco.
Do gozo à castração e, passando pela castração, ao desejo que
aspira recuperar o gozo recusado pela via enganosa do semblante.
O semblante da articulação discursiva inventa um mundo que não
é senão flor de retórica, jogo mentiroso de metáforas e metonímias,
de processos primários e secundários. O gozo é do corpo (o
Outro), mas não é alcançável senão passando pelos desfiladeiros da
linguagem... (também o Outro) que o transformam de modo
irreversível e o tornam irreconhecível.
A C oisa é o que do real, um real que todavia não temos que
limitar, o real em sua totalidade, tanto o real que é próprio ao
sujeito quanto o real com o qual se tem que haver sendo-lhe
exterior, é o que, do real primordial, diríamos, padece pelo
signi ficante.73
73. J . L acan (1960). Le seminaire. Livre VII. L'étique dans la psychanatxse,
p. 142.
Os gozos distintos 105

É claro que aqui a ditinção entre exterior e interior não é


pertinente, pois tal distinão é, precisamente, um efeito desse
significante que faz padeceie que marca a Coisa, que tira do buraco
central do toro e propulsion o falante a dar voltas em tomo de sua
alma, a do toro. A Coisa no sabe do dentro e do fora; o que está
fora, despatriado, é o sujeio em relação com sua srcem, fora do
gozo do ser.
E, no entanto, como jícitei, algo da Coisa, do real primordial,
conserva seus efeitos aténa;struturação scursi
di va. Mas a passagem
da Coisa ao discurso não é iem fácil nem direta. Entre ambos, entre
gozo e desejo, está a angúsia que será objeto do último item deste
já tão grande capítulo.
A articulação do gozoIo ser e o gozo fálico é o inconsciente.
Pode ser visto em sua dupkfunção: primeiro, a de permitir que o
gozo seja possível e, seguno, a de condená-lo a ser impossível ao
obrigá-lo a aceitar a L ei ae ordena sua conversão do real ao
simbólico e que induz efeios imaginários. Deve-se colocar em
palavras e viver no semdante, nas fronteiras do real. Do
inconsciente não cabe faze nem o elogio nem o denegrimento.
Conforme o cristal com que; olhado lhe cabe um ou outro. Melhor
é dizer que aí e, com a difíil tarefa de articular o Outro que é o
corpo, uma vez que foi subrrctido à castração simbólica, mas dentro
do qual ficam enclaves ati os que resistem à normalização e ao
Outro da linguagem, o educdor aliado da realidade por meio do Eu.
Um inconsciente que, assm, não é nem o I sso das exigências
pulsionais nem o Eu dos necanismos de defesa. E ste tema será
abordado de modo mais prenso no capítulo IV - “Deciframento
do gozo”.
J unto a estas consideações acerca das barreiras ao gozo, é
importante acrescentar isso não|ue é barreira ao gozo, nome-do-
o
Pai, mesmo quando possa s pensar o contrário. Esse significante
torna possível ao gozo poimeio da tradução, da localização do
significante fálico no luga de articulação, que permite ao gozo
subjetivar-se. Deve-se distnguir aqui o pai real e sua função do
significante que o represena no sujeito, o
nome-do-Pai ou, como
vimos, representante-do-Flo (que não tem nome). A função do
106 Gozo

nome-do-Pai74 é a de conjugar a L ei (ela sim obstáculo) com o


desejo. Esta consideração não “patriarcal” do Pai, graças a cujo
nome
da nem
mãe, dáo ahomem nemtirando
entender, a mulher ficam aderidos
o imaginário, ao serviço de
os complexos sexual
castração e de Édipo. A castração mesma perde seu aspecto
supostamente ameaçador e sinistro para passar a ser exatamente o
contrário, uma função de habilitação para o gozo, a condição de uma
relativa e precária imunidade contra esse maligno gozo do Outro que
deixa o sujeito fora do simbólico. Essa função de passagem é, como
já dissemos, possibilitada pelo inconsciente encarregado de
transportar o gozo do corpo para a palavra. Não é um segredo que
está estruturado como uma linguagem. Tampouco alinguagem é
barreira ao gozo. Pelo contrário, é o aparelho do gozo7’ que
apresenta e representa este gozo cuja falta tornaria inútil o universo.
O que fica além do princípio de prazer está sustentado sobre a
linguagem;76se algo da linguagem é barreira contra o gozo é o fato
de que, ao falar, produzem-se efeitos de sentido, de compreensão,
de soldadura do simbólico com o imaginário, de recíprocas
confirmações narcísicas entre os interlocutores que são, muito
claramente, travas opostas ao gozo que se produzem pelo blablablá.
Podem rastrear-se aqui as distintas funções do aparelho psíquico
freudiano, das diversas tópicas dessa máquina metabólica do gozo
inventada por Freud.
O gozo fálico inscreve-se na articulação do real, do que resta
da Coisa, uma vez que se deslocou o desejo, e o simbólico, que pode
compor-se por meio da colocação em palavras do gozo ordenado
pelo significante. Entre um Outro e o outro, o sujeito deve se ins
crever.
O gozo do sertem outra inscrição, é inefável, está fora do
simbólico, em uma atribuição imaginária que fazemos inventando-
o como se fosse gozo do Outro, de um Outro devastador que, por
falta de inscrição do nome-do-Pai (forclusão), reaparece no real. Fica

74. E. Porge. L es noms-du-P ère chez J acques Lacan. P onctuations et


problématique.
75. J. L acan ( 1974). Le seminaire. Livre XX. Encore, p. 52.
76. Idem, ibidem, p. 49.
Os gozos distintos 107

entendido que não é o Outro que goza, que há somente gozo de um


que goza atribuindo um gozo ao Outro que o tomará como seu
objeto.77
Neste agrupamento dos registros de dois em dois, proposto
por Lacan, fica um terceiro espaço de sobreposição, o do imaginário,
recobrindo-se com o simbólico, mas sem alcançar o real, que é o
nível do sentido; graças ao sentido constituem-se os objetos da
realidade, o consenso compartilhado, o acordo garantido pela
palavra, a ideologia; o gozo fica excluído dele e é defendido por todas
as instâncias assinaladas nos parágrafos anteriores. O sentido serve

ao reconhecimento
tempos do mundo
o comunicador, o Grande doOutro
qual mass
o artífice
das é aquele
media, em nossos
que
junta as representações atrás da televisão, aquele que uniformiza no
planeta os modos de manter o gozo à distância e configura os eus que
se reconhecem reciprocamente em um ideal comum, ou seja, que se
massificam desgozificando-se segundo a fórmula freudiana de
1921.™
L acan inscreveu estas relações em seu nó borromeu quando
proferiu sua terceira conferência em Roma,79 de modo que, sendo
cada um dos aros da corda a representação de um dos registros,
fica uma área de tripla sobreposição do real, do simbólico e do
imaginário na qual se localiza o objeto @ que e t m esse triplo estatuto,
essa tripla pertinência. Vê-se no nó três áreas de dupla sobreposição
que excluem um dos três registros: gozo do Outro (sem simbólico),
gozo fálico (sem imaginário) e campo do sentido (sem real... e sem
gozo).

77. Ph. J ulien. L ’étrange jouissance du prochain. Éthique et psychanalyse.


Paris: Seuil, 1995.
78. S. Freud (1921). Obras completas,v. X V III, p. 110.
79. J. L acan. L a troisième. Lettres de /'École Freudienne, Paris, n. 16, p. 177
203, 1975; em castelhano,Actas de la Escuela F reudiana de P aris.
Barcelona: Petrel, 1980.
108 Gozo

V oltando a algo já visto no item anterior, vale a pena realçar


que, nesta escritura de seu nó, Lacan escreve o gozo álico
f com as
iniciais J cp, ou seja, usa phi
o minúsculo que remete ao significante
imaginário, ao falo como semblante e não ao Falo com maiúscula,
significante do gozo que, habilitando a função do nome-do-Pai,
condena as portas do gozo do ser. Vale a pena reter esta distinção.
A credito que não forço a concepção de L acan, ainda quando
transgrida o que explicitamente disse nessa conferência, se
proponho: 1) queaciência,essa atividade que se propõe a apropriar-
se do real por meio do simbólico, é homóloga ao gozo fálico ao
repudiar todo imaginário e nada querer saber do gozo do Outro, do
Outro sexo (naquilo que se aproxima à perversão tal como se verá
no capítulo correspondente); 2) que aideologia como área de
acordo em torno da realidade ocupa o terreno do sentido ao ter
horror ao real; e que 3)religião,
a consagrada ao gozo do grande
Outro, inefável, mística, coloca-se na intersecção do real e do
imaginário. Então, a psicanálise, saber sobre esta estrutura, saber
borromeu, encontra
inclusive para o saber seu lugar
- objeto doem
qualtorno do ria
não pode objeto
haver@,ciência
fugidio
-
que se localiza a um tempo nos três registros e marca a necessária
incompletude que afeta todas as tentativas de dizer uma verdade
plena, de conseguir esse Saber A bsoluto com o qual sonha o senhor.
Os gozos distintos 109

7. A “causação do sujeito” ou além da angústia

A o encerrar este capítulo, escolho dar-lhe uma estrutura


cíclica, franckiana (mús.), e voltar ao começo, retomando à célula
srcinária: “O sujeito é e está chamado a ser”. Em outras palavras,
o sujeito não cresce nos vasos, não é um produto natural, é
“resposta do real”. Para que exista é necessário que alguém o chame
(no duplo sentido, decall e de name [him or her]).Com a invocação
do Outro, o significante entra no real e produz o sujeito como efeito
de significação, como resposta. Assim o entendeu Lacan ao longo
de seu ensino.80A carne se torna corpo e esse corpo é de alguém,
corpo sexuado, submetido à L ei, desgozificado, linguageiro.
“Noexiste
somente princípio eradeo havê-lo
depois gozo”, perdido.
mas o gozo nãoéera
A Coisa porque
o real, mas
apenas como mortificado pela linguagem. Para Freud, no princípio
era o que se chama, equivocadamente, “Eu-realidade (inicial).81Mal,
por que a tradução correta de Real-Ich seria Eu-real, enquanto “a
realidade” seria, conforme os casos e os momentos da escritura
freudiana, Realität ou Wirklichkeit. Na citação anterior, coloquei
entre parênteses a palavra inicial, porque ela é um adjetivo que
qualifica o Eu-real (significando que esse eu-real está desde um
primeiro momento) e não toma parte do substantivo à medida que
não se opõe a um segundo e suposto “Eu-realidade definitivo”,
fórmula que aparece em umanota complementar deJ ames Strachey
na Standard E dition, e não de Freud. Freudjamais opôs duas
formas diferentes de “Eu-realidade”. E certo que falou dele de duas
maneiras diferentes em dois momentos distintos de sua reflexão e
isso é o que deu chance de erro aos comentaristas. Com efeito,
podemos observar que define pela primeira vezReal-Ichum em seu
artigo de 1911 sobre os dois princípios do funcionamento mental82

80. J . L acan (1956). Le seminaire. Livre III. Les psychoses.Paris: Seuil, 1976.
p. 210-211 ; Seminário X, aula de 9 de janeiro de 1963, L ’Etourdit,Ecrits,
p. 459, onde se lê: “E o sujeito que, como efeito de significação, é resposta
do real”.
81. S. Freud (1915). Obras completas, v. XIV, p. 130,
82. S. Freud (1911). Formulaciones sobre los dos principios dei suceder
psíquico. In: Obras completas, v. XII, p. 223-231.
110 Gozo

e nesse texto o sintagmaEu-real tem o sentido de um eu que


reconhece o princípio derealidade como guia tutelar. Esse é, por
conseguinte, um “eu-realidade”. A proposta de 1915S3 é uma
inversão total; não é um acréscimo de outro Eu-real “inicial” e
diferente do “definitivo”, o mesmo do artigo de 1911, que teria de
dar lugar, entre o “momento inicial” e o “momento definitivo”, a um
intermediário que seria Loust-Ich, o Eu-prazer. A expressão “Eu-
realidade definitivo” é posterior, não figura no artigo sobre as pulsões
e os destinos pulsionais. Aparece uma única vez na obra deFreud,
no artigo de 1925 em torno da denegação*4e aí está incluída em
uma clara relação de oposição com o “Eu-prazer inicial”.
Para deixar claro e resumir este ponto, insistirei em que nas
obras de Freud há três oposições de dois termos, nunca os três
sucessivamente relacionados.
a) No artigo sobreos dois princípios de 1911, trata-se de dois
modos de funcionamento do eu (Lust-Iche Real Ich) que estão em
função dos princípios de prazer e de realidade com uma anterioridade
cronológica do primeiro (acredito que fica mais claro quando se
traduzLust como “gozo” e não como “prazer”, seguindo a distinção

lacaniana pulsional
dualismo entre ambos
dos que
anosderiva
1920; da elaboração
neste freudiana do
caso, valorizamos a
primazia do eu do gozo sobre o eu da realidade). Nessa primeira
distinção freudiana há, então, eu-prazer (gozo do ser) e eu-realidade
(“pela ligação com os restos de palavra”);
b) no artigo dedicado às pulsões na “M etapsicologia”, de
1915,1 (5a oposição é a mesma, mas a relação é exatamente nversa,
ai
porque o que é srcinário é o Eu-real e o Eu-prazer se desenvolve
a partir dele; o sujeito nasce com o E u-real e o E u-prazer e
desenvolve a partir dele; o sujeito nasce como Eu-real, submerso no
real; secundariamente vai surgindo nele um eu regulado pelo
princípio de prazer e, finalmente,

83. S. Freud (1915). Obras completas, v. XIV , p. 129. O comentário de


Strachey aparece em uma nota de rodapé.
84. S. Freud (1925). Obras completas,v. X IX , p. 255-256.
85. S. Freud (1915). Obras completas,v. XIV, p. 129.
Os gozos distintos

c) no breve ensaio sobre a negação, de 1924,8


6 retoma-se a
oposição nos termos primeiros, os de 1911, entre um Eu-prazer
originário e um Eu-realidade definitivo. Apenas a nota de Strachey
dá base para pensar em uma consideração freudiana de três
momentos diferentes. OVocabulárioS7de L aplanche e Pontalis
contribui para a confusão, já que, depois de reconhecer que no texto
de 1925 Freud não retomaa expressã o de “eu-reali dade inicial” que
havia usado em 1915, estabelece que “O ‘eu-realidade definitivo’
corresponderia a um terceiro tempo” (grifos meus).
Esta confusão causou estragos até no mais autorizado dos
leitores que Freud pôde imaginar, opróprio L acan, que em seu
seminário Encore ss reprova Freud por haver se equivocado ao
postular umLust-lch como anterior aoReal-Ich. L acan salta aqui
em cima de b), da formulação de 191 5, coincidente em tudo com
sua própria idéia.
A credito que sedeva ater a esse escrito de 1915: no princípio
era o eu-real, um ser aídasein
( ), posto no desamparo. L ogo será
possível teorizar sobre o eu-prazer e o eu-realidade, integrado à
realidade, no mundo convencional do sentido, na intersecção do
imaginário e do simbólico, efeito da ação da metáfora paterna. O eu

integrado à realidade,
“secundário” não é senãoo do narcisismo chamado
a continuação por Freud
e uma simples modificação
do Lust-lch, do Eu-prazer que aprendeu pela experiência que é
conveniente aceitar o existente ainda que seja desagradável e
contrário ao princípio de prazer. O eu darealidade, o de 1911 que
retorna em 1925 com a carga do adjetivo “definitivo”, não está
“além do princípio de prazer”. Seu princípio não é de gozo como
o do Eu-real do texto de 1915, aquele que odeia o Outro antes que
a realidade lhe imponha a conveniência de amá-lo. Poder-se-á, deste
modo, conservar as três articulações freudianas, a de 1915 por um
lado, e as de 1911 e 1924, por outro, distinguindo o eu-real do eu
da realidade, ou seja, do fantasma, pois a
realidade ( Wirklichkeit)
nada mais é do que um fantasma que afasta o gozo, que protege dele.

86. S. Freud (1925). La denegación. In: Obras completas,v. XIX.


87. J . Laplanche e J .-B. Pontalis. Vocabulaire de la psychanalyse
. Paris: PUF,
1967; verbete Moi-plaisir - Moi-réalité.
88. J. L acan. Le seminaire. Livre XX. Encore, p. 52.
112 Gozo

São muitas as oportunidades em que L acan recorreu ao


sintagma “sujeito do gozo”.*9Considero que se pode falar de “sujeito
do gozo” apenas em relação com o eu-real, anterior ao simbólico,
mergulhado no mundo do Outro; este é o sujeito submerso no “gozo
do ser”.
Para Lacan este sujeito do gozonão existe senão como um
mito necessário, pois “de nenhuma maneira é possível isolá-lo como
sujeito”.90A idéia de um sujeito do gozo anterior à intervenção do
significante, de um puro real, é correlativa do outro ente mítico que
L acan vai resgatar do texto de Freud, o da Coisa. Pois, se o sujeito
surge do chamado que faz o Outro, o que há antes para que a
invocação subjetivante ressoe? Qual é esse real que há de
responder? De um lado, está o desejo invocante, o do Outro. De
outro, está o gozo, o do ser. De um lado, a palavra apeladora, do
outro, o grito pelado. Da intersecção entre ambos, haverá de surgir
o sujeito do significante, sujeito do desejo. Lacan tem uma escritura
para este sujeito do gozo, ainda quando não o chamasse assim, é S,
esse sem barra que aparece esquemano L,definido nos Escritos,
como o sujeito “em sua inefável e estúpida existência”.91
Esse “grito pelado” ressoa no Outro e algo vem daí como
resposta. O grito se faz significante do sujeito e mostra o caminho:
a máquina gozante somente pode socorrer suas necessidades
implicando-se em outra dimensão, a linguageira. O gozo leva a ex-
sistir. O pré-sujeito S do gozo se confronta com um Outro da
onipotência, absoluto, sem barra, que se apresenta e logo se
reapresentará como Mãe. Neste esquema, temos a figuração dogozo
primário, o da Coisa ou do ser. Podemos representá-lo como dois
círculos alheios entre si:

89. Por exemplo, em três ocasiões noSeminário X, A angústia,aula de 13 de


março de 1963, e nos seminários de 29 dejaneiro e 14 de maio de 1969.
Na obra escrita em “Presentación de las memórias de un neurópata”, em
Autres Ecrits, p. 215. Devo a A lfonso Herresa esta valiosa observação.
90. J . L acan (1963). Seminário X, aula de 13 de março.
91. J . L acan (1955). Écrits, p. 53 e ( 1958), p. 557;
Escritos 1, p. 47 eEscritos
2, p. 530-531.
Os gozos distintos 113

O Sujeito mítico e sem barra deve inscrever seu gozo, fazendo-

se ouvir
grito pelo Outro,aparecendo
desesperado, transformando-se naquilo
no campo que entrega,
do Outro como @, emcomo
seu
objeto que escapaà função de significante, como corpo que se
oferece ao olhar, como voz soluçante para o ouvido, como boca que
clama pelo seio. E aí que encontra que não há tal onipotência do
Outro, que o Outro está igualmente submetido à castração, que não
está completo, mas que é desejante e que seu desejo aparece para
ele como um enigma sem resposta possível. N este segundo
momento, encontramos o sujeito entrando no campo do Outro e
fazendo-se representar aí como objeto que preenche a falta do
Outro. E o momento da alienação ou o momento da angústia, da
despossessão total para servir um Outro voraz e insaciável. Neste
ponto, o gozo se torna terrorífico; é o das fantasias fragmentadoras
e sinistras, o da confrontação no lugar do objeto com uma falta que
é preenchida no Outro pela criança que vem satisfazê-la.
Escapando do gozo do ser, cai-se na angústia, adiantamento e
correlato da alienação. O sujeito aspiraria encontrar-se satisfeito na
satisfação que ofereceria ao Outro. E a posição neurótica infantil de
base que impulsionainfans
o a submeter-se à demanda alienante do

Outro, li vrando-se
justamente em que assim da carga
não é isto o queda
sevida. Mas a alienação consiste
consegue:
A alienação tem uma cara patente, que não é que nós
sejamos o Outro, ou que os outros (como se diz) nos acolham
desfigurando-nos ou deformando-nos. O próprio da alienação
não é que sejamos recolhidos, representados no outro; ela se
funda essencialmente, pelo contrário, na recusa do Outro como
vindo ocupar o lugar desta interrogação do ser... Queira o Céu,
114 Gozo

pois, que a alienação consista em que nos encontremos cômodos


no lugar do O utro.92

M as o Céu não o quer assim e por isso deve suar muito, deve
se esforçar e correr atrás daquilo que poderia reparar a divisão do
sujeito que se produz como conseqüência de ser rejeitado pelo
Outro, pela imposição de uma separação com relação a esse Outro
cuja essência é a falta. Teve que atravessar pela angústia e pela
alienação para advir se tornar desejo, aceitar a inevitável castração
e se reconhecer como sujeito partido pelo significante e, portanto,
sujeito separado do objeto do fantasma. Separar-se do Outro sem
renunciar a ele, deixando um presenteem suas mãos, o objeto @,
tendo salvo a vida à custa de ter perdido a bolsa em resposta à sua
intimação imperiosa: a bolsa ou a vida! Deixou em suas mãos a bolsa,
o gozo, e recuperou uma vida atingida no essencial. Além disso, a
relação com o gozo não se fará desde S, mas, passando por @,
desde S. Viver-se-á no fantasma.
A operação nesteponto pode se representar com osclássicos
círculos eulerianos. O ser do sujeito teve de passar pelas redes do
significante, pelo Outro. A alienação tropeça com o desejo e com a
rejeição do Outro. Esse Outro está barrado por uma falta [S(A )] e
essa falta não é preenchida pelo sujeito que se oferece para isso. A
pergunta por seu desejo, o do Outro, permanece aberta, é enigma
e, por sua vez, chave da existência. O sujeito não consegue que seu
sentido se preencha plenamente no Outro e se separa dele.
Subtraindo-se à intimação que revela a incompletude do Outro e
traçando o que ao Outro faltaria se ele se negasse a reconhecê-lo
como Outro;
o Sujeito e oé Outro
assim que
nãoo pode
sujeitoser
recupe
de ra seu ser. nem
inclusão, A relação entre de
tampouco
exclusão como o era no ponto de partida, o dos dois círculos
isolados. Há uma zona de intersecção de onde a falta de Um se
sobrepõe àfalta de Outro; é a área correspondente oa objeto @ que
deixa a das barras, a de S e a de A:
92. J. L acan (1967). Le seminaire. Livre XIV. La logique du fantasme.
Aula
de 11de janeiro.
Os gozos distintos

O que do ensino de L acan acabamos de (re-)elaborar?

Respondam
gozo ao deseosjo.
rapidamente:
L acan a relação
ocupou-se dequestão
desta oposição neetre
depassa
1963 gem do
e 1964,
em seus seminários X,A angústia, e XI, Os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise e em seu artigo intitulado “Posição do
inconsciente”.93Fê-lo de duas maneiras sucessivas e diferentes que,
como os círculos eulerianos, parecem obrigar a eleger à custa de
uma perda. A exposição no seminário da angústia, cronologicamente
a primeira, condensa-se em torno de um quadro chamado divisão
subjetiva; nesse quadro a palavra “divisão” alude, sim, à barra do
sujeito, mas em que o essencial está dado pela adoção do modelo
matemático
momento, o dado divisão:
gozo. quantasmostra
O “quadro” vezes S emoAsujeito
que ? É o somente
primeiro pode
entrar em A para ni screver se
u gozo como @; mas, como resultado
desta operação, produz-se um quociente que é a barra do Outro (A);
é o segundo momento, o angústia
da e isto dá lugar a um terceiro
momento, o da divisão, @dividido por S, o sujeito, depois de passar
pela posição de objeto @ para o Outro, produz-se como um sujeito
barrado ($), sujeito do desejo inconsciente. Entre o Sujeito e o Outro,
“o inconsciente é o corte em ato”.94Resta assim um resíduo da
operação: S. E hora de inscrever adivisão:

93. J . L acan (1960). Écrits, p. 829;Escritos 2, p. 808.


94. Ibidem.
116 Gozo

A S gozo

@ A angústia

S desejo

Este modelo aritmético da divisão não satisfez L acan, que


nunca deu as razões de seu desinteresse posterior por esta
formulação que não passou para os Escritos nem voltou a ser
retomada no Seminário. Foi substituída no ano seguinte pela
referência lógica à disjunção, as duas formas, vel e aut,de nossa
conjunção “ou”, e pela referência topológica figurada com os
círculos eulerianos. Da “divisão subjetiva”95passou à “causação do
sujeito”96 pelo duplo processo de inclusão-exclusão, reunião-
intersecção ou alienação-separação. Nesse momento, interessa a
L acan a causa, o objeto @ como causa material que opera na
psicanálise a partir da incidência do significante. Daí que proponha
esse neologismo, se não for barbarismo, de “causação”97 do sujeito
quando teria sido mais cômodo se tivesse proposto o sintagma
“produção do sujeito”.
M as não foi o interesse arqueológico, mas clínico o que me
levou a passar por este momento fugaz do ensino de L acan, no

95. J. L acan (1963). Seminário X, aula de 13 de março.


96 J. (1960-1964). Écrits, p. 841-842 “Postions de l’inconscient”;Escritos
2, p. 821.
97. Curiosamente este neologismo falta no índice789 néologismes de J acques
Lctcan, Paris: EPEL , 2002. Que sejam, pois, 790. O Littré reconhece
"causativo”, mas não “causação”.
Os gozos distintos

seminário dedicado à angústia, esse afeto, o único, que não engana


e que aparece, como o mostra o pesadelo, no momento da
aproximação do gozo. Se o sonho está orientado pelo desejo que
deve realizar e pelo dormir que deve proteger mediante uma série de
distrações (por que não traduzir também assim a
Entstellung que os
processos primários operam?), a angústia é esse ponto de anulação
subjetiva, deafânise em que o sujeito desaparece na confrontação
com o insondável da falta no Outro, da castração entendida como
castração do Outro, da M ãe, para nomeá-la,98 “... revelando-se a

natureza do falo.
à realidade, vendoO ao
sujeito se divide
mesmo tempoaqui, diz-nos
abrir-se em Freud com relação
si o abismo contra
o qual se defenderá com uma fobia, e, por outro lado, recobrindo-
o com essa superfície de onde erigirá o fetiche, ou seja, a existência
do pênis (materno) como mantida, ainda que deslocada”.
O sujeito se desvanece ante o gozo do Outro, esse gozo que
se apresenta de várias maneiras: com as fauces abertas monstro
voraz do pesadelo, as formas de um destino devastador e
inescrutável, com o ruído sinistro de um grito que nos envolve: o
grito da naturezaque ressoaem nós como no quadro de M unch, esse
grito que não é ouvido pelos personagens que dão as costas à boca
que prefere o barulho e seguem seu caminho, com o semblante do
gozo que o neurótico, em seu imaginário, atribui à viúva negra e à
mantis religiosa,com esse inefável gozo feminino que se coloca
“além do falo” e “além do sentido”. Esse inesquecível gozo do Outro
condena a relação sexual a não existir. Assim, vemo-nos lançados a
tratar arelação, sempre equívoca, entreo gozo e a sexualidde. Será
o tema do nosso próximo capítulo.
A angústia tem, portanto, umafunção deintermediação entre
o gozo e o desejo, entre o S e o S, entre o sujeito nonato, abolido
do primeiro e o sujeito cindido do segundo. Uma posição de
passagem de gozo a desejo que se declara clinicamente como
angústia no neurótico e no perverso. Entre a falta da falta, própria
do gozo psicótico (posição superior no quadro da divisão subjetiva)

98. J . L acan (1965). Écrits , p. 877;Escritos 2, p. 856.


118 Gozo

e a colocação em palavras da falta que define o sujeit< desejante,


meta final do tratamento analítico. A angústia não depeide da falta,
pelo contrário, a angústia surge quando o objeto d>desejo se
presentifica e contra ela é que o sujeito recorre aos baluaies da fobia
e do fetiche que acabamos de recordar.
Em ambos os casos,na neurose e na perversão, >sujeito se
identifica com o que ele é para o Outro, põe-se como oljeto pronto
a satisfazer sua demanda na neurose ou atua como iistrumento
destinado a preservar seu gozo (o do Outro) na perversãi. E os dois
acabariam tropeçando - era a posição de Freud - com ointolerável
da falta que os obriga a retroceder em seu desejo. L acan e
i ste ponto
difere do fundador da análise e faz da castração não un fantasma
temível, como acontece no neurótico, ou inaceitável, corio se passa
na perversão, não um ponto de parada e rocha viva na qial tropeça
a análise, mas um ponto de partida. Precisamente porqie o objeto
o é de uma falta “o que se deveria ensinar a dar ao neurcico é essa
coisa que ele não imagina, é nada, justamentesua angútia”,99em
lugar de se oferecer ele mesmo como objeto, para satisfizer o que
o Outro queira demandar-lhe, supondo que assim, de bim grado,
poderá se subornar esse Outro.
O sujeito se equivoca ao supor que o que o Outro |uer é sua
castração, que é sua castração (ou dela) o que falta a<Outro, e
desconhece que a castração simbólica é aquela que lhe fã imposta
ao entrar no universo linguajeiro. Em vez de se estabeleer ante o
Outro como desejante, dá a si mesmo como oferecido, figira-se em
seu fantasma como um perverso que poderá ofereer suas
“coisinhas” para que o Outro goze e fique contente e o ane, para
ter um lugar estável nele. Cede seu desejo, protege-se delecomo se
fosse um perigo, especializa-se em assegurar sua “egocidde”, seu
encobrimento da falta que o habita; é, nem mais nem menc, um eu
forte, encobridor da castração. Desta posição paradigrrática da
neurose é que L acan extrai seus aforismos sobre o anor que
marcam o seminário da angústia com traços inesquecíveis o amor
99. J. L acan (1962). Seminário X, aula de 5 de dezembro.
Os gozos distintos 119

consiste em dar o que não se tem e o amor é o único que pode fazer
com Aque o gozo condesc
precia-se enda
aqui a pos ao diferente
ição desejo.100de
,101L acan a respeito de
Freud. O pai não é proibidor nem temível, nem rival nem gozante.
É um nome-do-Pai, puro significante do Falo, que se distancia do
Desejo-da-M ãe e que marca com acastração (-cp) os objetos do
desejo que se tornam assim significantes da falta e ficam investidos
de valor fálico. A falta não é temível; pelo contrário, a aceitação da
própria imagem como carente é o que permite que o corpo do Outro
se transforme em objeto causa de desejo; é o fator que proíbe e que
marca com uma culpa que não é psicológica, mas estrutural, o auto-
erotismo; é, por fim, o que canaliza essa “transfusão da libido do
corpo para o objeto”.102
A opção para osujeito é clara: entre ogozo e o desejo, das
duas uma, ou a angústia pela falta da falta (“não é a nostalgia do que
chama seio materno que engendra a angústia, mas sua iminência,
tudo o que nos anuncia algo que permite entrever que se voltará para
ele”)103ou o amor que édar a falta, a castração (o -cp), o único que
poderá permitir a condescendência de um em relação ao outro. A
experiência da análise dá-se integralmente, por meio da palavra, entre
estas duas passarelas que conduzem do gozo ao desejo: angústia e
amor. Atravessando a angústia, além do fantasma, para o m
a or... com
seu caráter fatal.

100. A expressão “o amor édar o quenão se tem” éo contrário do que pensam


certos autores, por exemplo, J ean Allouch; uma constante no ensino de
Lacan. Isto é lido em muitos seminários (V, VIII, X, XI, XII, XIII, XVII
e X X I I). O acréscimo “... a quem não o queira” aparece apenas uma
vez. No Seminário XXII (aula de 11 de março de 1975), se diz que a
fórmula define “o amor das mulheres, enquanto uma por uma elas ex-
sisten”.
101. Cf. a última frase deste livro, p. 336.
102. J . L acan (1960). Écrits, p. 822;Escritos 2, p. 801.
103. J . L acan (1962). Seminário X, aula de 5 de dezembro.
ni

Gozo e sexualidade

1. Os equívocos da sexualidade

M uitos pontos de partida possíveis competem entre si,


deixando-me perplexo no momento de começar a escrever sobre este
tema, rico como é em mal-entendidos. Deve-se eleger, deve-se
equivocar, deve-se perder.
Poderia começar reportando-me à mitologia ou à cronologia
das elaborações de Freud, ou às modificações impostas no dito de
Freud pela recuperação de eu s dizer no ensino de Lacan ou regressa
r
a pontos elaborados no capítulo anterior, ou tomar alguma referência
literária, filoso-filosófica ou cinematográfica. Deve-se apostar e tratar
de entretecer estes começos possíveis. Escolho assim uma breve
epígrafe de L acan quenos submergeem nosso assunto:
Que o ato genital com efeito tenha que encontrar seu lugar
na articulação inconsciente do desejo, eis aí a descoberta da
análise...1

que pode se completar com esta outra:


Se o reconhecimento da posição sexual do sujeito não está
ligado ao aparato simbólico, a análise e o freudismo não têm

1. J. L acan. Ecrits. Paris: Seuil, 1966, p. 633. Em espanhol: Escritos 2.


México, Siglo XXI, 1984, p, 613.
122 Gozo

senão que desaparecer, pois não querem dizer absolutamente


nada. O sujeito encontra seu lugar em um aparato simbólico pré-
formado, que instaura a lei na sexualidade. E esta lei apenas
permite ao sujeito realizar sua sexualidade no plano simbólico. É
isso o que quer dizer o Édipo, e se a análise não soubesse isso,
não haveria descoberto absolutamente nada.2

Todos podemos constatar que quando, no início do século, ao


abordar est
e tema em 1905, Freud devia começar demonstrando
que, contrariamente à opinião popular e ao saber da época, a
sexualidade estava presente muito além do campo restrito de onde
se centrava, ou seja, no adulto e em torno da cópula e da função de
reprodução; hoje, em um novo século, vemo-nos obrigados a um
movimento inverso, a restringir e questionar a ideologia que vê a
sexualidade e seus símbolos invadindo todos os lugares. Em nosso
tempo, afirmar o sentido sexual de uma manifestação subjetiva é
formular uma obviedade que não surpreende ninguém (nem pode
interessar). E um efeito paradoxal do sucesso da psicanálise que
marcou a modernidade com suas teses provocando, assim, um novo
fechamento do inconsciente. A mística da repressão foi substituída
por uma nova mística, da liberação e a atuação dos impulsos agora,
já que sustenta a mesma repressão anterior. Pois essa é a utilidade
das duas epígrafes, não se trata da mistificação de uma tendência
natural à satisfação entendida como “gozo”, mas de demonstrar os
modos em que “o aparato simbólico” é o organizador da sexualidade
de homens e mulheres, de falantes, para usar o termo que não
prejulga. E também esse rico aparato linguajeiro o que pode jogar
para manter a sexualidade sujeita a ideologias reprimidas.
E uma questão talvez mais fácil de entender do que de articular
de modo compreensível, porque deve sustentar ao mesmo tempo
duas teses aparentemente contraditórias. O próprio Freud não ficou
alheio à dificuldade que pode ser apreciada no parágrafo final do
prólogo de 1920 aos seus “T rês ensaios sobre a teoria da
sexualidade”,3no qual sustenta que a maior fonte de resistências à

2. J. L acan. Le Séminaire. L ivre III. Les psychoses. Paris: Seuil, 1981. p. 191.
3. S. F reud (1905). Obras completas. B uenos A ires: A morrortu, 1978.
v. VII, p. 121.
Gozo e sexualidade 123

psicanálise procede de sua “insistência na importância da vida sexual


para todas as atividades humanas” (grifos meus) ao mesmo tempo
em que qualifica como “disparatada censura” o pansexualismo
atribuído à psicanálise.
Com o que vimos nos dois capítulos anteriores, podemos
levantar a dificuldade desta afirmação e negação simultâneas. Trata-
se não do pansexualismo da teoria, mas do falocentrismo
demonstrado pela clínica psicanalítica e que indicaria que todo o
campo da linguagem, e portanto da cultura, está marcado por esta
função da castração, limite do gozo, condição do gozo acessível aos

efalantes, navalha
do Outro, assimque corta
como os egozos
separa oshomens
dos gozos doe ser,
das do significante
mulheres.

a sexualidade não é a causa nem o princípio explicativo posto em
jogo pela análise, mas o efeito, a conseqüência de um
posicionamento exigido de todos os usuários da palavra com relação
à castração, reguladora dos intercâmbios, condição do discurso
como vínculo social. Permanece a questão de saber se a psicanálise
pode ser o caminho para pensar e para chegar “além da castração”
em novas e distintas circunstâncias históricas, quando os discursos
tradicionalistas tenham sido de fato ultrapassados por outras
formações discursivas que contestam as soluções universais e
estabelecem, de acordo com a letra e o espírito do descobrimento
freudiano, a consideração individual dos casos.
Em outras palavras, o objeto da psicanálise, o objeto que é
causado desejo e do mais de gozo, @, é certamente @ -sexual, mas
nem por isso suainstauração éindependenteda Lei que tem como
significante o Falo representado pelo nome-do-Pai. O falocentrismo
histórico e teórico é o fundamento da ordem patriarcal. Necessidade
estrutural e universal para as sociedades humanas, ou racionalização
de uma forma da dom inação?Este é o temade muitos e apaixonantes
debates contemporâneos que questionam, ao mesmo tempo em que
animam com seus desafios o discurso do psicanalista.
Pansexualismo da teoria? Certamente não, mas sim referência
fálica já que o falo é o fundamento da ordem simbólica, um
significante, “o significante destinado a designar em seu conjunto os
efeitos de significado, já que o significante os condiciona por sua
124 Gozo

presença de significante”,4a articulação da conjunção logos


docom
o desejo, a razão necessária e suficiente para que o inconsciente seja
estruturado como uma linguagem. A acusação acercado presumido
pansexualismo da psicanálise não deve provocar um excesso na
defesa que leve a desconhecer o papel decisivo desta Bedeutung,
desta significação ou referência conforme se prefira traduzir o
conceito de Frege.
O primeiro problema que flagela o pensador, psicanalista ou
não, que se aproxime da questão da sexualidade é distinguir o que
é da ordem da biologia (do organismo) e o que é da ordem da psi
canálise (do sujeito), separando, em cada uma delas, o que corres
ponde às representações ideológicas que invadem o terreno, campo
privilegiado de todas as distorções, desde o desconhecimento, a re
pressão e a hipocrisia até o exibicionismo da presumida superação
de prejuízos. Ferenczi5começava sua “teoria da genitalidade” afir
mando de modo atrevido: “Foi tarefa dos psicanalistas resgatar os
problemas da sexualidade do gabinete peçonhento da ciência, em
que estiveram enclausurados durant e séculos”. Na verdade, pouco
havia encerrado esses séculos, e a obra de Freud, mais do que res
gatar, chamou a atenção sobre uma zona de ignorância, destacan
do como traço essencial de seu trabalho “sua deliberada
independência com relação à investigação biológica”,6e se em 1905
insistia no “caráte
r fundamental do quimismo sexual”, em 1920 re
tirava silenciosamente o parágrafo que promovia essa hipótese na
turalista.7
E a distinção entre o biológico e o psicanalítico que leva a
pensar a sexualidade por analogia com a pulsão de nutrição, com a
fome, dentro do modelo da necessidade e da satisfação que lhe é
essencialmente inadequado ou, melhor dito, que serve tão-somente
para marcar as diferenças, pois a sexualidade é o que o apetite não
é... a menos que se sexualize, se humanize, se dirija ao seio antes

4. J. L acan (1958). Ecrits, p. 690;Escritos 2, p. 669-670.


5. S. Ferenczi (1923). Thalassa, una teoria de la genitalidad. Buenos Aires;
L etra Viva, 1983. p. 5.
6. S. Freud (1905). Obras completas,v. VII, p. 121. (“Prólogo” à edição de
1915 de “Três ensaios sobre ateoria da sexuali dade)
7. Ibidem, p. 197, nota 12.
Gozo e sexualidade 125

ou em lugar do leite. Freud nem sempre foi claro a esse respeito,


pois sua primeira teoria das pulsões baseava-se na clássica distinção
das duas grandes necessidades: a da conservação, própria ao
indivíduo, e a da reprodução, própria da espécie, que seria expressa
por meio da pulsão sexual com sua energia específica, a libido. Hoje,
teria menos oportunidades de se confundir, quando a reprodução não
é algo que a espécie necessita, mas que a ameaça (problema da
superpopulação, dizem) e quando a função reprodutora pode
cumprir-se in vitro, ou de muitas outras formas, sem pulsões que
turvem a finalidade; hoje, quando assistimos diariamente aos
promissores e temíveisprogressos na aplicação da engenharia
genética; hoje, quando, por outro lado, se romperam todos os marcos
que pretendiam colocar a sexualidade como fonte de prazer e
quando refulge mais do que nunca a questão de sua relação com o
gozo, tanto pelo que lhe abre de caminho quanto pelo que o torna
tela encobridora e de defesa conforme deixamos estabelecido no
item 6 do capítulo anterior; hoje, quando a psicanálise recebe as
impugnações que procedem dos adeptos de novas vias para a
sexualidade (feminismo(s)queer
e theory
) em primeiro lugar.
Neste ponto cabe denunciar o obscurantismo a que a psicaná
lise deu espaço, apesar de Freud, contra Lacan, no que tange à
confusão entre a “satisfação sexual”, o orgasmo, e a obtenção da
“saúde mental”, a genitalidade bem-sucedida e a coorte de noções
relacionadas: a felicidade, a maturidade, a completude etc. Por sua
vez, este conjunto de justificações normatizantes e de ideais refor-
rados tomavam como modelo a fome saciada, a redução das tensões,
a descarga da excitação e o vazamento seminal como análogo à re
pleção estomacal. Fazia-se - e em muitos casos e lugares continua
se fazendo- da cópula, da conjunção sexual (preferivelmentehetero)
um ideal que estaria de acordo com a aspiração unitiva de Eros, o

caminho
(Reich), apara a felicidade
possibilidade quando onão
de cumprir quefazia
seriaa um
revolução social
sonho universal
de retorno à unidade srcinária, ao claustro materno. Eis um exem
plo ilustre:
Cheguei à conclusão de que o ser humano busca
permanentemente, desde seu nascimento, o estabelecimento da
situação intra uterina e que se aferra a este desejo de forma
126 Gozo

mágica e alucinatória (...) o coito permite o retorno real, ainda que


somente parcial, ao útero materno.8

Sucedem-se
no paradigma do as formulações
orgasmo de teorias
masculino e de psicanalíticas centradas
“investigações”,
supostamente fisiológicas, que buscam e periodicamente afirmam
que conseguem encontrar um equivalente “objetivo” (e masculino)
do orgasmo para a mulher, ejaculações, contrações pélvicas,
paroxismos centelográficos ou revestimentos neuronais.
A difusão de um certo saber psicanalítico elevado à categoria
de evangelho do gozo chega inclusive a modificar a atitude subjetiva
diante da cópula. Assim, Lacan observa em seu seminário de 27 de

abril de triste
coitum 19669que , se alguém
ao que antigamente o poeta
soube podia“exceto
agregar dizeranimal post e o
a mulher
galo”, atualmenteos homens já não se sentem tristes por terem doti
um orgasmo conforme à regra psicanalítica, ao passo que as
mulheres, que antes estavam contentes porque a tristeza era de seus
partenaires,agora sim estão tristes porque não sabem se gozaram
ou não convenientemente. Enquanto isso o galo continua cantando...
e as mulheres despertam dos sonhos da profunda psicologia.
É verdade que há uma relação entre o orgasmo (que pode ser

obtido opor
como meio da
provam cópula, mas não
a masturbação, necessariamente
os sonhos eróticos epor as meio dela
emissões
seminais em situações e d angústia) e o gozo. M as essa relação não
é de identidade nem de perfeição nem de recuperação de alguma
mítica unidade srcinária. Não constitui, em si, uma meta para
propor a ninguém e ainda menos desde uma perspectiva que se
proclame freudiana.
Proponho ao leitor que faça uma prova, que busque nos índices
analíticos dasObras completasde Freud o artigo “orgasmo”. E
provável que se surpreenda ao comprovar que os dedos das mãos
sobram para contar as referências, que uma única vez aparece esta
palavra nos “Três ensaios sobre ateoria da sexuali dade”10e isso para
dizer que o lactente que mama com fruição alcança uma reação

8. S. Ferenczi (1923). Thalassa, una teoria de la genitalidad, p. 25.


9. J. L acan (1966). Seminário XIII, aula de 27 de abril.
10. S. Freud (1905). Obras completas,v. VII, p. 163.
( iozo
sexualidade
e 127

muscular queé “um tipo de orgasmo”. O fundador da psicanálise


jamais escreveu algo que garantisse a atual mitologia sexológica
sobre a função saudável do orgasmo. Se o leitor revisar essas poucas
referências, a surpresa se confundirá com o riso ao ler que uma delas
relaciona o orgasmo com a raiva das meninas depois de receber um
enema. No que tange à sua fenomenologia, Freud sempre comparava
o orgasmo com os modelos pouco recomendáveis do ataque, ora
epilético, ora histérico. Nunca falou de “satisfação genital total”, e
se Freud tem algo a dizer a respeito,
é algo muito pessoal: “Eu sei
que o máximo de prazer da união sexual não é senão um prazer de
órgão que depe nde daatividadedos genitais”.11
Não são muitas mais as referências que encontramos quando
buscamos o artigo “satisfação sexual”, mas fica sim claro que para
Freud esta não é idêntica ao orgasmo. Pode inclusive dizer que “o
amor, o amor sexual, nos ofereceu a experiência mais intensa de
sensação prazerosa avassaladora, dando-nos assim o arquétipo para
nossa aspiração a ela”12para, via de regra, desaconselhar esse
caminho a quem aspire à felicidade, coisa que fizeram “com a maior
veemência os sábios de todos os tempos” (ibid., p. 99).
Lacan é, pois, rigorosamente freudiano ao questionar areligião
gossexual de nossos já longos dias de “revolução sexual” como é
chamada não sem certa comicidade involuntária. Em sua fórmula
mais extrema, pôde chegar adizer que13“o grande segredo da
psicanálise é que não há ato sexual”, explicando-se assim que em
nossa primeira epígrafe se refira ao “ato genital” que é o que não tem
nenhuma primazia, mas que deve buscar e encontrar o modo de se
acomodar no aparato linguageiro “na articulação inconsciente do
desejo”. É ela, justamente, a que condena o ato aesta insatisfação
essencial que é, desde Freud, consubstanciai à própria pulsão sexual.
Resultando disso que, depois de muito debater acerca de se havia
ou não ato sexual, Lacan acabaemitindo umasentença lapidar: sim,
há, mas não há ato sexual que não seja ato fracassado. Isso ocorre
porque não há, entre o homem e a mulher, relação sexual, proporção

U .S . Freud (1916-1917). Obras completas, v. XVI, p. 296.


12. S. Freud (1939).Obras completas,v. XXI, p. 82.
13. J. L acan (1967). Seminário XIV, aula de 12de abril.
128 Gozo

sexual, reaporte sexual, correspondência ou harmonia que os


predestinem para se conjugar, para se reunir sob o mesmo jugo.
Assim, o ato sexual constitui um mal-entendido com relação ao
gozo (até caberia a pergunta:who framed the sexual act?). O
orgasmo não é, do gozo, outra coisa senão o ponto final, o momento
da abolição de toda demanda na qual o desejo não é cumprido nem
satisfeito, mas enganado pelo prêmio do máximo prazer, fugaz e
fugidio, denunciado pelos comentaristas mais lúcidos de nosso
tempo que falam da “novela canônica do orgasmo”,14 uma
neomitologia que tem como um de seus maiores efeitos o de
pretender assimilar o gozo feminino ao modelo masculino e borrar
as diferenças entre os sexos ao universalizar o gozo peniano como
paradigma da satisfação sexual que não existe. Desmentido do gozo
feminino como Outro gozo que é, segundo a tese de nosso capítulo
VI, a essência da perversão:a crença de que não háoutro gozo além
do fálico.
O gozo, como sabemos, está proibido - aos dois sexos -
porque odo
t sujeito é um súdito da Lei, de seu significante, do Falo
obliterador da Coisa e representado pelo nome-do-Pai que abre o
caminho para a articulação das demandas que cernem o indizível e
inalcançável objeto do desejo. E como sujeito da castração que cada
um entra no ato sexual. O órgão que representa o falo no imaginário,
pênis ou clitóris, está aí como indicador de uma carência com relação
ao gozo, prometido a uma suposta e impredizível função reprodutora
que é assubjetiva (para a mulher não há representação da fecundação;
dela se poderá saber bastante depois, e do homem nem falemos).
Como seres da linguagem estamos submetidos à limitação no gozo
sexual, que é o fim da ereção, a detumescência, de uma maneira
diferente para o homem e para a mulher. No homem o orgasmo
representa o ponto de anulação de toda demanda, enquanto na
mulher, freqüentemente a demanda subsiste, não se esgota na
ejaculação do outro, ficando um saldo irresoluto que motiva seu
encore,seu pedido de algo mais.

14, P. Bruckner e A. Finkielkraut,El nuevo desorden amoroso.Barcelona:


Anagrama, 1979.
Gozo e sexualidade 129

No paroxismo do prazer, dissolve-se toda relação com um


objeto qualquer. O funcionamento homeostático do organismo
representa aí o mecanismo de detenção do gozo; não se trata da
função de um sujeito, mas de sua dissolução instantânea, de sua
redução ao pedaço de carne flácida que fica como saldo do ato. O
final da cópula deixa um saldo de castração. É por isso que a cópula
chega a ser o lugar privilegiado da insatisfação dos integrantes do
par. A anulação daereção éexperimentadacomo uma perda demodo
diferente para o homem que dela sofre, da da mulher que deixou
essa função a cargo de seu partenaire. Neste sentido a psicanálise
coloca-se contra toda a mística da sexualidade como fonte de um
conhecimento superior, de uma transubstanciação, de um vislumbre
de vidas ultraterrestres. rata-se,
T si
m, de um desvanecimento do ser
do sujeito identificado com seu apêndice fálico, de um deixar de
gozar que, por isso, é uma “pequena morte”.
O saldo do ato sexual é a separação, o desgarramento, e isto
com relação ao corpo do outro a que se abraçou e que agora escorre,
com relação ao filho que poderia se engendrar, com relação ao órgão
da cópula que se separa tanto da mulher quanto do homem pela
detumescência e com relação à própria satisfação que se revelou em
seu desvanecimento, na separação do sujeito com relação a si
mesmo. Longe de qualquer recuperação deunidade não há nem
reencontro do varão com a mãe, nem reencontro da menina com o
pênis. O gozo se revelou como utópico, submetido à castração. E
por isso que Lacan pôde usar os adjetivos mais grosseiros de seu
vocabulário contra essas concepções (re)unitivas que lhe pareceram
imbecis e abjetas, chegando a qualificar de delirante a idéia
(freudiana) que assimila a cópula à tendência das células e dos
organismos de se juntar e constituir conjuntos de complexidade e
organização crescentes.

No entanto,
conjunção por não
não é senão umaexistir a relação
ilusão, é que asexual, por que
sexualidade a na
existe
realidade. É justamente um efeito da falha e da falta; a sexuali dade
(humana, evidentemente) é “fáltica”, gira em torno desse objeto
terceiro que escapa no encontro sexual, em torno do de gozo.
mais
Em torno do objeto que se constitui como perdido, por exemplo,
quando Freud imagina seu filho, aquele que ele criou como objeto
130 Gozo

teórico, dizendo: “Pena que não possa beijar a mim mesmo”, corte
com relação a si mesmo que “o levará mais tarde a buscar em outra
pessoa aparte correspondente”.15
A divisão primordial, aquela que põe em marcha a sexualidade
em seu sentido psicanalítico, é a divisão do sujeito com relação ao
gozo induzida pela castração e é esta que conduz ao desprendimento
do objeto @, suplência do gozo que falta. O objeto faz-se exótico
à medida que vem em lugar da parte laltante ao sujeito na imagem
desejada.16 É precisamente por ser separável que “o falo está
predestinado a dar corpo ao gozo na dialética do desejo” (ibid.) e por
aí é que se produz a transfusão da libido do corpo para o objeto, para
essa “parte correspondente” (no corpo do outro) da qual Freud
falava.
O rebaixamento da sublime dignidade que o misticismo (antigo
e oriental ou moderno e ocidental) atribui ao ato sexual não conduz
a psicanálise pelo caminho regressivo da preconização de um retomo
ao auto-erotismo e a um gozo idiota, sempre ao alcance da mão,
nem, por outro lado, ao que seria o inverso e a recíproca desta
regressão, a exaltação de valores ascéticos e de renúncia ao gozo do
corpo em função de estar esse gozo limitado pelo prazer.
A psicanálise está em outro lugar. Não é uma técnica do corpo
como tolamente objetava Heidegger a L acan (conforme o relato de
L acan, e segundo sedepreende de uma entrevista feita ao filósofo
na qual afirma que as conseqüências filosóficas da psicanálise são
insustentáveis porque biologizam a essência do homem) nem
tampouco é uma ideologia espiritualizante que exalte a sublimação.
Neste sentido a psicanáli se é uma ética que se manif esta em uma
técnica linguageira centrada em torno desta articulação do desejo
inconsciente que define os modos como cada um se acerca ou se
distancia do ato genital, afirmando cada um sua diferença, sua
peculiaridade, rebento do desejo, em sua aproximação ao gozo.
Isto, sem que se deixe de comprovar aqui e ali na clínica o
efeito daculpa que é inerenteàs práticas masturbatórias. A culpa não
depende de sanções ou códigos exteriores nem tampouco da ridícula

15. S. Freud (1905). Obras completas, v. VII, p. 165.


16. J. L acan (1960). Écrits, p. 822;Escritos 2, p. 802.
( io/.o e sexualidade 131

aineaça de que, “se você se tocar, eu o corto”, mas da resignação


do órgão ao cumprimento de sua função de intercâmbio, passando
pela subjetivação da falta que é o que concede ao gozo seu valor.
Valor de gozo que corresponde ao órgão e que se desvaloriza como
significação para um sujeito como disponibilidade permanente de
uma satisfação que não deixa marcas, que tira a pulsão de sua função
memorável e historizadora ligada ao nome próprio e ao registro
simbólico. É ainda pertinente - talvez mais que nunca - a já clássica
crí tica de M arcuse17 à “desublimação repressiv a” oferecida
generosamente aos consumidores do sexo real e virtual.
A falta, o que Freud ensinou a chamar “castração”, é o
fundamento da ordem sexua l. É uma falta na imagem, ou melhor,
e como o evidencia o mito de Narciso, o fato de que o sujeito está
separado de sua imagem e que, entre ele e ele mesmo, opera uma
proibição. Narciso viverá feliz se, e somente se, não se encontrar
consigo mesmo. A superfície do espelho indica a presença desse
Outro infranqueável que o separa de si mesmo: é um dos sentidos
implícitos na barra do S, S, que é em L acan o matema do sujeito.
O traço vertical é feito de um cristal apagado que introduz a falta e
marca aausência de relação entre laguém e si mesmo percebido
como outro.A quele que aparece no reflexo especular é um objeto
proibido, aquele que se é no olhar do Outro, aquele que recebe um
nome “próprio” que é o significante cujo significado é o gozo
perdido. E o primeiro mandamento a que se submete o falante: “Não
gozarás de ti mesmo,te deves.A penali dade é dura e se chama
psicose.
Trata-se - repetimos - desta função da castração simbólica que
faz passar do gozo ao desejo e abre a possibilidade de outro gozo
cunhado pela L ei do desejo, um gozo além da falta em ser. Deve
se admitir a falta, o que não se tem, para poder dar isso que não se
tem no amor, aí onde o gozo se valoriza, chegando a ser um valor
que se transfere ao corpopartenaire.
do
Descartada a miragem do gozo total que realizaria a pessoa no
encontro com outro corpo e aceito que o orgasmo “não é senão um

17. H. Marcuse.Eros v civilización. México: Joaquín Mortiz, 1965. p, 205


228.
132 Gozo

prazer de órgão que depende dosenitais”1


g 14ou um desvio desses
lábios que não podem se beijar a si mesmos, “uma concessão
masturbatória”,19como disse uma vez Lacan, falando dacópula para
distingui-la das noções espúrias do “banho oceânico” ou da
reconquista do narcisismo primário, e descartada também a vã e
consoladora idéia de que no encontro sexual algo do Outro passaria
ao Um, abre-se então, e somente então, a questão da natureza dos
gozos do Um e do Outro e a questão da relação entre ambos os
gozos.

2. O gozo do ser, o gozo fálico e o gozo do Outro

No item 6 do capítulo anterior, havia afirmado, seguindo


L acan, o gozo do Outro nainterseção do imaginário e do real sem
mediação simbólica (p. 99). E preferível que o relembre: “O gozo
do ser (...) é inefável, está fora do simbólico, em uma atribuição
imaginária que fazemos inventando-o como se fosse gozo do Outro,
de um Outro devastador que, pela falta de inscrição do nome-do-Pai
(forclusão), reaparece no real”. E, dois parágrafos abaixo,
reproduzia o esquema do nó borromeu de “A terceira”, no qual se
pode “ver o espaço” do que ali se chama gozo do Outro J ouissance
(
el l ’Autre). M as o que at lvez escape ao olho do cúmpli ce queé meu
leitor é que aeste gozo que a L can chamagozo do Outro,eu o estava
designando com outra expressão, usada também algumas vezes por
L acan, como se fosse um sinônimo, degozo do ser.(Em francês
um único fonema distingue as expressões jouissance de l ’être e
jouissance de l ’Autre.) Na frase que reproduzo, deslizava a idéia de
que é um gozo do ser ao qual atribuímos (sem que necessariamente
o seja) a condição de ser gozo do Outro. Esse gozo do ser,
semelhante a um impensável gozo da árvore ou da (jouissance
ostra
de l ’huître), o ligávamos no item 4 (p. 77) com a Coisa. Nesse
momento dizíamos que a palavra era a navalha que o separava de

18. S. Freud (1916-1917). Obras completas,v. XV I, p. 296.


19. J. L acan (1967). Seminário XIV, aula de 24 de maio.
( io/.o e sexualidade 133

uma classe diferente do gozo filtrado pela castração, aquele que tinha
o Falo como fundamento significante e que gozo era fáli co (J. <j>).
Finalmente, e para completar um trio de autocitações, acrescentemos
que no item 5 (p. 85) havia assumido o risco de me distanciar do
explícito do ensino de L acan para explicar a exigência clínica de
distinguir e até de opor o gozo do ser e o gozo do Outro entendido,
vamos descobrindo as cartas, como gozo do Outro sexo.Do Outro
sexo, do sexo que é Outro com relação ao Falo, ou seja, do feminino.
Em L ’étourdit, se lê: “Chamamos heterossexual, por definição, a
quem ama as mulheres, qualquer que sej a seu sexo”.20
M inha pretensão, já adiantada, é a de explicar adiferença entre
os gozos por meio da topologia da bandade M oebius. Promessa ou
ameaça, chegou o momento de cumpri-la, mas não sem antes passar
pela imprescindível e extensa volta que passa pelo que ensina sobre
o tema a experiência clínica da psicanálise e de seu funcionamento.
A grande volta abarcará o item 2 deste capítulo, no qual se insiste
na distinção dos três gozos, e o item 3, no qual se mostrará a lista
causal da castração. O desfecho topológico - não se assuste - fica
para o item 4.
Na tese, colocada desde então, o que procuro demonstrar é
que o gozo fálico, gozo ligado à palavra, efeito da castração que
espera e se consome em qualquer falante, gozo linguageiro,
semiótico, fora do corpo, é a tesoura que separa e opõe dois gozos
corporais distintos, deixados fora da linguagem, que eram, de um
lado, ogozo do ser, gozo perdido pela castração, mítico e ligado à
Coisa, anterior à significação fálica, apreciável em certas formas da
psicose e, de outro,gozo
o do Outro, também corporal, que não foi
perdido pela castração, mas que emergia além dela, efeito da
passagem pela linguagem, mas fora dela, inefável e inexplicável, que
é o gozo feminino.
Impõe-se talvez criticar - outra vez! - o modelo naturalista,
francamente insuficiente, dos ciclos de necessidade-satisfação, da
fome e da saciedade, que pareceria (sem que assim fosse) encon
trar uma analogia na atividade sexual do macho, mas que resulta,

20. J. L acan ( 1973). Autres écrits. Paris: Seuil, 2001. p. 467.


134 Gozo

sob todos os aspectos, inadequado para explicar a experiência das


fêmeas desta espécie presa pela linguagem que constituímos entre

uns
E e outras. extraviar-se
necessário Freud partiuem
da relação
extrapolação desse caso
à sexualidade, modelose insuficiente.
parta
desse ponto, da tentativa de compreender a sexualidade humana so
bre a base de seus pretensos fundamentos biológicos ou de conduta,
e não da subordinação do funcionamento genital à L ei, ao comple
xo de castração e ao corte que ele instaura entre gozo e desejo.
O modelo da fome, do instinto, serve justamente para obturar
as respostas com sua pretensa facilidade. O trabalho teórico da
psicanálise, desde sua fundação até nossos dias, foi o de tomar
distância com
evidenciou relação àsentre
a separação suas acomodidades.
sexualidade Ue ma vez que
a função se
reprodutora
e, mais adiante, que a sexualidade não podia ser entendida segundo
a racionalidade biológica do princípio de prazer, mas a partir do gozo
implicado em seu exercício, surgiu o problema de definir esse gozo
em termos do masculino e do feminino e em termos daquilo que do
gozo do outro (aqui com minúscula) é subjetivável por “cada um”
no (des)encontro sexual. Problema, pois, da heterogeneidade dos
gozos e da dificuldade reconhecida já por Freud para definir
psicanaliticamente a diferença entre o masculino e o feminino, e
resolvido por ele de um modo para ele mesmo insatisfatório como
uma oposição entre atividade e passividade no marco pulsional,
depois de afirmar o caráter masculino de toda libido. Tese que não
deixa de ser questionável e irritante.
Problema insolúvel para o saber quando se confronta com o
gozo que, por essência, é irredutível à palavra e se confunde com
todo o acontecer do corpo do qual nada se pode dizer. O que
podemos saber sobre o gozo, não o nosso, mas o do Outro, em cuja
pele não podemos nos meter? Problema que angustia a humanidade
desde sua aurora com a divisão entre o gozo do suor do trabalho para
A dão e o da dor obstétrica para Eva, ambos os gozos que são efeito
da Lei depois da expulsão sem remédio do gozo paradi síaco anterior.
No mito de T irésias, o vidente, a questão dos gozos e sua
diferença é mais clara. Tirésias, perambulando pelo monte, viu a
cópula de duas serpentes e, conforme duas versões, ou as separou
ou matou a fêmea. A conseqüência foi que - como castigo? - ficou
( io/.o e sexualidade 135

iransformado em mulher durante sete anos, ao fim dos quais voltou


a repetir sua ação desagregante em outro par viperino e assim
recuperou seu sexo primitivo. T empos depois, J úpiter e H era
discutiam sobre o gozo do homem e da mulher na cópula e
decidiram que a melhor maneira de dirimir a questão era perguntar
ao único que havia tido as duas identidades. Convocado, Tirésias
respondeu, sem vacilar, que caso se dividisse o deleite sexual em dez
partes, nove corresponderiam à mulher e uma ao homem. Hera,
assim o dizem, vendo traído o segredo de seu sexo, e acreditando
que era melhor que não se soubesse, o castigou com a cegueira;
J úpiter, não podendo absolvê-lo da sanção imposta por sua cônjuge,
compensou-o com os dote s de vidente. E é assim, cego-vidente, que
ele é visto intervir no drama do Édipo. Está claro que Tirésias só se
tornou sábio depois de sofrer a sanção e de receber o prêmio. Se
houvesse se tornado antes, quando o chamaram para se declarar,
teria sabido - na posição do psicanalista - que não devia contestar,
sendo preferível devolver a pergunta e, se chegava a contestar, que
nada era mais tolo do que argumentar uma diferença quantitativa,
como se a substância de que são feitos os gozos do homem e da
mulher fosse a mesma e o assunto pudesse ser resolvido por meio
de algum tipo de proporção. Foi a primeira vítima dos horrores da
quantificação em matéria de subjetividade.
O que discutiam os reis do Olimpo girava em torno do
impensável e do irrepresentável do gozo do Outro. Semelhante é a
questão do gozo que cada um dos participantes perde por não ser
esse Outro. O gozo, de um ou outro sexo, funciona a fundo perdido.
Fica impossível, por mais forte que seja o abraço, apoderar-se do
gozo do outro tanto no sentido subjetivo (não posso viver no corpo
do outro, sentir o que ele sente) quanto no objetivo (somente há gozo

no corpo
órgão, de um e isso de modo sempre parcial, como gozo de
Organlust).
De modo que o gozo se produz no encontro das zonas
erógenas e escapa dos dois do casal em virtude de sua própria
divisão. Este gozo do Outro pertence certamente ao registro do
fantasma, mas nem por isso deixa de ter efeitos reais na
subjetividade. De mil maneiras, e de modo privilegiado nos sonhos
e nos sintomas, a clínica psicanalítica mostra os efeitos, às vezes
136 Gozo

inibidores e angustiantes, às vezes estimulantes, sempre enigmáticos


e mobilizadores, do saber do inconsciente, resultado desta
impossibilidade
outro (hetero oudehomo)
se apropriar
sexuado.do Isso
gozoéalheio. doPoderá
Gozar
possível? corpo do
um dos
participantes na cópula saber o que ocorre no outro? São
compatíveis ou comparáveis ambos os gozos? São gozos
convergentes que se asseguram reciprocamente? L acan o
questionava, precisamente, como temos adiantado pela função da
castração. Por isso pôde dizer:
O sujeito concl ui que não tem o órgão que chamarei - j á
que tenho que escolher uma palavra - o gozo único, unificante;

aquele que faria um gozo singular na conjunção dos sujeitos de


sexo oposto [pois] não há realização subjetiva do sujeito como
elemento, como partenaire sexuado nisso que ele-ela imaginam
do ato sexual.21
Em psicanálise não há nada parecido com ying e yang, o
simpático par de peixinhos que juntos enchem um círculo.
No primeiro capítulo, sustentei que o gozo é também uma
função incluída na dialética, mas que não se tratava de um acordo
das subjetividades, mas de uma rivalidade dos gozos na qual sempre

está
um eem de jogo o gozo
outro, perdido,
a falta de umaa incomensurabilidade entre oo que
justa medida para avaliar gozoéde
o
bem (ou o mal) de cada um. A disputa de H era e J úpiter é a
formulação mítica desta ancestral discórdia entre os sexos na qual
nenhum Tirésias pode arbitrar, muito menos se irá quantif icar um
rapport sexual que - é sabido - não existe.
E aqui que tradicionalmente funcionou o paradigma do gozo
peniano com sua clara localização no tempo do orgasmo e no espaço
da ereção-detumescência que dá ao varão o tão duvidoso quanto
vibrante privilégio de um saber certeiro sobre a satisfação genital.
M as, é bom lembrar, es se desvanecimento instantâneo do ser do
sujeito no orgasmo é correlativo da perda do gozo que escapa de
modo irrecuperável com o sêmen. É um curto-circuito; os fuzíveis
saltam, a luz se apaga. Na obscuridade subseqüente, surge a tentativa
de localizá-lo, de apreendê-lo e assegurá-lo. O saber certeiro é agora

21. J. L acan ( 1968). Seminário XVI , aula de 17de janeiro.


( iozo e sexualidade 137

o da inelutável perda com um saldo de descontentamento em relação


às possibilidades do gozo peniano (fálico, já que o pênis representa
o significante fálico no imaginário pelo real de sua detumescência)
para assegurar a satisfação subjetiva.
L ocalizá-lo, onde? Na geografia como um gozo exótico que
brota nos tristes trópicos; na etnologia como patrimônio de alguma
raça ou tribo fabulosa; na história como conquista de alguma
civilização de sábios quejá se extinguiu; na religião como êxtase dos
benditos incapazes de transmitir o que sentiram; na mitologia da qual
é colofão e paradigma a construção freudiana do pai gozador
primitivo; na anatomia quando se esquadrinha nas neurofibras ou nos
patterns de descarga; na política e no direito que pretendem
administrar, canalizar e distribuir uma sexualidade “legítima” ou
contestatória; na química que promete inventar paraísos artificiais
e vende substâncias que privilegiam o gozo sexual; na cibernética
que permitiria abolir a maldição bíblica do trabalho, encarregando
disso os gólens que não pretendem gozar, deixando assim o gozo em
mãos de seus inventores, sem reclamações nem invejas; na
psicanálise, enfim, que o tacha de inalcançável em Freud pelo
tropeço com a rocha viva da castração e que habilita outras buscas
que confinam com o delírio como nos casos de Ferenczi e de Reich
até encontrar aarticulação lógica e topológica de L acan. Na terraque
ele lavrou se planta a semente deste discurso.
L ocalizá-lo, onde? Se o pênis é o órgão que não pode sustentar
sua ereção (e a ereção é justamente o gozo do órgão que se
desvanece com o orgasmo), e se a mulher dá mostras de outro gozo
que é, em parte, homólogo ao do macho, localizado primordialmente
no clitóris, mas que não se reduz a ser apenas este gozo que pode
inclusive faltar nela; se a mulher pode experimentar gozos que
escapam a essa e também a qualquer localização, abre-se a
possibilidade de que o gozo que falta ao Falo seja o gozo dela como
Outro do Um, como Outro desse significante fálico que unifica o
sujeito e que o representa ante o conjunto dos isgnificantes. Assim
aparece a questão do gozo do Outro entendido como o Outro sexo,
esse eteroz (hetero-) radical com relação ao Falo ao admiti-lo e
reconhecê-lo. mas ao mesmo tempo ao não se esgotar em si e no
universo de significações que ele impõe.
138 Gozo

Por isso o gozo feminino aparece como gozo do Outro e a


intenção de governá-lo no campo do sabe
r deu lugar às resposta
s
que acabamos de descrever e a muitas outras. Pois, se o gozo
escapa ao saber (historicamente sempre ligado ao poder), o saber
se empenha em pegá-lo justamente aí onde suas precisões sempre
no continentde que falava esse Freud
lhe fogem, nas mulheres,dark
que, ao final de sua vida, chegou à conclusão de que nunca pôde
responder a pergunta sobre o que quer uma mulher e, portanto,
sobre o queé uma mulher. L acan acrescentava que apsicanálise, o
modo mais radical de interrogar o falante sobre sua experiência,
quando aplicada às mulheres e quando as próprias mulheres como
praticantes dessa psicanálise, questionavam a si mesmas, não
conseguiram tampouco alterar nada digno de destacar da
perplexidade reinante arespeito do gozofeminino. Ao enigma, que
parece intemporal, muitos Édipos arriscaram infinitas respostas e
provocaram a ruína de muitas esfinges. Poderíamos qualificar tais
respostas ora de neuróticas ora de psicóticas, mas como propostas
que tentam ligar o gozo com o saber, dizia L acan, “abrem a porta
a todos os at
os perversos”.22Como já adiantei ao tratar o te
ma do
gozo nas perversões, poderei falar mais sobre essa relação entre o
saber impossível sobre o gozo feminino e a tentativa perversa de
dominar o que escapa ao saber, desmentindo-o (
Verleugnung )e
reduzindo o gozo das mulheres unicamente ao gozo fálico, algo que
equivale a considerar as mulheres como homens incompletos.
A dentrar na questão do gozo feminino exige uma nova
passagem pelo temada castração.Vejamos.
Nem as mulheres nem os homens nascem como tai s, mas
chegam a sê-los a partir de um acontecimento inicial que é a
atribuição do sexo a um pedaço de carne totalmente carente de
representações. O Outro profere no momento do nascimento uma
palavra, “homem” ou “mulher” que fará as vezes de destino além da
anatomia, se for o caso. O corte, o corte da castração, é
administrado pela palavra que secciona - sexiona - os corpos
arremessando-os à vida em uma das duas pátrias irreconciliáveis e

22. J . Lacan (1967). Seminário XIV, aula 7 de junho.


( iozo e sexualidade 139

não complementares da espécie. É o real que mitifica o andrógino


platônico ou a extração da costela (da cauda, segundo certos mitos
hebraicos, esse idioma do qual o som tsela tem tanto o sentido de
“costela” quanto o de “infortúnio, tropeço”),23costela ou caudadesse
andrógino queera A dão antes da divina cirurgia.
O que faz o corte (linguageiro) da designação do sexo é marcar
a alteridade de cada um dos falantes. E por isso que a palavra é,
cm essência, castração, separação e, em uma palavra que em
espanhol causa um equívoco maravilhoso, ablação*. A sexualidade
é estabelecida poi um discurso e osórgãos daanatomia deverão (ou
não) conformar-se com ele. Desde o discurso, pelo discurso,
determina-se o valor do órgão que “faz” com sua presença ou
ausência a diferença que a simboliza no Outro da linguagem. E esta
diferença, como no-la ensina Freud e é confirmada incessantemente
pela clínica psicanalítica, não é importante em si, por algo que tenha
a ver com inervações, com o maior tamanho do pênis com relação
ao clitóris, com as sensações precoces que possam existir ou faltar
de uma estesia vaginal qualquer ou com determinações culturais de
primazia fálica, mas pela descoberta inevitável c mais ou menos
tardia de que a castração existe e opera na mãe, esse Outro primordial

que temeque
menina quedeixar de sersecundariamente,
determina, fálico tanto para oa menino quantodepara
possibilidade umaa
identificação normativa para o menino com seu pai que o tem (o
órgão) e, do lado feminino, uma demanda dirigida a quem o tem
para que lho dê, deslocando o Outro da demanda de amor da mãe
para o pai e instalando a equivalência simbólica entre falo e criança
(das Kleine).
É pela falta que o sujeito, homem ou mulher, se vê forçado a
renunciar ao auto-erotismo e a marcar o gozo masturbatório com
uma culpa que não depende dos códigos culturais. Essa culpa é
inerente à pretensão
subterfúgio, um atalhode
dedesmentir a castração,
auto-suficiência de operar
interposto comodo
no caminho

23. R. Graves e R. Patai.Hebrew Myths. New Y ork: Greenwich House, 1983.


p. 69.
* Em espanhol, há homofonia entre ablação (ablacion) e falação(hablación).
(N. daT.)
140 Gozo

gozo. A diferençasexual implica a castração para ambos os sexos.


(Quase) ninguém tem os dois. O gozo não poderia materializar-se
em umcorpo
desse só, sobre o próprio
fazendo-as corpo;
passar peloimpele
campo adofiltrar asdo
Outro, aspirações
Outro sexo,
e constituindo o Falo como o significante da falta, daquilo que se
busca fora porque não está em seu lugar naimagem desi. É assim
que o falo se constitui em terceiro no jogo entre o homem e a mulher,
buscado no Outro e condenado a faltar. O desencontro é fatal,
estrutural, alheio aos (bons) desejos delas e deles. O ausente é o
causador do desejo que é o desejo do Outro.
Os amantes, no ato sexual, abraçam e rodeiam essa falta que
está em seu centro, interior excluído de cada um e desejado no
Outro. Freud se equivocava a este respeito quando escrevia: “A
pulsão sexual põe-se agora [com a puberdade] a serviço da função
de reprodução; torna- se, por assim dizer, altruísta”.24A introdução
posterior do narcisismo chegaria para corrigir essa idéia que poderia
fundamentar os fantasmas da dadivosidade e dos dons recíprocos
na obediência a fins superiores que seriam os da espécie.
E no ato sexual (que não existe senão fracassado) que se joga
esta relação do homem e da mulher com o gozo, pois a
representação do falo recai sobre o Outro do abraço, esse Outro que
escorrega na separação posterior, ficando o órgão, órgão da
conjunção, reduzido a algo desfeito, perdido para a mulher, relratário
ao gozo para o homem, separado de ambos.
O Outro é o falo - assim, com minúscula - no que tange ao
valor de gozo que o sujeito não pode satisfazer em si (-cp). Por isso
é que o Outro é mensageiro da castração do Um (“A o verme verás
que algo falta em você”). Precisamente por não contar com o falo
entra-se no ato sexual e se compreende assim o adágio lacaniano de
que o amor consiste em dar o que não se tem, em dar ao Outro a
castração. Daí provêm as duas proposições, aparentemente
contraditórias, assentadas por Lacan em seu seminário de 31 de maio
de 1967:25 a) que não existe o ato sexual como possibilidade de
integração, restituição ou resgate do perdido na “sexão”, que

24. S. Freud (1905).Obras completas, v. VII, p. 189.


25. J. Lacan (1967). Seminário XIV, aula de 31 de maio.
Gozo e sexualidade 141

constitui o homem e a mulher como castrados, não


e b)há senão
o ato sexualpara motivar essa articulação pela qual o sujeito busca
no corpo do Outro o gozo faltante, a resposta à sua insatisfação.
Quem participa no ato sexual, seja qual for o seu sexo e o de seu
partenaire, o faz desde uma posição subjetiva e de enunciação: é
uma declaração de sexo.Certamente, inconsciente.
Não há complementaridade dos sexos, mas é sim verdade a
necessidade que sejam dois para que cada um se defina por não ser
o Outro em um sistema de oposição significante. A diferença é
irredutível. O que entre ambos delineiam é o que lhes falta, o falo

como terceiro
um órgão interessado
marcado na relação
pelo complexo de ecastração,
cuja representação
um órgão recai sobre
cujo único
papel é o de introdução aos intercâmbios, chegando a ser o
verdadeiro partenaire do ato sexual, esse ato que se verifica na
interseção de duas faltas e no fato de que cada um dos participantes
é -<
p para o Outro.
Não se creia, no entanto, em algum tipo de simetria. É verdade
que não é possível definir um estatuto psicanalítico dos termos
“masculino” e “feminino”, mas as condições da castração de cada
um diferem no sentido de que para a cópula - se quiser participar
dela - do lado do home m, é necessária a ereção do m embro viril e,
do lado da mulher, é necessária... a ereção do membro viril. Do lado
do homem é requisito o desejo, do lado da mulher o consentimento.
A possibilidade da violação, em princípio apenas ao personagem
“falóforo”, é a imposição desse consentimento.
Na assimetria do lugar dos desejos respectivos é que devemos
buscar a causa de que, para Freud, a única tradução relativamente
aceitável para os termos masculino e feminino no inconsciente seja
o da atividade c passividade; com certeza isto não tem relação algu

ma comque
tação” a penetração
não pode senãodo espermatozóide
levar ao riso. Ono óvulo,se
homem uma “interpre
dirige à mulher,
em relação ao ato sexual, colocando seu desejo como demanda de
satisfação, fazendo dela um objeto em seu fantasma, concedendo-
lhe o valor fálico, objeto para seu gozo eventual. Como disse Lacan:
... não se é o que se tem e é por que o homem tem o órgão fálico
que ele não o é; isso implica que do outro lado seja-se o que não
142 Gozo

se tem, ou seja, que é justamente por não ter o falo que a mulher
pode assumir seu valor.26

Ela, por sua vez, não o tendo, tem de sê-lo, encarná-lo,


revestir-se desse valor que pode provocar essa ereção, condição da
cópula. Seu desejo não pode se manifestar diretamente, mas tem que
se dirigir a despertar o desejo do Outro. É o lado feminino dessa
generalidade que chamamos complexo de castração e que aparece
como consagração a uma função de mascarada, a mesma que
confere um aspecto feminino a um homem que ostenta seus
atributos viris.
parecemenos carregado
Por tudo isso, o acesso ao ato genital
de dificuldades para as mulheres do que para os homens. Elas, uma
vez definidas a si mesmas e por si mesmas como desejantes, não
possuindo o órgão da conexão, têm o caminho facilitado, não tendo
senão que ir em direção a quem o tem... e ver como ele as arranja.
A frigidez não tem assim nem a transcendência nem as
conseqüências que ensombrecem a impotência do lado masculino,
onde o desejo pode inclusive adquirir uma função inibitória, como
é reiteradamente comprovado. Nada a renunciar, nada a arriscar, pois
a castração está dada de entrada e não de saídaécomo o caso do
homem. Freud colocava esta diferença em termos parecidos e não
com relação a cada ato sexual, mas em relação ao Édipo, esse Édipo
cuja transgressão no sentido de incesto pai-filha não tem, em geral
e por estas mesmas razões, as devastadoras conseqüências clínicas
do incesto do menino com a mãe. Tal “vantagem” do sexo frágil
ficava contrabalançada no discurso freudiano por esta imposição da
dupla exigência de ter que se transplantar a zona erógena dominante
e definitiva do clitóris para a vagina. Creio que neste ponto
atualmente ninguém concorda com Freud.2 7

26. J. L acan (1967). Seminário XIV, aula del9 de abril .


27. Cf. um artigo que fez sucesso no pensamento feminista apesar da grosse
ria (e falocentrismo) de seus enunciados, A. K oedt (1968), “O mito do
orgasmo vaginal” (“El mito dei orgasmo vaginal”), traduzido e reproduzi
do em Debate feminista, M éxico, v. 12, n. 23, p. 254-263, 2001, muito
bem comentado nesse mesmo número por J. Gerhard (2000), p. 220-253,
“De volta a ‘El mito dei orgasmo vaginal’” (“De vueltaElamito dei or
gasmo vaginal”).
Gozo e sexualidade 143

O certo é que tanto para a mulher como para o homem a cópula


requer a ereção peniana como condição necessária, ainda que não
suficiente (o desejo de um e o consentimento da outra devem se
acrescentar), e relega à condição de contingentes todas as demais
variáveis corporais. Falta dizer que esta constatação banal, assim
como a diferença de posições assentada no parágrafo anterior, não
autoriza privilégios nem determina maiores vantagens ou facilidades
para um dos doispartenaires ainda que imaginariamente seja
possível encontrar que um deles, na posição de neurótico, inveja,
despreza ou temeem seu fantasmaa posição e o gozo do outro.
Na verdade,a condição da cópula não passapelo que setem,
mas pelo que se deixa de ter como conseqüência da divisão sexual.
O falo nada assegura ao seu possuidor a não ser o fato de estar nele
a parte faltante da imagem ideal de si, causa da insvestidura libidinal
acordada ao outro corpo e razão da recusa ao gozo sobre si mesmo,
idiopático, intranscendente. O canal da transfusão de libido a outro
corpo se produz tanto no caso da eleição de objeto homo ou
heterossexual. O decisivo não são os órgãos misturados, mas as
posição subjetivas, ou seja, a declaração de sexo.
O falo é o objeto da recíproca despossessão que conduz ao
jogo do cortejo e do amor; é o que as mulheres ou outros homens
buscam em um homem e, tese ligeiramente escandalosa, que os
homensbuscam na s mulheres- ou em outros homens, assim como
as mulheres o buscam.
Para L acan,2* há um engano, um ogro*,
l que éconstitutivo do
ato sexual. O homem busca aí um complemento segundo a promessa
bíblica de chegar a ser “uma única carne” e termina achando que
há, com efeito, uma única carne, a sua. Ou seja, que, no final, há
um desengano com relação a esse logro da falsa promessa:

buscando a carne
sexual, a de que ounificada
gozo faltaencontra a castração
em alguma parte. e a verdade do ato

28. J. Lacan (1967). Seminário XIV, aula de 31 de maio.


* No original “timo”, que em castelhano tem o sentido de logro e que res
soará com íntimo e extimo. (N. da T.)
144 Gozo

Destaquemos ainda a dissociação entre o orgasmo genital, que


é ponta e limite do gozo, e o ato copulatório que culmina ou deveria
culminar no orgasmo para o falante homem “importunado pelo
falo”,29 mas não para o falante mulher. É claro queo orgasmo não
requer a conjunção dos corpos e que esta não deve, nem tem por
que, terminar em qualquer paroxismo. Esta dissociação leva à
pergunta sobre o que representa o gozo sexual no nível do sujeito,
de cada um. E sta não é uma questão de sexologia, mas de
erotologia,30de gozologia - diria com prazer, ainda que ciente da
impossibilidade do “objeto” gozo para o entendimento - certamente
uma questão de psicanálise, uma dimensão que se abre à
investigação particular das vias abertas ao gozo de cada um fora de
toda normatização biológica ou cultural.
A respeito do termoerotologia: o primeiro uso da palavra
erotologiaem língua francesafoi proposto em 1882.O Dictionnaire
Historique de la Langue F rançaise, de Robert, possui o vocábulo
e também a definição: “o estudo do amor físico e das obras eróticas”.
Freud nuncao usou eL acan o fez em duas ocasiões, em seminários
ainda inéditos. Na primeira aula do seminário sobre aangústia (19

de dezembro “merece
psicanálise, de 1962), odisse
nomequedeaprática à qualNove
erotologia”. nos dedi
camos,
anos maisatarde,
no seminário X V I II (a), O saber do analista, na aula de 4 de
novembro de 1971, afirmou que “o gozo está na ordem (?) da
erotologia”. M eu amigo Jean Allouch retoma o termo e insiste em
sua consubstancialidade com a psicanálise (op. cit.). Em um texto
posterior declara31 que o vocábulo é pouco conveniente (é uma
aposta, sem dúvida uma loucura, pois ninguém ignora que as
intervenções do deuzinho Eros quase não têm razão nem sentido”).
A palavra gozologia, vinculada ao conceito lacaniano que
trabalhamos, teria a vantagem de sua especificidade ainda que,
devemos reconhecer, do escorregadio objeto @ não poderia haver
jouissologie, e
ciência. Em francês, deveria ser criado o vocábulo

29. J. Lacan (1973). Le seminaire. Livre XX. Encore, p. 70.


30. J. Allouch. La psychanalyse: une érotologiedepassage. Paris: EPEL , 1998.
31. J . Allouch. L acan et les minorités sexuelles. Cités, Paris: P.U.F., n. 16,
p. 72, 2003.
( iozo e sexualidade 145

em seguida - intenção nada fácil - traduzi-lo para o inglês como


jouissology. O que ninguém que tenha acompanhado este texto até
agora poderia negar é que a definição da psicanálise não pode
renunciar ao seu objeto, o de sua prática e sua teoria que é o gozo,
um gozo que - temos visto e ainda vere mos - está mais perto de
Tanatos do que de Eros.

3. A castração como causa

L acan’2 foi incansável na insistência sobre este ponto que hoje


se discute detalhadamente. O complexo de castração - ou seja, uma
ordem de determinação acessível à psicanálise e somente à
psicanálise como prática linguageira - tem aí a função de nó com
relação à produção dos homens e das mulheres, com relação ao
“desenvolvimento” de uns e outros (questão dos estádios ou fases
libidinais), com relação à determinação da posição clínica do sujeito
como neurótico, perverso ou psicótico, com relação à possibilidade
e modalidade de abordagem do ato genital e até no posicionamento
frente à criança que se produz a partir dele. A anatomia não é o
destino, senão a partir da palavra quea recolhe e a significa. A função
(da cópula) não faz o órgão, mas é o órgão, o pênis, aquilo que é
apropriado pela linguagem. A ordem simbólica realiza no órgão uma
função muito interessante que é a de transformá-lo em significante
da perdaque se produz no gozo pela ação da Lei; em outras palavras,
o simbólico submete ao corte castratório.33Não é outro o sentido da
milenar prática da circuncisão, marca do Outro no órgão que
representa o falo.
A castração significa que o gozo, estando perdido, deve ser sig

nificado,
nificantesdefinido, cercado,seus
que desenham evocado com o entretecido
reservatórios, de fios sig-
estagnam-no,
acumulam-no, evitam sua dispersão. A castração é um condens
ador
do gozo que o torna subjetivável, subjetivo e, ao mesmo tempo,

32. J . Lacan (1958). Écrits, p. 685;Escritos 2, p. 665.


33. J . L acan (1966).Seminário XI V, aula de 27 de abril.
146 Gozo

estranho, extimo; vetoriza-o, canaliza-o, assinala-lhe e lhe proíbe ca


minhos. Por ser simbólica (não real) e assimétrica (como vimos)
abre para um mundo de perguntas a respeito de seus efeitos sobre
o gozo, do gozo que falta, da possibilidade de se ressarcir da per
da, do gozo do Outro, perguntas sem fim que fazem pulular as res
postas no incerto mundo do saber, no lugar da verdade inarticulável.
E assim que se transformam em anunciados: teorias sexuais infan
tis, novelas familiares do neurótico, noções sexológicas, ensaios de
teoria sexual dos adultos, das feministas e dos analistas. Nenhum
destes enunciados poderia liberar-se das cargas ideológicas e por
isso é imprescindível o debate que os esclareça.
O Falo é primordialmente o que faz padecer a Coisa, o
significante que se imprime sobre o real, o nome da falta no Outro,
a barra do Desejo da Mãe, aquilo que remete do gozo da mãe ao
nome-do-Pai, que o metaforiza e o condena (no sentido em que se
diz “bloquear uma porta”). É esse ponto de impossibilidade, grau
zero do significante, onde se implanta um S, que chama o outro
significante, o resto da cadeia, que abreviamos com a notação S!?
o saber em todas as suas modalidades. É o indicador da falta (no

gozo). Por Osua


nomeada. intervenção
Falo como
indica o lugar de significante,
ausência quea deve
falta ser
pode ser
colonizado
pelo que sim se nomeia, pelo semblante que vem no lugar da verdade
e é agente do discurso, de todos os discursos. Por ser o localizador
da falta (-(p) é o organizador e o comandante do desejo, encarna a
respostado sujeito à falta de ser. Assim, os objetos que são causa
do desejo (@) alcançam uma significação fálica, estão
correlacionados à castração. O Falo é o corpo infantil, o que pode
preencher a falta na mãe, antes de ser barrado pela castração. O que
falta no corpo está no campo do Outro e que é aí onde deve ser
buscado.
Como órgão34permite a cópula, é o que está em jogo nela, o
que - por tê-lo ou não - determina as posições subjetivas dos dois
da união; e não apenas quando os dois têm o título de “homem” e
“mulher”. Por seu destino de detumescência o órgão volátil e instável

34. Remetemos novamente à distinção do falo como significante, como órgão


e como semblante. N. A. Braunstein.
P or el camino de F reud, p. 112-120.
Gozo e sexualidade 147

que é o pênis estorva o gozo, ao mesmo tempo que lhe marca o


caminho. Um dos sentidos essenciais do complexo de castração é
essa canalização que faz o gozo passar pelos genitais de ambos
partenaires.O gozo é imaginarizado por esse vôo de pássaro que não
pode se sustentar no ar, que deve se separarparte-en-aire.
de seu *
E impossibilidade, não impotência, e é inerente à própria pulsão
sexual, tal como indicada pelo próprio Freud. Como tal, gozo fálico
localizado nos genitaisOrganlust
( ) e concentrado no pênis ou no
clitóris, está presente nos dois sexos e não há razão alguma para
supor que seja diferente em um e no outro, ou maior de um lado do
que do outro, pois não há relação natural alguma entre gozo e
tamanho ou a visibilidade. Qualquer técnico eletrônico sabe que as
válvulas não são superiores aos transistores.
Talvez L acan exagerasse em A lógica do fantasma35 ao dizer
que
A ereção não tem nada a ver com o desejo, pois o desejo
pode atuar perfeitamente, funcionar, sem estar de modo algum
acompanhado por ela. A ereção é um fenômeno que deve ficar no
caminho do gozo. Quero dizer que por si mesma esta ereção é
gozo e que justamente se demanda, para que se efetue o ato
sexual, que ela não se detenha: é gozo auto-erótico.
Fala-se aqui, claramente, da ereção peniana descuidando de que
também o clitóris é um órgão erétil, cuja ereção de forma alguma é
condição necessária nem demanda para a cópula. A objeção que
pretendo formular a essas cortantes asseverações recai sobre a
suposta independência entre ereção e desejo frente à idéia difundida
de que a ereção é teste
o do desejo. E claro que há ereções sem
desejo e que há desejo sem ereção, mas a cópula só é possível à
medida que confluem a ereção e o desejo. Não se pode contemplar

isoladamente
inevitável, a detaume
função
scênciada
. Aereção sem
diferença levar
entre emdei
ambas conta
xa umseu correlato
resto,
uma perda, que é a do objeto @ como interseção entre o gozo
perdido e o desejo causado, animando-se ambas reciprocamente em

* Parte no ar. (N. da T.)


35. J. L acan (1967). Seminário XI V, aula de 21 de junho.
148 Gozo

sua repetição. Não há aí satisfação, mas amortecimento pelo prazer


de órgão.

Deve-se colocar
regularmente também
sobre uma em equivalência
suposta dúvida a afirmação
entre olacaniana feita
gozo masculino
ligado à ereção e o gozo feminino experimentado como algo que as
moças designariam entre si como “o golpe do elevador”, um
conhecimento queL acan atribui antes à sua experiência viril do que
à psicanalítica. E evidente que há diferenças radicais entre os dois
partenairescom relação ao gozo. O que não se pode dizer é que tal
diferença seja universalizável.
A questão se coloca como relação com o sabe r e com o sabe r

como fantasma que


gozo masculino (e depossibilitaria o gozoé proibido.
sua interrupção) A localização
óbvia, não do
deixa dúvidas.
O homem está completamente no gozo fálico, sem resíduo no
semblante do gozo que depe nde daereção. M as o que acontece on
Outro (sexo)? Eis aqui um enigma de Hera e J úpiter, de todas as
esfinges, dos homens e das mulheres, dos fisiologistas, dos
neuróticos e dos perversos, dos psicanalistas e das psicanalistas,
aquilo que mantinha a perplexidade de Freud e que encontra resposta
em L acan, resposta de não resposta, afirmação de um gozo
recôndito, inefável, no corpo e além da linguagem que contorna o
impossível de um saber e que sustenta o gozo como ligado à
impossibilidade de dizer toda a verdade que, como dizia Nietzsche,
é mulher. Esse gozo das mulheres que é, em parte, gozo fálico e,
em parte, enigmático, está ligado ao indizível e é escrito com o
matema S (Á). Para as mulheres o semblante - função da li nguagem,
efeito imaginário do significante - e o gozo estão dissociados. Está,
encore.
sim, o visível-sensível-dizível do gozo... e há, além disso,
Sendo assim, existe realmente este gozo vivido e declarado
inefável? Como distingui-lo de um fantasma, de uma quimera, de um
sonho que poderia estar sustentado tão-somente pela insatisfação
geral e crescentecom as duvidosas promessas do gozo fálico?36 O
próprio Lacan reserva ao gozo feminino um estatuto incerto, o de
uma crença:

36. S. André. Que veia une femme? Paris: Navarin, 1987 e Seuil, 1995; em
espanhol,Qué quiere una mujerlMéxico: Siglo Veintiuno, 2002.
<ozo e sexualidade 149

Ficam todos convencidos de que acredito em Deus.


A credi to no gozo da mulher, enquanto está demais, à condi ção
de que ante esse demais coloquem uma tela até que o tenha
explicado bem.37
Uma crença, já se sabe, é pouco segura e quem a manifesta
vita comprometer-se (como ao dizer: “acho que vai chover”) ou é,
10 outro extremo, uma certeza extrema e devoradora, algo que pode
evar alguém a morrer por sua causa (justamente, esse “acredito em
Deus” cujo equivalente lacaniano é o gozo feminino).
À luz da clínica parece certo que há um gozo feminino que
;stá além do falo e da detumescência que aguarda o órgão que o
epresenta, um gozo no corpo (en corps), um gozo que não
omplementa o masculino, mas que se apresenta como plus,um
algo
nais(encore),suplementar, que faz naufragar todas as tentativas de
EStringi-lo e localizá-lo. O desmentido
(Verleugnung)deste gozo
smpre animou as tentativas para controlá-lo desde os modos mais
]rimitivos como a infundibulectomia até os mais científicos, tais
omo a moderna sexologia massoterápica e a busca de seus centros
incefálicos ou dos pontosg da vagina. Também a intenção de
emeter esse gozo misterioso a um contato sobrenatural da alma
om Deus que faz do êxtaseum orgasmo. A segregação de uma
deologia em torno do gozo e dos místicos é o rosto espelhado da
deologi a do sexólogo. No M éxi co: “a mesma gata, mas
nal tratada”.*
Em Freud, há um reconhecimento do desdobramento de um
çozo fálico (clitoriano) e outro gozo diferente, concepção em
;ssência fecunda, mas que sofreu depois pela pretensão freudiana
le localizá-lo novamente, agora na vagina. São conhecidas as
:onseqüências infelizes que trouxe esta afirmação do fundador da
málise, cujo efeito trágico, paradigmático e extremo pôde ser visto
ias operações (três) aque se submeteu a princesa M aria Bonaparte
:>araaproximar o clitóris da vagina™ e cujos efeitos mais difundidos
foram os de uma insatisfação de muitas mulheres com seu próprio

37. J. L acan (1973). Le seminaire. Livre XX. Encore,p. 71.


* No original: “la misma gata, pero revolcada”. (N. da T.)
38. S. André. M arie Bonaparte, 1882-1962. Ornicar?, Paris, n. 46, p. 97, 1988.
150 Gozo

gozo. Possivelmente nenhuma tese freudiana esbarrou em uma


oposição tão inflamada e virulenta, tão justificada. As feministas
alinharam suas flechas contra a psicanálise, acusada de mil maneiras
de relegar e inferiorizar o gozo feminino em função do modelo
masculino de ereção-penetração-ejaculação, modelo de que se tratou
(e não se conseguiu) provar como patrimônio comum a ambos
os sexos.
A insatisfação com o gozo fálico promove a busca de outros
modos e modalidades de gozar sobre o fundo do enigma em torno
do gozo feminino. A intenção de definir e alcançar gozos parafálicos
e perifálicos pelo lado do prolongamento da duração do coito, do

ascetismo,ado
provocam deslocamento
ereção químico
ou que sejam mediante
capazes substâncias
de provocar que por
orgasmos
estimulação de centros nervosos, da sublimação estética ou da dor
física absorve a imaginação e os esforços de poetas e cientistas.
T ambém de psicanalistas que entendem que o fist-fucking, as
práticas S/M ou a proliferação de encontros múltiplos e anônimos
podem revelar novas verdades.
A psicanálise tinha, desde o princípio, desde a resposta
consignada pelas histéricas e desde a pergunta que essa resposta

encobria, a missão
gozos orto-meta- de produzir As
e parafálicos. uma resposta
proposta diferente àpelos
s formuladas questão dos
analistas eram decepcionantes pelo erro comum de produzir
fórmulas supostamente universais ou universalizáveis. O colóquio de
A msterdã em 1960reuniu dois trabalhos, um de L acan3 9e outro de
Perrier e G ranoff,40 que propuseram algo novo a partir da
experiência analítica e que estão na base da elaboração
(relativamente) definitiva realizadapor Lacan em seus seminários de
1972-1973;4 1 neles a resposta oa enigma mil enar é alcançadapor
umaum
por viahalo
lógica
deque desemboca em fórmulas e formulações rodeadas
despudor.
A ausência de solução universal ao enigma do gozo feminino
conduziu à escandalosa (somente em aparência, pois de fato é uma

39. J . Lacan (1960). Écrits , p. 725; Escritos 2, p.704.


40. F. Perrier e W. Granoff. Le désir et leféminin. Paris: Aubier, 1979,
41 J. L acan. Le seminaire. Livre XX, Encore.
Gozo e sexualidade 151

verdade banal e sempre reconhecida)propsição lacaniana de que


A mulher não existe. Isto implica qie eis, uma a uma, devem e
podem encontrar sua resposta, a delasqueião é complementar nem
análoga à resposta masculina, mas i depndente e suplementar a
esta. E isso porque, paraL acan,eiasnãotodas estão, estão como
não-todasno gozo fálico e que, com cfalonem tudo está dito sobre
o gozo. São os homensos que seemienhm em falar da mulher e
em encontrar um universal para o ;ozcque elas sentem e eles
pressentem, um gozo que, por escapr da redes do saber é muitas
vezes temido e até tido como hostil.
O suplemento de gozo extrafálio (en corps, encore)que não
podia ser dito, devia ser escrito. )eviria também escrever a
impossibilidade de dizê-lo. Para isso.ardiamente L acan chegou às
fórmulas dasexuação,42da sexuaçãoe noda sexualidade nem do
sexo, da eleição de um modo particilarle se posicionar de cada
falante ante a função fálica que está eterninada não pela anatomia
nem pela cultura, mas pelos avatars dt complexo de castração
(determinante do saber inconsciente)e di desejo que resulta desse
complexo como expediente para a smjeti ação da falta a ser.
Com homem
chamada relação ea aestas fórmulas
parte chamada disexiação
nulhc dosque dividem
seres a parte
falantes, tomei
a decisão de não incluir neste li'ro ima reprodução e uma
interpretação a mais, quese agregari às árias existentes. Permito-
me, em troca, remete o leitor aosemnário de L acan43 e aos
comentários enriquecedores que s fiieram (por exemplo, em
A ndré44e M illot45). Por outro lado arrsearei uma resposta que
implicar a marcação de uma diferena con postulações explícitas e
a meu ver confusas do próprio Laca:, apoximando-me e adotando
sugestões que procedem de autor es <ue s ocuparam seriamente da

42. Ibid., p. 73.


43. idem, ibidem.
44. S. A ndré. Que veut unefemme?
45. C. Millot. Horsexe: essai sur le transxuaisnie.
Paris: Point Hors-Ligne,
1983; em espanhol,Exsexo. Barcelcia: fradiso, 1984; em português,
Extrasexo. Ensaio sobreo transexualimo. So Paulo: Escuta, 1992.
152 Gozo

questão, SergeA ndré,46e Gerard Pommier,47e Colette Soler,48para


as quais procurarei encontrar um modelo topológico.
E o momento de repetir e repassar o que foi apresentado no
começo do segundo item deste capítulo: havíamos chegado ao ponto
de separar um gozo do ser e um gozo fálico e os havíamos
localizado, com Lacan, em duas áreas diferentes do nó borromeu
(figura à p. 108). No ensino de L acan, o gozo quechameigozo do
seré chamado também, indistintamente, gozo do Outro.M as de que
Outro se trata? Pois é possível falar tanto a) do corpo comoOutro,
Outro radical, fora da linguagem, assento de um gozo ligado à Coisa,
impossível
como oOutrodeda
simbolizar
linguagem,oudab)
Leio eOutro, grande
do código Outro,
(código queprecisamente
poderia
haver, mas que não há), do Outro onde deve se significar a
mensagem, o Outro indicado como A no gráfico do desejo ou pode,
por ora interromperemos aqui a enunciação, referir-se c) ao Outro
que é o Outro sexo e o Outro sexo é sempre o feminino Eteroz(),
pois o sexo que éUm é o que está integralmente regulado pelo
significantee pela Lei do falo.
A credito que aexpressão gozo do Outroé infeliz, porque, dada
a polivalência do Outro lacaniano e de seu matema, o A maiúsculo,
todos os gozos são gozos do Outro: 1) o gozo do corpo fora da
linguagem (que estou denominando de gozo do ser); 2) o gozo que
passa pela articulação linguageira submetida à L ei, marcado pela
cultura (chamado aqui e com Lacan gozo fálico); e 3) um terceiro
gozo, suplementar e situado além da castração e de seu símbolo que
é o gozo feminino para o qual proponho reservar, a este sim, a
denominação de gozo do Outro (sexo). Gozo do Outro (sexo), é
preciso esclarecer,
como aquele que goza, e nãosubjetivo
no sentido objetivo,
no sentido pois de,
do genitivo o Outro
é impossível
gozar do Outro como objeto do gozo do Um. Deste terceiro gozo,
o gozo além do falo, é que cabe falar ao terminar este capítulo.

46. S. André. Que veut unefemme?


47. G. Pommier.L ’exception jeminine. Paris: Point Hors-Ligne, 1985.
48. du
C. Champ
Soler, Ce s/d.disait des femmes... ln: Progress. Paris: Éditions
que L acan
Lacanien,
( lozo e sexualidade 153

Declarar como desafortunado e acabar reconhecendo de modo


restrito o sintagma gozo do Outroexige alguma precisão adicional.
Se algo está claro, conforme já se disse e se citou no capítulo
anterior, é que “o desejo vem do Outro e o gozo está do lado da
Coisa”;49neste sentido deve-se ver o gozosempre como referi do ao
Um, esse Um do qual os falantes somos desalojados pela intervenção
invocante do Outro que cinde a subjetividade, sendo o gozo o que
lalta ao Outro e ao mesmo tempo o que ele proíbe no Um, isso que
se expressa nos maternas com a dupla barra do Outro e do sujeito.
Assim, e some nte assim, o gozo se apresenta ao sujeito como sendo
o Outro, o radicalmente ausente que encontra seu símbolo no O
maiúsculo do falo e se manifesta no mundo da linguagem como
nome-do-Pai.
Por tudo isso é que reconhecemos, em uma última análise:
1. gozo do ser (da Coisa, mítico);
2. gozo fálico (do significante, linguageiro), e
3. gozo do Outro (feminino, inefável).
Sim, deveria concordar comL acan quanto ao gozo do se r (1)
e o gozo do Outro (3) se inscreverem na mesma região (marcada
como J .A., j oui ssance de l ’Autre) do nó borromeu escrito em
superfície plana, na região da interseção do real e do imaginário, sem
mediação simbólica, como algo corporal alheio à função fálica que
é a função dapalavra. Não deixa de ser paradoxal- mas tem de ser
assim - que o gozo marcado como sendo “do O utro” fique
totalmentefora do simbólico (figura na p. 108)

4. Os três gozos e a banda de M oebius

Trata-se agora de articular estes três gozos sem nunca perder


de vista que, com eles, não nos movemos em um terreno especu
lativo, mas em uma referência constante à clínica, a uma clínica que
terá de pensar de modo diferente com o conceito de gozo.

49. J . L acan (1964). Écrits, p. 853;Escritos 2, p. 832.


154 Gozo

A enumeração dos trê


s tipos degozo tem algo deexcessivo ou
de bizarro; é como a superposição de três substâncias heterogêneas,
algo assim como as três identificações reconhecidas por Freud no
capítulo 7 de sua “Psicologia das massas” ou os três masoquismos
do artigo sobre o “problema econômico”, reunindo três coisas que
não parecem somar-se, mas proceder de conjuntos diferentes. Não
poderia ser de outro modo, sendo o gozo o que está em relação com
a lógica: o que dela fica excluído. E para isso que fica tão difícil
captar com as palavras de um discurso, convém uma apreensão
topológica.
Deve-se partir da clínica, dos gozos não-ditos, os que não pas
sam pelo diafragma colimador da palavra, os de uma dissolução da
subjetividade, externos a qualquer vida de relação, extradiscursivos.
Falo dos corpos reduzidos à sua existência corporal na embriaguez
extrema, o autismo, infans-
a cia. Isso em um extremo. No outro,
as experiências extáticas de quem, havendo atravessado todas as
barreiras oportunamente indicadas ao gozo, e muito particularmen
te aquela que é seu contrário, o desejo, encontram-se em uma re
lação direta, imediata com o gozo. Entre os dois extremos, estão os
gozos diafragmatizados, regulados pelos esfíncteres linguageiros,
submetidos à castração e à sua lei, perseguidores de um objeto fan-
tasmático que escapa inexoravelmente como a tartaruga ao bom
A quiles ou comoa mulher ao homem. Não é errôneo dizer que este
último, o fálico, é gozoperverso (ou seja, virado de costas, trans
ferido, meta-fórico), enquanto os outros dois são loucos.
M as deve-se atentar para não confundir estes dois gozos que
estão fora da linguagem, pois eles não são iguais e sim o contrário
um do outro; ou, melhor dizendo, seu avesso. O autismo, apesar de
a clínica psiquiátrica clássica englobá-lo sob a mesma rubrica da
psicose, não é assimilável à paranóia. Entre ambos, entre o aquém
e o além da palavra, estende-se este campo da cobertura insuficiente
do real por meio da linguagem que nos dá uma “realidade”, um certo
substituto do gozo que nos escapa. É o campo que L acan chamou
de semblante e N ietzsche, com mais crueza, de mentira. O
semblante ou a mentira, ambos tributários do falo e de seu gozo, são
as condições de possibilidade do discurso, pois não há discurso que
não seja o do semblante.
Ciozo e sexualidade 155

Seria fácil mostrar topologicamente a relação entre os três


gozos sobre a superfície de uma folha de papel. B astaria traçar
três círculos concêntricos que representariam as relações existentes
entre os três gozos.

Figurariam aí umazona centralque constituiria o núcleo do ser


(o círculo de dentro), o mais íntimo e ao mesmo tempo inacessível,
a terra estrangeira interior, isso que do Real fica excluído e padece
gozo
pelo significante; aí representar-se-ia o do ser.N o meio pode
fazer-se figurar esta zona sombreada, a da palavra que marca e

limita
espaçoa do
Coisa, condenando-a
significante ao silêncio
gozo fálico.
do e àsum
E ficaria filtrações inesperadas,
além, uma zona
de gozo que seria exterior, a do gozo que excede a significação e a
função fálica, aquele que faz da mulher uma não-toda (pas-toute),
cujas pistas - já que não conhecimento - nos dariam certas
experiências de místicos e paranóicos que vão além do órgão que
estorva como falo. E a área gozo do do Outro(sexo).
Este modelo é demasiado singelo. O problema é que com ele
perde-se a possibilidade de mostrar a continuidade e a oposição que
há entre os dois gozos do corpo (o central e o exterior) separados
pela colocação em palavras que faz passar o gozo pelo funil do falo.
Com os círculos concêntricos, a separação é absoluta e entre am
bos os gozos não há oposição, mas simples falta de contato. Por isso
é que proponho recorrer a outro modelo e a outra demonstração que
L acan usou em um contexto totalmente dif erente, o dabanda de
Moebius. É necessário neste ponto recordar o essencial desta figura
topológica. O leitor interessado nos detalhes técnicos e na utilização
156 Gozo

que L acan dá a essa figura pode recorrer ao livro já citado de


Granon-L afont.50Darei por conhecidas as propriedades topológicas

da banda.
Não nos conformamos com a relação entre três espaços visí
veis e claramente separados entre si, como são vistos em nossos cír
culos concêntricos, e por isso preferimos a banda, essa cinta com
uma meia torsão. Sabemos que abanda de M oebius que habitual
mente manejamos - a que fazemos juntando em uma cinta a borda
superior de um de seus extremos com a borda inferior do outro -
é uma falsa banda de M oebius porque sea cortássemos ao meio e
no comprimento com uma tesoura, o que ficaria seria novamente
uma cinta,
também queuma superfície
ao espaço compelo
aberto doiscorte
ladosnão
e duas bordas.por
se poderia, Sabemos
sua vez,
banda
cortar. Esse espaço que é virtual e intangível é a de Moebius
verdadeira.O intangível e incorpóreo espaço do corte é essencial
para nossa concepção dos três gozos e da separação entre eles.
Considero que o gozo do ser e o gozo do Outro (sexo), os dois
gozos que estão fora da palavra, têm a mesma falsa continuidade
daquela observada nafalsa bandade M oebius. É aí onde atesoura,
bonito objeto para indicar a função da castração, a intromissão do

esignificante fálicoproduz
mais preciso), (caso esse
se queira
vazio,dizer
essade um modode
separação menos
gozo intuitivo
srcinário
que abre as portas do gozo acessível aos sujeitos da palavra, o gozo
fálico, o dos e
ncantos edas decepções ilnguajeiras. Trata-se de um
gozo sem corpo, fora do corpo, na linguagem, que opera uma divisão
e um enfrentamento. O gozo do corpo fica agora dividido em dois,
armado de direito e avesso, fora da linguagem (figurado como corte
na banda de M oebius) que o partiu em umgozo do ser, anterior ao
corte e um gozo do Outro, seu antípoda, sua antífona, seu além, que

é secundário e inconcebível
A credito ter sem
explicado o por esse
quê corte.resistência em con
de minha
ceber os três gozos com o esquema simples dos círculos concên
tricos que carecia da riqueza heurística que devemos agradecer à
bandade M oebius e à oposição entre a banda falsa e a verdadeira.

50. J. Granon-L afont. La topologie ordinaire de J acques Lacan. Paris: Point


Hors-L igne, 1985.
( iozo e sexualidade 157

M inha proposta torna vidente


e que a castração éjustamenteo
corte que faz com que a substância dos dois gozos do corpo seja
a mesma, mas que não são o mesmo, que são distintos sem que se
possa passar do um ao outro. Há entre eles uma descontinuidade
que lhes é essencial. O corpo, com sua superfície, é um, com seu
direito e seu avesso. A linguagem (o Falo) é esse ser virtual que
produz nele a oposição e a diferenciação dos três gozos, é esse hálito
sutil que marca o impossível do reencontro com o perdido gozo do
ser e o possível, mutilado, que se instaura pela intervenção da
palavra. O corte da castração é completo, total, do lado homemdo

que o entorna pelo


(recordemos pela funil habil
última i tado
vez queemnão
si pelo órgão que
é questão deoanatomia,
representa mas de
relação com uma representação imaginária do órgão como faltante
ao desejo). O corte é incompleto nas mulheresque não tropeçam
com o estorvo de um órgão que em sua imagem corporal põe
barreira ao gozo como semblante de falo; é um corte não-todo, um
corte que, uma vez efetuado, abre um além e remete ao significante
que falta na bateria do Outro da linguagem, ao enigma da
feminilidade, claro, enigma desde o ponto de vista do falo.
Da heterogeneidade incomunicável dos gozos (pois dois deles
são inefáveis e remetem ao S [A] faltante) resulta necessariamente
a impossibilidadeno real da relação sexual. Se o Falo fosse um
significante que tivesse par, se existisse o significante próprio de A
mulher, a relação poderia articular-se, poderia inscrever-se; algum
tipo de complementaridade seria possível. M as por faltar esse
significante instaura-se um desequilíbrio que configura e delineia o
gozo vinculado à castração e os dois gozos que estãoaquém um
{gozo do ser)e outroalém (gozo do Outro)do corte. Em síntese:
antes da palavra está o gozo do ser, depois da palavra, o gozo do
Outro (sexo); entre um e outro, o gozo semiótico, o que está ligado
ao falo, o da palavra que separa do corpo.
J ean A llouch51 nos deu a possibilidade de restituir o texto
autêntico de uma referência lacaniana que diz lindamente da
existência e a diferença entre estes três gozos:

51. J . A llouch. Le sexe du maître.Paris: Exils, 2001. p. 205.


158 Gozo

Nada há mais ardente do que aquilo que, no discurso, faz


referência ao gozo [ao gozo do ser], o discurso o toca ali sem
parar, pois dali é que ele se srcina [o gozo fálico], Volta a
comovê-lo, posto que tenta retornar a essa srcem. E é assim que
impugna todo apaziguamento [gozo do Outro].52

As denominaçõesdos três gozos têm sido intercaladas no dito


de Lacan.
A credito que deva insistir em assinalar essa diferença entre os
dois gozos que se situam fora da linguagem, em não assimilá-los,
ainda quando - como efetivamente acontece - estejamos vulnerando
com umainterpretaçã o o texto de L acan. Se não se insiste nisso, a
concepção
somente podemlacaniana da feminilidade
ex-sistir faria das
como linguageiras mulheres àseres
e vinculadas quee
ordem
à Lei do falo. Muitas reprovações procedentes do feminismo ficariam
plenamente justificadas porque a elas, como mulheres, não lhes
restaria outro reduto que esse lugar impensável da Coisa, em que o
silêncio se confunde com o grito, em que todas as significações se
desvanecem e onde a vida cede seu lugar à morte. Seu gozo seria
gozo fálico e, se assim não fosse, somente lhes restaria o silêncio
das árvores e das ostras ou o grito que ninguém escuta e nada diz.
Nessa concepção,
a mascarada não
fálica, porhaveria parae,opor
um lado, feminino
outro, senão a impostura
a aceitação e
passiva
do lugar de @, deobjeto, para ofantasma de um sujeito que faria
valer sobre ela um desejo essencialmente perverso.
A riqueza da formulação de L acan é apreciada quando se
valoriza sem prejuízos sua afirmação de que A mulher não existe.
Elas, as mulheres, consideradas uma a uma, todas diferentes,
carecem de universal, estão instaladas em uma relação que lhes é
essencial com o Falo, sim, mas estão como não-toda(s) aí,
perseguindo também, além disso, um significante impossível de
articular, “algo” que não está aquém, mas sim além da palavra,
S (A). Tal significante leva ou poderia levá-la (não é o caso de criar
outro universal depois de havê-lo descartado) a um mundo de
valores de experiência vivida que está além do imperialismo fálico

52. J. Lacan (1969). Seminário XVII, aula de 17 de fevereiro. A referência equi


vocada encontra-se na edição "oficial” do mesmo seminário, p. 80.
Gozo
sexualidade
e 159

c seu universo de significações, segredo desses místicos e dessas


místicas
feminina que
que não, não são no
desbaratam, loucos/as,
dizer dose enamorados,
dessas sutilezas da alma
as arrogâncias
"falóforas”. T rata-se de um além cujo lema é encore e que é o
direito desse avesso que é a loucura ou o avesso desse direito à
loucura sem a qual todos os direitos são desprezados.

5. Freud (L acan) ou Foucault

2005. A atualização que este livro necessita com maior urgência


- acredito - é a referência ao gozo do Outro, ao gozo no fálico que
está além da palavra, o que surge pela impotência do saber em
abrangê-lo. N estes 15 anos (1990-2005) transcorridos desde a
primeira edição de Gozo surgiu, como he rdeira dos Gay and L esbian
Studies dos anos 1980 - herdeiros, por sua vez, do grandechoque
de pensamento que representou o feminismo dos anos 1970 a
queer theory, que tomou e desenvolveu nos Estados Unidos o
trabalho de investigação da história da antigüidade clássica que
devemos a M ichel Foucault (1926-1984). A expressão intraduzível
queer theoryfoi cunhada porTeresa de L auretis53exatamente em
1990 para dar conta dos múltiplos fenômenos e experiências
subjetivas e das teorias correspondentes sobre as modalidade do
gozo que escapam à normatividade social imposta e dominantes e
que foi batizada com o presunçoso nome heteronormativida.de.
de
A heteronormatividade é a norma social que se apresenta como
a coluna vertebral das sociedades democráticas avançadas. Essa
norma não precisa ser sancionada pelo aparato jurídico.
Corresponde à ideologia e aos prejuízos dos homens brancos,

adultos, de classe
às mulheres, média, definidos
monogâmicos em sua
e centrados no orientação sexual frente
par heterossexual como
paradigma da relação amorosa e nos valores do casamento e da
família. “Pressupõe que uma relação complementar entre os sexos

53. Cf. D. Halperin.San F oucault. Cuadernos de Litoral. Córdoba (Argenti


na): Edelp, 2000. p. 135-136.
160 Gozo

é tanto uma regra natural (tal como as coisas deveriam ser)” .54A
heteronormatividade não é apenas um complexo ideológico ou, se
o for, é no sentido mais radical: o de uma ideologia que configura
os seres àqueles que se dirige, classificando-os e fazendo-os sentir-
se estranhos a si mesmos queer
( , ou seja, “raros”) quando não se
ajustam ao sistema regulador.
Queer são, então, todos aqueles que não se ajustam a essa
norma: as mulheres, na medida em que não se assumem como
“complemento” dos homens; as minorias raciais e culturais; os
indigentes e sem família; os homens e as mulheres que buscam sua
satisfação pessoal em relações e encontros fora dos padrões
(genitais, heterossexuais); os que são objeto de segregação e
desconfiança porque seu modo de gozar queer,
é alien,diferente do
esperado. O esperado não é aquele estatisticamente majoritário, pois
em vista da diversidade queer,
do temos que a maioria da população
é a discriminada. Mas a ideologia oficial impõe-se pela força de um
biopoder (Foucault) que é efeito do discurso dos bons gozantes e
dos bons pensantes. O discurso é o instrumento transindividual que
exerce sua força performativa independentemente das instâncias do
sujeito, de seu acordo ou de seu desejo.
O biopoder se manifesta criando e distribuindo rótulos de
identidade que pretender dizer, a partir da norma, o que o outro é
em relação com o que deveria ser. Os sistemas classificatórios (a
psicopatologia em pimeiro lugar, desde fins do século XIX) são
poderosos discursos criadores de identidades anormais. O fascinante
processo de produção do queer foi estudado exaustivamente por
M ichel Foucault; ele abriu novas frentes para um saber renovador
queercom o sentido
e crítico. Foucault não chegou a usar a palavra
que ela tomou anos depois de sua morte e que prevalece até hoje.
Seus cursos noCollège de F rance55 são investigaçõesexemplares,

54. T. Dean. Lacan and queer theory. In: J ean-M. Rabaté (éd.).The Cambridge
Companion to Lacan.Cambridge: Cambridge Univ. Press, 2003. p. 238.
55. M. Foucault.Le pouvoir psychiatrique (1973-1973),Les anormaux( 1973
1975),Il faut défendre la société, (1975-1976),Naissance de la biopolitique
(1978-1979) eL ’herméneutique du sujet (1981-1982). Paris: Gallimard,
Seuil, 2003, 1999, 1997, 2004 e 2001. respectivamente. O conjunto cons
titui uma obra unitária e transcendente, cujo interesse para a psicanálise é
Gozo e sexualidade 161

continuadas atualmente por muitos pensadores reunidos sob a


rubrica daqueer theory.
A hipótese básica dessa teoria é que a identidade sexual e a
identidadede gênero, da mesmaforma que todas aque las identidades
que recebem sua denominação a partir da ideologia dominante, são
total ou parcialmente construções sociais que classificam e segregam
os “diferentes”. A conseqüência política desses estudos críticos é o
de um desafio ao biopoder e suas pretensões dogmáticas de limitar
os caminhos do gozo do Outro assim definido.

Em termos
que pretende lacanianos
gozar além dapoderíamos
unificação dizer que
que se o Outro
queria é aquele
monopolítica
por parte do significante fálico. O gozo do Outro é o de quem se
distancia da norma; é um gozo suspeito, a que deveria limitar e
submeter àL ei. A L ei tem vocação de perversão enquanto nã o
reconhece outro gozo além do que vem à luz sob o sol do órgão
erétil do homem, do falo como sem blante. A ordem heteronormativa
seria: “todos ao redor do falo e de seu substituto, o nome-do-Pai”.
“Fora da igreja não há salvação” se dizia antes; “fora do nome-do-
Pai” tampouco, dir-se-ia hoje com um tapete falso e arcaicamente
lacaniano.
A teoria queer está ameaçada pelo seu próprio êxito.As
publicações se multiplicam, seus expositores são convidados para
desenvolver suas posições em todos os fóruns, as livrarias têm
prateleiras especiais paraesses livros, a academia - longe de isolá-
la - oferece-lhe um lugar proeminente. Seu impulso irreverente se
desvanece pelo surgimento de uma nova normatividade e pela
cooptação na distribuição do poder, pelo menos no intelectual.
Ninguém ou quase ninguém se faz defensor aberto do pensamento
straight, que passou a ser Não se terminou
politicamente incorreto.
com o sexismo, com o racismo nem com a homofobia, mas se
O é agora o de
conseguiu que esses devem ser ocultados.closet
quem se trai a si próprio com lapsos c sintomas que delatam sua

evidente, ainda que as considerações feitas pelo autor nem sempre sejam
"justas”. Cf. J. Derrida, “Être juste avec Freud”, inP enser la foli e. Essais
sitr Micliel Foucault. Paris: Galilée, 1992, p. 139-195, um texto que subli
nha ainjustiça na avaliação freudiana de Foucault.
162 Gozo

resistência a este conjunto de minoria que continua sendo o objeto


de sua repulsa. Não é que os bem pensantes eos bem gozantes

tenham ram
aprende repriamsupri
ido -mno
i-lassentido psicana
56lítico - suas perdas; é que
do discurso.
Desde o princípio os impulsionadores desse movimento
teórico e político estavam divididos quanto ao lugar que deveriam
dar, dentro de suas concepções, ao pensamento psicanalítico em
geral e ao lacaniano em particular. M uitos, particularmente nos
Estados Unidos, consideram que, além das discutíveis afirmações de
F reud e de L acan, eles não poderiam prescindir do aporte
psicanalítico e de valorizar a utilidade que a teoria e a prática da
psicanálise
assim comotêm nospara
anoso 1970
sucesso de seus
muitas objetivos.
pioneiras Por outro lado,
do feminismo
consideraram que Freud era maleo chauvinist pigpromotor das
desgraças das mulheres, existem vários autores que se lançaram e
ainda se lançam contra Lacan como seele tivesse sido umevangélico
da heteronormatividade, alguém que pretendia condenar as
perversões em nome de princípios patriarcais e discriminatórios.
Estes últimos são os que insistem em se opor a Foucault contra um
L acan a quem satanizam como o adversário. A luta em torno da
queer theoryé apaixonante.
psicanálise no seio da
Gostaria de poder dar conta das posições em jogo. Entre elas
o mais recente e decidido opositor
à teoria e à prática da psicanálise
é Didier Eribon, que dá título ao nosso último item deste capítulo:
T emos que eleger: é Freud (L acan) ou Foucault. É Foucault
ou a psicanálise. Creio que toda a grandeza do projeto
foucaultiano consiste precisamente no fato de que ele procura
destruir a teoria psicanalítica do psiquismo individual para opor-
lhe uma teoria da individuação como efeito do corpo submetido,
do corpo di sci pl inado.57

56. Assim, o presidente Fox, do M éxico, pôde declarar, em maio de 2005,


que “os mexicanos nos Estados Unidos aceitam trabalhos que nem sequer
os negros querenv'. O escândalo assumiu proporções internacionais, e ape
sar disso o arrogante “estadista” se negou a pedir as desculpas que se lhe
exigiam e se limitou a dizer que havia sido mal interpretado.
57. D. Eribon. Êchapper à la psyclianalyse. Paris: Léo Scheer, 2005. p. 86.
Gozo e sexualidade 163

Para Eribon, biógrafo e amigo íntimo de Foucault, “o


psiquismo do qual a psicanálise se ocupa é um produto da sociedade
disciplinária e a psicanálise é uma engrenagem da tecnologia
disciplinária” (ibid.). Esta posição extrema é vista com simpatia
também em certos círculos lacanianos. Para J ean Allouch:
... os psicanalistas não denunciam os erros; calam-se e se
espantam, fazendo como se Foucault nos os houvesse
comprometido, como se ele não houvesse articulado
publicamente uma crítica razoável da psicanálise, algo que
equivaleria a uma espécie de oração fúnebre [reprimenda] para a
psi canálise.5*1
Se a psicanálise é o que Foucault disse - continua A llouch -
está acabada e isso “inclusive desde antes da morte de L acan”
(ibid.). A ssim, reiterando umafrase anterior, acrescenta esta fórmula
cortante : “A psicanálise será foucaultiana ou deixará de ser; isto quer
dizer que temos a obrigação de fazer com queL acan se reúnacom
Foucault” (idem, p. 179). Mais ainda: “Foucault nos precedeu e nós
não temos nada melhor a fazer, com Lacan, do que alcançá-lo”
(idem, p. 173).
V emos, então, a psicanáli se se enfrentando com quem que r
destruí-la e tendo que proteger-se de quem quer salvá-la seguindo
a ordem de acompanhar Foucault. Sustentaremos nas páginas
seguintes que todos eles partem de um erro de perspectiva e de um
desconhecimento de que a psicanálise, tanto em Freud como em
L acan, é o fundamento irrenunciável e o antecedente direto do qual
a teoriaqueer deriva como uma conseqüência lógica e necessária.
Também desconhecem - no sentido da recusa da realidade - o que
falta em Foucault, o “esforço mais” que havia permitido a ele romper,
radicalmente, com o sistema heteronormativo.
Como disse Tim Dean:
Pode indicar que, ainda que a teoria queer remeta sua
genealogia intelectual a M ichel Foucault, ela, na verdade, começa
com Freud, especificamente com suas teorias da perversidade
polimorfa, a sexualidade infantil e o inconsciente. O “retorno a
F reud” de L acan impli cou redescobri r tudo aquil o que é mai s

58. J . A llouch. Le sexe du maître,p. 169.


164 Gozo

estranho e refr atári o - tudo aqui l o que co nti nua sendo alheio
a nossos modos normais e de sentido comum no pensamento -

acerca da a subjetividade
perspe ctiv humana.
anglo ame ri cana, f az a Isto, desde
psi can ál i se uma
de L aca n
parecer bastante queer (...) A psicanálise lacaniana pode
aportar munições que contribuem para a crítica queer da
heteronormativi dade.59

Essa críticaqueercomeça, historicamente, com a extensa nota


que F reud acrescenta aos “T rês ensaios sobre a teoria da
sexualidade” em 1915:
A investigação psicanalítica opõe-se terminantemente à
tentativa de separar os homossexuais dos outros seres humanos
como um grupo de índole singular (...) Sabe quetodos os homens
são capazes de eleger um objeto de seu próprio sexo e que de fato
o tenham consumado no inconsciente (...) A psicanálise
considera melhor que o srcinário a partir do qual logo se
desenvolvem, por restrição para um ou outro lado, tanto o tipo
normal como o invertido é a independência da nomeação de
objeto a respeito do sexo deste último, a liberdade de dispor de
objetos tanto masculinos quanto femininos, tal como se pode

observar
históricas.naNoinfância,
sentido em
da estados primitivos
psicanálise, então, e em nem
épocas pré-
sequer o
interesse sexual exclusivo do homem pela mulher é algo óbvio,
mas um problema que requer esclarecimento.60 (Gri fos meus)
Freud sabia do que falava. Ninguém ignora que essa posição
teórica é o resultado da análises de suas próprias tendências e dos
saldos de sua relação com Fliess.
Não cansarei o leitor com citações que possivelmente já sejam
conhecidas. Sabemos que quando se perguntava a Freud sobre a
possibilidade de transformar a orientação sexual de alguém ele dizia
que era muito difícil, mediante a psicanálise, alguém passar da
homossexualidade para a heterossexualidade e vice-versa. Na
conhecida carta de193661 à mãe norteamericana preocupada com

59. T. Dean. Lacan and queer theory, p. 238.


60. S. Freud (1905).Obras completas,v. VII, p. 132-133.
61. S. Freud.E pistolado (1891-1939). Barcelona: Plaza y J anés. 1970. v. II.
p. 170.
( io/.o e sexualidade 165

,i homossexualidade de seu filho, depois de censurá-la por se negar


;i chamar a coisas pelo seu nome, dizia-lhe sem rodeio que não havia
razões para se envergonhar dessa condição que não supõe vício nem
degradação alguma e que não se pode classificá-la como
enfermidade, mas como uma variante da função sexual. E certo
que, como no traçado sobre a psicanálise leiga, a maioria dos
psicanalistas seguiu uma política contrária às posições de Freud e
sabe-se que sua filha A nna, em 1956, impediu que uma jornalista
inglesa reproduzisse essa carta noThe Observer. Todavia há, em
muitos países, psicanalistas que continuam pensando que a

homossexualidade
gays é uma enfermidade e que se deveria proibir os
de exercer a psicanálise.
L acan, que é censurado por haver sustentado em seus
seminários I (1953) e VIII (1960) que a homossexualidade era uma
modalidade da perversão, foi um admirador da obra de Foucault e
alguém que nunca fez, em sua trajetória institucional, outra coisa que
se opor a qualquer intenção de segregação dos psicanalistas em
função de suas preferências sexuais. A palavra “perversão”jamais
conteve, para ele, uma qualificação moralizante e foi pensada sempre
como uma constatação clínica que não devia se manchar com
valorizações que vulnerassem a neutralidade do analista. Lacan esteve
muito atento aos progressos conseguidos pelo feminismo na luta
pela igualdade e é evidente que suas teses sobre a feminilidade,
apresentada no Seminário Encore (1972-1973), são sua resposta às
críticas que se faziam às teses freudianas desde o M ovimento de
L iberação Feminina. Atrevo-me a dizer que suas concepções sobre
a repartição dos falantes entre homens e mulheres e suas teses sobre
o gozo suplementar são a contribuição máxima da psicanálise à
gozologia (erotologia) feminina na história da humanidade. A partir
delas o conceito de perversão mudou de signo e por isso podemos
sustentar que a perversão é a crença de que existe apenas um gozo,
o fálico, ao mesmo tempo em que desmente a possibilidade de um
gozo Outro.
Igual a Freud, cabe assinalar que a posição nítida do mestre
encontrou resistências entre seus mais próximos colaboradores.
A inda hoje é possível ler que alguns deseus seguidores- e não dos
166 Gozo

menos importantes - como é o caso de Charles M elman/’2 em que


pese certas denegações incidentais, argumentam sobre a

homossexualidade desde tomadas de posição inequivocamente


homofóbicas:
E verdade que o homossexual não elegeu seu destino
[custa-nos admiti-lo e, ainda assim, que triste destino /] e que as
mesmas forças que em outros conduzem à heterossexualidade
revelam neles, às vezes para profunda surpresa do sujeito e sem
que possa evitá-lo [ tal como, claro, ele mesmo gostaria de ter
podido escolher], que ele estava do outro l ado (sic). A penas a
religião pode condenar a desonra ou a exclusão [não nós, os
psicanalistas, que estamos excluídos desse privilégio]. Dito isto,
parece possível formular um juízo ético, que partiria menos da
necessidade geral de segurança narcisística induzida por uma
sexualidade diferente e que formularíamos a partir desta pergunta:
a homossexualidade dá ao sujeito uma maior liberdade a respeito
desta ordem da linguagem do que pelo viés do inconsciente nos
determina? [quem falou de maior ou menor liberdade ante a
linguagem em função das preferências sexuais?]. A penas pode-
se responder negativamente. A perversão [assimilada, se com
uma valoração pejorativa, à condição de homossexual] é um
sistema de constrangimentos e de dependências ainda mais
rígido do que aquele que ela impugna pela sua insuficiência, seu
caráter prosaico ou sua estupidez [Deste lado somos isso, mas
“do outro lado” nos ganham], É por isso que não se pode aceitar
que a perversão homossexual seja portadora de emancipação;
parece que uma invasão pela ordem fálica tem incidências
essencialmente conservadoras, mesmo quando se oponha ao mal
gosto estabelecido.

Estas são as linhas finais de um grande artigo sobre a


homossexualidade
rigorosamente desde
clínica uma perspectiva
e lacaniana. que
O autor não se pretende
deixa de lamentar que
na homossexualidade masculina como na feminina encontra-se uma
sentença inumana do pai em todas as figuras que pudessem
representá-lo; ódio, chega a dizer, que comumente é transmitido por

62. Ch. Melman. Dictionnaire de la psychanalyse.Verbete “Homosexualité”.


Paris: Albin Michel, 1997. p. 276-282.
Gozo e sexualidade 167

uma mãe que encontra no filho a forma de vingar-se por sua


castração.
Reproduzi fiel e amplamente as opiniões de M elman paradeixar
claro que as críticas de Foucault à psicanálise não são infundadas,
mas não podem se referir à psicanálise em geral, mas a certos
paladinos da norma que se distanciam explicitamente do discuro de
Freud e L acan: a delfina efetiva no primeiro caso, Anna Freud, e o
delfín frustrado no segundo, Charles M elman. Não obstante, isso é
0 anedótico. O que verdadeiramente importa é a contribuição da
psicanálise ao tema e a política que a prática e a teoria da psicanálise
induzem. Nesse sentido é que abraço a tese citada de Tim Dean
sobre o caráter pioneiro do pensamento freudolacaniano para uma
autêntica teoriaqueer. E não é que a psicanálise deva correr atrás
de Foucault com a esperança de alcançá-lo (A llouch), mas que é
Foucault quem, ao renegar os desenvolvimentos de Freud e L acan,
cai em formulações ambíguas que turvam os contundentes
resultados de suas ricas investigações arqueológicas e históricas.
A que me refiro? À ignorância nada inocente - de muitas coisas
Foucault poderia ser acusado, mas jamais de ignorância e ingenuidade
- e ao silêncio sobre apulsão de morte em Freud e do conceito de
gozo emL acan, tudo si so que, segundo demonstramos no capítulo
1deste livro, obrigava a reescrever a história da psicanálise para nela
inscrever quedas que dão sentido aos passos prévios do
descobrimento freudiano.
Iniciando por Freud, assinalamos, além disso: a) suas já citadas
idéias sobre a homossexualidade, totalmente contrárias a qualquer
heteronormatividade; b) a afirmação da perversão polimorfa como
berço da subjetividade que subjaz em todos os seres humanos ao
longo de toda sua vida; c) a noção de que todas as pulsões são

parciais e aspiram
sempre adiante na uma satisfação
busca de novasque não encontram
metas; e quedeimpele
d) a superação toda
perspectiva biológica ou biologizante para entender a sexualidade
humana; e) a afirmação do caráter transgressivo da pulsão que não
se ajusta com as metas do princípio do prazer, mas que as
prejudicam num percurso que leva o sujeito “além”; f) a tese de que
essa pulsão de morte é a essência da pulsão que sempre está mais
ou menos ligada às pulsões de vida; g) o caráter repetitivo da
168 Gozo

insistência pulsional; e h) a (condenação) de toda possibilidade de


complementaridade através de uma genitalidade alcançada (sempre
alvo dos sarcasmos de L acan); enfim, tudo na teoria de F reud
conspira contra uma leitura normativae defende a essência da
psicanálise: escutar o que é dito em cada análise, em cada minuto
do discurso do paciente, renunciando e contestando todo saber
prévio. A teoria das pulsões e de sua especificidade transgressiva,
repetitiva, masoquista ao máximo, é a base para começar a pensar uma
teoria queer, contrária à assunção de identidades provenientes do
Outro.
A teoria queer éque está ameaçada pelo desconhecimento da
psicanálise quando acredita que uma identidade gay ou lésbica ou
sadomasoquista ou que quer que seja, pode ser um impedimento
contra a heteronormatividade, sendo que essas identidades procedem
de classificações e juízos elaborados pelo Outro. Não é invertendo
o signo da discriminação que ela é derrotada. A investigação
psicanalítica é uma ferramenta essencial para a desconstrução das
categorias normativas. Por que? Porque permite revelar em cada
caso a singularidade do desejo, base para a formação posterior de
movimentos comunitários onde se juntam, sem se confundir, os
sujeitos rodeados por uma taxonomia que sempre é um efeito da
hostilidade do outro, hostilidade que se disfarça em objetividade e
que pretende fazer parecer o que é diferente como se fosse disforme,
cambembe, digno de ser corrigido.
E do lado de L acan? Lacan aportou, além de uma releitura
desmistificadora e anticonvencional de Freud, os conceitos que
podem servir de base para uma teoria irrecuperável pelo discurso
oficial. Concretamente, a impugnação das metas de “maturidade
genital” que primavam no discurso analítico quando ele iniciou seu
ensino e - o mais importante, aquilo no qual insistiremos - a
promoção do conceito de gozo ao lugar central da reflexão analítica.
O gozo como - insistimos - o pólo oposto ao desejo. Entre os dois,
entre gozo e desejo é que se joga a totalidade da experiência
subjetiva. Em ambos os casos trata-se de um sujeito imerso nas
redes da linguagem, cindido e separado do objeto que é causa de seu
desejo e evocador do gozo proibido. Como conseqüência dessa
onipresença da dimensão gozanteda existência é que se sucedem as
Gozo e sexualidade 169

teses lacanianas que servem de obstáculo intransponível para o


imperialismo fálico que marca nossa cultura e impele os sujeitos a
viverem sob as grades que canalizam o gozo pelas valetas que o
poder cava.
O monolitismo fálico nas fórmulas lacanianas da sexuação é
todo o contrário de uma prostração ante os altares de Príapo. Desse
monolito surge a tese de que a mulher é não-toda com relação a ele
(Ele) e que ele nada pode a não ser sonhar com organizar o mundo
sob sua égide, que ele é, por sua vez, não-todo porque elas (não há
Ela) existem e portam a mensagem de um gozo suplementar,

irredutível à linguagem,
imperialismo arrogante que sentido mas ainexplicável
conduziu voz cantantenos
natermos
história.doDaí
que L acan termine falando da perversão, em uma linha coerentecom
a freudiana, em termos de seu valor civilizatório e inovador, sem que
isso implique criar uma nova ética de signo inverso à que dominou
o discurso oficial, o do senhor.
Por isso é que a conclusão de Lacan, conseqüência de sua
invençãodo objeto de quea relação sexual não existe,
é a base
para toda teoria queer. Não há qualquer relação normal ou natural
entre os sexos. Seus gozos não são complementares e o único
acordo possível entre
heretogeneidade eles
que nãonemécomeça a partir
biológica nem do reconhecimento
A s diferenças da
natural.
culturais existem - que ninguém duvide disso - e elas são suscetíveis
de desconstrução.M as a diferença nos dois campos “a pa rte homem
e a parte mulher dos seresalante
f s”63não é uma ni vençãoda cultura
- sem que por isso se remeta a uma diferença biológica não é
suscetível de desconstrução,64não é, como alguns pretendem, “um
binarismo que é uma produção sexista”,65 uma construção que
poderia ser destruída na medida em que foi fabricada pela cultura.
Na perspectiva da psicanálise a contestação da divisão sexual em
homens e mulheres tem um nome: desmentidada diferença entre os
sexos (“já o sei, mas é assim”).

63. J . Lacan (1973). Le seminaire. Livre XX. Encore, p. 73-74.


64. J. Copjec. Read my Desire. Lacan Against ihe Historicists.Cambridge
(M ass): M I T Press, 1994. Especialmente o notável capítulo 8 (p. 201
236) “Sex and the euthanasia of Reason”.
65. D. Halperin.San F oucault, p. 67.
170 Gozo

O trabalho político ainda a ser realizado nesse campo é imenso


e existem multidões que militam nesse sentido e conseguem

diariamente vitórias:
minorias sexuais igualdade
sequer jurídica;
pela igreja não discriminação
ou exército; das
direitos à reprodução;
casais e casamentos homossexuais reconhecidos pela lei; famílias
monoparentais; mudanças na legislação sobre o nome dos filhos que
antes impunha o patronímico; paridade nos postos de poder entre
homens e mulheres; abolição da cultura closet
do para os que vivem
fora danorma hetero etc. A psicanálise não pode senão aplaudir esse
movimento contrário aos ideais sociais milenares de adaptação a
normas repressivas; muitos são os que encontraram em sua própria
análise o caminho para se manifestar abertamente nesse sentido.
M as a exigência da psicanálise é mais radical e vai além dessas
conquistas necessárias que estão fortemente reconhecidas na
trajetória individual e teórica de Foucault como historiador e
desconstrutor das categorias segregacionistas, como denunciante
dos abusos do biopoder.
E justamente esse o valor da noção de gozo que Foucault
pretende desconhecer. Vejamos um parágrafo muito conhecido e
chave em nossa argumentação:
A sexualidade é uma figura história muito real, e ela mesma
suscitou, como elemento especulativo requerido pelo seu
f unc i onamento , a noção de sexo. N ão se deve acredi tar que
dizendo sim ao sexo se diga não ao poder; segue-se, pelo
contrário, o fio do dispositivo de sexualidade. Se mediante uma
inversão tática dos diversos mecanismos da sexualidade se quer
fazer valer, contra o poder, os corpos, os prazeres, os saberes em
sua multiplicidade e sua possibilidade de resistência, convém
primeiro libertar-se da instância do sexo. Contra o dispositivo da
sexualidade, o ponto de apoio do contra-ataque não deve ser
o sexo-desejo, mas os corpos e os prazeres.66 (Gri fos meus)

O texto deFoucault é de 1976. Lembramos queé de 1958 a


citação do seminário de L acan que declaramos como ata de batismo
do gozo, aquela onde sedizia que até então o ensino de L acan havia

66. M. Foucault. H istoria de la sexualidad. I - La voluntad de saber. Méxi


co: Siglo V eintiuno, 1977. p. 191.
Gozo e sexualidade 171

girado em torno do desejo, mas que a partir desse momento deveria


ser levado em consideração o “pólo oposto” que é o gozo. Já
sabemos que a partir de então o ensino lacaniano girou em torno da
contraposição do gozo e o desejo e que encontrou seu ponto decisivo
de inflexão quando, em 1962, no seminário sobre a angústia,
introduziu a noção de objeto@ com mais de gozo.O “pólo oposto”
implica que o desejo foi considerado a partir daí uma barreira no
caminho do gozo. Por essarazão nossaobra desde 1990 tomava a
formulação de L acan de 1960, quando afirmava queapenas o amor
pode fazer com que o gozo condescenda ao desejo, e a invertia na
última linha
postular que- apenas
que també
om podepode
amor rá ser fazer,
lida nesta
por nova edição
sua vez, - ao
que o desejo
condescenda ao gozo. Pois é a instância analítica que permite levar
o sujeito a confrontar-se com seu desejo, momento em que a
experiênca deverá ser interrompida para permitir ao sujeito procurar
os caminhos pelos quais poderá transitar para que seu desejo abra
caminho ao gozo. Isto não é Foucault contra-atacando em nome
“dos corpos e dos prazeres”; isto é L acan trabalhando bravame nte
nessa direção durante mais de vinte anos (1958-1981).
O problema é que Foucault chega a problematizar o sexo como
caminho ao gozo e isso o compromete pelas vias de uma nova ética,
desconhecida pela maioria dos foucaultianos, mas que não passou
despercebida pelos leitores mais lúcidos: uma ética comprometida
com o ascetismo e com a desconfiança, quando não à refutação da
sexualidade (“o dispositivo da...”) considerada, por sua vez,
mecanismo do biopoder.
É certo que não devem ser entendidas ao pé da letra as afir
mações de Foucault que parecem dizer o contrário do que ele quer
realmente dizer. Mas como sabê-lo? Estaremos dispostos a admitir
com ele que a sexualidade (“o dispositivo de...”) é repressiva, des
pótica, destinada a distribuir aos indivíduos submetendo-os a
hierarquias? Não achamos suspeita a promoção das “artes da exis
tência”,67 pelas quais devemos entender “as práticas sensatas e
voluntárias por meio das quais os homens não apenas fixam regras

67. M. Foucault. Historia de la sexualidad. II - El uso de los placeres. M éxi


co: Siglo Veintiuno, 1986. p. 313-314.
172 Gozo

de conduta, mas buscam transformar-se a si próprios, modificar-


se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que apresenta
certos valores estéticos e responde a certos critérios de estilo”? Não
technologies ofthe self
são estas artes, estas .,68este “cuidado de si”,
esta “estética da existência”, uma continuação e uma culminação das
aspirações do senhor que não reconhece a servidão necessária im
posta pelas pulsões e por seu caráter linguageiro? Não caem sobre
os ombros dos sujeitos o fardo de novos ideais que conservam
gatopardianamente aquilo que pretendem mudar? Quando ouvimos
um de seus mais autorizados continuadores, Paul Veyne, dizendo:
Podemos adivinhar o que resulta do diagnóstico [de
Foucault]: o eu (moi), que toma a si mesmo como uma obra a
realizar, podia sustentar uma moral não baseada na tradição ou na
razão; como artista de si mesmo, gozaria dessa autonomia da qual
a modernidade j á não pode presci ndir (...) J á não é necessária a
revolução para começar a nos atualizarmos: o eu é a nova
possibi lidade estratégica.69 (grifos de P. V eyne)
não nos estremecemos pensando que voltamos ao reino da ilusão de
um eu autônomo, dono de si, superado etc.? E assim sucessivamen
te com ênfase na ascese, a insistência em “resistir à sexualidade”,
a ordem de “liberar-se da instância do sexo”, a referência à desse-
xualização (claro, entendida comodesgenitalização)etc. As citações
seriam supérfluas. Não em vão temos ouvido Jean A llouch susten
tar que o mais importante filósofo no ensino de L acan era... Plotino,
depois de dar um seminário na cidade do México sobre o tema do
amor e no qual a palavra “gozo”não foi pronunciada uma única vez.7(1

68. L. Martin (ed.).Technologies of the Self. A Seminar with Michel F oucault.


Amherst:
69. Paul Veyne.M assachus ettsFoucault
L e dernier Univ. Press, 1988. Critique, Paris, n. 471-472,
et sa morale.
p. 939, 1986.
70. A o interrogá-lo em uma cordial conversa sobre essa exclusão, respondeu-
nos que preferia não falar do gozo porque “os millerianos” haviam se apo
derado da palavra em questão. Curioso critério epistemológico! Para não
ser injusto com nosso amigo, digamos que no seu livro Le sexe du maitre
(op. cit.) há uma sábia e certeira exposição sobre o objeto @ como mais
de gozo e do caráter masoquista de todo gozo (p. 205-240) que comparti
lham com o sentido e com a letra de nossas formulações de 19 90.
Gozo e sexualidade 173

Talvez agora possamos compreender o título deste item. É


Freud (L acan) ou Foucault pela insistência deste último em bagunçar
os conceitos fundamentais da psicanálise (transferência, pulsão,
inconsciente e repetição; vale a pena recordar) para reimplantar
novos ideais, para promover uma nova ética que pretende superar
a antiga que levou à liberação da sexualidade dos traiçoeiros gabinetes
da ciência oficial (Ferenczi, op. cil.) e a um trabalho com intenção
de fazer com que o sujeito procure caminhos pelos quais o desejo
pode condescender ao gozo.
Tampouco cabe fechar os olhos ante o grande escotoma de

Foucault
feminino. que tem as
Na obra do dimensões
historiador de uma semicegueira:
e desconstrutor o gozo
os prazeres
aparecem como indiferenciados e as referências concretas se dirigem
sempre ao prazer dos homens, que eles podem alcançar com
homens, mulheres ou adolescentes. Um capítulo inteiro História
da
da sexualidade71 intitula-se “A mulher”, sem qualquer referência à
sexualidade feminina. Todo discurso gira em torno do casamento e
do lugar que a mulher ocupa como guardiã do lar do homem,
obrigada a prestar-lhe fidelidade: “O adultério era juridicamente
condenado e moralmente censurado pelo entendimento da injustiça
que o homem fazia àquele cuja mulher seduzia” (idem, p. 159). Que
ninguém espere encontrar uma linha sobre a mulher como sujeito do
“prazer”, muito menos como gozante. Raras vezes aparecem na
obra escrita e nas múltiplas entrevistas que concedeu, referências
explícitas aos movimentos intelectuais e políticos que agitavam a
sociedade nos últimos 15 anos da vida de M ichel Foucault. Por que?
Por ser a categoria de feminilidade uma invenção sexista? Para evitar
cair nas armadilhas do dispositivo da sexualidade sobrevalorizando
o sexo como fonte de “prazer” (já que não se falava de gozo)? Por
uma negativa geral em diferenciar, já que a distinção seria cúmplice
da segregação? Inclino-me a pensar “mal”, a acreditar que Foucault
não podia admitir outro prazer sexual que o masculino, homo ou
hetero; isso é secundário. Não sei o porquê deste desconhecimento;
nego-me a fazer psicanálise aplicada. Seu hagiógrafo disse:

71. M. Foucault.Historia de la sexuatidad. Hl- La inquietud de sí. México:


Siglo Veintiuno, 1990. Gap. V, “L a mujer”, p. 137-193.
174 Gozo

Foucault não era um monstro antifeminista como o figuram


seus detratores. Pelo contrário, trabalhava com muito entusias
mo com suas colegas mulheres, apoiava o surgimento de
organizações políticas de grupos marginais, incluindo o das mu
lheres [até isso!] e tinha a intenção de queLiberation lhe desse
voz a várias tendências emergentes dentro do movimento femi
nista. T ambém parti ci pou, em menor pr oporç ão, na luta pelo
direito ao aborto na F rança.72

Falta sublinhar a denegação implícita em cada um dos


enunciados. E é suficiente ler as várias (três) biografias de Foucault

para
e seusaber do sobre
silêncio despojamento de suas dos
a especificidade referências
prazeressobre o feminismo
femininos e das
práticas eróticas do sexo que não o seu.
Esta crítica a Foucault nunca poderia desconhecer a
importância capital de seus estudos antes e depois História
da da
sexualidade.Resumiremos nossas teses unindo-nos às conclusões
do já citado artigo de Tim Dean:7-1o conceito lacaniano de gozo é
uma ferramenta necessária para qualquer propósito de modificar o
campo epistemológico da vida dos seres que falam, de suas vidas
como realidades corporais. Infelizmente a maneira como Foucault
abordou o tema “dos prazeres”- desconhecendo sua diferença e
oposição ao gozo - levou muitos teóricos queer e também alguns
psicanalistas a ver com otimismo o prazer, como se ele não estivesse
emaranhado pelo seu “além” e pudesse se expandir sem encontrar
outras barreiras que não as culturais àquelas que haveria de
desconstruir. Nessa utopia foucaultiana pareceria que os obstáculos
à felicidade sexual dos corpos fossem um simples plano mal
concebido proveniente do exterior; como se não existissem barreiras
internaspara o prazer, inerente à montagem linguageira da pulsão.
E absolutamente ingênuo supor que o sexo possa chegar a ser apenas
uma questão de prazer e afirmação de si, de cuidado e de domínio,
no lugar de ser o ponto onde necessariamente um se encontra com

72. D. Halperin. San F oucault, p. 182-183.


73. T. Dean. L acan and queer theory, p. 251.
Gozo e sexualidade 175

a negatividade e com o gozo como uma busca, com indícios


masoquistas, de um objeto do desej o que seescapa. Isso é o que
Freud entendeu com a idéia que descartam Foucault e a maioria dos
que se inspiram nele: a pulsão de morte. Não, não devemos alcançar
um Foucault que está adiante da psicanálise. Devemos entender que
é a teoriaqueer que será ou não lacaniana. O trabalho ainda a ser
realizado não é excessivo: basta incorporar a categoria psicanalítica
de gozo como além do prazer; é o que permitirá à teoria passar da
impotência à impossibilidade. O preço é a renúncia ao messianismo
e à soteriologia.
IV

Deciframento do gozo

1. O gozo está cifrado

A bordarei, aqui, um momento crucial, de virada, no ensino de


L acan, um momento que requer um trabalho especial para elucidar
os antecedentes que têm em sua produção e para extrair as
conseqüências que acarreta para a prática da análise. Refiro-me à
expressão que figura no textoTelevisão:
O que Freud articula como processo primário no incons
ciente - isto é meu, mas quem procurar encontrará não é algo
que se cifra, mas que se decifra. Eu digo: o próprio gozo. Neste caso
ele não constitui energia e não poderia se inscrever como tal.1

A proposição étaxativa e definitiva. É tão imponente o queela


mobiliza e desloca na teoria que o comentário do texto obriga a uma
releitura do ensino anterior de L acan e a uma reflexão do texto
freudiano em seu conjunto. Esta tese condensa e concretiza uma
nova concepção teórica da psicanálise, solidária com as demais
modificações que, na mesma época, se apreciam na sempre inquieta,
inquietante, revisão lacaniana de Freud.
Que me perdoem a ênfase na literalidade e o afã exegético
limitante na repetição: o que está cifrado é o gozo, é por isso que

1. J. L acan (1970),Autres écrits (A.E.). Paris: Seuil, 2001, p. 522.


178 Gozo

pode ser decifrado. Quem o decifraria? Um bom decifrador: o


processo primário (no singular?) articulado por Freud, ou seja, o par
da condensação e deslocamento. É uma expressão diáfana, não se
presta a mal-entendidos: o processo primário, o inconsciente, não
é cifra, não é ocultação, é começo de desvelado aletheia
( ). Ele é
agora e sempre deciframento, passagem do cifrado, da letra, do
escrito, do codicilo, da partitura, para outro terreno, o da palavra,
o do discurso. A ponta para um outro que lhe outorgará uma
significação, que o incluirá nas redes do sentido, possibilitará que seja
imaginarizado, relacionado com um eu do enunciado. Indica-se
assim uma passagem do indizível [S (A )] para a articulação
significante [s (A )]. A ssim, o processo primário serve para a
passagem do gozo ao discurso. Em outras palavras, o inconsciente
freudiano, que opera por condensação e deslocamento, é o processo
pelo qual o gozo, cifrado, é decifrado e transladado para o vínculo
social, para a palavra articulada e dirigida a alguém, pronta a
carregar-se de sentido em quem escuta. Pronta a mal-entendido.
O gozo é assim transplantado, exilado do corpo para a lingua
gem: “Fazer passar o gozo para o inconsciente, ou seja, para a con
tabilidade, é com efeito um maldito sacré)
( deslocamento”.2Valham
as redundâncias: o inconsciente não é o lugar srcinário do gozo que
é gozo do corpo. É desde esta pátria que o gozo deve tomar o ca
minho do exílio e passar a habitar no discurso e recuperar-se nele.
Retorno impossível e eterno retorno. O sujeito constituir-se-á no
ostracismo, indo do Um originário ao Outro da palavra. Já não ha
verá para L acan espaço no qual sonhar com “a pa lavra plena e a
palavra vazia na realização psicanalítica do sujeito”, título do primeiro
item do discurso deRoma.3As palavras faltarão daqui em diante
para que a verdade possa se r toda dita. Verdade do Um, gozo, e ver
dade do Outro da linguagem e da cultura, saber absoluto, as duas
esquartejando-se reciprocamente. Entre ambas, o sujeito da psica
nálise, partido, barrado, varrido por sua dupla pertinência.
A experiência da psicanálise tem como ponto de partida a
palavra, a mansão do dito (a referência a Heidegger é óbvia), um

2. Idem, ibidem, p. 420.


3. J. L acan (1953). Écrits. Paris: Seuil, 1966, p. 247. Em espanhol, Escritos
1. México: Siglo XX I , 1984, p. 236.
Deciframento do gozo 179

‘deciframento dedit-mensionsignificante pura”.4Esse é o campo


fenomênico reconhecido desde um começo como operador do
primeiro retorno deL acan a Freud, ao terreno da“verbali zação”. É
neste campo que o criador da psicanálise tropeça com um motor
invisível da articulação e do jogo significante, de um “algo” inédito
que banha a palavra e se manifesta como re-torsões da própria
articulação palavreira, “tecido de equívocos, de metáforas, de
metonímias”.5Freud lhe dá um nome mítico, libido e L acan outro
nome igualmente mítico: lâmina(lamelle). A palavra de Freud perde
algo de seu poder evocador em português, confome já dissemos no
primeiro capítulo: “libido” é um vocábulo que pede ser pensado em
uma língua cm que o amor se diz Liebe. E o mito freudiano. O de
L acan éo da emanação de uma baba que sedesprende do orpoc e
recobre o campo vital de um sujeito. As palavras giram em torno
desta coisa inconcebível “que Freud supõe no limite dos processos
primários”6(aqui sim no plural) e que nada mais é do que o próprio
gozo. A articulação significante, o trabalho do inconsciente, bordeja,
delimita, des-linda (?!) esse gozo que estava cifrado, ignorado,
sepultado em um corpo exterior à palavra. O gozo subjacente,
substancial, suposto pela experiência analítica de Freud em diante.
A decifrar.
Gozo do exílio e da nostalgia pela maldição (necessária) de
habitar na linguagem, fora do paraíso. Esse gozo sem o qual seria
inútil o universo,7 mas que não se alcança, e sim se evoca, se
circunscreve, se deslinda, se convoca, mantém-se a uma distância
prudente por meio de metáforas que prendem ao sentido e de
metonímias que o postergam. Pois sim, a relação da palavra com o
gozo é o que faz da psicanálise uma ética do bem dizer.
Um deciframento e um maldito deslocamento do Um ao Outro.
Do gozo ao desejo que é, como sempre, desejo do Outro. E que,
também comosempre, como sempre em Lacan, é falta a ser, nostalgia

4. J. L acan (1970). A. E., p. 515.


5. Idem, ibidem.
6. Idem, ibidem.
7. J. L acan (1960). Écrits, p. 819. Em espanhol,Escritos 2, México: Siglo
X X I, 1984. p. 800.
180 Gozo

de um passado mítico a ser recuperado em um futuro não menos


ilusório, mediante o fantasma vivido no presente. O inconsciente é,
então, um dizer que se diz (enunciação) a partir daquilo que do gozo
se inscreveu. Inscrição de uma escritura quesuporta um a e muitas
leituras. O gozo se adere no dizer queo decifra. Mas o sujeito não
sabe e não quer saber nada de tal transcrição. Com as palavras de
1973, “o inconsciente não é que o ser pense (...) é que o ser,
falando, goze e não queira saber nada mais sobre isso”. Nesse dizer,
o gozo “consiste (...) nos desfiladeiros lógicos”8pelos quais o
discurso atravessa.9Os processos primários não realizam o desejo
(como poderiam, se seu resultado é alucinatório?), mas satisfazem
um sujeito que o ignora, quando utiliza recursos que são os de sua
alíngua aí onde pensa que obedece à língua dos lingüistas e dos
gramáticos. Cada um com seu modo peculiar de esvaziar os
tesouros de alíngua srcinária, linguageira, lingüistéril. E aesse modo
singular de viver nas margens da língua chama-se estilo. Pelo que
se pode aventurar esta outra definição - mais uma-do inconsciente:
é o estilo de cada um para decifrar seu gozo, para filtrá-lo pelos
desfiladeiros lógicos que o dosificam e que se pretende ampliar na
experiência da análise. Pois a palavra é o diafragma do gozo e a
neurose exibe uma obturação rígida que impede o contato do gozo
com o dizer.
O que se diz é o gozo, mas o gozo, próprio do dizer, desapa
rece no dito, fica esquecido, é um resto perdido porque passa pela
bateria significante da língua que o leva a se carregar de sentido, esse
sentido que o outro escuta no queentende.10Entre o fato de dizer
(enunciação) e o produto que se recolhe (o enunciado) há um es
quecido constituinte que é o do gozo de quem falou. O real irrecu

perável travestido
sem sabê-lo, uma no sentido.
perda. Para Enós,
não ohámodelo
dito sem
do dizer.
dito é Oo dito
que disse,
se diz
na análise. A psicanálise tem um material sobreo qual trabalha: a di
ferença entre o dito e o dizer. Há sempre um destino inelutável que
se impõe à cadeia dos significantes e que se pretende perdoar na

8. J . L acan (1973).L e seminaire. L ivre XX. Encore. Paris: Seuil, 1975. p. 95.
9. J . L acan (1970). A. E., p. 515.
10. J . L acan (1973). A. E., p. 449.
Deciframento do gozo 181

experiência da análise, na qual o outro da elocução é um outro que


não entende e que devolve ao que fala a pergunta pelo gozo que ig
nora em seu dizer. Funções do silêncio e da escansão no tempo e
espaço da sessão, presença do analista, esse que o é porque acei
tou o conselho de evitar compreender. A interpretação é uma evo
cação do gozo perdido ao falar. Em tal medida, remete ao real.
M esmo quando o analista, sem saber nadadisto, também ignore que
é no real do gozo que intervém.
Pois a palavra está espreitada e deslocada pelo sentido, essa
sombra imaginária que persegue, infatigável, os significantes que vão
se encadeando no discurso. É a função da palavra no campo da
linguagem. N os termos que L acan inscreve quando diz sua
Radiofonia, o significante flutua por cima da barra do signo,
enquanto o significado flui debaixo... ao que caberia acrescentar que
o referente escapa como produto dessa operação, é o resto de real
que fica esquecido. Esse resto é o objeto @, causa do desejo, mais
de gozo(minus,enquanto gozo perdido para o falante) e semblante
do real que assim, excluindo-se, faz-se presente no que se diz.
Simbólico da articulação significante, imaginário do sentido e real do
gozo evocado constituem a trindade onipresente em toda palavra.
Vazia de plenitudee plena de vacuidade.
E se a palavra não se diz? O sujeito fica eclipsado, posto que
já não há um significante que o represente ante outro significante.
O falante emudece e, em seu lugar, aparece o sintoma que é o re
verso, desde o discurso, ao gozo, um gozo ignorado e repudiado.
Freud não tinha vergonha em definir o sintoma como uma “satis
fação sexual substituta”; era sua forma de dizer que o sintoma é um
gozo não sentido e sem sentido, desarticulado. A palavra não dita,
desdita, é sintoma e gozo des-sentido
, jouis-sens, escreverá Lacan,11
vocábulo intraduzível de alíngua lacaniana para o qual puderam ar
riscar neologismos tais como gossentido, eugozo, eugossentido.*
De qualquer forma, o gozo não é anterior, mas se constitui na
retroatividade da palavra, como o saldo que ela nunca consegue
reintegrar, como o que produz e deixa para trás em progresso. Baba

11. J. Lacan (1974). A. E., p. 517.


* Em francês jouis-sens (goze-sentido) é homófono ajouissance (gozo) e a
j'ouï s sens (eu ouço sentido). (N. da T.)
182 G ozo

de caracol, nunca recuperada. Não que o caracol se ancore ou se


tinja em sua baba, mas que em seu andar a segregue.12“Não que o
significante
mas se ancore
que o permita ancre)
( outros
entre tinja(encre)
ou setraços com queno prurido (...), o gozo
se significa
e cujo problema é saber o que se satisfaz nele”. E assim, pela paixão
do significante, é que o corpo se torna o lugar do Outro (1970,
idem). E por isso que apenas cabe falar de gozo com relação ao
animal que fala e cabe não supor o gozo fora da linguagem que o
constitui como resto (real) perdido, @.
O inconsciente, o de F reud e também o de L acan, é
deciframento. A verdade que fala por meio do processo primário c
uma verdade de gozo, de gozo antieconômico, na contramão do
princípio de prazer, da menor tensão, da homeostase, da ética
prudente do justo meio e da moderação aristotélica. Nisto, L acan13
toma sua distância com relação a Freud. Corrige-o. Não há uma
termodinâmica cujos princípios dariam ao inconsciente uma
explicação póstuma (ibid.). Na verdade, nem o sentido nem a
energética interessavam Freud. Do sonho recusava ambos aspectos,
um por não ser essencial, o outro por ser especulativo; apenas
ficava, como aquilo propriamente psicanalítico, otrabalho do
sonho, que transformava o desejo em um determinado conteúdo
manifesto, utilizando a matéria-prima dos pensamentos latentes que
se revelavam nasessão como associações “livres”. Isto em 1933,
na “Novas conferências introdutórias à psicanálise”.14E que mal
pese ao próprio Freud, “incompreendido, ainda que por si mesmo,
por ter querido fazer-se entender...”.15
No inconsciente não é o prazer ataráxico, mas o gozo
desconcertante que se decifra em um discurso. E esse discurso,
pelas sombras do'sentido que arrasta atrás de si, é ao mesmo tempo
desconhecimento do gozo, alienação do gozo no campo do Outro.

12. J. L acan (1970). A E., p. 418.


13. Idem, p. 523. “Posto que esta famosa tensão menor com que Freud arti
cula o prazer, qual o destino da ética de A ristóteles?”
14. S. Freud (1932-1933). Nuevas conferencias de introducción al psicoanáli-
sis. In: Obras completas.Buenos Aires: A morrortu, 1979. v. XX II , p. 7.
15. J. L acan (1970). A E., p. 407.
Deciframento do gozo 183

Se assim é, delimita-se a possibilidade e o terreno da psicanálise


como práxis
ao menos ética: a recuperação
a intenção. Que aqueles(impossível?) do gozo
que encontrem perdido.
nestas Ou um
palavras
eco de Proust não se sintam enganados pelas que vêm a seguir.
Gozar-se no despertar que atravessa os alambrados do sentido
e colocam ao pensante a pergunta pelo ser. Como alcançar esse
resultado se não há à mão mais do que uma prática de falação
(bavardage)! Do gozo em uma ponta, gozo cifrado, ao gozo na
outra, gozo recuperado. Por isso o ato psicanalítico está
determinado segundo o gozo e, ao mesmo tempo, pelos modos que
requer para pres
ervar-se dele.16Esta expressã
o sobre a na
tureza do
ato analítico deve es somar econtrapor-se às já clássicas expressões
que aparecem em “Função e campo da palavra e da linguagem em
psicanálise” (op. cit.), no qual se reconhece que a análise não tem
outro meio, senão o da palavra. Sim, no meio da palavra, com o
meio da palavra, no meio dizer da verdade, mas tudo isso
determinado por algo que não é palavra, mas gozo, gozo do corpo,
coceira permitida pelo significante quando sacode e rasura tanto
quanto possível o sentido que somente aparece à medida que o
sujeito se aliena de seu gozo ao ofertá-lo ao Outro da significação.
Esta “rasura”17do sent ido apontapara arecuperação do gozo perdido
pelo único meio ao alcance do falante, gozo
o do deciframento.
Deste gozar do deciframento, Lacan faz o traço definitório de
uma nova relação do sujeito com o saber, o gaio saber considerado
uma virtude, por certo uma virtude pecaminosa. É o aspecto ético
da teoria do gozo que absorverá o capítulo 8, ao terminar nosso
percurso.
No final desta gaia ciência, não há outra coisa senão a queda
no pecado pela reconciliação do saber e o gozo proibido, pela
evocação do gozo nos intervalos da palavra quando se atravessa a
superfície especular do sentido. Um gozo que vai além da impotência
frente ao real, não para encontrá-lo, mas para marcar esse real como

16. J. L acan. Comptes rendus d’enseignement 1964-1968. Ornicar?, n. 29,


p. 24, 1984. Em espanhol, Reseflas de ensênanza. In: Hacici ei Tercer
Encuentro dei Campo F reudiano. Buenos Aires, 1984, p. 58. A citação é
de 1969.
17. J. L acan (1974). A. E., p. 526.
184 Gozo

impossível, e que denuncia o eu como aliado da realidade exterior


e de suas camisas-de-força tecidas pela convenção e pela obediência
às demandas do Outro. Um gozar do deciframento que remete à
realidade essencial do sujeito, esse real além do imaginário e do
simbólico, que é tocado e deslindado pelos processos primários que
imperam no inconsciente, pelo dizer de metáforas e metonímias que
engancham o gozo impossível de articular. Gozar na fronteira do
impossível, gozar do deciframento do gozo cifrado, numerado,
contabilizado, gozar de um saber que não preexiste ao dizer e que,
portanto, não é descoberto, a não ser que o invente. Reencontrar-
se com esse gozo que subjaz ao fato de falar, mas do qual o sujeito
nada quer saber, afirmar o gozo pelo estilo ou pelo estilete da palavra
que o inscreve no Outro ao qual ela se dirige. E, no final, nenhuma
completude, uma queda no pecado. “Oh. Inteligência, solidão em
chamas (...) páramo de espelhos!” - exclamará o poeta.1S
Purgatório.

2. A carta 52

Creio que é chegado o momento de uma primeira revisão. Para


fazê-la, servir-me-ei da mais simples das representações topológicas:
a linha reta
. Nela temos duas pontas em e cadauma das pontas está
o gozo. E ntre esses dois extremos colocam-se processos de
ciframento e deciframento que permitem reencontrar, no final, o que
estava no princípio, o gozo, que leva, sim, as marcas e a fadiga do
trânsito pelos pontos intermediários desta sucessão de estados que
primeiro o desnaturalizam e depois o recuperam, uma vez
transformado. Não é arriscado chamar de sublimação esta
metamorfose. Do gozo perdido ao gozo recobrado, transmudado.
Do gozo recusado ao que pode ser alcançado...
Volto ao início para mostrar queesta exposição segue um curso
rigorosamente coerente com a expressão de L acan e - ver-se-á -

18. J. Gorostiza. M uerte sin fin. In: Poesia completa. México: Fondo de Cul
tura Económica, 1984.
Deciframento do gozo 185

não alheia à metapsicologia de Freud: “O que Freud articula como


processo primário no inconsciente (...) não é algo que se cifra, mas
que se decifra (...) o próprio gozo”. Se no extremo esquerdo da linha
figura o gozo, deve-se reconhecer que entre o gozo e seu
deciframento pelo inconsciente deve haver um estado ou momento
intermediário em que é o gozo cifrado, convertido em um grupo de
inscrições em si carentes de sentido, mas prontas a se carregar com
ele uma vez tenham sido submetidas a um processo de deciframento.
Ficam, assim, delimitados três estados ordenados sucessivamente:
1) o do gozo primordial, 2) o de seu ciframento ou escritura e 3) o

de
vê, seu
estádeciframento
imposta pelainconsciente.
razão e pela Esta construção
experiência; não linear, como seé
é facultativa,
imperativa.
O inconsciente - isto é Freud, isto é L acan, isto é a psicanálise
de todos ede sempre - já é um discurso, uma passagem do gozo
à palavra, na qual um significante não significa nada se não se articula
com outro significante. N este caso, o que é significado e
representado pelo significante é o sujeito, sujeito do inconsciente,
efeito da articulação. Agora refulge, inapelável, o dito de L acan: “O
inconsciente se articula pelo que do ser vem ao dizer”.19Do ser do
gozo ao “penso” do sujeito da ciência e aí, entre os dois, a
articulação do inconsciente.
O inconsciente é manifestação da verdade, de “isso” do ser que
vem ao dizer. Mas a verdade, que assim fala, não diz a verdade. Os
processos primários produzem uma transposição, Entstellung
uma
da verdade que veiculam. O gozo chega ao dizer filtrado pelas
malhas da linguagem. Uma vez produzido esse dizer - o menor relato
de um sonho basta para comprová-lo -, é necessário um novo
processo de deciframento para se incorporar esse discurso dentro
do campo do sentido. Esse trabalho recebe de Freud o nome preciso
de Deutung, interpretação. Para evitar confusões, é necessário
manter a distinção que existe entre a operação que se faz sobre uma
escritura que é umdeciframento(o modelo é o dos hieróglifos), e
a operação que recai sobre apalavra tal como ela é proferida pelo
interpretação.
analista na situação da análise e que é A ssim, o gozo

19. J. L acan (1970). A. E p. 426.


186 Gozo

é aquilo que se decifra, os processos primários são já deciframento


e eles são suscetíveis de interpretação. O decifrado revela uma
escritura que, como tal, é semsentido*(nonsense, pas-de-sens)e não
chama o Outro como o faz a palavra. A interpretação recai sobre a
leitura dessa escritura, “é sentido e vai contra a significação”20
(1972). Esta distinção não remete a uma oposição binária na qual
houvesse que escolher entre deciframento e interpretação, mas a
uma complementação que mostra, até a evidência, que cada uma das
duas operações rec ai sobre um ponto distinto dessa linha reta que
vai do gozo cifrado ao gozar do deciframento.
É necessário insistir nesta complementaridade da escritura e da
leitura, do deciframento e da interpretação, pois não é raro ver que
mesmo os mais lúcidos e leais comentaristas de L acan se deixam
levar pelo entusiasmo ao advertir a novidade acrescentada por Lacan
em seu ensino, quando faz valer “a instância da letra no
inconsciente” e passam a uma exegese que confronta uma leitura de
L acan, “moderna” - escriturai - , com outra leitura de L acan,
“antiga” e centrada sobre a palavra falada e sobre o significante.
M inha intenção em tudo o que escrevi e que escreverei é destacar
e evidenciar
pontos a continuidade
de inserção próprios e
a a diferença
cada topológica
uma das na reta dos
duas operações.
O inconsciente é, nessa reta, um ponto intermediário de junção
no caminho do deciframento que se encontra entre o sistema das
inscrições que o precede e o diálogo com sua impregnação de
sentido queo segue. É um estado intermediário no deciframento do
gozo. J á é discurso, mas um discurso que parece colocar-se antes
e à margem do outro da interlocução e do sentido. Deve-se voltar
- sempre - a Freud:
Pois bem, se prossigo para mim mesmo a análise, sem
preocupar-me com os outros (para quem, na verdade, uma vivên
cia tão pessoal como meu sonho de modo algum pode lhes es
tar destinada), chego a pensamentos que me surpreendem, que
não havia observado no interior de mim mesmo, que não apenas
me são alheios, mas também desagradáveis, e que por isso eu

* Como no original (sinsentido).(N. da T.).


20. J. L acan (1970). A. E., p. 475.
Deciframento do gozo 187

queria contestar energicamente, enquanto a cadeia de pensamen


tos que discorre pela análise se me impõe de modo inexorável.21
A situação queFreud descreve como pa radigmática do sonho
é a de um locutor sem alocutário, uma cadeia de significantes que
se enlaçam, seguindo seus próprios desígnios e que fazem do eu
uma testemunha, um simples cenário no qual se representa uma obra
perturbadora, desconcertante, que não é entendida nem apreciada por
este espectador que queria contestá-la com energia. Isto é o
inconsciente e este é seu trabalho. A interpretação é um trabalho
posterior que, vencendo resistências, introduz o Outro do diálogo,
inicialmente alheio, nessa vivência pessoal e solipsista. Esse Outro
é, justamente, o sujeito suposto saber da transferência, um Outro
inventado pelo discurso psicanalítico, absolutamente desnecessário,
contingente, lugar de um desvelamento daquilo que o eu, animado
pela paixão da ignorância, nada quer saber.
Se volto à ficção desta linha reta (“a verdade tem estrutura de
ficção”), constato que o extremo final da mesma nãosentido,
éo
(“agora entendo”), mas gozoo recuperado(“A h!”). Este final é
possível somente atravessando a linha completa que leva do gozo ao
gozo, a um gozo Outro. A interpretação conduz ao sentido, um

sentido que podemos considerar


percepção-consciência equivalente
e que se vincula ao sistema
à coerência que freudiano
impera emda
“nosso eu oficial”. Do eu testemunha não o processo primário, mas
o secundário, mais concretamente e no caso do sonho, elaboração
a
secundária,processo de maquiagem da verdade que tende a proteger
o dormir e amortecer o impacto do real sobre o eu da vigília que se
apega à realidade, a essa realidade que está feita justamente de
sentido, na junção do simbólico e do imaginário,22com exclusão do
real. (Cf. figura do nó borremeano, p. 108)
Não se pode falar sem ser inundado pelo sentido, mas este está
comandado pelo fantasma, é o imaginário que flui sob a cadeia dos
significantes que flutua. A experiência analítica não aponta para
consolidá-lo nem para retificá-lo, oferecendo um novo e mais
consistente, mas para deslocá-lo, para levantar seu peso de lastro,

21. S. Freud (1901). Sobre los suenos. Obras In: completas, v. V, p. 654.
22. J. L acan (1973), La troisième. Lettres deFÉcole Freudienne, n. 16,1975,. p41.
188 G ozo

para comovê-lo, para denunciá-lo em sua suspeita pretensão de


suturação da relação do sujeito com a verdade que fala. A análise
aponta para reintroduzir a dimensão do real do gozo que o discurso
exclui. Pois tudo na experiência analítica se organiza com vistas ao
esvaziamento do sentido, a chegar a um único e último sentido: que
a relação sexual é o que não há, que é um semsentido e que o
discurso é um bordado ou um zumbido que tende a se alongar e
anegar (e [a] negar) este topo ante o qual a palavra se declara
derrotada e a pulsão, silenciosa, volta por seus direitos. “A essência
da teoria psicanalí tica é um discurso sem palavra”.23
A gora, o percurso está completo. O traçado da linha exigia
deter-se e identificar estes cinco pontos de sua trajetória: a) o gozo
srcinário; b) sua inscrição ou ciframento; c) seu deciframento em
um discurso confuso e incoerente que manifesta a verdade ao
mesmo tempo que a dissimula; d) sua interpretação que lhe restitui
a coerência à custa de aumentar o desconhecimento e, finalmente,
e) o esvaziamento desse sentido redundante para recuperar a
verdade da inscrição srcinária, mas transubstanciada agora em um
saber inventado que consiste em gozar do decifrado. Vale dizer que

é umproponho:
que percurso de levado
queponta gozo à
a ponta dosublimação
gozo. ? E a fórmula
E de imediato dou-me conta: não estou enunciando algo novo,
nem estou pondo às claras um aspecto desconhecido do pensamento
de L acan, mas estou regressando, armado com o rasenal das últimas
referências do ensino deL acan, às origens dapsicanálise. Pois o que
encontro ao recapitular o escrito sobre uma linha com dois extremos
e com três estados intermediários que são o cifrado, o deciframento
e a interpretação produtora de sentido, não é nem mais nem menos
do que a reprodução literal do esquema desenhado em todos os seus
pontos por Freud nacélebre carta 52de 6 de dezembro de 1896,
que agora conhecemosem uma versão não ex purgada.2
4
O texto é acessível e conhecido por todos os psicanalistas, mas
in extensopara deixar claro até que
não obstante requer ser citado

23. J. Lacan (1968). Seminário XVII, aula de 13 de novembro.


24. S. Freud (1896). Carta 52 dos “Fragmentos de la correspondencia con
Fliess”. In: Obras completas,v, I, p. 274.
Deciframento do gozo 189

ponto é coerente com a teoria do gozo e, mais ainda, para mostrar

que nele estáe,definida


inconsciente portanto,uma
queclara distinção
na carta entreum
52 temos o Isso e o
deslumbrante
ponto de srcem que condensa as duas tópicas de Freud e as duas
grandes épocas do ensino de L acan. Podemos fazê-lo sem ter que
forçar em nada a interpretação do texto freudiano, antes, sim,
voltando com exatidão à sua literalidade.
Freud parte da idéia de uma estratificação sucessiva do
psiquismo humano que supõe que os processos anímicos e da
memória estão sujeitos a um reordenamentoque obedece a certas
novas circunstâncias. Desta nova ordenação, Freud tem uma clara
concepção: é uma retranscrição,urna Umschrift.A s duas palavras
em itálico aparecem sublinhadas por Freud.
Umschriftimplica tratar-
se de escritura, concretamente, de inscrição. “O essencialmente
novo” nesta teoria é a tese da existência da memória da experiência
como uma série de inscrições sucessivas e coexistentes, não menos
de três. E o registro nelas recorre a “diversas classes de signos”
(Zeichen).
E imediatamente, para tornar gráfico seu pensamento, desenha
um esquema, muito conhecido, com cinco elementos ordenados
linearmente, dos quais os três intermediários estão caracterizados,
além da inicial de seu nome, pelos números romanos I, II e III. A
idéia de que estes sistemas de inscrições tivessem suportes neuronais
é reconhecida no texto como muito cômoda, mas não indispensável,
admissível a título provisório e, portanto, descartável.
No extremo esquerdo da linha, está a notação W, que remete
a Wahrnehmungen,corretamente traduzida para o espanhol e para
o inglês comopercepções. M as o termo pode prestar-se a mal
entendido, caso seja tomado no sentido técnico que tem em
psicologia. Destes “ neurônios W", Freud diz que neles “as
percepções se srcinam e a consciência se agrega, mas que em si
mesmos não conservam marca do acontecido.
Pois a consciência
(grifos de Freud).
e a memória são mutuamente excludentes"
190 Gozo

1 II III

w Wz Ubw Vb Bew

X X ■> X X - X X - X X - > XX

Impressões - -» Isso - >Inconsciente- »Pré-cons -> Fading 8


ciente

Gozoperdido- >Ciframento -» Decifrado - > Sentido --»Gozorecuperado

Do que seque
Warhnehmung trata?
em De um registro
alemão implica direto da experiência.
claramente De uma
a apreensão da
verdade, do real tal como cai, golpeia, marca um ser que recebe o
impacto e não conserva traços nem memória do acontecido. Para
evitar o equívoco com a concepção tradicional, psicológica, da
percepção, que supõe o sujeito como já constituído e como
constituinte das percepções que seriam uma função dele, do
percipiens considerado fonte e srcem do perceptum,penso que é
preferível recorrer aqui ao termoimpressão
de no seu duplo sentido
daquilo que impressiona (uma placa ou película sensível) e daquilo
que se imprime, que fica gravado. São, pois, impressões
assubjetivas,acéfalas, feitas em ninguém, matrizes de uma escritura
da qual um sujeito advirá.
A idéia está claramente exposta pelo próprio Freud quando,
muitos anos depois, exporá sua analogia do psiquismo com o
Wunderblock,com o bloco mágico,25no qual a inscrição feita com
um estilete sobre uma superfície de celulóide se faz sem deixar tra
ços no próprio celulóide (uma vez que não se levanta), mas deixando
as marcas impressas em uma película de cera macia colocada de
baixo. Estas impressões sem memória que estão no extremo do apa
relho e que deverão ser recuperadas (ou não) pelas inscrições
posteriores são a inequívoca manifestação de um real srcinário do
sujeito, anterior à simbolização, que é o próprio Gozo e remete
ao conceito freudo-lacaniano da Coisa. O conjunto do aparelho

25. S. Freud (1925). N ota sobre la pizarra mágica. In: Obras completas,
v. 19, p. 239.
Decifrarriento dogozo 191

ordenar-se-á aparti deste momento fundante em que um


protossu-
jeito (perdoanlo o Tbrido grecolatino) é impressionado, impresso,
pelo Real. E, s nãi se tem medo das analogias, por que não falar
de imprintinglDu sja, da cunhagem matricial do futuro falante por
uma experiênca qie é anterior e exterior à linguagem, ainda que,
como é o caso ia in'estigação etológica, a linguagem não seja alheia
à experiência nesna a que são submetidos, em seu caso, gansos e
símios pelo dsígro dos sábios. Impressões do gozo, hieróglifos
assistemáticos cunagem de uma moeda na superfície de um cor
po. M arcas.
Destas hpresões, passa-se a um sistema primeiro (I), de
quê? De signo depercepção, Wahrnehmungszeichen,
de que é “o
primeiro regisro” <
u “a primeira transcrição” Niederschrift
( ) de tais
impressões. Gmose vê, Freud insiste na idéia da escritura. Ago
ra, agrega arnção capital em L acan, designos, de Zeichen.A ca
racterização feudana destes signos é precisa e preciosa: eles não
são susceptívds di consciência e estão dispostos (“articulados”, se
lê na traduçãcparío espanhol) segundo uma associação por simul
taneidade. A sim,jma escritura que é puro signo, carente de sen
tido e carenteie odenação no tempo. Neste sistema, como em toda
escritura, nãohá dacronia. Assim como um livro ou um disco o- f
nográlico tên tocb o seu conteúdo ao mesmo tempo, no instante,
mas no qual i coijunto de inscrições impressas e gravadas não re
presenta nadi paa ninguém, se não se submeter a um processo
diacrônico qe insaure a sucessão, que o torne audível, que o tras
lade por meii de im deciframento da escritura, por meio de uma
leitura. Este sstem dosWahrnehmungszeichen é, pois, um registro
cifrado das inpresões de gozo que marcaram a carne do protos-
sujeito. Estasmaras não são significantes, são - e é o próprio Freud
da carta 52 cu em) destaca - signos, marcas anteri ores à palavra,
que parecemprefi;urar a oposição que Lacan26fará notória emTe
levisão, quaido ojõe o registro do signo ao registro do sentido.
Que n» metomem por excessivamente apressado, se me
atrevo a afimar iue esta sucinta descrição feita por Freud deste
primeiro regstro oincide exatamente e no essencial com isso que,

26. J . L acan (974). 1. E., p. 515.


192 G ozo

nos anos do “bloco mágico”, chamará Isso. Bastará apenas deixar


de lado a sub-reptícia hipóstase de um discurso alheio à experiência
psicanalítica
referência é (o
tãodo “pólo biológico”)
prescindível para compreender
e supérflua como a que ele quepróprio
essa
indica nessa carta 52 sobre um suporte neuronal de seus “extratos
psíquicos”. Pois a biologia em questão se reduz - e isto é o cerne
da questão - a que estas experiências que não vacilo em qualificar
como impressões do gozo são marcas escritas no corpo, ou melhor,
na carne que se tornará corpo por graça e obra desta cunhagem.
Não há ordem nem concerto, não há sentido e não há tempo. Assim
é como o gozo é cifrado. L acan27aporta uma imagem esclarecedora,
quando compara esta desordem sincrônica com o funcionamento de
uma loteria, um grande globo cheio de pedras nas quais estão
inscritas cifras que nada significam em si mesmas. Uma desordem
de marcas escriturais que está prestes a adquirir sentido uma vez que
se produza o sorteio, uma vez que elas saiam em uma certa
seqüência ao acaso ou arbitrária que as porá em relação com uma
matriz simbólica preexistente (atribuição de prêmios) que dotará de
sentido a série de bolinhas sorteadas. O globo cheio de inscrições
é o “caldeirão pleno de ferventes estímulos” do Isso freudiano. Aí
está o gozo cif rado. Apenas o significante poderá instaurar uma
ordem ao desdobrar estes elementos da escritura em uma diacronia.
Em suma, postulo que este primeiro sistema de inscrição da carta
52 é o Isso da segunda tópi ca e que suas características são as que
permitem distingui-lo do segundo sistema, o do inconsciente, que já
é um deciframento e uma tradução desta escritura primária das
marcas do gozo.
O número é, na imagem da loteria assim como na língua de

todos osdias,
lado da pura aescritura,
cifra. Uma cifra semcarente
hieróglifo sentido. de
E linguagem,no
palavra, maqual
s do os
elementos são alheios à organização do discurso, no qual não há um
agente da palavra que se dirija a um outro para estabelecer um
vínculo social. Fora do sentido, mas pronto para carregar-se de
sentido. Para isto, é necessário que se produza “o sorteio”, que se
instaure uma série, que o número, além de sua função cardinal, se

27. J. Lacan (1958). Écrits, p. 58;Escritos 2, p. 638 (1960).


Deciframento do gozo 193

"ordene”, que seja “um” na série dos números, que seja “esse”
número na relação dos que saem sorteados com os da outra série
de números;no caso da oteri
l a, a daordem dos prêmios.28
O Isso é um conjunto de elementos gráficos, não submetidos
a nenhuma hierarquia organizacional, totalmente comparáveis e in-
tercambiáveis entre si, alheios à contradição lógica ou dialética, puras
positividades que não conhecem a negação. É o império do gozo (do
ser) anterior à organização subjetiva, sendo esta um efeito da orde
nação que, no reino do significante, impõe a metáfora paterna. Sa
bemos que o nome-do-Pai entroniza a primazia do significante fálico
que esvazia o gozo do corpo fazendo-o passar por uma zona estri

tamente
Isto,limitada do corpo (gozo“lacaniano”
tão essencialmente álico),
f submetida
comoà é,
Lei.está afirmado
com todas as letras por Freud na mesma carta 52 que expõe esta
topologia retilínea do gozo e da palavra, de seu ciframento e
deciframento.
Por trás disto, a idéia de zonas erógenas resignadas. Ou
seja: na infância, o desprendimento sexual seria recebido de
numerosos lugares do corpo, que logo são apenas capazes de
desprender a substância de angústia de 28 [dias], e não já as
outras. Nesta diferenciação e limitação [residiria] o progresso da

cultura, o desenvolvimento da moral e do indivíduo.


Em resumo, o sistema chamado por Freud na carta 52 dos sig
nos perceptivos, dosWahrnehmungszeichen (WZ), é um sistema de
passagem das impressões corporais (W) para uma escritura desor
ganizada, para um ciframento que existe na sincronia e na desor
dem. Nesse sistema não há noções de empo,
t de contradição e de
ordem. Está prefigurado em todos os seus aspectos o Isso que nas
ceria 25 anos depois e constitui um tipo de matéria-prima para que
nela se opere o significante, ou seja, a bateria das diferenciações e
dos valores que introduz a língua, o código das significações. E tam
bém possível dizer que neste caos em que está cifrada aexperiên
cia vivida não opera a língua dos lingüistas, mas alíngua lingüistéril
da psicanálise cuja significação não é de sentido, mas de gozo.

28. Cf. J .-A. Miller. Seminários de 19 de dezembro de 1984 e de Ia de abril


de 1987 (inéditos).
194 Gozo

A questão para o psicanalista é recuperar esta possibilidade de


gozo que está obstruída, sem tradução, no sistema do Isso. Para ial,
tem um único
descoberta recurso:em
lacaniana o da
seupalavra.
retomo Esse foi oque
a Freud: primeiro aspecto da
o inconsciente está
estruturado como uma linguagem... ao que se deve acrescentar que
é apenas na análise que seus elementos se ordenam em um discurso,
que o gozo condescende à audição, à ordenação em uma cadeia
temporal diacrônica. E na experiência analítica onde a escritura (do
gozo) permite sua leitura e onde a letra se presta à palavra.
Podemos nos valer de uma analogia técnica, o CD: uma
delgada lâmina metálica em que estão registrados números, cifras,
dígitos, que coexistem sincronicamente em uma superfície polida
alheia completamente, em si, à arte musical. Essas inscrições sem
sentido estão, no entanto, em condições de serem decodificadas,
decifradas por um raio laser que as transforma em impulsos
elétricos; estes, por sua vez, são enviados a um sistema de
transformação e tradução em movimentos que afetam um falante de
onde saem transformados em música. Pode-se completar esta
analogia recordando os estados prévios à transcrição numérica das
inscrições digitais: partitura do compositor que também é uma
escritura sincrônica e hieroglífica que deverá ser codificada pelo
intérprete (sim; aquele que fazinterpretação)
a e passada para o
ciframento digital, para o deciframento eletrônico, para o som e,
finalmente, para a audição diacrônica na qual será o ouvinte o que
dotará a música escutada de um sentido em relação à sua
subjetividade [vetor s (A)].
E pode-se voltar mais uma vez ao ponto de partida: os
processos primários que Freud descobre no inconsciente não são
algo que se cifra, mas algo que se decifra. Em outras palavras: do
caos do Isso no qual o gozo está cifrado passa-se a um certo
ordenamento, a uma forma de extração das bolinhas, a uma
sucessão diacrônica da saída desses signos que haviam sido
transcritos a elementos de outra ordem, a significantes cuja bateria
está na língua, tomados do capo do Outro da palavra. Os processos
primários produzem um resultado que já é discurso, um discurso que
parece, a olho nu, carente de sentido e absurdo, mas que já está em
condições de ganhar sentido e ser transmitido.
I K 'cüramento do gozo 195

O U nbewusst ( U bw), o inconsciente, é, na carta 52, assim


definido: como uma se gunda rtanscrição em que já não primam as
iissociações por simultaneidade, mas “outros nexos, talvez causais”.
A causalidade implica a sucessão no tempo da causa e o efeito, a
diacronia. Enquanto discurso (o dito), o inconsciente já é algo que
se escuta, um material em que o gozo deverá ficar esquecido, será
essereste oubliéde que se fala em L ’étourdit (1973, op. cit.). Este
inconsciente é palavra ordenada segundo nexos que repugnam o
pensamento organizado pela sintaxe epela lógica. A interpretação é
a atividade que, tomando como ponto de partida as formações do
inconsciente, dotará essa palavra de sentido e a expulsará do reino
do “absurdo”.
É o nível da terceira transcrição que sedescreve nacarta 52:
aquela que leva do Ubw ao Vbw, do inconsciente ao pré-consciente
( Vorbewusst ), que está “ligado a representações-palavras,
correspondente ao nosso eu ofici al”. A qui, dão-se todas as
características do pensar racional, no qual o encadeamento
significante carrega consigo ondas de sentido, um sentido que “é de
efeito posterior ( nachträglich ) na ordem do tempo”. Freud
acrescenta que esses “neurônios-consciência” seriam também

“neurônios-percepção”,
Fica, assim, o aparelho esses
como que
umapreferi chamar
linha na qual odeordenamento
“impressões”.
sucessivo implica a anulação do tempo em cada um dos dois
extremos. O gozo atemporal está figurado em cada uma das duas
pontas da reta que atravessa por a) o cifrado, b) o deciframento
inconsciente e c) a interpretação que dá sentido no pré-consciente
quando se liga a experiência vivida com a ordem da linguagem
oralizada, feita oração, articulada como proposições submetidas à
lógica dos processos secundários, suscetíveis de serem catalogadas
como verdadeiras ou falsas.
Freud completa sua descrição do aparelho assim constituído
afirmando que entre um e outro sistema existe uma incompatibilidade
de leitura ou de código que obriga que as inscrições que caracterizam
cada um deles devam ser traduzidas para passar de uma modalidade
de inscrição para a seguinte. Esta teoria vale tanto para o psiquismo
normal como para as neuroses - concebidas como efeitos da
repressão, ou seja, da impossibilidade de “tradução do material
196 Gozo

psíquico” - e também para o tratamento quedeve ser o processo


capaz de fazer com que o retido em inscrições anteriores seja
transferido para os novos modos de leitura próprios dos sistemas
mais avançados. O avanço que traz a leitura lacaniana que proponho
da carta 52 consiste em destacar que o que se cifra e o que se
decifra é “o próprio gozo”. Esta elaboração dos conceitos
freudianos nos permite retornar à obra do próprio Freud e
estabelecer de modo inequívoco a continuidade que existe entre o
Isso da segunda tópica c o inconsciente da primeira; essas instâncias
não se intercambiam ou se substituem reciprocamente: são dois

sistemas topologicamente
escriturai diferenciados
o um, e palavreiro o outro, dee tratar
dois modos diferentes,
as para sempre
irrecuperáveis impressões srcinárias.
A seqüência, em síntese, é: do gozo bruto (W) ao Isso (Wz)
do Isso ao Inconsciente (Ub), do Inconsciente ao Pré-consciente
(V b) e do Pré-consciente à C onsciência (Bew); este não é um
sistema de inscrições, mas um momento vivencial que retoma o
so that the neurones of consciousness
ponto de partida inicial (“...
would once againbe perceptual neurones and in themselves without
memory”)29 (grifos meus).

3. A psicanálise nos caminhos de Proust. Gozo e tempo

O gozo, gozo do corpo impressionado, gozo do Um sem


Outro, apenas pode ser recuperado mediante um recurso ao Outro,
o Outro mesmo da linguagem e do sentido, que perturba, obstaculiza
e proíbe esse gozo. A experiência da análise pretende, na figura do
analista, encarnar e suprimir esse Outro do diálogo e da resistência
para que o gozo bloqueado em sistemas de inscrição não decifrados
possa ser subjetivado. O Outro da linguagem é o muro que deverá
ser atravessado nessa busca das marcas deixadas pelo gozo. O

29. J. W. M asson (comp.). The complete letters o f Sigmund F reud to Wilhelm


F liess - 1887-1904. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1985.
p. 207.
Deciframento do gozo 197

corpo é a prancha ou tábua vazia, o cenário, o livro, o disco


marcado pelas inscrições ou gravações cifradas. A análi se será,
assim, processo de leitura com agulha (estilo) ou raio laser que tome
audível o que está inscrito e desconhecido para o sujeito: o próprio
gozo. Para este trabalho, não há código oculto a descobrir; em todo
caso, há um código ou pedra deRoseta a inventar, o sistema de
alíngua em que o gozo foi cifrado, alheio à bateria de significantes
com significação convencional. Da impressão, escolhendo a
íwpressão e a repressão, à expressão, à produção desse livro ou
dessa letra-carta escondida, roubada ao mesmo tempo que exposta,
como a de Poe, em cada um dos falantes.
Re-citando: “O inconsciente está estruturado como uma
linguagem, mas é na análise que se ordena como discurso”.30E ao
ordenar-se como discurso, palavra dirigida ao outro, carrega-se de
sentido insólito, revela-se como saber subjacente ao sujeito, mostra
se como portador do gozo que atravessa o agora permeável
diafragma da palavra que até então o bloqueava. E gozar do
deciframento, jouis-sens, j ’ouis sens, jouissance que poderiam
passar, como já vimos, como gossentido ou eugossentido.Fazer
passar o gozo pelo diafragma da palavra, articulá-lo, traduzi-lo, passá-
lo pela contabilidade. Para isso, é mister desarmar a coerência
discursiva, atentar contra a gramática, jogar com o equívoco lógico
e homofônico, atravessar a barreira do sentido e descolar o Humpty-
Dumpty que a controla, aquele chamado por Freud, já em 1896,
nessa mesma carta 52, de “nosso Eu oficial”.
Pelo caminho deve-se ressignificar voltando no tempo as
marcas da memória e atravessar os fantasmas que conduziram em
cada momento e em cada caso à fixação das embranças
l . Trata-se
de despejar e construir os fantasmas srcinários estruturantes da
experiência e da história pessoal que se apresentam na compulsão
de repetição. Repetição? Sim, dos modos particulares de cada um
de falhar ao encontro com o objeto do desejo. E recuperar assim o
gozo perdido à medida que o desejo não aponta para o futuro, mas
que é nostalgia, memória gravada na carne sem linguagem e rasgada
pelo Outro, pelo que o Um foi como objeto no desejo do Outro e

30. J. L acan (1974). A. E., p. 452.


198 G ozo

daquilo que saiu constituindo-se ao preço de uma cisão interna,


como sujeito barrado e dividido entre o Um e o Outro, fazendo do
corpo Outro
recupera e fazendo
r-se como Um, do
issoOutro o lugar
que se chamaeem
o cenário em que
psicanálise pretende
o Ideal
do Eu. Entre o Um e o Outro. Entre a neurose, alienação no Outro
e a psicose, alienação no Um. Entre o Outro sem o Um da neurose
e o Um sem o Outro da psicose. Entre a letra sem leitura do Um,
da psicose, e o discurso submetido aos códigos do Outro, que
desconhece a essência escriturai do gozo na neurose. Pois a
subjetividade navega entre Caríbdis e Scila. Seus naufrágios são a
substância da psicanálise.
O su-jeito como o que sub-jaz, a subs-tância, o su-posto do
discurso, con-jugado em suas frases, cifrado que deverá ser
decifrado, Eu que deve advir no lugar onde é desconhecido, aí onde
Isso estava como um hieróglifo no deserto, como um livro enterrado
com o cadáver de seu dono. Por trás desses objetivos, ordena-se a
prática da análise e se decidem todos os seus momentos: para pegar
o gozo como deciframento por meio do jogo e o fogo dos
encadeamentos e das substituições significantes, pelo chiste e pela
aleteia
evocação inesperadaheideggeriana
surpresa, pela e pela epifania
que burla as defesas, joyciana,
pela agudeza do pela
estilo que
rasga a superfície estúpida do discurso que não diz à força de
“querer dizer”.
Esta colocação da recuperação do gozo perdido está na própria
srcem da reflexão freudiana. Não seria, por acaso, a “identidade de
percepção” a meta que orienta toda a atividade do aparelho psíquico?
E não seria a “identidade de pensamento” o queinterpõe - pela via
dos processos secundários - uma barreira de sentido, de sentido
regulado para e pelo eu, no caminho para essa recuperação do gozo
originário? L ido assim, armados com a distinção lacaniana entre
já em Freud e desde o começo
prazer e gozo, é difícil não reconhecer
que a concepção do psiquismo está determinada pelo gozo, pelo gozo
como perdido e como recuperável por meio de uma elaboração que
passa por sistemas intermediários e no qual a neurose é definida como
impossibilidade da recuperação enquanto a psicose é ora instalação
no gozo, ora renúncia para recuperá-lo. Está em jogo a função do
real. A identidade de percepção ser alcançada pelo curto-circuito da
Deciframento do gozo 199

alucinação que libera a passagem pelos estádios que decifram o


gozo. O inconsciente não é alucinação, mas discurso. O dispositivo
freudiano da análise é uma colocação em cena concebida para que
este discurso se desdobre.
A transferência se fundamenta na suposição de que o Outro a
quem o sujeito se dirige dispõe do código que decifrará seu
hieróglifo ou, em outra analogia, que a música existe não no disco,
mas no aparelho que oleva a se transformar em sons. A estratégia
da análise consiste em passar esse disco pelo laser in-diferente,
a-pático, para que se tornem audíveis as inscrições gravadas nele,
para que a sincronia do Isso se transforme em diacronia do
inconsciente e este, por sua vez, em gossentido. Pois o Outro da
transferência não é o dono do sentido, mas o pretexto para que o
texto escrito em alíngua torne-segossentido.
R essignificação do passado que converte todo falante em
sujeito de uma anagnórise a ser produzida, de um desvelamento da
identidade srcinária e desconhecida, de um rebatismo a partir de
uma nova relação do sujeito do discurso com o gozo que (o)
transporta e o desconhece. A proposta é a de passar da palavra da
lingüística para a letra vocalizada da lingüisteria (lingu-histeria), aí
onde a voz já não é cadeia, mas objeto mais de gozar e causa de
desejo. E a cadeia, a palavra falada, é o instrumento indispensável
para receber a voz como objeto que evoca e faz semblante do gozo.
Que retorna do discurso para a marca, do significante para a letra,
do desejo para a pulsão, da comunicação para o gozo.
O livro está escrito. O disco está gravado. Deve-se torná-los
retrouver,
audíveis, convertê-los em palavra e em música. Recuperar,
a escritura que marca o falante. A “identidade de percepção” é o
reencontro com a experiência de satisfação proibida ao que fala como
tal. Nesse ponto em que se entrelaçam os dois extremos do aparelho

freudiano da carta
gozo do objeto, 52, percepção
substitui Wysignificante,
e Bew, o gozo,
e consciência,
o sujeito cindido pelo substitui
o próprio significante e anula a seqüência temporal da palavra
ordenada no discurso.
É isto que descobriu e é nisto que se equivocou M areei
Proust, totalmente à margem da investigação psicanalítica, enquanto
trabalhava em uma substância que é a mesma da análise: o gozo.
200 Gozo

A la recherche du temps perdu,1"busca do tempo perdido, é a


crônica de uma análise sem analista, fora da transferência. Suas
3.200uma
que páginas são uma obedece.
subjetividade recherche
investigação ( ) detalhada
O resultado das uma
transmite chaves
experiência ao mesmo tempo paradigmática e irrepetível. Pode-se
discutir quem é o Outro da escritura proustiana, seu leitor, a
posteridade etc. Difícil seria afirmar que esse Outro é o sujeito
suposto saber da experiência analítica. Contudo, o resultado deste
ricercare, a obra volumosa, pede interpretação, deciframento de seu
deciframento, comentário. Proust deixa, como produto, um objeto
artístico que desloca o autor, uma obra que, assim como o quis
J oyce com relação à sua, será objeto durante séculos da elucubração
especular e especulativa dos eruditos e dos universitários, objeto do
scholarship.
O que me interessa mostrar aqui - basta mostrá-lo, não é
necessário demonstrá-lo - é que Em busca do tempo perdido éo
modelo de uma análise e a melhor ilustração que se pode prover das
hipóteses freudianas da carta 52 e das conseqüências da teoria
lacaniana do gozo tal como surge da experiência analítica. Com uma
única objeção: Proust não recuperará o Tempo ao cabo de seu longo
itinerário, pois não é o Tempo aquilo que perdeu. Pelo contrário, é
no Tempo em que se perdeu, no tempo dos relógios e da história,
no tempo do discurso, na diacronia e na ordenação de seus
momentos como sucessivos e seriais. E o que termina por encontrar
é o gozo, isto é, a anulação do Tempo. Proust se encontra com a
sincronia, o fechamento do movimento progrediente do aparelho
psíquico. Sim, o gozo não transcorre no Tempo, masno instante
que é a abolição do decurso (do discurso) temporal. O instante e a
eternidade estão fora da ordem que distingue passado, presente e
futuro. Os temposverbais, por sua vez, estão determinados pelo
discurso, estão em relação à enunciação da palavra que estabelece
uma seqüência que não existe no Real; que é um efeito do Simbólico.

31. M. Proust. À la recherche du temps perdu. Paris: Gallimard, 1969. (La


Plêiade). No texto citado, coloca-se entre parênteses o número da página
do v. III dessa edição. A tradução é minha.
[En busca dei tiempo perdido.
M adrid: Alianza, várias edições.]
Deciframento do gozo 201

O tempo proustiano, “tempo recuperado” do último volume de


sua obra, é, na verdade, o tempo abolido pelo retorno das marcas
primeiras. Uma palavra estrangeira de nobre linhagem filosófica
impõe-se:Aufhebung.
Em Em busca do tempo perdido trata-se, mais uma vez, da
epifania do gozo pelo reencontro com o incunábulo de sua primeira
edição. O tema, sempre o mesmo, sempre variado, recorre nos
múltiplos exemplos dados por Proust: o sabor da madalena submersa
em um chá, o som de uma breve frase musical, o tropeço resultado
do encontro do pé com um par de ladrilhos desiguais, a rigidez ao
tato de um guardanapo engomado, o som de uma colher que golpeia
contra um recipiente e que devolve à viagem pela estrada de ferro,
em que um empregado bateu com um ferro a roda do vagão preso,
o livro casualmente achado na biblioteca e que é o mesmo que a mãe
lera para o filho insone, hoje idoso. Em que pese a referência
temporal que se lê no título da obra monumental não se deve enxertar
nada no texto para substituir a idéia de “tempo” pela de “gozo”. Basta
ler a prosa do próprio Proust: a recorrência do gozo é uma
ressurreição do ser que foi e esse ser ressuscitado gostava “de
fragmentos de existência subtraídos ao tempo” em uma
contemplação que, “mesmo que de eternidade, era fugidia” (v. III,
875). Nesses momentos em que o tempo é anulado, anula-se
também o sujeito, a menos que este consiga recobrar-se, aferrando-
se às sensações da realidade exterior do tempo presente e do espaço
circundante.
E se o lugar atual não houvesse vencido de imediato,
acredito que haver-se-ia perdido o conhecimento, pois tais
ressurreições do passado, no segundo em que duram, são tão
totais que não apenas obrigam nossos olhos a deixar de ver o
quarto que está junto a eles, para olhar o caminho margeado de
árvores ou a maré crescente, obrigam nossos narizes a respirar o
ar de lugares muito distantes, nossa vontade de eleger entre
diversos projetos que nos propõem, nossa pessoa a acreditar-se
rodeada por eles, ou pelo menos a esbarrar com eles e com os
lugares presentes, no aturdimento de uma incerteza semelhante
à que se experimenta às vezes ante uma visão inefável, no
momento de adormecer. (Ibid.)
202 Gozo

Inefável, com a palavra fora de jogo, nestes momentos de


“alegriaextratemporalcausada, seja pelo ruído da colher, seja pelo
sabor da madalena” (v. III, p. 877, grifos meus).
Um tempo, pois, que é a anulação do tempo depois de havê-
lo vivido, de havê- lo esquecido, de haver atravessado o esquecimen
to, de haver ressuscitado em um “gozo direto”, no qual “a única
maneira de gostar mais delas é conhecê-las mais completamente, aí
onde se encontravam, ou seja, em mim mesmo, esclarecendo-as até
suas profundidades” (ibid.)- Um tempo do gozo que rompe com os
marcos sociais do tempo compartilhado com os marcos fenomeno-
lógicos do tempo das coisas e com os marcos psicobiológicos do
tempo da própria vida. Um tempo feito de instantes sem dimensão,
da mesma maneira que a linha reta está constituída por pontos sem
dimensão.32Neste sentido é que, insisto, o tempo de Proust é a li
quidação do tempo. E, como ele disse, extratemporal. O discurso
está no tempo: o gozo está fora dele: implica-o e o anula. É o tem
po submetido a uma Aufhebungque o recupera dissolvendo-o. Por
isso é que o título do último volumeEm de busca do tempo perdi
do poderia ser, melhor, o tempoaufgehoben do que o tempo
retrouvé,“recuperado”, nas traduções para o castelhano.
Não é o retorno do passado. E “muito mais, talvez algo que,
comum ao mesmo tempo ao passado e ao presente, é bastante mais
essencial do que eles dois” (v. III, p. 872). E o que supera a
decepção que inevitavelmente acompanha as experiências e os
amores da realidade, a superação da defasagem entre a imaginação,
o desejo e a memória.
M as que um ruído, um olor, j á escutado ou j á respirado, o
sejam novamente, ao mesmo tempo no presente e no passado,
reais sem serem atuais, ideais sem serem abstratos, e de repente
a essência permanente e habitualmente oculta das coisas se vê
liberada e nosso verdadeiro eu que, às vezes há muito tempo,
parecia morto, mas não o estava por completo, desperta e se
anima ao receber o alimento celestial que lhe é trazido. U m minuto
descarregado da ordem do tempo recriou em nós, para senti-lo,
o homem descarregado da ordem do tempo. E compreende-se

32. G Bachelard (1932). La intuicion de! instante.Buenos Aires: Siglo Veinte,


1973.
D eciframento
do
gozo 203

que ele confie em sua alegria, ainda quando o simples sabor de


uma madalena não pareça logicamente conter as razões de tal
alegria, compreende-se que a palavra “morte” careça de sentido
para ele; situado fora do tempo, o que poderia ele temer do
porvir? (v. III, p. 872-873)

Os dois tempos nos quais virtualmente transcorre a existência,


passado e futuro, estão determinados e fixos como tais a partir do
instante presente que é o instante do “penso”, do discurso atual.
Passado e futuro não existem no real, são dimensões introduzidas
pelo simbólico que arrastam seus efeitos no imaginário sob a forma

da
daí memória em relação aoO“atrás”
ego sum,aqui-e-agora. sujeitoeproustiano
de desejo em relação
emerge à “frente”;
como tal a
partir de sua escapada da “ordem do tempo”, ou seja, da ordem de
uma vida psicológica centrada na construção fantasmática do ego.
A ressurreição, a recuperação do gozo do eu verdadeiro que parecia
morto porque estava sepultado, é uma epifania do real inefável,
ilustra a saída da ordem do discurso que instaura o tempo passado
como morto e o tempo futuro como tempo da morte. O presente,
tirado do tempo, é ao mesmo tempo um instante fugaz e uma visão
da eternidade. A nulados e postos delado o simbólico e o imaginário,
resta tão-somente o resplendor do real puro, que dissolve a
subjetividade, que merece o nome de “alucinação” no discurso de
Freud ede L acan. O sujeito encontra-se com o objeto causa de seu
desejo sem a interposição do fantasma. Tal é o sentido da manuseada
fórmula lacaniana do “atravessamento do fantasma”.
V ive-se. Corpo e linguagem. Outro que é o corpo, não-eu, e
Outro que é a linguagem, tampouco eu.Eu é o representante
imaginário do sujeito, que pretende suturar esta divisão entre duas
substâncias alheias e estranhas. Sobre o corpo se estampa a marca
da experiência vivida, uma experiência para ser significada com os
signos do Outro da linguagem. Os sabores das madalenas, as sonatas
de V inteuil, as imagens das árvores eos campanários. Para o sujeito
habitado pela palavra, resta um recurso, a evocação, a memória, a
ordenação seriada, as referências espaço-temporais. Um recurso que
proporciona pálidas imagens, desocupadas pelos processos
secundários do pensamento, decepcionantes, carentes de vivacidade,
mortas, fazendo pensar no que elas eram quando estavam vivas,
204 Gozo

seladas sempre a fogo por uma diferença, marcadas pelo signo da


negação. O real é o perdido. Nos momentos em que retorna, chama-
se alucinação. É possível recuperar o gozo srcinário de outro modo
a não ser sob as formas esfumaçadas da evocação e da nostalgia?
Proust responde que sim, que aquilo que em Freud é “identidade de
percepção” pode ter lugar a partir de um encontro casual,
contingente, não-intencional. Em seu caso, um tropeço em ladrilhos
desnivelados que faz surgir ne
le uma vivência deliciosa: “A felicidade
que acabava de experimentar era certamente a mesma que
experimentei ao comer a madalena e cujas causas profundas
posterguei buscar então” (v. III, p. 867).
“Onde encontramos este real?” - pergunta-se L acan.33
Pois é, com efeito, um encontro, um encontro essencial, é
disto que se trata o que a psicanálise descobriu em uma citação
que sempre volta com um real que se subtrai... É a tiqué , que
tomamos do vocabulário de A ri stóteles em sua busca da causa.
T raduzi mo- l a como o encontro do real. O real está além do
autómaton , do retorno, da insistência dos signos a que nos
vemos levados pelo princípio de prazer. O real é aquilo que jaz
sempre detrás do autómaton, e do que resulta tão evidente que
é a preocupação de Freud em toda a sua busca (recherche ).
A s duas buscas, a de Freud e a de Proust, são uma única. A
mesma que a de Lacan, a do gozo que esprei ta por trás dos enco
n
tros “fortuitos”, “como por acaso”. E não se trata da felicidade, mas
do momento em que o sujeito é transbordado pelo real, quando se
quebram os marcos tranqüilizadores da realidade, a de todos.
A função da tiqué, do real como encontro - o encontro
como podendo ser fracassado, que é essencialmente encontro
fracassado - apresentou-se primeiro na história da psicanálise de
uma maneira que, por si só, basta para despertar nossa atenção:
a do traumatismo. (Ibid.)
O traumatismo como tropeço com o real, com o que sempre
volta ao seu lugar, com o impossível do eterno retomo,isso,
com

33. J. L acan (1964). Le seminaire. Livre XI. Les quatre conceptsfondamentaux


de la psychanalyse.Paris: Seuil, 1973. p. 53-54.
Deciframento do gozo 205

Isso, que nã
o deixa nunca deestar presente como pano de fundo
de toda a experiência. O traumático não como agradável ou
desagradável, fora do registro do sensível para alguém, do
“patológico” (no sentido kantiano), mas como excessivo,
inassimilável, produtor de um fading do sujeito. No reencontro do
Tempo proustiano, na “identidade de percepção” freudiana e no gozo
lacaniano, temos este denominador comum da abolição tanto do
tempo quanto do espaço que marcam a subjetividade.
Neste ponto da exposição é difícil resistir à tentação de citar
e glosar toda a experiência que Proust relata na biblioteca dos
Guermantes e que é o ponto de partida (mítico) da escritura de seu
livro. T rata-se desse ponto do relato em que, depois de 3.200
páginas de novela, o autor percebe que tudo nele fora uma preparação
para o momento em que tropeçaria com uma ressurrreição das
sensações que, como marcas de srcem, orientarão sua vida. Na
concepção que venho desenvolvendo, trata-se do momento do
encontro dos dois extremos da linha reta descrita na carta de Freud.
Deslizava-me rapidamente sobre tudo isso, mais
imperiosamente solicitado pelo caráter de certeza com o qual se
impunha esta felicidade do que por buscar sua causa, busca em
outro tempo demorada. M as eu adiv i nhava est a causa a o
comparar as diversas impressões felizes que tinham entre si em
comum o que eu experimentava nelas ao mesmo tempo no
momento atual e em um momento distante, até sobrepor o
passado no presente e fazer-me vacilar em saber em qual dos dois
me encontrava; para dizer a verdade, o ser que então saboreava
em mim esta impressão a saboreava naquilo que ela possuía de
comum com um dia antigo e agora, naquilo que tinha de
extratemporal, um ser que apenas aparecia quando, por uma
dessas identidades entre o presente e o passado, podia se
encontrar no único meio em que pudesse viver, gozar da
essência, das coisas , ou seja, f ora do tempo” .34 E co ntinuo

34. Devolvo a vírgula que separa “da essência, das coisas” que todas as edi
ções francesas e espanholas omitem por considerar que é um “erro evi
dente”, v. III, p. 1134, em referência ao v. III, p. 871, n. 6. Considero que
ali não há um “erro” de Proust, mas uma absoluta exatidão tanto nas pala
vras como na pontuação da frase.
206 Gozo

citando Proust: Isto explicava que minhas inquietações sobre


minha morte cessaram no momento em que reconheci

inconscientemente o sabor da pequena madalena, posto que


nesse momento o ser que eu havia sido era um serextratemporal
e, por conseguinte, despreocupado das vicissitudes do futuro.
Este ser nunca havia chegado a mim c jamais havia se
manifestado fora da ação, do gozo imediato, cada vez que o
milagre de uma analogia me fizera escapar do presente. Somente
ele tinha o poder de me fazer recuperar os dias antigos, o tempo
perdido, ante o qual os esforços de minha memória e de minha
inteli gência fr aca ssavam sempre, (v. III, p. 871, grifos meus)

em suaA credito está


vida que suficientemente
a idéia de Proust clara
sobre eo que
empo
t a ereiteração
m sua obradas
e cita
ções apenas poderia privar o leitor do gozo de recorrer pessoalmente
às cinqüentapáginas dacena da biblioteca. Mas devemos passar ao
ponto seguinte que leva ao seu auge a leitura que, a partir de Proust,
pode se fazer de Freud e de L acan. Refiro-meao gozo como uma
escritura e às possibilidades e às modalidades da leitura dos signos
gravados, sobre os quais está edificado nosso eu real.
A o longo do ensino de Lacan, insiste-se na idéia de que não há
gozo que não o do corpo. Não poucas vezes o estudioso enfrenta
com incredulidade esta afirmação, pois parece contrapor-se à
experiência do gozo do espírito ou do saber, daquilo que poderia
acertadamente qualificar-se de gozo do significante, esse gozo fálico
de nossos cuidados expositivos nos três capítulos anteriores. E é
claro que uma formulação não acaba com a outra, mas o postulado
lacaniano é que, se o significante pode ser portador do gozo, o é à
medida que evoca e mobiliza as escrituras registradas como gozo
anterior e exterior ao significante. Pois a palavra é o caminho aberto
ao falante para se acercar do gozo perdido que, esse, é gozo do
corpo. De modo que, psicose à parte, apenas há acesso ao gozo do
corpo pelo caminho da articulação significante. E há outro gozo,
além, o gozo do Outro (sexo).
ciframento
Isto implica a sucessão já descrita de marcas,
dessas experiências em um Isso de sincronia e permutabilidade,
deciframento das inscrições do Isso em uma palavra absurda e
carente de sentido que parece mais acidente do que revelação,
interpretaçãodessa palavra insensata do inconsciente em um sistema
Deciframento do gozo 207

regulado
a travessiadedasignificações segundo
paraorecuperar,
barreira do sentido conjunto da línguadoe,vaguear
depois finalmente,
palavreiro, a verdade de um sujeito exilado do gozo.
A vi rtude (...) do gaio saber (...) não se trata de mordi scar
o sentido, mas de rasurá-lo o mais possível sem que faça liga para
esta virtude, gozando do deciframento, o que implica que o gaio
saber não produza, ao final, senão a queda, o retorno ao
pecado.35 (1971 )36
O Proust da cena da biblioteca sente e vive a recuperação do

gozo
memória,que do
é apresente
anulaçãododofantasma
tempo na superposição
e do do passado
futuro do desejo em umdains
tante de epifania e imortalidade. Os objetos de suas rememorações
se carregam para ele de sentidos ocultos. Eles assumem o caráter
de hieróglifos que pedem para ser decifrados; este deciframento “era
difícil, mas apenas ele fornece alguma verdade para ler” (v. III,
p. 878). Apenas ele, “porque as verdades que ainteli gência captadi
retamente com toda clareza no mundo da plena luz têm algo menos
profundo, menos necessário do que aquelas que a vida nos comu
nicou ao nosso pesar em uma impressão, material posto que entrou
por nossos sentidos, mas do qual podemos apreender o espírito”
(ibid.). Estas impressões compõem-se em nós como um livro, “um
livro de bruxarias complicado e florido”, frente ao qual não temos
a liberdade de escolher, mas que se nos apresentam como revela
ções de nosso ser verdadeiro e oculto.
Quem poderá ler por nós este “livro interior de signos
desconhecidos”? Quem poderá dizer que o tenhamos
verdadeiramente lido quando a leitura “é um ato de criação”, ou seja,
que constitui retroativamentenachträglich
( ) ao lido, no qual a
escritura se constitui como prévia a partir de sua leitura? Qual era
a ordem de realidade de Em busca do tempo perdido antes de sua
escritura pelo sujeito Proust? Do livro pode-se afirmar aquilo que
L acan disse do inconsciente: nem era nem não era, pertencia à
ordem do não realizado. Sua escritura o cria e ao criá-lo o projeta

35. J . L acan (1974). A. É., p. 526.


36. N. A. Braunstein. Existe o sentido, mas não o Sentido do sentido no qual
o sentido nos faz acreditar, 2004. No prelo.
20 8 Gozo

retroativamente no tempo, o faz aparecer em um passado que nunca


existiu, é mais, cria o passado como aquilo que é recuperado pela
escritura.
A ssim, a sincronia do objeto, do produto cri ado, é a
conseqüência da diacronia de sua ordenação em leitura e de sua
transformação em uma nova escritura, a do livro que hoje qualquer
leitor pode ler, se o quiser e se tiver a coragem necessária, com a
assinatura deM areei Proust. Oque acontece agora já não temrelação
com a vivência de Proust. Ele decifrou seu livro interior e o
transformou em objeto, um objeto que é uma obra de arte e que se
oferece ao consumo
instrumento de um leitor de
para o deciframento quesua
pode (ou não)
própria usá-lo
alíngua, como
das
inscrições das quais ele próprio é um efeito. Neste sentido, propõe-
se o objeto da sublimação como embaixador do real:
A arte é o que há de mais real, a mais austera escola da vida
e o verdadeiro J uízo F inal. E sse l ivro, o mais penoso de todos
para decifrar, é também o único que a realidade nos ditou, o único
cuja “impressão” foi feita em nós pela realidade mesma (...) O livro
com caracteres figurados, não traçados por nós, é nosso único
livro. (v. III, p. 880)
Não é necessário abusar da paráfrase quando as idéias se
expressam com tal justeza e quando a superposição dos significantes
utilizados torna transparente a relação entre a proposta proustiana e
a empresade uma análise: “Um grandeescritor não te m, no sentido
comum, que inventar este livro essencial, o único verdadeiro, posto
que já existe em cada um de nós; tem que traduzi-lo. O dever e a
tarefa de um escritor são os de um tradutor” (v. I I, p. 890).
Este trabalho do artista, que trata de ver sob a matéria, sob
a experiência, sob as palavras, alguma coisa diferente, é
exatamente o trabalho inverso daquele que, em cada minuto,
quando vivemos separados de nós mesmos, o amor próprio, a
paixão, a inteligência e o costume também cumprem em nós,
quando amassam, sobre nossas impressões verdadeiras, e para
que nos sejam ocultadas por completo, as nomenclaturas e os
fins práticos que falsamente chamamos vida... Esta arte tão
complicada é, justamente, a única arte vivente. Somente ela
expressa para os demais e nos faz ver nossa própria vida, esta
Deciframento do gozo 209

vida que não pode “observar-se”, e da qual as aparências que se


observam necessitam ser traduzidas e amiúde lidas ao contrário
e penosamentedecifradas. E
ste trabalho quefizeramnosso m a or
próprio, nossa paixão, nosso espírito de imitação, nossa
inteligência abstrata e nossos costumes; este é o trabalho que a
arte deverá desfazer, é a marcha em sentido contrário, o retorno
às profundezas, onde aquilo que existiu realmente jaz
desconhecido pornós, quenos fará seguir, (v. III, p, 896)
“Este trabalho do artista...” etc., tem íntima relação com a
prática da psicanálise como desmontagem dos espelhismos do
imaginário, das armadilhas do amor próprio, das capas sobrepostas
de nomenclaturas e de significantes convencionais, de desmontagem
per via di levare para permeabilizar o inconsciente, esse
intermediário entre o Isso e o diálogo. Pelo caminho de Proust e pelo
de Freud, chega-se a um resultado comparável: a recuperação do
gozo mediante um regozijo no deciframento. A suposição departida
é a mesma: o livro já está inscrito, o disco já está gravado, mas essas
inscrições estão sepultadas como hieróglifos no deserto. Não há o
que inventar nem o que agregar; deve-se recuperar e traduzir com
fidelidade o texto srcinário que exige a discriminação para não

distinguir
E para quê?o que
Paraé idêntico
chegar ae uma
para nova
não confundir
escritura, opara
que que
é diferente.
o gozo
decifrado se inscreva em um ato que faça passar ao real o efeito
desse deciframento. Aí onde o sujeito sabe de uma vez por todas
quem é a partir da certeza que deriva de uma ação que inscreve seu
nome próprio como conseqüência dessa ação. Historizando.
Porque- dito comas melhores palavras - os atos são nos
so símbolo. Qualquer destino, por longo e complicado qu
e seja,
consta na real
idadede um único momento: o momento emque o
homemsabeparasempre queé [pois] um destino não émelhor
que outro, mas todo homemdeve acatar o que leva dentro.37
A o final do percurso não há
, não pode haver, umasuperação
da partição constitutiva do sujeito, essa partição imposta pela
estrutura entre o Um do Gozo e o Outro da linguagem. Mas

37. J. L. Borges (1949). Biografiade Tadeo Isidoro Cruz. In: El Aleph.Bue


nos Aires: Emecé, múltiplas edições.
210 Gozo

tampouco há uma resignação, mas sim a assunção do lugar segundo

da subjetividade
escritura comdarespeito
objetivada ao saber,
qual o falante a um saber
é efeito, sem sujeito,
como “resposta do
real”.38-19
Para alcançar esse resultado deve-se atravessar muralhas de
compreensão, de sentido, de significação, de apego aos marcos
consensuais da realidade, às certezas compartilhadas, à ideologia de
um saber totalizanteque é efeito do discurso daUniversidade (pelo
caminho da “educação” e-duceree pelo caminho da uniformização
das representações por meio da indústria da comunicação).
Recordando sempre que o falante goza, mas seu gozo o horroriza
e dele nada quer saber. Que o Um se apaga, mas é de extraordinário
desconhecido no discurso que é o discurso do Outro; que as
estruturas constituídas do sujeito tendem a obturar este nível do gozo
como matriz do falante.
A o final do percurso, podemos refazer ahistória: a de Freud,
com sua apreensão genial do conjunto da estrutura psíquica na carta
52 e seu paciente trabalho de recherche que o leva a centrar-se
primeiro no trabalho
do inconsciente. de interpretação,
A partir Deutung,
de frustrados
de sonhos, atos das formações
e sintomas,
estebeleceu o católogo dos recursos que possibilitam que se
outorgue sentido às manifestações aparentemente absurdas dos
processos primários. Logo, gradualmente, resistindo-se a ele, admitiu
que este inconsciente já é tradução e passagem pelo rodamoinho da
palavra de uma realidade mais fundamental, sincrônica, real, à qual
denominou de Isso. Por seu lado Lacan, mais de meio século depois,
refez o caminho: partiu da experiência analítica que,
fenomenologicamente, é experiência da palavra, perdeu-se ao
confundir Isso e inconsciente em sua célebre fórmula gnômica:Isso
fala e logo distinguiu os dois planos: enquanto o inconsciente é
palavra e fala, é discurso (do Outro), o Isso goza e está feito de
signos, não de palavras. E possível que nestes termos a distinção
seja esquemática e que caiba uma precisão adicional. O inconsciente
não apenas é discurso do Outro, mas está sim, por sua vez,
38. J , L acan (1973)./!. É , p. 458.
39. J .-A. M iller (1983-1984). Seminário: Des réponses du réel.Inédito.
Deciframento do gozo 211

estruturado como uma linguagem. Nesse sentido tem duas caras, é


de dupla vertente: por um lado, olha as escrituras do Isso e as
decifra; por outro, recebe os significantes que são os do Outro e
com esses significantes realiza seu trabalho de leitura. O inconsciente
se sustenta nesse incômodo encavalamento: entre o inefável núcleo
de nosso ser e as estruturas do intercâmbio da palavra.
Em síntese, o inconsciente é deciframento do gozo e seus
produtos são suscetíveis de interpretação. A práxis da análise
consiste em intervir sobre o discurso desarmando a trama de
significações para que aflore esse gozo do deciframento de um saber
que não é saber de ninguém do qual alguém, o sujeito, é o efeito, o
filho. Regozijo.
V

O gozo na histeria

1. O psicanalista e a histérica

Uma certa tradição impõe queo analista comece afalar sobre


a histeria e as histéricas, fazendo seu elogio e manifestando sua
gratidão por serem elas as inventoras da psicanálise, aquelas que
forçaram o Freud médico a calar e aquelas que o ensinaram a
escutar.1Uma vez que nventa
i ram o psicanali sta e que este aprendeu
ao se render com ouvidos complacentes ao desdobramento de seu
sofrimento, enamoraram-se de sua invenção, deste objeto admirável
que se sustentava sem desfalecer em um contrato de longa audição.
Porque o psicanalista não pede senão que se fale e por elas fazerem
do relato pormenorizado de seus sintomas e de seus desencontros
com o Outro um modo de se sustentar na existência; porque o
analista registra com sua atenção flutuante todas as suas desventuras
e porque elas vivem suas desventuras para a testemunha que as

1. L. Israel. La jouissance de l 'hystérique. Paris: Arcanes, 1996. Este livro,


publicado em francês vários anos depois de Gozo, tem - apesar do título
- alguns pontos decontato com o que se aborda neste capítulo. Corres
ponde, sem dúvida, a idéias que já estavam no ambiente, como o prova o
que seja a elaboração escrita deum seminário oferecido pelo autor em 1974.
Israel morreu em 1996, quando seu livro estava no prelo. Inicia com um
“Elogio da histérica”, p. 43.
216 Cio/ii

escutará com simpatia complacente; por isto é que o encontro di


ambos está inscrito de antemão na natureza das coisas e se oferciv
à primeira vista como um paradigma da predestinação.
M as não é que a histérica apenas inventepara o psicana l istn
Também o analista inventa para a histérica, porque o dispositivo qui
inventaram entre ambos reproduz a espécie que o engendrou. A tal
ponto que hoje, lacanianos por fim, aceitamos como um fato
estabelecido que a histerização estrutural é a condição para que todo
falante, não importa sua estrutura clínica, possa entrar em análise
A fórmula do discurso da histe ria é a fórmula do come ço de uma
análise. Tem de haver uma queixa, um sintoma, transformado cm
demanda de saber, que encubra uma demanda incondicional de amor
e que se dirija a quem supostamente detenha esse saber sobre aquilo
que se ignora de si mesmo. O sofrimento, transformado em pergunta
feita ao Outro, é o fundamento que torna possível uma análise. O
dispositivo analítico é o oferecimento do terreno para que um
discurso se histerifique. Não há, então, por que estranhar se, desde
que existe psicanálise, a histeria mudou em suas modalidades de
apresentação. A solidariedade entre histeria e psicanálise é completa
.
(Solidariedade não implica harmonia.) A s histéricas inventaram o
dispositivo que engendrou o analista, o analista que pede e que
produz histéricas, estas que desdobram hoje seus encantos no campo
da escuta e não no campo primeiro da visão. Se antes elas se
mostravam como espetáculo charcotiano que se derretia com a
hipnose, é pelo falar que as reconhecemos hoje.
E na dupla analista e histérica é impossível decidir/dizer quem
foi o primeiro.
Este é o fato. Como o assinalou L acan, com sua oferta o
psicanalista cria hoje a demanda. À histérica não custa reconhecer
que foi isso exatamente o que sempre quis, antes ainda de chegar
a sabê-lo. Dispor de um Outro sobre o qual descarregar seu sintoma
e sua insatisfação, um suporte e um testemunho neutro, não
culpabilizador como o foram todos os que antes a escutaram, alguém
capaz de entender a verdade em sua palavra em lugar de rejeitá-la
como mentirosa ou inconsistente. Quando o encontra, cura-se
rapidamente e faz do Outro um substituto dos sintomas. Freud
chamou isto de“neurosede transferência”; L acan não o segue nesse
O gozo na histeria 217

caminho, ainda que tampouco se detenha para considerar em

detalhes este
expressão sintagma freudiano.
é pleonástica. Suponho que
Pois a transferência é a por achar aque
neurose, esta
neurose
necessária para que a análise progrida.
A neurose entra na transferência e assim o sujeito da neurose
entraem análise. A “satisfação sexual substitutiva” queera o sintoma
se desloca agora sobre a figura do analista e o gozo que se ancorava
no sofrimento muda agora de ancoradouro. Pois não fica à deriva,
não, quando se assenta no nível do discurso, ou seja, da pulsão
vocal, modalidade daTrieb que apenas foi entrevista (por Robert
Fliess) antes de L acan.

A análise
mudança poderia serdoo gozo.
na localização cenárioSim;
e o há
porto
umde destino
gozo desta do
da análise,
cumprimento da regra fundamental, do contrato analítico, do
enquadre discretamente erotizado no qual “tudo” poderia acontecer
sem que “nada” aconteça, dos intercâmbios de discursos e
interpretações, do falar e do ser falado. E uma das ciladas da análise
e, por vezes, das mais difíceis de romper pela “trama de
satisfações”2que é capaz de envolver tanto o analisante quanto o
analista que não saiba estar à altura de sua função.
A histérica e o analista inventam-se reciprocamente com relação

ao gozo. O edesejo
contenção canal do
de analista deverá,
evacuação para então, aparecer
esse gozo; como
se não vala de
consegue
fazê-lo, o estancamento da análise é a conseqüência inevitável.
A palpa-se aqui a dimensão de gozo da transferência que é, como o
queria Freud, modalidade da resistência, sem por isso deixar de ser
o motor daanálise. Transferência do gozo, dos undos
f depositados
no banco do inconsciente, do capital quantificado, cifrado.
A histérica quererá ser escutada se o Outro quiser que lhe fale.
Não se trata de um encontro fortuito, mas do cumprimento de uma
exigência estrutural. Ela demanda ser ouvida, pede o tempo do Outro
como medida do desejo de sua palavra. O discurso, diferentemente
do instante do olhar, requer tempo para ser desenvolvido e é assim
que o tempo se torna objeto e o discurso tem de se armar dos

2. J . L acan (1958-1961). Écrils. Paris: Seuil, 1966. p. 602. Em espanhol,


E s
critos 2. México, Siglo XX I , 1984. p. 582.
218 Gozo

recursos que permitam que o Outro se sustente como ouvinte.


Suspensões da frase, entrecortamento por choros e suspiros,
insinuações
criação de relatosem
do suspenso saborosos
torno deou dolorosos
uma queque
revelação se postergam,
tarda, rodeios
e desvios aparentemente caprichosos quando o Outro formula uma
pergunta, dosificação cuidadosa das confidências, aproximações
enviesadas do escabroso. Como não haveria de ocorrer a Freud,
escutando-as, a imagem da cebola com suas camadas concêntricas
de resistência à medida que o discurso se aproxima do centro, do
“núcleo patogênico” que é a lembrança do trauma, fortaleza que
encerra o encontro do gozo com o gozo do Outro?
O discurso, assim estruturado, seduz, conduz at
é si. Mas
apenas a quem quer e espera ser seduzido. O sedutor conta com o

beneplácito daquele
sua vítima, mas seu que pede para
cúmplice. Não ser seduzido,
excessivo, que nãorecordar
portanto, é, portanto,
aqui que o ato analítico está determinado pelo gozo e pela necessidade
de se preservar dele.
A histérica é entusiasta da análise, uma análise que lhe custa,
que avança em meio a imensas dificuldades, das quais se queixa, mas
que não acaba de recomendar e ate exigir àqueles que a rodeiam.
A ssim, dá a partida a análise, com a exposição detalhada os d
sofrimentos e da responsabilidade que o Outro e sua traição ou
ingratidão têm em si. Atendendo aos signos do ntere
i sse do analista
que ele deixa escapar para aderir à sua demanda, para lhe oferecer
em abundância os dados, os sonhos ou as associações
transferenciais vividas como demandas formuladas a ela. É o que
os médicos e hipnotizadores de antigamente haviam conhecido
como um traço de caráter e que batizaram com o nome de
“sugestionabilidade”. Esse traço deu base a Freud para escrever um
inesquecível capítulo de sua psicologia das massas.
Com um desespero por se fazer amar que a leva a crer que
ama... e daí apaixonar-se não há mais do que umpasso. A espreita
de manifestações do desejo do Outro que puderam se filtrar como
demandas e pronta para satisfazer tais demandas, para sacrificar-se
inclusive até a imolação.
Esta disponibilidade para aquilo que o Outro pudesse demandar
aparece como uma “plasticidade” especial que contrasta com o
outro pólo que é a “rigidez” obsessiva. Que o Outro diga o que lhe
O gozo na histeria 219

falta para ser dado, para que ela se dê no lugar da falta do Outro,
ou seja, para se identificar, para chegar a ser o desejo do Outro.
Se o Outro quer ser um escultor que plasme os seres humanos
segundo formas ideais, encontrará na histérica a argila maleável que
lhe permitirá ser um Pigmaleão.
Se o Outro se entregou a uma causa que o uniformiza, ela se
apaixonará pelo uniforme que foi investido como objeto do desejo.
A ventais de médicos, batinas de sacerdotes, togasde magistrados,
belezas da ostentação e da maquiagem, eloqüências do dizer e
poderes da política que atuarão assim como objetos imaginários aos
quais se prenderá o sujeito em uma dimensão quase etológica.
Encanto suave do apagamento do eu na-identificação com o ideal do
eu do Outro. A salvação na Causa.
M ais freqüente é que o objeto queo Outro reconhece também
seja uma mulher, a Outra mulher. A pareceaí a perguntapelo atributo
que a Outra tem como segredo da atração que sobre ele exerce e da
identificação com o que pode ser o motivo da atração entre eles. O
papel de intermediária e de espiã dos segredos do amor lhe vem a
propósito. Operará como “procuradora”, como juiz e, parte, como
“a convidada” (cf. Simone de Beauvoir), como elemento que
sustenta as intrigas, identificando-se e escutando as queixas de uma
e outra parte, como Dora, representando os papéis que a trama lhe
inspira.
Quer se encarregar do gozo, extraindo-o da suposta jazida que
é o Outro e para isso não há caminho mais curto do que confundir-
se com ele, entrar em sua bolsa. O gozo é uma essência que lhe
escapa e que apenas poderia ser fixado sobre a base de reconhecê-
lo e pegá-lo no Outro, um Outro que deve ser construído, esculpido
e defendido a qualquer custo. O Outro que é o assento de um gozo
ilimitado, o Pai ideal, primitivo, morto desde sempre, do mito

freudiano
todos que ela, a histérica, empenha-se em sustentar além de
os desmentidos.3
A esse gozo alheio e fugidio trata ela de mimar, fazendo
semblante dele (“artifícios”, diziam os clínicos depreciativos). Em
uma atuação à qual não concede maior confiança, insegura de

3. C. M il lot. Nododaddy. Paris: Point Hors L igne, 1988.


220 Gtmi

experimentar o que representa. E ntra na intriga como atri/.,


figurando-se o que poderia sentir no lugar do Outro e os efeitos qiu-
se produzirão no Outro segundo as diferentes op(era)ções que cm
cada momento lhe são oferecidas para que interprete seu papel. Daí
que sua própria atuação lhe é apresentada como artificial, rebuscada,
falsa. Lacan aludirá ao costado SemFé da intriga histérica, deste
desdobramento que a leva a ficar um tempo sobre o cenário e entre
os espectadores, participando e subtraindo-se no jogo dramático,
dizendo-se a cada momento que é “de mentirinha” que está nele c
logo saberão quem ela é de verdade, estando sem estar, sentindo a
impostura do gesto e a impostação da voz, oferecendo ao Outro um
corpo anestesiado ou morto que é observado desde fora por um
olhar ansioso de captar o que esse Outro faz ante seu corpo deixado
no abandono e na anestesia.
M as o compromi sso é menos fingido do que ela crê.
Equivocar-se-á ao identificar a demanda do Outro, uma demanda
que ela pediu e tomou como objeto de seu desejo, com o desejo do
Outro. Terá de viver para preencher o Outro, consagrada a
satisfazer o que supõe ser o desejo do Outro à custa do sacrifício
de seu desejo, o próprio, um desejo duvidoso que deixa de bom
grado e com alívio. Optará deste modo por um caminho de
abnegação, de sacrifício, de renúncia. Para isso, terá de ser um
complemento imprescindível, um objeto apendicular do Outro. E de
nada se queixará depois mais amargamente do que de haver sido
tratada como objeto. Em sua imaginação se figurará que o Outro a
quer perversa (inocente) e se representará fantasmaticamente essa
perversão para assim assegurar-se do Outro segundo a fórmula
proclamada por Lacan4como característica geral das neuroses e
confirmando as observações de Freud em seus trabalhos sobre os
fantasmas esobre o ataquehistérico de 1908 e 1909
.5,#
Oferece-se como objeto que encobre a castração do Outro que
aparece assim, graças a este apêndice pórtico, em sua completude

4. J . L acan (1960). Écrits, p. 825;Escritos 2, p. 805.


5. S. Freud (1908). Obras completas. Trad. J. L. Etcheverry. Buenos Aires:
A morrortu, 1976. v. IX, p. 139.
6. Sigmund Freud (1909).Obras completas,v. IX, p. 207.
O gozo na histeria 221

sem falhas, no lugar do dono e senhor do gozo, no sítio inacessível


do Urvater. Essa é a fórmula da histeria propostapor Lacan em seu
seminário sobre a transferência e logo deixada (por quê?) no
esquecimento:7

@ 0 A
-cp

A operação é interesseira. Ser no fantasma o objeto que


assegura o gozo dopartenaire do amor para assim negar, não a
castração do Outro, como acontece nas perversões, mas a própria,
é algo que leva a ocupar um lugar preferencial, a tornar-se
imprescindível - no fantasma - para o Outro. Este lugar é incerto.
Como estar convencida desse lugar de privilégio do qual a Outra
mulher poderia despojá-la? Até que ponto édigno e o Outro aprecia
o sacrifício e a homenagem que recebe? Que efeitos podem se
produzir por sua separação e sua perda?
Se o Outro a quer, é mister que dê provas. Deve-se ver até que
ponto está disposto a chegar e se é capaz de responder às oferendas
ilimitadas que recebeu. A lâmina libidinal que a une com esse Outro
incerto é um órgão elástico que deve ser constantemente estirado até
comprovar seu limite.8
E o Outro, à larga, quase fatalmente, revela não merecer os
sacrifícios, ser incapaz de responder com gratidão, ser traidor,
pervertido, sádico, indigno da confiança depositada. O ato seguinte
ao da oferenda sacrificial sob o lema de “tudo por ele” é o da
reprovação, da acusação, da autocomiseração, da reclamação
violenta, da provocação que produzirá as provas palpáveis da traição
do Outro. E o terceiro ato é o do deslocamento paraum novo Outro,
pessoa ou causa, que pareça exigir o sacrifício passional para
restaurar ou alcançar sua plenitude. Sempre à espera desse Outro
absoluto, definitivo, ao qual ela ofereceria Tudo. Frente a essa figura

7. J . L acan. Le seminaire. Livre VIII. Le transferi.Paris: Seuil, 1991. p. 289


e 295.
8. J. L acan (1960-1964). Écrits, p. 848;Escritos 2, p. 828.
222 Cio/n

do Pai Ideal, todos os demais (os outros com mi


núscula) estã
o em
falta, são menos válidos.
A ssim, entendem-se saquatro belezas da histérica.
Queixosa, vítima, objeto de humilhações, traições, incompreen-
sões e ingratidões, ela é alma bela, depositária imerecida de sevícias
e desgraças. Oferece-se como objeto ao olhar e à escuta do Outro.
“Olhe ao que me vejo reduzida.” “Ouça, se é que pode suportar, o
relato de minhas desventuras.” Sade o prefigurou com um título
mordaz: J ustine ou os infortúnios da virtude. O ser da alma bela
confunde-se com essa queixa continuada, esse prolongado lamen
to, essa sucessão de sintomas e crueldades. O gozo corre ao largo
do relato sem que seja identificado como tal nos pormenores das
traições do amado, os erros dos médicos que deixam um resto de
corpo quereconhecimento
faltas de sofre, descartado,
por marcado
parte dospor cicatrizes
filhos e amigos,cirúrgicas, as
as injusti
ças de chefes e professores. Sofre e chora ao contar na outra cena.
Conta reavivando o sofrimento das experiências desagregadoras na
extensão da lâmina além do tolerável. O relato da inocência perse
guida, do sujeito que é castigado quando somente segue a lei do
coração, exige a inversão dialética indicada por Lacan nocomeço de
seu ensino.9O fantasma de flagelo, batem numa criança, isolado por
Freud, é a colocação em cena privilegiada da alma bela.
A segunda beleza da histérica belleé a indifférence. Bela indi
ferença para atravessar, sem se despentear, os furacões e moinhos

de
comdesespero que se
seus próprios geram
limites em torno
frente a umadela. O Outro aparentemente
experiência, se confronta
imprevisível, que o insta a atuar e logo o preenche de reprovações
por sua atuação. Toda vez que o Outro resolve fazer algo em prol
ou contra a demanda histérica, demanda de que se responda a seu
oferecimento eentrega, el a se subtrai à homenagemou à reação que
suscitou. Não é isso que ela queria. Seu desejo continua sendo um
desejo insatisfeito. A indiferença, quando não o franco desdém, são
respostas à mobilização do Outro. Insensibilidade que também o é,
ou que primeiro é, do corpo. O alimento ou a bofetada, as carícias
e o sexo, os adornos e as vestimentas que realçam ou que desme

9. J. L acan (1951-1952). Écrits, p. 219;Escritos 2, p. 211.


O gozo na histeria 223

recem a beleza “dão no mesmo”. São problemas para o desejo do


Outro, esse desejo que ela desperta ou invoca, mas que ignora, im
pávida, porque não lhe diz respeito. Chegando ao extremo da
anorexia nervosa, na qual a colocação em jogo inclui a própria vida
e mobiliza seu entorno, sem que isso lhe importe, o desespero de um
entorno sempre crescente. É que a angústia do Outro pode chegar
a ser um alimento que nutre e acalma uma fome que está além da
fome, necessidade insaciável de um nada que eleva a potência fáli
ca de quem se recusa, ela, à dominação do significante fálico. E ela
quem - subtraindo-se - mostra a inútil vaidadedo desejo. São eles
quem os reprovam.
A terceira beleza é a da “bela adormecida” que sonha com um
futuro despertar em um paraíso de felicidade, mas que, enquanto
isso, espera sem se agitar achegada de umdesejante que adesperte.
O desejo não lhe diz respeito; ela atua na lista da ausência de desejo.
A ação está assim sempre suspe nsa e, quandofinalmente seproduz,
será ignorando as conseqüências, será para ser arrastada pela
turbulência incompreensível do Outro. Amar, estudar, lutar por uma
causa, ter um filho, comportar-se a favor ou contra certas regras,
trabalhar, são coisas alheias, coisas que ela pode fazer, mas sem
senti-las como suas, com frieza, prestando-se (sem se dar) a
satisfazer expectativas estranhas, dissociada das conseqüências.
Enquanto não as faz está dormindo, quando as faz é sonâmbula. Em
um futuro, alguma vez, o desejo manifestado pelo beijo do príncipe,
o amor, poderá resgatá-la de sua apatia. Pois dela não procede
nenhum desejo; está encantada.
A quarta beleza da histérica é a que a opõe alter
a seuego:a
fera. A beleza quarta vem ao seu encontro com um carrasco
sanguinário que a faz objeto das vilezas mais abjetas. O ser brutal,
tosco, violento, carente de delicadeza, que a relega e a humilha é algo
de que se queixa sem cessar e que parece, apenas parece, a
atualização necessária de um fantasma masoquista. A dupla da bela
e da fera aparece com chamativa freqüência nos consultórios
analíticos. A história da alma bela, da bela indiferença e da bela
adormecida parece requerer em algum momento a aparição deste
personagem complementar que é o responsável pelos infortúnios da
virtude, dando substância e espessura às queixas, essas queixas que
se repetem nrnotonamnte ante a série dos faiiliares, dos
sacerdotes, dos:onfidente e dos terapeutas e que, tolos suspeitam

disso, são a fonemas


do masoquismo de do
umfanasma
gao recôndito, um gozo qtt
que acompanha procede não
o sifrimento, que
é o de relatar ese sofrimeno ante um ouvido comprensivo que se
(Mitlid).
identifica com da no proteto c na com-paixão
Em suas ndinhas, os psiquiatras vingam-se e cpetem o que
seus livros nãodizem: quena especialidade há dua vítimas por
antonomásia, qe são a muller do alcoolista e o maricb da histérica.
A s vezes, os dosfazem uncasal e o resultado garaite o gozo de
ambos. Para o pscanalista, oda vítima é suspeita de cumplicidade
quando não o ator inteL ctual do crime. (Sim;3s li vros de
jurisprudência etão imprenados de comicidade iivoluntária.)
I nclusive um arali sta perpicaz como L ucien I srél chegou a
escrever um rtig)
a que se chmava assim: “A vítima d histérica”.10

2. Em função dogozo

Bem; chegoi o momeno de abandonar os retrato: falados para


entrar na considração estutural e apreciar o quese ganha ao
introduzir o conce
to de “goz>” na clínica do pitiatismoantigo nome
desta venerável nurose da ciai nem os psiquiatras qiErern saber.
A histérica, )stentandosua insatisfação, advoga )or um gozo
supremo, subline. A solu<áo que se oferece ao faante é a da
normalização sex al, passan o pela castração, que ginem torno de
um significante dcgozo com( impossível: o falo. A histrica o recusa
(esta é uma dasrazões eTão a menor para falai sempre da
“histérica” indepeidentemene do sexo de suas credencais). O falo,
caminho ofereciò ao gozoie todos e de cada um, é omado por
ela não como sgnificant;, mas como objeto qu<se revela
insuficiente, incapz de cumjrir suas promessas. A histrica leva ao
extremo a posiçãí estruturalfeminina que não se satishz com ele.

10. L. Israel.L ’hystrique, te se£ et le médecin. Paris: Massa, 1976. (Em


português,A histrica, o sexo? o médico.São Paulo: Escuta 1995.)
O gozo na histeria 225

Contestando o vetor que va


i desdeA mulher (que não existe) até o
falo, sublinha a importância do outro vetor, aquele que, dentro do
campo feminino mesmo, dirige-se ao enigma do que é e do que quer
uma mulher:

N ão-toda é a fórmul a lacaniana, a mulher não-toda na


significação fálica, partida entre o homem e a Outra mulher,
dirigindo alternativamente sua pergunta e encontrando sempre meias
respostas sobre este gozo que experimenta, mas que não sabe em
que consiste. Na histérica esta alternância é extrema. O
apaixonamento de sua entrega não conhece meias palavras. Seu não-
toda é desmentido; a consagração absoluta à figura do Pai Ideal
redivivo a leva a um toda-em. Mas toda-em nã
o podeconduzir senão
à decepção, ao naufrágio anunciado do falo e de sua soberba. Passa-
se assim dotoda-em para o toda-não na relação com o falo e na
contestação das virilidades imaginárias. É o momento da
identificação com o que falta à imagem, o momento em que ela, dizia
L acan, “faz o homem”. Do toda-em ao toda-não como re
sultado de
um questionamento que, nos dois casos, está centrado em torno do
falo e de sua função. A decepção anima esta passagem a uma
pergunta que a leva, em um momento de sua dialética, a colocar-
se “toda-na” pergunta dirigida à Outra mulher sobre o gozo feminino:
é a situação de Dora quando se volta para a sra. K , que mal poderia
ser tomada como “homossexualidade” ou como “perversão”, ainda
quando o ane xo de Freud, acrescentado m e 1923, pudesse abonar
226 Gozo

a confusão. É histeria e nada mais do que histeria o que há em sua


posição ante o casal K.

Estapôde
homem, contestaçãoque
fazer do falo
um co m, ao
livro mesmo tempo,
imprescindível amimese
levasse do título
o justo
de O feminismo espontâneo da histérica.A pergunta histérica é
consubstanci
ai à pergunta sobre afeminilidade. A respostalacaniana,
“não-toda”, é pouco convincente para a histérica que se joga ao “tudo
ou nada”, oscilante, sempre temporário e desejante de um definitivo
que sele para sempre o estatuto de “a mulher”. Daí também que a
fórmula do discurso histérico inclua esta busca reiterativa de um
senhor que possa responder sem ambigüidade à pergunta pelo ser
da mulher:
S -» S,
(2> // S2

de um senhor que dê respostas, que ofereça um saber (padres, mé


dicos, professores, psicanalistas), um saber que, claro, sempre
falharápara dizer a verdade e que estará em relação de disjunção
(@ // S2) com o objeto que é causa de seu desejo, com o mais de
gozo, com a verdade que move seu discurso. Um senhor que, a
menos que se estreitem os nós da relação, a menos que se creia nis
so, acabar
á em fera.
A histérica vai pelo mundo, ass
im, insegura de sua identidade,
tratando
própr de“a
io que definir quem
importun é, qual é seu
a”),11mimando d nome
i ferente próprio
s identidades(esse
que senome
confundem com papéis (sociais, teatrais), à pesca do que é desejo
no Outro para se identificar com o objeto desse desejo e alcançar,
assim, uma identidade fantasmática (terceiro tipo, identificação
histérica, descrita por Freud no capítulo 7 de “Psicologia das massas
e análise do eu”).12Repetindo permanentemente a pergunta dirigida
em primeira instância à mãe: o que é ser uma mulher e como ela
goza? E que, ante a decepção da resposta (castração feminina),
desloca-se para o pai: “o que me falta?” e que leva a filha a se

11. J. Lacan (1960). Ecrits. p. 822;Escritos 2, p. 802.


12. S. Freud (1921).Obras completas, v. XVIII, p. 107.
O gozo na histeria 227

identificar com sese falo que éparao pai uma mulher além da mulher
(castração masculina).
Na dupla da bela e da fera, como já disse, o gozo está
garantido para ambos. Com uma dupla cujo desejo é, em essência,
um desejo insatisfeito, produz-se para certos neuróticos uma
excitante situação de desafio, um aguilhão permanente para gozar
coo1,o sintoma, sintomaprivilegiado “de todo homem”,13que éessa
mulher. -Ser o príncipe do beijo despertador é um fantasma
complementar ao da bela adormecida, assim como o é também o de
ser quem detém os segredos do gozo feminino, superando nisso o
resto dos homens (jmrtenairesinconscientes do ato [homo]-sexual).
Por outro lado, se ela é porta-estandarte de um gozo duvidoso que
estaria além do falo, ele pode se satisfazer com a convicção de que
a vida de casal parece trazer-lhe que não há outro gozo mais do que
o seu, o fálico. E, se ela recusa o álibi e o curto-circuito do prazer,
prolongando e postergando as ocasiões de satisfação, ele percebe
que esta inacessibilidade sustenta sua ereção e pode montar cada
(des)encontro sexual sobre um cenário de violação e estupro.
Pois a ausência e a indiferença ante o desejo elevam o gozo à
condição de um absoluto inalcançável com o qual se consuma a

façanhaE de
gozar. gozar não
o desejo ao quadrado pelo
falta, mas, fato
nela, (noinsatisfeito,
está leito) de gozar
pois de
ela não
não
se engana, pede o falo e sabe - bem e muito bem- que o pênis não
é senão um simulacro descartável, incapaz de assegurar o gozo. Seu
partenaire é, além do varão, o Pai primitivo, dono de um gozo
irrestrito, não submetido à castração, exceção inalcançável que
inscreve a regra da falibilidade de todos os outros. O desejo fica
insatisfeito porque ela não é incauta, comprova uma e outra vez a
castração do Outro c recebe dessa castração seu próprio valor fálico;
por não tê-lo, chega a sê-lo,non-clupe,
é pois sabe que o pênis não
é senão a metonímia do falo. (Não quer falar com o palhaço, mas
non-dupes errenf,essa é a essência
com o dono do circo.) Claro, os
da neurose. Muitas vezes, vem curar-se de sua incapacidade para
se deixar enganar, da astúcia com que torna seu desejo um desejo
insatisfeito, de sua perdurável engenhosidade para criar insatisfação.

13. J. L acan (1975). Seminário X XI I I , p. 19.


228 Gozo

O que pedeé saber, mas, além, sustenta a


insatisfação deseu
desejo; mal poderia, então, comprazer-se com os significantes que
lhe entrega o senhor, o homem de Deus ou da ciência. Sua pergunta
aponta, por cima da demanda, ao desejo. Como na criança
(“infantilismo” tão denunciado), as respostas a seus “por que” não
acalmam a curiosidade, mas a exacerbam. Que o Outro se disponha
a saciar seu apetite de respostas, encontrando incontinenti nela,
como resposta, uma verdadeira “anorexia mental”, um cuspir e
vomitar os significantes que pediu. Bulimia e anorexia. A pergunta
se desmultiplica, toda ela é um enigma, o saber é posto em suspenso
por sua simples presença. E eis que não há significante deA mulher.
Essa é a resposta deL acan àpergunta.
Dirige-se ao Outro com uma demanda (D) insaciável. O Outro,
diante dos porquês da criança, acaba por mostrar sua falha, o saber
que lhe falta. A resposta que a demandaobtém é a falta a ser do
Outro como efeito infaltável [S (A)]. A demanda revelou o desejo
(d) e seu fundo impreenchível.

A(Outro) -  D (dem anda [de saber]) = S (A ),  [d (desejo)]

A discordância entre D e d revela a falta no Outro: o grande A


é A. A demanda feita ao Outro revela inevitavelmente uma falha que
não está nela, mas nele. Assim, o lugar da incógnita se deslocou.
A gora é ela própria o enigma para esse Outro que não compreende

esuposição
que é insufi
dociente.
saberMabsoluto,
esmo que, esforce-se
e ainda maispor
quadotá-la
ndo, seduzido pela
da resposta. E
que o gozo procede justamente da revelação da insuficiência do
senhor, de sua impotência e de sua castração. Ela o põe a trabalhar,
mas as palavras que ele diz não fazem senão exibir sua falência
(carência de falo). R ecebe com ceticismo o saber que lhe é
oferecido: “Sim; está bem, mas... não é suficiente, algo, não sei bem
o quê, falta”. O clínico se assombra ao ver que toda palavra sua é
corrigida por ela, ainda quando é simplesmente a citação textual do
que ela disse. E que nenhuma palavra poderia dizer o ser dela e
sempre se aferrará à sua diferença, essa diferença que não quer nem
pode ceder, já que
sua castração, essa (pre)sente
castração que sersedita
à que pelo porque
aferra, Outro ésupõe
reconhecer
que é
o que o Outro quer e que o Outro gozaria com ela. O analista deve
O gozo na histeria 229

partir, então, para intervir, de sua necessária imperfeição, da


renúncia a tudo que seja saber, da recusa em tomar o lugar do " que
enganosamente lhe é atribuído, da colocação em ato de sua
ignorância. Também neste sentido cabe afirmar que é a histérica que
inventou opsicanalista com suapaixão dominanteque é a ignorância.
No discurso da histérica, as palavras e o saber podem ser
apreendidos, mas eles não a tocam em seu corpo cortado e
recortado pelo sintoma, pelo ataque de nervos, pelas operações do
cirurgião, pela maquiagem e pela persecução incabável da beleza e
juventude eterna, pela busca no espelho e na outra mulher do
segredo de seu desejo insatisfeito.
O gozo do sintoma não se dissolve no gozo fálico que passa
pela articulação discursiva. Em outras palavras, é gozo fálico que não
atravessou o diafragma da palavra, que está retido, reprimido. Por
isso, Freud se inclinava pela hipótese da dupla inscrição com a
dissociação entre duas Vorstellungendiferentes, arepresentação de
coisa e a representação de palavradissociadas entre si, consciente
e inconscientecoexistindo sem se tocar. E L acan arremata aquestão
dizendo que o saber e a verdade não mordem do mesmo lado da
banda de M oebius.14A interpretação sábia não levanta a repressão
por irrepreensível que pareça ser nas perspectivas da lógica e da
técnica. Frente aos discursos do senhor e a universidade, é ela quem
tem razão. Por isso teve que inventar o dispositivo psicanalítico que
é a resposta de Freud ao enigma da histeria.
O essencial da verdade se subtrai, necessariamente, ao saber
da interpretação, assim como o substancial, a sensibilidade do corpo,
se subtrai ao gozo fálico. Fica intocada. Esta subtração deve atuar
como estímulo do desejo do Outro e, portanto, no lugar do que falta,
vê-se investida de valor fálico, de significação, de estatura
imaginária.

C riando
fabricar a faltapostiço,
um desejo a ser (dese
umjo) no Outro
simulacro deédesejo.
possívelPois
paraé ela
essa falta
no Outro que opera como molde e como modelo para sua
identificação: ela será isso que falta. Deste modo, alcançará uma

14. J. Lacan (1965).Écrits, p. 861;Escritos 2, p. 840.


230 Gozo

identidade e poderá aspirar a ser imprescindível, a inscrever-se de


tal maneira na história, por procuração, por meio do Outro e da

oferenda do quanto ele


engano fundamental quepossa demandar-lhe.
é feito a si mesma ao Operou-se,
confundirassim, o
a demanda
(do Outro) com o desejo (próprio). Ser, no fantasma, objeto do
desejo passará a ocupar o lugar de ser sujeito. Foi necessário criar
a lacuna, a falta a ser no Outro (como se não existisse por si só!)
para se oferecer no lugar daquilo que pode preenchê-la. Daí a
constituição da dupla da bela e da fera. Daí sua formidável
predisposição para instalar-se no dispositivo analítico.
Reagindo com emotividade e agitando-se ante o desinteresse do
Outro, reclamando-lhe a frieza e, pelo contrário, ante a paixão que
poderia despertar, respondendo com a indiferença e com o desapego.
Sem
vista,correspondência, na contramão.
reconhecida, ouvida, Cultivando a ordenada
admirada, hipnotizada, falta, pedindo ser
por um
Outro que não consegue possuí-la plenamente porque sempre fica
esse resto que se subtrai, posto que “isso” que constitui a resposta
não é precisamente o que ela esperava. Pois nenhum pai é O Pai, esse
a que dirige a sua demanda.
A análise lhe convém, lhe corresponde eé fonte deum gozo
que é resistência ao desejo e que deverá ser cevado e logo
contrariado pela operação do analista. Graças a esse gozo, a análise
pode evoluir e também pode estacionar nos pântanos da neurose de
transferência. Sua paixão requer uma testemunha que seja sujeito de
(a) (com)paixão para quem ela está disposta a viver sofrendo e
oferecendo óbolos sacrificiais. Queixando-se de ser tomada como
objeto, é como objeto que vem a se oferecer às manobras do Outro.
Formula sua pretensão de especularidade, de intercâmbio recíproco
dos í(@), oferecendoi por @, gato por lebre, em um engano do
qual é a primeira vítima. Sua idéia, seu fantasma, é o do
recobrimento recíproco e absoluto dos dois desejos. Por isso pode
funcionar como sacerdotisa do amor. Sua religião é a relação sexual,
essa que não existe. Para fazê-la existir fica o que a supre, o amor,
o que a permitiria tapar a tripla falha no imaginário, no simbólico e
no real.
@ é o que falta ao Outro em sua barra (A) para chegar aser
A . E la se oferece no lugar deste objeto restaurador da
O gozo na histeria 231

integridade, com a esperança de que sua própria cisão subjetiva, sua


própria castração, seja superada nesta relação de absolutos. Se o
outro, graças aela, conseguepassar de A a A, ela, de volta e por
identificação, poderá passar de S a S na integridade de um amor
invicto. Oferece-se como objeto mais-de-gozo, apresenta-se como
o estojo que contém essa agalma, garantia de gozo que falta ao
Outro, causando seudesejo. M as o segredo daagalma consiste em
estar oculto, enclausurado, inacessível. Para que o desejo se sustente
é necessário que seu objeto se subtraia e desse modo fique exaltado
o gozo de que este objeto “queria” ser a condição absoluta. Do desejo
do Outro, ela é - negando-se - a causa objetai e objetivada. Para
poder sê-lo tem que negar-se e ignorar toda possibilidade de
Befriedigung,semear a insatisfação.
A relação com o saber, a que se mostra no discurso da
universidade, oferece-lhe uma oportunidade privilegiada. Colocando-
se como @, no lugar da ignorância oferecida ao discurso do sa ber
(SJ , ela se produz como suj
eito (S) que, em seu devido momento,
buscará o senhor. O discurso da histérica é o inverso, especular, do
discurso da universidade.

S -» S, S2 _> @
@ S; S, S

discursoda histérica discurso da universidade

Dirige-se ao Pai primitivo, presumido dono do gozo e do saber


sobre o gozo, Outro que não conhece a castração, para o qual erige
um lugar deexceção insustentável. Tropeça ol go, quando não é ela
mesma que a provoca, com essa falha que renega e se identifica à
falta que está agora à vista como sendo a medida de seu
preenchimento. “O que me falta é faltar-lhe” pôde dizer alguém,
expressando assim seu desejo pelo lugar que corresponda a seu
desejo renunciado e insatisfeito. Daí a difícil posição do analista que
não pode se refugiar na impostura da impassibilidade e da falta de
desejo, mas que tampouco pode permitir-se indicar-lhe um lugar de
carência para que ela se aninhe nele. É o momento de recorrer a
essas vacilações calculadas da neutralidade e essas mostras da
232 Gozo

necessária imperfeição recomendadas por L acan, eludindo a


dificuldade de indicar um lugar de identificação que possa depois dar
pé ao álibi do: “Não é por mim que faço isso, mas por você”.
No seminário, em 1975,15 L acan distinguiu os três tipos
freudianos da identificação como ligados a cada um dos anéis da
cadeia borromeana e referiu a identificação histérica, a terceira da
relação de Freud, à identificação com o imaginário do Outro real.
T rata-se de um Outro real que foi elevado à categoria do Um
absoluto, do Pai srcinário, para logo subtrair-se dele e elevar-se ela
com a qualidade de objeto de seu desejo.
Por tudo isso, o desejo da histérica é um desejo sem objeto e
essencialmente insatisfeito: seu objeto é a falta no Outro e isto é o
que insaciavelmentepede, consumae consome. Mas de tal falta no
Outro não pode ter senão manifestações duvidosas, palavras que são
tão incertas como a pouca segurança que pode conceder à sua
própria sinceridade. O costado Sem Fé de sua palavra se projeta
sobre a palavra do Outro. A dúvida exige provas de coerência e
consistência, provas que não fazem senão alimentar a desconfiança.
A limenta-se com a inconsistência do Outro. De nobodaddy (C.
M illot, op. cit.)
Tomar o lugar do objeto @ para desmentir a falha no A e vol
tar ao Outro imortal dos primeiros tempos é algo que a irmana, mas
que também adistingue do perv erso que lea imagina ser. Vale apena
comparar e diferenciar. O perverso toma o lugar do objeto @ em
sua relação com um sujeito, partenaire
seu na perversão, no qual se
propõe fazer aparecer a falha subjetiva (S), a dor, a curiosidade por
ver, a submissão a um contrato que ele dita e edita, o despedaçamen
to frente ao seu olhar de
voyeur,a adoção de um credo transgres-
sivo que ele inocula no ato de sua penetração proselitista etc. Na
prática dessas operações perversas, ele não atua por conta própria,
mas por contade um terceiro, o Outro, a M ãe, cuja incompletude
é desmentida por esse filho-falo que tomou um valor de fetiche ou
que assumiu o fetiche como objeto de gozo que nega a castração,
a castração do Outro. Em troca, os histéricos encobrem sua cas
tração, a que receberam de início, oferecendo-se ao seu par para

15. J . L acan. Seminário XXII, aula de 15 de abril.


O gozo na histeria 233

cumprir o desejo que eles mesmos provocam. O perverso solicita


a conversão do outro; a histeria é “de conversão”, faz e se presta
à conversão que oferece a seu partenaire. L acan expressava esta
divergência dos caminhos, dizendo: “Para voltar ao fantasma, diga
mos que o perverso imagina ser o Outro para assegurar seu gozo,
e que isto é o que revela o neurótico imaginando ser um perverso:
ele para assegurar-se do Outro ” .16E daí a diferença essencial que se
destaca quando se aproximam as clínicas da histeria e da perversão.
Enquanto ela, a histérica, abomina o gozo, ele, o perverso, se con
sagra a cultivá-lo; uma o reprime e o desterra, o outro o colhe... não
formam uma dupla tão má a bela e a fera. Ou pior.
O perverso desme nte a “falha” da mãe - ela não pode senão
ser fálica - e adora, no objetoelevado à dignidade do fetiche, o ins
trumento mágico que usa para desmenti-la quando não se transforma
ele mesmo em tal fetiche. A histérica não alimentaessa esperança.
Sua mãe, como a mãe de Dora, é esse ser carente e depreciado que
constitui o pólo negativo de suas identificações, o lugar de um des
prezo inevitável. “Se ser mulher é ser como ela, então eu não que
ro ser mulher”, é seu lema e se consagra a estabelecer uma diferença
(vive la différence!) que assume as formas do “fantasma bissexual”

(Freud)
seração epor
deestar
negação
unidodaa feminilidade.
uma mulher tãoO pai se faz digno
insuficiente e elade comi
está dis
posta a se identificar com o que falta ao pai, com a Outra mulher
que poderia lhe ensinar o que é uma “verdadeira” mulher, com as
senhoras K. Assim é como a filha se torna o que preenche a falta
em A, assumeo lugar de |)<e não de menos, minúscula, reveste-se
de um valor e de uma significação fálicos. Sua vida está submetida
aos significantes do desejo do pai, ou seja, de ua
s castração. Vive,
então, para obedecer ou para repelir esta demanda, oscilando em suas
identificações. Tanto no positivo como no opositivo, são esses sig
nificantes os que a guiam pelo mundo sem que ela queira saber de
tal dependência assimiladora. A firmando, pelo contrário, sua singu
laridade, pretendendo ser reconhecida como “ela” e descrevendo-se
aqui no México como alguém “m uito especial” e derretendo-se ante
qualquer um que lhe diga que é “muito sensível”.

16. J, Lacan (1960). Écrits, p. 824-825;Escritos 2, p. 805.


234 Gozo

Para esquematizar: o perversotem a M ãe e a histérica tem o


Pai como objeto de culto. A diferença nodal reside na atitude ante a
castração, a que verdadeiramente importa, a castração do Outro. Se
o perverso a desmente, a histérica a abomina e a reprime. Daí o
parentesco, daí a oposição, daí a freqüente complementaridade. O
perverso “faz A mulher”, diria, para cotejar sua posição com a da
histérica que, Lacan dixit, “faz o homem
” .17

3. H isteria e saber

Particular, muito particular, é a relação da histérica com o saber.


Sabe-se que ela sofre por não saber, por reminiscências, por
repressões, por falta de continuidade cm seu discurso, por “lacunas
mnêmicas”, pela armadilha de seu gozo em sintomas que falam sem
dizer, sofre pelo saber que insiste em ser inconsciente. Seu saber
não sabido é fantasmatizado por ela no Outro, o sujeito suposto
saber do qual está prestes a se apaixonar justamente por isso. Sua
falta se preenche no imaginário como discurso sem cesuras. O falo,
que separa do gozo, encontra seu equivalente no saber. Ah, se
soubesse! Sabendo, o gozo, amarrado ao sintoma, poderia ser
alcançad o como articulação discursiva. Mas esse saber que a ela falta
é o atributo do Outro. E ele, exigido, instigado, não dá senão restos
insatisfatórios que, como já foi dito, alimentam as perguntas. Má-
fé, desprezo? Acontece queele se nega a compartilhar o saber que
não pode ter e, com base nisso, exerce e sustenta seu domínio sobre
ela ou o usa de modo agressivo e humilhante, bestial. No fantasma,
o Outro do saber se torna sádico; conviria chamar “sabismo”ls esta
relação de cumplicidade que, com freqüência, se estabelece entre a
bela e a fera que a flagela com seu açoite de palavras. Não raro, este
fantasma do saber como potência fálica incita a histérica a buscar
apoderar-se do saber, despertar de seu sonho e de suas fantasias,

17. J. L acan (1969). Seminário XVI , aula de 18 de junho.


18. N. A. Braunstein. Sabismo. El saber en la histeria. PorIn: el camino de
Freud, p. 73-85.
O gozo na histeria 235

avivar em si a dormida curiosidade, tratar de recuperar o corpo


perdido por meio do saber da fisiologia, da psicologia, da psicanálise
ou da literatura, como modo de suprir a falta inelutável do Outro, a
resposta que indubitavelmente falta ao enigma que se escreve com
S (A).
Deste modo sustenta a insatisfação provocada pelo falo, por
suas promessas não cumpridas (versagt).Como o Outro não pode
dar o saber a que ela aspira, saber sempre insuficiente, perpetua a
interrogação dirigida à Outra mulher, aquela que deteria o segredo
do que uma mulher é e quer. De certo modo implica uma passagem
para o outro lado das fórmulas da sexuação, invertendo o sentido do
vetor: deter o saber como falo e desde aí tratar de responder à
pergunta pelo ser de A mulher: O — A. O fantasma de flagelação
revela, agora, sua conhecida reversibilidade. O sujeito que era
passivo e gozava interrogando o Outro passa a ser ativo e a exercer
o sabismo sobre opartenaire, sobre os alunos, sobre os doentes,
sobre os que estão sofrendo por não ter esse saber. Não é raro que
esse fantasma do uso sádico do conhecimento acabe por determinar
inibições intelectuais e profissionais que são o motivo, por sua vez,
de novas demandas ao saber, desta vez, o psicanalítico. E ali os
fantasmas do sabismo tenderão a se atualizar na transferência e
como transferência.
Dirigir-se ao Outro até fazer aparecer a falha nele para logo se
oferecer como tampão de tal falha. Desesperá-lo, marcar sua
insuficiência, propor-lhe como sujeito de análise ainda quando não
haja demanda nele, incorrer no risco de que se cure desse sintoma
que é uma mulher, tensionar a lâmina libidinal, provando seus limites,
falar incessantemente “sobre a relação” fazendo de seus lamentos
acusações (Klagen sind Anklagen),'9 viver sempre no limite da
ruptura e da separação, das lágrimas e da oferenda agressiva, da
entrega que se inscreve no livro cuidadosamente levado da dívida do
Outro, com uma memória desapiedada das falhas, deslealdades e
inconsistências do Outro. Porque o sacrifício da histérica é uma face
de seu amor, sendo a outra a da acusação pela falta de reciprocidade
daquele que não soube corresponder a ta
nta entrega. A teatrali dade

Obras completas,v. XIV, p. 246.


19. S. Freud (1915-1917).
236 Gozo

é representação que aponta a um terceiro, o futuro espectador e o


futuro ouvinte do drama da ingratidão, um terceiro que pode ser
permutado pelo livro de contabilidade, no qual se anotam sempre os
danos sofridos e que está pronto tanto para ser recordado
minuciosamentequanto pa ra ser n
i crementado. L acan, em seu artigo
sobre a agressividade, falou dos “contragolpes agressivos da
caridade” ,20 que constituem um aspecto essencial da intriga histérica:
dando e dando tanto e mais do que lhe é pedido, consegue ela um
devedor, alguém que supostamente lhe está abastecendo, um ser
inseparável porque está aí atado pelo que recebe u. É o aspecto
interessado de seu “maso-heroísmo” (Colette Soler) e de sua “função
civilizadora” (Catherine M illot) cumprida por meio da entrega ao Pai
alternativamente idealizado e perverso.
A relação especular e o fantasma da simetria dominam o
campo. O que dá éo que pede. A projeção é constant e: “Eu em seu
lugar teria...”, “se eu lhe fizesse o que ele me faz...”, “não me
explicou como pôde fazer isso comigo...”. E tudo isto vivido e atuado
para um terceiro - livro, personagem ou psicanalista - , a testemunha
de sua paixão, ele que deverá se compadecer, culpar o outro,
absolvê-la em uma estrutura narrativa judiciária na qual ela é
alternadamente vítima, jurado, juiz e carrasco que sanciona e aplica
o merecido castigo.
Seu eu se torna a medida de todas as coisas. É inconcebível
que o outro tenha gostos diferentes, se interesse por outras coisas,
queira seus familiares em vez dos familiares dela, não compartilhe
sua espiritualidade e seu amor pelo belo. N ecessita, exige e
contabiliza as provas de devoção, de que ela importa para o Outro.
Os ciúmes narcisistas que sofre pela rival, pelo trabalho, pela
repartição do tempo do Outro, a consomem, mas se transformam,
por sua vez, em uma nova maneira de se fazer presente e de
reclamar a dívida sempre crescente do Outro. Sua exigência de ser
o objeto onivalente do gozo do Outro, de ser a condição de seu
gozo, de que somente com ela se goza. Seu valor de gozo deve se
equiparar ao gozo que falta ao Outro: é prisioneira do gozo do Outro
que pretende saturar e encapsular ao mesmo tempo em que procura

20. J. L acan. (1948). Écrits , p. 1075;Escritos /, p. 100.


O gozo na histeria 237

sempre subtrair-se a esse gozo alheio para confirmar seu valor. Pois
é pela falta dele, d’Ele, que ela alcança valor fálico, valor de gozo.
M as nada lhe consta disso se não for pela insatisfação que pode
trazer e que traz o desejo.
A relação com o gozo do Outro a define nesse difícil papel de
se oferecer para a satisfação ao mesmo tempo em que se subtrai
para que o desejo insatisfeito a sustente no lugar fálico-narcísico da
plenitude que imaginariamente poderia trazer ao Outro e que a leva
a controlar constantemente seu peso na báscula do Outro. M as
assim fica em dependência das altas e baixas em sua cotação,
exposta a impredizíveis vai-e-vens que são causa e razão de
freqüentes feridas narcísicas disso que os psiquiatras de hoje
qualificam “depressões” e alimentam com medicamentos.
Basta que com o Outro se desdobre, se “farte” (nos dois sen
tidos) dela, lhe signifique de algum modo que “não precisa dela”, a
desbanque de seu fantasma de ser indispensável, coloque outra ou
um equivalente qualquer em seu lugar para que ela fique privada
da razão que havia construído para a sua existência, sem fundos
nem fundamentos, infundada. É então que sobrevive sua identifica
ção ao objeto @ como desfeito e o gozo se manifesta como repro
vação e autocompaixão masoquista, com o inventário infindável
das ingratidões de que é vítima. Sobre isso tem necessidade de fa
lar, encontrar uma alma gêmea que seja sustento de sua “neces
sidade de comunicação” a partir desse “nada” que sente ser e que
entrega com generosidade, disposta sempre a voltar a ser o “tudo”
do Outro.
Com a insatisfação como meta prometida ao desejo e o rancor
conseqüente, com a contestação merecida da infalibilidade fálica,
impõe um estandarte inalcansável que cria um abismo entre o desejo
e o gozo. Essa diferença é preenchida pelo sintoma. O desejo

insatisfeito
do que a sisemesma
faz gozo da conversão
como e a fazem
os delirantes ele se com
apegaseu
amando-o
delírio, mais
aferrando-se à queixa e mostrando seu ser por meio do sofrimento.
O sintoma está feito de gozo desconhecido e aninha nela as cinco
resistências descritas por Freud em 1926:21 a compulsão do Isso, o

21. S. Freud (1926).Obras completas,v. X X , p. 149-150,


238 Gozo

castigo do Supereu e as vanagens narcísicas que derivam da


transferência, a repressão e aiujeição do Outro aos avatares da
própria doença. Esta queixa, aalizada pelos estigmas que são as
marcas no corpo, é uma acusição pelo fracasso do Outro para
integrar-se em uma relação sen falhas que desculpe o sujeito dos
deveres para com um desejoque lhe seria próprio. A pelando,
apostando sempre à xistênci
e a <arelação sexua l ... que não existe.
C aberia, então, que algiém - e não necessariamente um
ingênuo - se pergunte com rlação a ela como com relação a
qualquer outroneurótico no qu;l o sintomaé gozo: “E para que se
analisa?” - posto que não quer eder sua diferença, isso que atoma
tão “especial”, posto que seu dsejo consiste em sustentar-se como
demandante e credora, sempre úsatisfeita. Se, em última instância,
carece de fé na própria análise, j, que está sustentada sobre a palavra
da qual ela mesma duvida e jáque nunca poderá assegurar-se do
lugar que ela ocupa no Outro,no caso, o próprio analista. Esta
pergunta não pode receber uma esposta geral, sustentando-se como
pano de fundo de toda relação nalftica no vai-e-vem entre o gozo
do sintoma, o gozo na situação nalítica e a almejada possibilidade
de sua canalização por meio do iexível diafragma da palavra.
Não há resposta que valha jara qualquer histérica, mas convém
sublinhar que ela mostra, de raneira paradigmática, a situação
própria de todo falante; não apeias existe dissociação, mas também

franca oposição
fundamental, umaentre prazere
mais, notadagozo. E estaGallano
pr Carmen é ,2uma diferença
2 entre histeria
e perversão. Para o perverso, ogozo é buscado e muito difícil, se
não impossível, distingui-lo do pnzer. Poder-se-ia dizer que completa
a façanha de viver o prazer com) gozo. Enquanto, para a histérica,
o gozo é desprazeroso, doloroo, vergonhoso e asqueroso. Se o
gozo do perverso é monótono en sua colocação em cena (poucos
livros são mais aborrecidos do Osqe 120dias deSodoma,uma vez
que se tenha capta
do o plano o^anizador matemático que o rege ),
o gozo da histérica assombra pir seu polimorfismo, seu caráter
proteiforme, sua impossibilidade e se fixar. Claro que sem exagero:

22. C. Gallano. L e barrage de 1'ideri fi cation hystérique. In: H ysterie et


obsession. Paris: Navarin, 1986. p219.
O gozo na histeria 239

também aqui sc encontram encobertas a compulsão à repetição e a


fixidez na conjugação do fantasma. Os infortúnios da virtude não
são mais divertidos do que a prosperidade do vício.
Enquanto o perverso se afirma como vontade de gozo, e esse
é o nome que tem o desejo nele, a histérica consegue gozar com sua
recusa e indiferença frente aos gozos terrenos em nome de um gozo
absoluto e, portanto, impossível, além e contra o gozo fálico,
trazendo ao desejo a insatisfação. O sintoma e o asco, a dor e o
pudor, colonizam para ela as regiões do gozo perdido. Acreditando
dizer não ao gozo do Outro, sustenta justamente como gozo,
separando-o das vias facilitadoras do princípio de prazer, das
facilidades complacentes. E o valor ético do apostolado da
dificuldade que ela exerce.
Seu corpo se entrega como um conjunto de partes dispersas
e carentes de unidade para que sejam a palavra e o desejo do Outro
as argamassas que façam “disso” um conjunto. Nas palavras de
C armen G all ano (op. cit.), ela recusa as conseqüênci as do
significante no real e vive como sujeito em função da separação
(la
coupure)entre o gozo e o corpo. O corpo é oferecido como em um
anfiteatro de anatomia, é o corpo da lição de Rembrandt sobre o qual
dissertam os sábios, é o corpo anestesiado sobre a mesa do
quirólano, insensível ao sexo que é repudiado ou vivido na
indiferença, é o corpo oferecido ao bisturi que corta segmentos ou
nervos imaginários da sensibilidade, o que poderia representar -
assim parece - um ganho na espiritualidade. Carne de cirurgião,
pronta ao suicídio focal e ao esquartejamento.
Desconfia e rechaça o gozo do Outro, esse gozo que ela pro
duz por meio da insatisfação com quenutre o desejo. Assim, aliena-
se do gozo, encerra-o no sintoma e parece dizer: “Eu não gozo para
que o Outro, o Outro da identificação, não goze de mim”. “Pois pa
rece que o Outro demanda sua castração” .23 E essa medida que se

apresenta como “castrante”; representa a imagem vivente da castra


ção, com seu corpo de lagartixa, de partes modulares que se cortam
e se reconstituem. Pois, subtraindo-se, demonstra a validade univer
sal da castração, consagrando-se ao Pai primitivo, aquele da fórmula

23. J . L acan (1960). Écrits , p. 8267;Escritos 2, p. 806.


240 Gozo

3X.OX

diferentemente do perverso que é quem nega o não-toda da mulher


e afirma a validade absoluta de

VX.OX,

isso que Freud designou como premissa da universalidade do pênis.


Daí procede outro traço clínico, difícil também de distinguir
das desqualificações pejorativas, o da inconstância, o caráter capri
choso e imprevisível, a freqüência das birras histéricas. Isso que
motiva a queixa do Outro, que se apresenta como “vítima da histé
rica” e pretende ignorar o gozo que, também ele, deriva do tensiona-
mento da lâmina, aí onde se chega ao extremo da palavra e aparece
o gozo no limite do articulável, na injúria, na surra e no desvaneci
mento. Pois o gozo dahistérica - e o de seupartenaire,obviamen
te - firma-se na subtração que ela pratica sobreo desejo, proclaman
do-o como um além das satisfações e das reduções de tensão.
Catherine Millot24 pôde definir a histérica como a guardiã do
mistério do que é inalcançável pelo lado do gozo fálico. Mas esta
insatisfação com ogozo fálico, como bem aponta SergeA ndré ,25 não
é patrimônio das mulheres. É uma limitação de todo falante, um
efeito de que não haja significante da mulher e de que não exista a
relação sexual. Neste sentido é que cabese perguntar se, sendo o
desejo o desejo do Outro, não é a histérica uma manifestação, um
efeito e uma produção do desejo masculino, isso que nunca se disse
melhor nem com menos do que 26 sílabas:* “Homens nécios que
acusais / à mulher sem razão / sem ver que sois a ocasião / do
mesmo que culpais” e que se completa com outros quatro
heptassílabos: “Pois por que os espantais / da culpa que vós te ndes?
/ Querei-as qual as fazeis / ou fazei-as qual as buscais”.

24. C. M illot. D esiret jouissance chez T hystérique. In: Hysterie et obsession,


p. 219.
25. S. André. Que veut unefemme?Paris: Navarin, 1987.
* T radução li vre do espanhol, não sendo mantida a estrutura heptassilábica
que resultaria em 28 síladas.
O gozo na histeria 241

É preciso dizer que em todo este capítulo que chega a seu fim
fez-se referência à histérica como se se ignorasse que um dos pri
meiros achados de Freud na nova clínica das neuroses foi o de ca
sos de histeria masculina e como se não se conhecesse o trabalho
que L ucien Israel26 escreveu sobre o tema. A razão, não por conhe
cida, deve deixar de serepetir: não se tratade uma diferenciação em
função da sexualidade biológica, mas de uma eleição inconsciente
entre os dois campos, do homem e da mulher, delimitados pelas fór
mulas da sexuação. Neste sentido, os casos não pouco freqüentes
de histeria masculina também são casos de histéricas, já que o de
cisivo é a posição subjetiva ante o significante fálico:

@ 0 A
-cp

Se a negativa ao gozo fálico em função de um gozo que está


além é característica da histérica, é claro que ninguém encarna
melhor essa impugnação que o homem que sofre de transtornos e
inibições em sua genitalidade: ejaculação precoce e diferentes tipos

de impotência.
quais Casos
se opta pela nos quais pelo
passividade, se inverte
dar-se oa sentido
desejar,do
nosdesejo,
quais nos
se
opera uma defesa frente ao gozo do Outro, do Outro sexo. Também
ele supõe querer ela sua castração e se protege dela com um sintoma
que é o de não dar sua falta, aferrando-se ao que teme e
comportando-se como um “bom menino” que não enfrenta a lei de
proibição do incesto que se estenderia até cobrir “toda mulher” em
vez do “não-toda” .27
E, em última instância, deveria buscar a histeria masculina do
lado da “fera”, do lado da complementaridade e da cumplicidade que
estabelece com a histérica como sua“vítima”. E aqui que aparece
o sentido final da expressão lacaniana de que “para todo homem uma

26. L. Israel.L ’hislérique, le sexe et le médecin.


27. N. Braunstein. De sintomas y mujeres. Algunas consecuenciasde las dife
Freu
rencias psíquicas entre los sexos sobre la vida erótica de hombres. In:
diano y lacaniano. Buenos A ires: A morrortu, 1994. p. 173-190.
242 Gozo

mulher é um sinthoma” (op. cit.), um sinthoma histérico, poder-se-


ia arriscar. Pois a histérica não pode sustentar seu discurso se não
encontrar a cumplicidade de alguém que assuma o lugar do Outro
sem barra a que ela se dirige, alguém que se coloque como o sujeito
que faz dela o objeto @ de seu fantasma e que esteja disposto a
conferir-lhe o lugar de complemento indispensável que ela reclama.
E assim; nada pode entender-se em psicanálise sem assumir que o
desejo é o desejo do Outro e o inconsciente é o discurso do Outro...
e que por isso o gozo está proibido ao que fala.
IV

A perversão, desmentido do gozo

1. O “positivo” da neurose?

D eve-se pular. Pular desde a neurose, essa negativa à


colocação em palavras do gozo, essenegativo,até seupositivo, a
perversão. Novamente estamos diante de uma metáfora fotográfica,
de Freud, desta vez
:1 “a neurose é, por assim dizer, o negativo da
perversão”. Fórmula, aforismo, que aparece invertida em um artigo

que L acan nunca


o pequeno) offda devia terdo
história assinado e que
lacanismo foi escrito
.2 Não; peloGrãnão
a perversão (oué o
negativo da neurose, mas seu positivo.
A inversão não é, no entanto, total. O negativo da perversão,
dizia Freud, no singular, em uma fórmula que unificava as
perversões, agregando repetidamente, mas apenas entre 1905 e
1920, como uma questão de fato, que na neurose não havia nada que
indicasse uma inclinação ao fetichismo. Na edição de 1920 de “Três
ensaios sobre a teoriadi sexualidade ,3 esta “particularidade” da
neurose foi suprimida porque foi possível ver que os neuróticos não

1. S. Freud (1905). Obras completas. Trad. J. L. Etcheverry. Buenos Aires:


A morrortu, 1979. v. V II, p. 150.
2. J L acan e W. Granoff. El fetichismo, lo simbólico, y lo imaginário. In: Marc
A uge (éd.). El objeto en psicoanálisis. Buenos A ires: Gedisa, 1987. p. 19
32.
3. S. Freud (1905). Obras completas, v. VII, p. 152, nota 47.
X  ü#w  àt/ulkúJ# 06<3
0'

244 Gozo

eram imunes aos encantos do fetiche e que, neste aspecto, essencial


para a compreensão do fenômeno perverso, não sçj odia estabelecer
ajplação cômoda (para o autot-e.ojeitor) entre perversão j ositiva
e neurose negativa.
M as o fato subsiste: o tro/o é recôndito na neurose, express a-
se no sofrimento, na queixa e no sintoma que o dizern_auando o eu
cala e o sujeito se mostra em sua divisão, avergonhado se tiver de
ser reconhecido como gozante. Se o neurótico se compraz é quando
pode assinalar sua falta em relação ao gozo, esse gozo que reconhece
e atribui tão geoexosainente aos-demais. os que vivem com
facilidade,j>em se preocupar Todos esses que se deleitariam com
o espetáculo que ele lhes pródiga com seu sofrimento e com sua
cisão subjetiva, a eles, os unificados por seu fantasma, os vitimários,
os_£ais cruéis e insensíveis, as mães e possessijvas. Esses
outros gozantes que queriam sua castração e aos quais o neurótico
resiste, ocultando-se que já sofreu inicialmente essa castração que
repudia, denyando sgu sofrimento dp não saber o que fazer com ela,
çcyna^onvej^ê-la^mjdesEjo. A histérica do capítulo anterior e o
obsessivo do_capítulojjue_decidi não. escrever mostram estes dois
pólos do gozo recusado pelo neurótico mediante a repressão dos
significantes que o evocam eque permitiriam subjetivá-lo. Assim, o
â neurótico goza sem o saber, desconhecendo, transpondo,
travestmdo .seu gozo com as pompas do sintoma.

Seupotencial
agente não saber o desgarra
desse discurso edaisso o tornaessencial
histérica, sujeito da análise,
para que a
experiência possa começar. Na neurose, o gozo aparece como
colocação em cena fantasmática de difícil confissão. E uma imageria
da perversão que faria dele um anormãf, um ser desdenhável, um
porco porque a ele ocorrem porcarias. E claro que esse descarado
teatro interior lhe permite brincar com o interesse que despertaria
no Outro ao tomá- lo ou ao ser tomado como objeto de seu fantasma.
Com sua perversão de banheirp (que não de tocador sadiano),
torna-se desejável, amável, condição para o gozo... do Outro. _Não
qugr senão se [aze^amar. A perversão lhe facilitaria a tarefa. O
script cinematográfico da perversão no cenário do fantasma é uma
peça-chave da intriga histérica e da estratégia obsessiva. De qual
perversão? De qualquer uma, de todas, da que melhor convier.
A perversão, desmentido do gozo 245

M as este gozo do neuróti


co é irrealizável, estácondenado ao
armário, pode ser atuado de vez em quando, não sempre, não em
todos os casos, mas sua colocação em cena é sempre decepcionante,
forçada, vivida como submissão aos desígnios de um perverso
verdadeiro ou como um desafio aos sentimentos de culpa, pudor e
asco que rodeiam e inundam o ato que se fantasia mais do que atua.
É mais, sua recusa ao acting perverso em que ocasionalmente
pode incorrer serve-lhe para patentear a virtude. As excursões do
neurótico pelo campo-jla—perversão não sãQ-xaras..-mas se
caracterizam por deixar a impressão de que apontam mais ao
renuarso posterior do que ao gozo presente.
Não é, pois, a atuação o que distingue a neurose da perversão,
mas a posição do suieito_ant£_essa atuação. Tampouco é o fantasma,
porque este existe tanto em um caso quanto no outro e é difícil dizer
quem leva a melhor. Nem é a pulsão, cujo catálogo se estabelece no
neurótico tal como Freud o fez sem recorrer a seu K raft-Ebing.
J á indiquei onde se enraíza a diferença. Não nos surpreende
que seja no discurso, posto que as estruturas clínicas são fatos de
discurso, modos de relação com o Outro, posições subjetivas.
Relações com o inconsciente, essa instância que cada vez mais
prefiro traduzir literalmente do alemão: suifio-sabida, o não-sah'do
do saber que se crê ignorar (
1’insu que sait).Neurose eperversão
(e psicose, sem dúvida) são modos de relação com o saber tal como
se materializam em discursos.
Só que... só que o discurso do perverso raramente é escutado
pelo analista. E por razões muito boas. Com efeito, se o neurótico,
conforme já se disse, busca um saber que lhe permita recuperar o
gozo perdido, queixando-se do-Qutro que goza, imaginando com
vergopha que é um desavergonhado, o perverso toma uma atitude
que é o contrário, o positivo dessa negatividade. Ele vive para o gozo,

sabendo quanto
pregando é dado saber
seu evangelho, sobre seus
afirmando o próprio gozo
direitos e o oalheio,
sobre corpo,
ostentando seu domínio. O que em um é falta e dever, no outro é
haver e saber. E, assim sendo, por que haveria o perverso de
instaurar o outro no lugar do sujeito suposto saber? O que poderia
esperar - além de conselhos e receitas que asituação analítica exclui
por princípio - da palavra de outro?
246 Gozo

A diante, abordarei a questão das relações entre perversã


a o e
o amor. M as desde já posso adiantar queno p erv& r sn o apinr se
confunde com o erotismo, com a habilidade e a perícia do corpo e
que esse é cTsignificado que acaba tendo a palavra “amor” em seu
dicionário. Sendo assim, que lugar poderia restar para o amor de
transferência por meio do qual se atam e desatam os nós de uma
análise? Como inscrever as técnicas do corpo nessa experiência de
pura tagarelice que é uma análise? Penso que aqui temos uma razão
de peso para sustentar quão difícil e infrequente é a efetuação da
psicanálise em um verdadeiro perverso. Há um desencontro
iii, ,estrutural , uma não correspondência de origem entre a vontadede
gozo e o desejo do_analista.
A inversão das posições relativas ao saber é também inversão
de posições relativas à psicanálise. O psicanalista é quem parece
atraído pelo discurso esquivo da perversão, aceitando-o,
contentando-se sempre com pálidos sucedâneos, com a literatura
(Sade e M asoch, M asoch e Sade, pedaços de Gide, de Genet, de
M ishima) e, fundamentalmente, com esses sonhos perversos do s
neuróticos, com os relatos que estes fazem quando se encontram
em mãos de um perverso, o que lhes faz viver e reviver o
traumatismo sexual infantil condenando-os ao silêncio.
O vínculo do analista com o perverso é aleatório, precário,

sempre no limite contraditórios


até os extremos da interrupçãoem
da relação
experiência, sempre
ao lugar impulsionado
do analista que
são a cumplicidade (com)-e.a contestação.da perversão. Pois o
perverso, se representa a mascarada de se dirigir ao analista como
depositário do saber do inconsciente, da lei da sexualidade, avalista
dos bons costumes ou árbitro da saúde mental, se segue um destes
jogos, é na expectativa do momento do desafio a esses supostos
ideais. Esse momento em que, vendo e crendo que o analista encarna
alguns destes valores, poderá lhe dizer a fórmula que o define, a do
desafio: “E por que não?”. Razão a mais para sustentar a neutralidade
nestes casosjsm que a vaciTãçãò, longe_de ser acõnselfiávcl como
acontece na histeria e na neurosc-ohsassiva. é queda do emalista e
da análise possível. E é assim que se inscreve a difícil possibilidade,
pois a passividade vale para o perverso como prova de sedução e
A perversão, desmentido do gozo 247

cumplicidade, enquanto a atividade é um desafio que reforça sua


po.stura,
O perverso atua em direção ao outro, procurando evidências
dessa barra subjetiva no limite mesmo do desvanecimento (fading),
do reconhecimento da falta que aparece como curiosidade e como
desejo de um saber que ele se oferece para preencher. O seu não é
o auto-erotismo, mas a demanda da participação - partição de outro,
de sua vítima ou de seu público - do analista, se for o caso. A
ncurotização_que ele induz no analista, a passagem deste ao discurso
da histérica, éjjm-mdício diagnósticaclam da estrutura perversa.
Não se trata, aqui, de um saber a ser alcançado. A questão é
como desmentir, entre outras coisas, a ignorância, a fenda que
condena a relação sexual e o sabçr que lhe é concomitante. Damos
aqui nosso primeiro passo em uma construção progressiva que tende
a determinar qua L í o desmentido(Verleugnung)perverso. O analista
não pode ser investido como sujeito suposto sa ber pelo perverso (ai
do analista que insiste em tomar ess e lugar!), pois^o suposto saber
é o próprio eu do sujeito. O que ele com seu saber ignora é que não
pode saber do sexo e que aquilo que acumula como verdades não
são senão “teorias sexuais”, fantasmas, quimeras que soldam coisas
vistas e ouvidas, pedaços de discursos heteróclitos, colagens de
ciências, ideologias, ilusões, legislações e mandatos.
D iante do não-sabível (valha este barbarismo) do sexo,
proclama um domínio imaginário sobre o saber faltante, preenchendo
os ocos com racionalizações, projeçõeswishful
e thinking.A ssim,
nenhuma_surpresa é possível. O que poderia cair-lhe como uma
interpretação feliz entra de antemão em uma das duas categorias
complementares: a do “não éassim” e a do “eu áj sabia”. Sabedor
do quanto pode se saber, sobra apenas um resto que é eyuívoco do
Outro.

E odo
o lugar que sabe?está
desejo Sabe o quepor
selado quer:
umaj|ozar. Enquanto
incógnita, e no no neurótico
psicótico não
existe nem a pergunta, no perverso o desejo diama-se “vontade, de
£ozo”, e o único problema que ele encontra é o de como encontrar
os meios para assegurá-lo. Agresenta-se sabendo sobre odesejo e
sobre o gozo, conciliaado-os. resolvendo sua contradição srcinária.
Esta segurança o toma atraente e fascinante para o neurótico que não
248 Gozo

espera senão encontrar quem lhe resolva a equação de seu desejo,


quem faça de sua pergunta uma demanda de submissão. Sendo o
negativo da perverso, o neurótico não sonha s£nãqçpm se positivar,
com adquirir valoFTafico por refluxo de quem se coloca além da
castração e, chegado o momento, faltar-lhe. O neurótico quereria
aprender com o perverso e levantar, assim, a hipoteca de suas
inibições. O perverso o seduz com seu fantasma de saber-gozar (o
hífen no meio sobra), de sabergozar.E esta é a característica clínica
dominante do perverso, a que campeia por onde quiser em seu
discurso, o fantasma pré-consciente de alcançar o gozo por meio do
saber e do poder sobre um objeto inanimado, reduzido à ignominiosa
abjeção ou preso por um contrato.
Para isso, para pôr em cena este fantasma, deve saber como
fazer com o Outro, deve obter sua cumplicidade ou seu terror, deve
aplicar-se e arriscar-se, deve mostrar-se e ocultar-se, deve manejar
sabiamente arealidade, ou seja, o semblante. Trata-se detornar
operativo o fantasma, de triunfar aí onde o neurótico fracassa de
antemão. O fantasma deve ser colocado em cena e tornar verossímil
esse gozo a que a castração obriga a renunciar. Outro desmentido,
o da falta no gozo, outro sentido para Verleugnung
essa na qual Freud
soube ver o mecanismo essencial da perversão.
E claro que o teatro re-presenta a realidade e que ambos, teatro
e realidade, fantasma e semblante, não fazem senão mascarar o real,
o impossível, a ausência da relação sexual. A realidade não é o real
e o verossímil não é a verdade. M as fazer passar umpelo outro exige
muita “consideração aos meios da encenação”, figu rabi1idade,
Rucksicht auf Darstellbarkeit, terceiro dos processos - recordar-
se-á - freudianos na elaboração onírica. O sanguedeve ser visto
bem vermelho, o discurso não deve apresentar falhas nem lapsos.
O inconsciente, também ele, sempre tão ambíguo e equívoco, deve
ser desmentido pela elaboração perversa. Não deve haver aí lugar
para o azar, tudo deve star
e devidamenteem seu lugar, o ritual deve
estar perfeitamente especificado pelo contrato ou pelo decreto, nada
do real deve se infiltrar na montagem.

O do
mente perverso é um
histérico queconsciencioso
metteur
observa desde diferente
en scène,
o palco o que ele mesmo faz
na cena e do obsessivo quejiirige desde o palco a demanda de um
A perversão, desmentido do gozo 249

olhar de reconhecimento por suas façanhas irrisórias. Por este cui


dado pelo detalhe, por esta proscrição do inconsciente, por este jogo
premeditado com a lei e as transgressões, o perverso é o mais adap
tado à realidade dos vários personagens que passam pelo proscênio
analítico; está perfeitamente integrado no discurso, é convincente,
lógico, não apenas perito nos meandros das leis, mas até legalista e
legislador. Ensinag prega, catequiza e persuade. Seu parentesco com
as posiçQüv-do mi. do mestre, do sacerdote, do político ejlo mé
dico éeyidente. E também com o psicanalista, em um”vínculo que
deve ser assinalado desde já porque é estrutural, caso se queira de
pois marcar a diferença.
A ssim o encontramos, encravado na alidade,
re dedicado afazer
desta uma tela que oculte o que falta, proclamando saberes,
legislações, objetos fetichizados, sistemas filosóficos, doutrinas
esotéricas, metalinguagens, promessas de paraísos na terra e além,
ídolos e ilusões. Fazendo saber porque não se pode saber. Erige
falos, porque há a castração e ela é intolerável. A do Outro. Isto
deriva do que se lê em Freud 4 desde 1927, mas stá
e aí desd e antes,
desde as reuniões das quartas-f eiras em Viena, e assim pode se ler
na ata de 24 defevereiro de 1909,5quando Freud aprese ntou o caso
de um fetichista de roupas c comentou:
O paciente chegou a ser mxufilósofo eseg£uiativo,e os
nomes desempenham para ele um papel maior. A lgo parecido com
o que teve lugar no aspecto erótico lhe ocorria no plano
intelectual: gle^separava seu-i nteresse das.xaisas_ £ o di ri gi a para
gs palavras que são, por assim dizer, a roupagem das idéias; isto
explica seu interesse pela filosofia.

Este é, desde a descoberta freudiana, o modo perverso de


enfrentar a castração: o desmentido._a conversãojmaginária^de si
mesmo, de um objeto qualquer ou de um ideal em representantes do
gozo que no real falta ao Outro ou do falo que no simbólico e como
significante representa o gozo perdido.

4. S. Freud (1927). Obras completas, v. XX I. p. 147.


5 L ouis Rose (editor e tradutor) Freud and fetishism: previously unpublished
minutes of' the V ienna Psycho analyti c Soci ety. The P sychoanalytic
Quarterly, v. 57, n. 2, p. 147-166, 1988.
É indubitável a função civilizadora (sublimatória, auto- e
aloplástica) que desde sempre cumpriu a perversão, pretendendo -
conseguindo - muitas vezes ser contestadora e constituir-se como
subversão dissolvente. Ao erigir um ideal contrário ao dominante,
uma lei contra outra lei, ppe em ação a dialétka-hegd;; na que acaba
com o triunfo da astuta razão.

2. O fantasma perverso: sabergozar

O perverso não poderia desmentir sem reconhecer primeiro o


que deveria desmentir (“j á o sei, mas ajmja assim”). A penas
instalando-se na castração e no deserto de gozo que se estende a
seus pés, pode montar o cenário de seu fantasma que se sustenta
sobre um discurso homogêneo, negador da discordâjmia
irremediável que há entre o discurso, sempre dojiemblante, sempre
ajustadojio verossímil, e o gozo.
^eu_Iantasrna não e mestiço e não circula de um lado para o
outro da alfândega tópica que Freud instalou entre inconsciente e pré-
consciente.6 Habita com todos os direitos de proprietário no castelo
^eüjtorrar. vacui faz
fortificado que é o eu. E tem horror ao vazio.
do sujeito um mostruário de plenitudes especulares: o domínjo sobre
o deseio. sobre o discurso, sobre o outro. O eu forte, fortíssimo.
O desmentido recai sobre a castração, sobre o inconsciente, sobre
,a falta inerente oa go^o. Assim é como se revela o que sepretende
ocultar.0 remendo Lapa_o_rasgo ao preço de sublinhar sua presença
c indicar seu lugar. Quando o fantasmaTênTtãnta substância e
vaidade,guando é o sujeito que agita a bandeira de seu fantasma em
vez de ser~um efeito destef^cabe cfesetínfiar. Pois, e outra vez
estamos com Freud, jpeértSi^que dão o fetiche e seus derivados
não faz senão destacar o ugar
l do que se^jpmp|a7 ^ã~cãstxa^
ão_da
,m㣻_da iiicompletude desejante do Outro, dojjerigoque ameaça o
trono e o altar.^~

6. S. Freud (1916). Obras completas,v. XIV, p. 188.


A perversão, desmentido do gozo 251

Por tudo isso podemos afirmar sem rodeioso }u;


fantasma
perverso é um fantasma encàbridor. a construção ispcular de um
eu que re£resenta a si mesmo como sujeitQ^upnstn akrgazar.
Seu posto o obriga a pôr à prova a suposição.
0 csejo foi per-
vertido, apenas,
j i m pequeno desvio, como vontade
e jq zq, colocou
apenas aIgunsjpoatinhos.de costura sobrea..£alta. i prversão põe
deu apenas uns pontinhos de costur a sobre afalta, 'oqueesta falta
é intolerável; torna-se cabeça de M edusa, medusansAo desmentir
o desejo, a ele se renuncia; alETe se~cede Posto qiej desejo está
do lado do Outro, desejar é mostrar uma falta e oercer esta.falta
à falta do Outro, ou seja, reconfiecer a recíprõca:atração como
contfíçãcTpara atravessá-la.
Daqui derivam as dificuldadesjara defüiri relação dc
pervei^ojíom_ clamor. Se, com L acan, aceitanoique o amor
consiste em dar o que não se tem (pois dar o que seten é caridade),
se o amor é dar o que falta, é dar a castração, a crâcia no gozo;
se, novamentecom Lacan, aceitamos que o amor é>ú icqflue-PQde
fazer com que o gozo conjescenda ao desejo, eníonão tardamos
em reconhecer a difícil relação entre amor e pcrvesõ.
Uma relação difícil não significa ausência nerrir.possibilidade.
Desde sempre se soube, ainda que desde sempr tnha-se posto
muito empenho em negá-lo, que a pajavra “amo ^m diferentes
significados quando empregada por um homem ou ma mulher. Não
custa nada estender esta iUéia e aceitar que agjayra “amor”
significa algo diferente conforme a posição subjetiv dquele gue fala
fnenfótirn psjrrifirn “normal” ou jDerverso). Nãcsetrata, pois, de
decidir se os perversos “ta.mhém” amam, mas d ompreender o
específico de um,am(ir-que desmente a,.falta--emvx* dc basear-se
jiela^Isto é o que coloco por enquanto, seguindo adcitrina clássica,
ainda que no final do capítulo proponhaque oj j e e desmente na
pprversão seja algo que sinjMá-ç não uma ausênci.
F reud pôde defi nir o amoT :omo a (im)iosibi lidade da
confluência de duas tendências opostas na vida eótca, a tgrnurg e
a sengjjalidade. Neurose e perversão apre sentan-s aqui também
como negativo e positivo. Q jjeurptico divid c amor porquÊ
renuncia à sensualidadejreprimida) em nome d; tenura, inibe_as
metas pulsionais gozadeiras. Resigna o gozo em alare de um desejo
252 Gozo

equívoco e equivocado porque o substituiu pela demanda do Outro


que veio ocupar o lugar do objeto em seu fantasma. Queixa-se do
esvaziamento do gozo que ele mesmo provocou e se conforma, a
contragosto, com as mocões-rc.freadas da ternura. Seu caminho é
<deimpotência, submissão, insatisfação,justificação. O perverso, em
contrapartida, renega tantojuinpotcncia quanto a impossibilidade:
sonha e afirma a possibilidade dq_gozo. E visto desdenhando ^
ternura em nomTdèlTma sensualidade que se pretendedesenfreada
e.s£rtiJ ei. Que promulga outra lei, a da desconsideraçã o e do abuso
do outro além de seu consentimento, uma lei categórica e apática que
é ordenada pelo gozo çj&mo Supremo_Befn. Não sem o outro,
certamente, pois é requerida sua “violentação” para aceder ao gozo
do próprio corpo, já que não_se. pixle_gozar,-daaihcio.
Este é o valor comum que unifica a variedade fenomenológi-
ca do campo perverso: yiolaçãa^edofilia, oecrofilia^voycmLsrno,
exibicionismo, sadismo, masoquismo, modalidades-oerversas^da
Homossexualidade .nos-eefttatos fugazes e anônimos. (Diga-se de
passagem,4 .estg^o traço de dissociação e degradação da da vi amo
rosa que permite distinguir entre a TioruQssexúálidade comojperver-,
são e a homossexualidade como modo da eleição de objeto amoroso.
O ato homossexual é, em si,.uma.conduta;_CcmiQ_tal, pode ser pra-
ticado_por sujeitos que se incluam em qualque>das estruturas clí
nicas,) A essência da vida amorosa do perverso radica nessa
desintricação que consiste em oferecer o gozo sem passar pelo de
sejo (do Outro), abohndo as_simcorrente
a H;i ternura O consenti
mento e a convergência com o desejopartenairedo restringem a
satisfação perversa. Por isso é que não há complementaridade das
perversões. O sádico não é o par do masoquista e o exibicionista não
o é dovoyeutu. Sg há coincidência jto gozo não se produz a cisão
subjetiva dopartenaire.meta preferencia]_do _alQ _pery£rso_£omo t^l.
Por isso o neurótico é o companheiro ideal e predestinado do per-
vêtso; E também^uem informa o analista sobre o que acontece ep-
tre os dois (‘‘A bela e a fera”).
Novamente encontramos a difícil relação entre a perversão e

o
seamor.
douto,O doutrina
desejo foi convertido em
(“doctorina”) e é vontade de gozo; perícia
agora erotismo: o Eros do.
fez-
corpo, saberjjazer com ele. exploração das jazidas enterradas do
A perversão, desmentido do gozo 253

gozo, repúdio das canalizações monótonas do encontro sexual,


invenção e prova, explorarão, viojação e extensão dos limites. “E por
que não?” Também aqui o discurso perverso cumpre e tem cumprido
uma função civilizadora ao independentizar a sexualidade dos
utilitarismos da reprodução e a satisfação, ao denunciar a suposta
“necessidade” sexual, ao desatar a-^nzn das amarras do prazer
mostrando outros horizontes, denunciando os curto-circuitos e as
convenções unificadoras das ordenações do amor. Sempre correndo
o risco e incorrendo (amiúde) no pecado de mudar o senhor por
outro, criando novos evangelhos do hem gozar. O erotismo foi por
muito tempo patrimônio do discurso considerado perverso, essa
forma do vínculo social que afirma o fundamental direito ao gozo
e que comete um equívoco, determinado pelo que já vimos do
fantasma, ao pretender ser possível gozar do corpo do outro que é
alheio e do qual não recebemos nada além de sinais, dados equívocos
a interpretar, elementos significantes cuja significação sempre nos
éscaga. Esse erotismo, dizíamos, teve um valor formativo quando. ^
convergiu com a psicanálise ao acabar afjnnando_gue não-h.á_ ’
universais do gozo. Foi descentralizado o monopólio do gozo fálico
e se estabeleceu a pergunta pelo particular do gozo de cada um,
expulsando da recâmara o olho deste Deus e o olhar da polícia.
A o deslocar-se do amor para o erotismo, o perverso “apenas
acentua a função do deseio no homem ".7 O “apenas” nos remete a
uma diferença estrutural de importância capital. Pois o fantasma que
responde ao de seio inclui a castração, Q_-(p que acompanha como
sombraojihjelaJ âLçau&a-dQ desejo, enquanto o perverso seostenta
como o dono d&-t«n_faQtasma de autonomia que o permitiria fazer
o curto-circuito do caminho que obriga a passar pelo Outro e por
seu desejo, pela recíproca castração partenaires
dos do amor.
O “apenas” em excesso coloca o perverso além do desejo, des
tinado ao exercício de uma vontade que atua como imperativo uni
versal, que irmanaSade a K ant. De uma vontadeque não é nem o
livre arbítrio nem o capricho, mas justamente o contrário da.liber
dade, a submissão acrítica. enervada e apática a urna norma abso-

7. J. L acan (1960). Écrits. Paris: Seuil, 1966. p. 823. Em espanhol,


Escritos
2. M éxico: Siglo XX I, 1984. p. 803.
254 Gozo

lutaque impede transitar>or aminhos alternati vos e que legisla com


ferocidade. De uma vonade iue faz do gozo o princípio racional e
ineludível da acão. colocdo m uma dialética de oposição e de sub
tração recíproca do gozeentr, os participantes no ato perverso. De
uma vontade que não nase d decisão elaborada de um querer, mas
de uma^oação que exig^esonar da lei do Edipo e da castração e
da divisão entre os gozoipel seção, pela bissexão. De uma vonta
de que levaj) pcrverso.avivr para o gozo, para apoderar-se dele,
para organizá-lo, adminhrá-o, antecipá-lo e adiá-lo, para regular
suas ascensões e quedas razo pela qual a análise pode agradecer
à perversão (como, por atro ado e por razões diferentes, à psicose
e à histeria, à obsessão e i “sáde mental”) o que traz ao campo dis
cursivo, mas isso não a fcva. idealizarjL pervsrsão (ou aqualquer
outra das estruturas clín:as)No final da análise o sujeito não se
encontrará com a pervesão.mas com a ljberdade para o ato per
verso, terá cabimento o sijeite da ética analítica, o do bem dizer que
deve decidir em cada menenu se quer o que .8deseja
Este pouquinho de :xagro de que nos fala o “apenas” revela
que se desmeiU&-a^faUa-Jo-€rtro (castração mate rna, dizia Freud;
S (A), escrevia L acan) e :olo-ano lugar dessa ausência o objeto @
convertido em fetichejgÊinamgão, um objeto que não inclui e
afirma a castração como conece quando falta o “apenas”, mas que
a renega.
A castração.
j e cusado...”, casoT rati-sedela.
se recusasse.“Ea preciso
recusa, que o gozo seja
afi rmar-se-i a a
possibilidade, poder-seia soihar com um gòzo que não estaria
proibido, que alguém pderiaagenciá-lo. M as é assim justamente
como se o falha, porqu:j£ir.dej>eiL_reçusado "... para que seia
alcançado na escala invetidaia Lei do jlesgjo” .9 O que acabo de
citar e HUcfinição lacanana a castração que, como vemos, jjpõe
castração ao gozo (tal cimo £visto no desenho do vetor superior
do gráfico do desejo). Vdtare a este ponto no capítulo sobre ética
e gozo, mas estáclaro dsde j que aética da análi se £$tá centrada
na conçjliaçãodo desejo 'om 3 gozo, no questionamento e não na

8. J. L acan (1958). Écrits, p682Escritos 2, p. 662.


9. J. L acan ( 1963). Écrits, [ 113'Escritos 2, p. 752.
A perversão, desmentido do gozo 255

continuação deste pequeno “mais -plus” que “apenas” acentua a


função do desejo (no homem e não nas mulheres). Claro que o
centramento da ética no desejo como caminho para que o gozo seja
alcançado nos leva a marcar a diferença em relação ao discurso do
direito em Hegel que vimos no começo, no primeiro capítulo. E
evocar Hegel é aludir ao amo e ao seu discurso.
.A perversão é a recusa, mediante o desmentido, de converterí\ív
os valoresjia tiu/y em termos da moeda do desejo. “Fixação”, dizia
Freud, para se referirlT este modo- de se aferrar ao gozo primário,
infantil, negando-se a convertê-lo e traduzi-lo em palavras, a
articular o @ por me i o dos instáveis_s.iffnifirantes da demanda com
seu inexorável saldo de perda. Esta conversão do gozo em desejo
como condição prévia para reencontrar o gozo é o inconcebível na
estrutura perversa, o objeto de outra Verleugnung.O perverso peide
por se negar 3 perdeL-pois nestejogo aquel e que perde_g<°nha E é
falando, colocando em palavras, que se perde. Fatalmente.
De qualquer forma, o desejo não está ausente no perverso;
está apenas pervertido. Como nos demais falantes é o desejo que
anima o fantasma e, neste caso em particular, a renúncia ao gozo
de qualquer forma já se produzi ujporisspnao é psicótico) e todos
os desmentidos e todos os homens e os cavalos do rei não poderão
devolver Humpty Dumpty a seu lugar anterior, bem acima de seu alto
muro. Ele bem sabe que ao gozo se deve renunciar, “mas ainda
assim”, morre de vontade de alcançá-lo. O desejo também a ele
divide, tornando-o sujeito (S) 10 e, por mais que esge desejo_se
converta em. vontade-de-^ozo. nem por isso deixa de ser, também
como em qualquer outro, o meio de defesa que coloca um fusível,
“uma proibição de ultrapassar um limite no” gozo .11
O desejonão afirma em seu caso a falta, mas a nega e a nega
justamente aí onde aparece a proibição de gozar: no Outro. O Outro
não pode e não deve estar castrado, a premissa do falo (e de seu
gozo, acrescentemos) deve sustentar-se como universal (e
excludente, adiantemos). Sim, de qualquer forma nãQ_sej>od£
ignorar^mej2_Outro está castrado [S (A)] e está habitado por um

10 J. L acan (1960). Écrits, p. 773;Escritos 2, p. 752.


1I. J. Lacan (1960). Écrits , p. 825;Escritos 2, p. 805.
256 Gozo

-(p, o perverso sai do atoleiro recuperando o -cp, tornando-o o


instrumento do gozo do Outro,12 colocando-se no imaginário nor

fora desesua
como própriacomo
tivesse divisão subjetiva,
encargo como ssua,
assegurar e fosse
nãoo Outro13 e
castracão. Daqui
em diante, viverá em função desta empresa, alienando seus serviços
para assegurar seu gozo, o do Outro, o terceiro da cena, o que está
ameaçado pelajá conhecida castração. Seu deseio nerverso qleva
a so tornar utensílio, ferramenta do gozo do Outro. Isto dá sua forma
ao fantasma sadiano, que recebe de L acan forma e estrutura em seu
“K ant com Sade” ,14sendo figurado como um vetor quebrado.
Não esgotaremos o esquema nem nos deteremos em sua
modificação para explicar o fantasma do marquês de Sade, porque
não vem ao caso (e porque não estou seguro de poder fazê-lo), mas
valerá a pena assinalar
toma esuaqueaplicação
pretendeclínica
maiscomoimportante. O
perverso que se ser visto um sujeito
absoluto que porta e aporta o gozo, um ser sem barra, é levado pela
lógica mesma de sua estrutura e de seu desejo a converter-se em um
objeto, em um instrumento, em um complemento que está a serviço
do Outro. Ele é o fetiche que venera, é o chicote com aue flagela
^sua^vítimíi,J Í_o_contrato com que escraviza seu fl agfilq^lor, é esse
olhar que vai e. vem nas perversões escópicas etc. Em suma, ele é
@, um @ quejosilháza o falo, que nega que o falo falte., que
assegura que o gozo se falifica no Outro. E isto que me levará, e
CA<û **M •
já não falta muito, a transformar a concepção freudiana e lacaniana
do desmentido. Pois esse Outro a que se consagra o perverso não
é - se bem ele não queira sabê-lo - um Outro absoluto que está fora
do gozo; o Outro é a sede de um gozo que lhe é próprio e que o
perverso desconhece,um gozo queé possível precisamentepela falta
do órgão que, paraele, imaginariza o falo. (Vol)ver-se-á.
,Urn sujeito é al^o instável, vacilante,.O lugar do sujeito é o da
incerteza, já que ele é o efeito do que se articula na cadeia
significante; está à mercê da palavra que virá, a que terá de
ressignificá-lo e mostrar-lhe sua frágil condição. O perverso recusa

12. J. Lacan (1960).Écrits , p. 823;Escritos 2, p. 803:


13. J. L acan (1960).Écrits , p. 825;Escritos 2, p. 805.
14. J. Lacan (1960).Écrits , p. 775;Escritos 2, p. 754.
A perversão desmentido do gozo 257

identificar-sc de modo tão precário, tão dependente da resposta que


o Outro dê às suas palavras, às suas demandas. Ele nega a divisão
que se lhe impõe ao fazer que sua demandajle satisfação pulsionaí
deva~stHflTÍcíílar com o desejo do-Outro. Também nisto é o positivo
da neurose negativa. Enquanto o neurótico vive encarnando uma
pergunta dirigida ao Outro por seu deseio e demandando que esse
Outro lhefaça um lnpar o perverso se constitui como resposta, sua
demanda não é uma pergunta, mas uma imposição exercida de
modo categórico. Ele é a causa pela qual o outro se divide. E é assim
que sofre uma metamorfose que o transfo.r-ma-.em objeto e
in^umento; riãojé um sujeito sujeitado aos vai-e-vens da cadeia
signiücante. Identifica-sê corrTo real que toma acessível o gozo ao
O utro.^omjjjna.s de gozo, com acausa do deseio da-QutroLtama-
se obieto @. Esta identificação não pode existir no vazio; necessita
de umpartenaire,um outro, com minúscula certamente, um sujeito
que experimente, agora sim, este sim, a divisão subjetiva fading
eo
como efeito da manipulação perversa. A criança violada ou seduzida,
o horrorizado especiador da exibição, a histérica humilhada, o
flagelador que deve trabalhar contra o mais íntimo^dg-_suas
convicções para satisfazer as cláusulas do contrato masoquista, são

exemplos deste forçamento


desvanecimento da em
pela colocação cisão até intolerável
cena chegar ao que
limite do
transpassa
as fronteiras da consciência, do pudor e do asco. Esse outro que não
4 bom quando é complacente, mas quando é violentado^resistente,
suplicante. Quando o outro consentc a nerversãjQ-se-dissina.
Considerada assim, a perversão é totalmente o contrário do que
o próprio perverso pensa que é e faz. O fantasma encobridor do eu
que trata como objeto o outro de sua ação revela, além de seu
é o perverso aue
imaginário, que acontece exatamente o contrário:
é q objeto e é. sua vítima que é o suieito. mais, é quem, pela
manipulação perversa, transcende as barreiras do prazer e se
encontra com o gozo que está além. O paradoxo é que o perverso,
vontade de gozo, aqu£Íe.qu£ vive parasabergoxar. acabapor virar
o gozo sobre as duas vertentes contrapostas, a do Outro cuja falta
é desmentida c a do outro cujo gozo é alcançado pelo caminho do
sofrimento e da dor. E o perverso, ele mesmo, querendo ser o dono
da situação, imaginando sê-lo,_é o ahieto^
de sua paixão. Perde a
258 Gozo

recompensa que se promete e concede a que queria arrebatar. O


gozo se lhe escorre na própria efetuação de seu ato deliberado,
consciencioso e volitivo e essa substância gozadeira que se lhe
escapa é a que brota em quem sofre seus rigores. A fórmula do
fantasma se inverteu e assim é observada no esquema lacaniano ao
qual estamos nos referindo:

@o r

O desejo(d) leva-o a identificar-se com o objeto ((s>) e isto o


coloca em relação de corte, de impossível encontro com o sujeito
(S) em sua divisão e em sua possibilidade de gozo.
Diferentemente
perverso do que se espera
não instrumentalizou no fim não
seu deseio-e de uma
p^deanálise,_o
decidir se. qner
o que deseja; qjjeseio o instrumentalizou submetendo-o a um
impêrativcTtanto ou mais inflexível auè~õ da~Lci a que pretende
contestar. Deve, então, chamar a atenção que quem demande a
análise não seja ele, mas o verdadeiro sujeito, sua suposta vítima?
(cf. capítulo V).
Por que não fazer a apologia da perversão e propô-la como
uma meta desejável? Por inveja, própria de neuróticos distanciados
do gozo? Por militar na defesa de valores convencionais? Esta é uma
pergunta inevitável que complementa e redobra o clássico “e por que
não?” que nos espeta o perverso. A ética da psicanálise está
comprometida na resposta.
A contece, conf
orme vimos, que avontadede gozo não dáem
nada, senão que com ele falha por desconhecer que a premissa do
gozo é a castração e aaceitação daLei do desejo e queo sabergozar
não é senão um fantasma que, como todo fantasma, se interpõe e
levanta uma barreira no caminho do gozo. O perverso insiste e sua
insistência exibe sua defesa; ele “também” interpõe seu desejo no
caminho do gozo em lugar de transitai pelas vias do desejo até uma
meta de gozo." 1 O eu desconhece sua própria função jie

15. J. L acan (1960). Écrits , p. 775;Escritos 2, p. 754.


16. J. L acan ( I960), Ecrits, p. 825;Escritos 2, p. 805.
A perversão, desmentido do gozo 259

desconhecimento quando pretende colocar-se por cima da barreira


inevitável que há ejitre saber e gozar: no caso da perversão, mais do
que em qualquer outro, o eu está do lado da realidade e do semblante.
Pois “só há acesso à realidade por ser o sujeito conseqüência do
saber, mas o saber é um fantasma feito apenas para o gozo. E, além
disso, por ser saber, necessariamente ”falha
.17
Por ser saber, por ter que articular os significantes produzindo
constantemente o real como um impossível que escapa à apreensão
da verdade, porque busca impor-se como vínculo social, como
discurso, um discurso que procura negar a falta sobre a qual
necessariamente se funda. E o perverso argumenta: é um pedagogo,
um demonstrador, um eterno comprovante da justeza de sua tese.
“Prega aí um pouco demais ” .18 Seu discurso, centrado no gozo,
reforça a falha no gozo. Justamente por es dizer, por não seater ao
hoje - tão pronto! - clássico conselho de calar sobre o que não pode
ser dito. E com sua palavra de certeza, de imposição categórica
disso que ele crê ser verdadeiro, põe-se à distância de qualquer
palavra que poderia questionar ou modificar sua posição. E claro que
de sua condição não poderia se queixar já que surge de uma eleição
que lhe parece razoada e razoável. Seu desejo e sua,v.qntade
dependem de um cálçuLo_ein J orno do gozo do corpo. E “um ato
puro do entendimento que razoa, no silêncio das paixões, sobre o
que o homem pode exigir de seu semelhante e sobre o que seu
semelhante tem direito de lhe exigir
” .19 V ive para o gozo; é sua
escolha. Mal poderia a psicanálise questioná-la desde fora. E desde
dentro é inquestionável porque a colocação como proibição é
incompatível com a própria posição que se questionaria. E o atoleiro
da perversão. Para o psicanalista; para o perverso não.
SmLa^qsta consiste em saber, sempremais, mais ainda, sobre
o possível corporal ante o impossível
da_£glação sexual. Sonha com

17. J. Jacan. Compte-rendu avec interpolations du Séminaire de l'Éthique.


Ornicar?, v. 28, n. 14, 1984. Em espanhol,Resenas de enseftanza.Bue
nos A ires: M anantial, 1984, p. 17.
18. J. L acan (1963).Écrits , p. 787;Escritos 2, p. 767.
19. D. Diderot.Encyclopedic, V, p. 116. Art. “Droit naturel”, citado por Nicola
A bbagnano, Diccionario defilosofia. Mexico: Fondo de Cultura Económica,
1974, p. 1196, art. “Voluntad”.
260 Gozo

um trazer de volta no real, por sua atividade encenadora do


fantasma, daquilo que a castração lhe obrigou entregar. Desaparece
como sujeito para ser, desde o lugar do objeto, o senhor do gozo
invulnerável à divisão, essa divisão que translada sobre o outro.
Procura, incansável, fazer passar o gozo pelos desfiladeiros do
discurso e assim controlá-lo. Tudo isso está muito bem e já foi dito,
inclusive aqui. M as agora éo momento de tirar as conseqüê
ncias.

3. O perverso e o gozo feminino

J á fiz notar a característica clinica do horror do perverso ao


vazio, à falta no saber. Seu projetgJ ie.ijiateriali za fazendo do goza
uma doutrina e do corpo umjçampo.experrmental de onde se opera
esse saber para se apoderar das influências da sexualidade. Chega
assim a ser (pelo menos no imaginário) ojisico nuclear da libido que
governa e administra sua energia, que decide sobre sua utilização e
sua economia. Mas o horror ao vazio no saber significa ter todas as
respostas e, muito particularmente - ponto de tropeço poder
responder ao vetusto interrggantgjiobre o que quer uma mulher,
essa pergunta quefoi causa dos tormentos de Tirésias... por ter
pretendido saber a resposta... e de FreuJT ccrtamente, depois de
tantas tentativas vãs de resporulâ-la,
A gora, sim, com Freud, volta-se à tese (perversa?)de que há
uma única jjbido, a masculina, .e-wa-úaico genital,_oj^í-h1 t-xilic
organiza a genitalidade infantilem tomo da.a l temativa fálico/castra
do,
caso seaceite que no nível da teoria, do saber, a pergunta pelo gozo
é respondida fazendo valer a qualidade proeminente do falo como
significante e de sua função privilegiada que é a de conjugará pôr
sob o mesmo jugo, o desejo, caso se adira a ela
- a concepção freudiana da sexualidade humana - não se pode
demorar em reconhecer que no coração desta teoria subjaz um
tremendo agulheiro pelo qual escapa esse fluxo do gozo que não
admite o jugo comum da palavra e do falo. Em suma, que há do lado
das mulheres um gozo suplementar aoj^ozo fálico. Sobre este já
íalãmüsTK i capiiulòTT C mas c mister recordá-lo agora para buscar
cm torno deste ponto a essência da perversão.
A perversão, desmentido do gozo 261

Para que fosse possível sabergozar, seria necessário que todo


o sexual estivesse sob a égide do significante fálico, que as mulheres
fossem “todas”em vez de^não-todas”,que existisse Ajmilhsr como
equivalente simétrico do homem ou como seu contrário ou sua
negação, que a sexualidade feminina pudesse ser reduzida por meio
de algum tipo de equação que se a uma homogeneidade dos
referisse,
gozos. Freud chegou a se dar conta de que não podia responder a
pergunta sobre oque quer uma mulher e que sua resposta: “falo”
(Penisneid) não fechava .aquestão,mas abria o espaço de umalém. ,
L acan respondeu diz endo que devi a permanecer abe rta para sempre,
porque as mulheres não estão ausentes do gozo fálico, mas que,
além disso, são tributixias-de-oulro gozo, de um gozo Outro,
suplementar, sentido mas inefável, enigmático, não esgotável em um
discurso do saber, louco (o do homem é chamado “perverso”), que
está além do falo
.20 Ijjji gozo que não apenas é distinto, mas também
oposto e rival do fálico: “a sexualidade feminina aparece como o
esforço de um gozo envolto em sua própria contiguidade...separa
realizar à porfia (à 1’envi)do desejo que a castração libera no
homem dando-lhe seu significante no falo ” 21 (grifos de L acan). A
ignorância reconhecida por Freud torna-se m e Lacan necessidade
porque responde a uma falta, na estrutura, a^do significante d’A
mulherj^uejpsse contrapartida e eqnivglente. do gozo fálico. Há uma
falta no saber que remete a um impossível de saber, a um além do
falo. E esse não-sabível não é um inexistente, não é uma falta, mas,
pelo contrário, um excesso, um gozo a maisque o saber até agora
pretendeu cercar, limitar, localizar, extirpar, fazendo-o objeto de
discurso e controlando-o.
A posição do perverso ante o saber sobre a sexualidade
feminina é tão interessante como a de Freud e a de L acan, porque
encerra a problemática que eles abrem e condensa a posição que é

congruente
psicanálise. com o discurso
O perverso do senhor
proclama como avesso
sabergozar, do discurso
desmente as faltas da
no
saber, desmente o inconsciente, desmente que o falo pode faltar no
O utro, sutura todas as falhas. A té ãgoTK seguindo F reud,

20. J. L acan. (1972-1973).Le seminaire. Livre XX. Encore.Paris: Seuil, 1975.


21, J. Lacan ( 1960) Écrits, p. 735;Escritos 2, p. 714.
262 Gozo

sustentamos que a essência da perversão era este desmentido (antes


traduzíamosVerleugnungpor “renegação” ou ‘YeçjsaT) da castração
que punhaem perigo o falo, o trono e~õ altar e qu e, comprometido
nestarecusa d e umaparte dareali dade, o sujeito destituía a si mesmo
de seu lugar incerto para recuperar a certeza que lhe dava o objeto,
o tornar-se instrumento do gozo que ele asseguraria com seus atos.
A gora, levados pelas fórmulas lacanianas da sexuação e pelas
explorações recentes no ajitigo ddrk cjwtinçntj\a fp.minjjiHaHp
devemos deslocar nossa concepção da perversão.
A tualmente, muitos autores acha m que a palavra “perversão”
deveria ser eliminada do vocabulário porque se presta a fins da
segregação. Pessoalmente sinto uma forte repulsa pelas
classificações psiquiátricas e psicopatológicas, mas acredito que a
psicanálise opera uma inversão destas e demonstra suas pretensões
reacionárias. Por isso é que os criadores do DSM-IV ou V ou outras
criações do mesmo padrão querem afastar o vocabulário e as
concepções da psicanálise de suas taxonomias. Eles estão
conseguindo. Deveremos segui-los?
A té aqui dissemos, com Freud ecom Lacan, que se desmentia
uma falta. Agora sabemos que es sa falta não o é; que há íaa prese nça
de um algo que está ajáro e que não é alcançado pelo que surge da
ordem do discurso que pretende coordenar o gozo em torno do
significante e do semblante fálico. A perversão, o que faz que
clinicamente se encontre comumente do lado masculino, o que
favorece tantas discussões em torno de se poder falar em
propriedade de “perversã o feminina”, oque levou Lacan a dizer que
o sexo masculino é o sexo frágil enxj^laeão-à^perversão -22 é esta
posição que assimila gozo com falo. As mulheres, logicamente, se
ó são, não poderiam aceitar esta equação gozo = falo. Somente
poderiam ser perversas à medida que esta seja sua posição com
relação ao saber. Os casos não faltam, mas tampouco proliferam;
não é raro descobrir a equação e, com ela, a perversão feminina
quando, em um casal homossexual. umajfas-iotegFantes é a que se
dirige ao analista com sua demanda: a outra é, no caso, a que

sustenta« posiçac)-perversa, a~3e que somenteo falo permite o gozo.


22. J. L acan (1960). Écrits, p. 823;Escritos 2, p. 803.
A perversão, desmentido do gozo 263

Em tais casos pergunta-se sc cabe falar de “perversão feminina” uma


vez que o ser homem ou mulher nàõ é um dado da anatomia, mas
posição subjetiva e que paartenaire de nossa paciente é, assim(.'y
colocadas as coisas, aquele que ocuna a posição masculina. E desde
ajdgntificacão com o falo que essa, desmentindo o gozo feminino,
dirige-se à outra mulher e a converte na ohieto (jj>de seu fantasma.
A perversão está do lado masculino, é uma resposta que
pretende saber ao preço de des
mentir a verdade. Averdade, que é
mulher (Nietzsche com Lacan), a verdadeque desmascara o falo
como semblante, como um deslocamento do real pela linguagem, a

verdade
diz que namas
a verdade, psicanálise
a disfarçasecom
revela como isso que
as vestimentas do fala, porémenão
semblante do
fantasma, a verdade, se diz pela metade. Sempre se soube que havia
um gozo diferente (nem maior nem menor, outro) e esse insabido
era coberto com circunlóquios tais como “mistériofeminilidade”.
da
mistério que é e foi tanto para os homens quanto para as mulheres.
A função do saber sempre foi a de tratar de circunscrever e reduzir
esse mistério, buscando localizar o gozo feminino (inclusive na
duplicidade freudiana do gozo clitoriano e vaginal), concebendo-o
como equivalente do masculino, submetendo-o ao modelo do
orgasmo, posuilando ciclos imaginários de-ejeção e detumescência,
experimentado com eletrodos no cérebro, contando as terminações
nervosas no anterior e no posterior de tal mucosa, medindo
secreções e umidades, contando os dias do ciclo e retorcendo-os
com cálculos fliessianos. dosando hormônios e neurotransmissores ,1
recomendando massagens e técnicas de ginástica sexual. E mais
ainda. Mas_a-^©l«çãcuiã_o passa pelo saber: o discurso do senhor
renova aí suajmpolência.
A respostaperversa àpergunta histéri
ca não é a do psicanalista,
mas a do senhor e a do universitário. Sua rgspastii é de
universalidade, de redução do enigma no sipnificanle (fálico, resta
dizélõTTQ jjesmentidojão é a castração, mas o gozo das mulheres,
dõD utro sexo. A postulação perversaé que as mulheres nã o gozam
porque são _urna pura disponibilidade para o gozo do falo-pênis ou,
se na verdade gozassem, é porque também estariam incluídas, e
totalmente, no gozo fálico, com mri gozo-ftue~éüdêntico ao-
magriiiiri^ Em qualquer dos casos, afirma-se que não há outro goz.o
264 Gozo

A s mulheres são, em sua particularidade.,ora


senão o eo~o fúlic/). -
anuladas ora desmentidas. Novamente, devemos reconhecer que a.
perversão “apenas” acentua a função do desejo no homem. Sua

essência é o fantasma:
enigma pelo desmentido do sabergozar.
o de gozo feminTricTe o substituto de um
Esse gozo hostil, gozo do Outro, gozo
à Venvido gozo fálico
é o insuportável, a cabeça de M edusa que conduz ao fantasma. A
.atividade do perverso faz semblante de ser sexual. Na verdade, o
sexo é aí pretexto para demonstrar que o gozo do corpo pode
submeter-se integralmente a uma articulação lintruageira que organiza
as “posições”. O discurso que o perverso impinge sobre o gozo é
isso, discurso, suplantação do gozo com experimentos mentais que
revelam a cada passo seu caráter de artifícios, de cálculos da
modalidade para dominar e bloquear o gozo do Outro, do Outro
sexo. Parece uma busca..., mas é um disfarce. O teatro da divisão
subjetiva negada e deslocada para o Outro oculta uma fuga frente
ao incontrolável que se materializa no fetiche, na vítima, no olhar ou
no contrato. A angústia subjacentese resume nessa falta deengenho,
.no tédio reiterativo das encenações, nos sermões monótonos para
a vítima e ridículos para o carrasccTque todos, também L acan,
lemos em_Sad_e,
O ponto limite do per_yersa não é a castração do Outro como
acreditamos ao aprender a lição freudiana, mas o inconcebível gozo
do Outro, esse gozo que o perverso, ao nretender desmentir, põe
manifesto no Outro ao mesmo tempo em que fica excluído dele. Não
é seu infortúnio particular, pois ele, corno todos, estava excluído
desde antes. Seii-CHae ter acreditado que não.
Quer tornar-se dono daCoisa da qual está exilado. É aí que “se
agrega aos fantasmas que governam a realidade, o do” capataz .23A í
a psicanálise pode trabalhar (e não se priva de fazê-lo) como reforço
da perversão ao reeditar a idéia de um G ákjn, servil p om o “Eu,
'autônomo”. A fortaleza do eu que organiza e dirige a vida amorosa
é, precisamente,
quer o fantasma perverso,^
reduzir o desejo_kigQyerná J imíasma
vel à vonta dojseahüt-que
de racioflãTA ssenhorear-
se das pulsões, dos “instintos” como dizem. do~Isso para submetè-

23. J. L acan (1970). Autres écrits (A.E.). Paris: Seuil, 2001. p. 423.
A perversão, desmentido do gozo 265

a leis e a princípios lógicos. Deve-se ouvir Cícero, falando dois


!q s
mil anos antes de Freud em um discurso que é seu avesso: “a.
yontade é um deseio conforme à razão, enquanto o desejo oposto

à razão
que ou muito em
se encontra violento
todospara elaA éfalta
os ”tolos
.24 a lascívia ou (sobre
no saber cobiçaodesenfreada
gozo
do Outro, do gozo da mulher) é desmentida; no lugar do buraco o
perverso-instala-o exercício de um poder, o do capataz.
Para concluir: a perversão é. em essência uma tentativa He.
cura da falha da relação sexual e da irremediável heterogeneidade dos
gozos. E uma decisão de suturar que é^ntinômica com o projeto
próprio do discurso e a busca da psicanálise, o desígnji uj e não
ocultar a fenda. E característica da perversão a pretensão de
obturar tudo que provém do não-sabido do sujeito. Encontrar-se
com o inconsciente revelaria ao perverso a insondável rachadura que
o leva a ceder seu desejo, a substituí-lo pela vontade de um eu forte,
^rpnnnrn r rr) ]iffl dj «j i an Hr> a wiHn erótica. Sua Única
possibilidade, na perspectiva dapsicanálise, ^UtnTnãperseguição de
seu jiqzçixncQntxe^se com a impotgiiciarcomo no caso que Freud
relatou aseus colegas em 1914.25M as então, como agora ou como
"no caso da jovem homossexual, não se pode esperar muiio. E difícil
substituir a vontade de gozo pelo desejo quando “a única” coisa que
se pode propor para curar esta passagem necessária pela impotência
é o reconhecimento da impossibilidade real no final do caminho.
E não obstante...

24. M. T. Cícero. Tuscitlanes, citado por N. Abbagnano, Dicionário de filosofia.


p. 1195.
25. H. Nunberg e E. Fedem (eds.).M inutes of the Vienna Psychoanalytic Society.
v. IV (1912- 1918). N ova Y ork: I nternational U niversity Press, 1967.
p. 243. (Acta 225: A case of foot fetishism, relator Prof. S. Freud.)
VII

@-dicção do gozo

1. Não se elege a psicose

A ntes, depois e em vez de. Assim se orientam os gozos em


relação ao comércio da palavra, à dicção, à regulação das relações
com o Outro.
A ntes da palavra, mas não fora da linguagem, o gozo do
psicótico.
Depois da palavra. No falante, aquele que não seria nem
neurótico, nem psicótico, nem perverso - é essa condição pensável?
- o gozo passa pelo diafragma flexível da palavra que o dosifica, o
submete à significação fálica, o desvia pela metonímia desejante, o
torna correlativo da castração e permite atravessar as barreiras do
narcisismo e do princípio de prazer para que a pulsão, historizadora,
inscreva a passagem do sujeito pelo mundo, deixando sua marca no
Outro, recebendo seu fardo e aportando sua cota ao mal-estar na
cultura.
Em vez de, em vez da palavra, avesso da palavra, é assim
como vem o gozo coagulado no sintoma neurótico e na encenação
perversa. Sob os emblemas do eu, dizem que forte.
A ssim, há um gozo que insiste, um gozo maldito, aquém da
palavra, um puro ser no ser, anterior à falha que se produz no ente
por se dizer. Deste gozo incomunicável, que prescinde do Outro e
se aloja em um corpo que escapa à simbolização, nos falam, sem se
268 Gozo

dirigir a nós, os psicóticos. Eles nos mostram que a palavra não


funciona como diafragma regulador, que o sujeito foi inundado e
deslocado por esse gozo rebelde aos intercâmbios, proliferante, tão
invasor que não deixa lugar para uma palavra Outra que possa
refreá-lo e limitá-lo.
Se O é o significante do gozo como proibido para o ser que
fala como tal, então é o Falo que não se simbolizou, o gozo não foi
esvaziado do corpo, a falta a ser não se instaurou, o sujeito não é
desejante. Sem esta falta fecunda, sem que se cumpra a função
imaginária de -cp, nada fica por buscar no campo do Outro. Porém,
como já sabemos, mas é mister aqui reiterar, o Falo não cumpre sua
função como significante per se, senão por meio de outro
significante, o do nome-do-Pai, que permite a instauração de um
tronco fundamental, significante um (S,), ao qual poderão se
articular os significantes dois (S j do saber inconsciente. O Falo
barra a C oisa e permite a emergência do sujeito ao se fazer
representar pelo significante do nome-do-Pai que permite a
significação fálica (capítulo II, item 5). Se este tronco que é o nome-
do-Pai falta em seu lugar, os ramos ficam soltos e não pertencem
a árvore nenhuma. Esta é, numa imagem apressada, anoção
lacaniana da forclusão, chave das psicoses. Não há limite para o
gozo, não há canal para a palavra articulada. Este é, em tais
pacientes, o obstáculo de estrutura que impede que se unam o saber
e o amor nesse coração da psicanálise que é a transferência. A
interpretação é aqui inútil quando não persecutória e perigosa. E a
questão preliminar a qualquer tratamento possível da psicose.
Esta situação, este destino do ser que não se diz na inter-
dicção, não está ao alcance de qualquer um. Não é louco aquele que
quer sê-lo. Freud pôde falarNeurosenwahl,
da da eleição da neurose.
M as não, nunca, de uma eleição da psicose. A lição da psicose - creio
- é que ela não é eleita.
Esta afirmação é categórica, ainda que discutível e discutida.
Não bastarecordar queem 1967 L acan disse que “o louco éo único
homem livre”. Era o ano em que Lacan se dirigia para elaborar sua
proposta dos quatro discursos, quando pôde definir em um prodígio
lien social. Lien,ou seja, laço, vínculo,
de síntese o discurso como
atadura. Nesse sentido não cabe discutir que o louco é livre; ele, o
único que vive fora das cadeias discursivas que fazem com que a
@-dicção do gozo 269

palavra que se enuncia, tenha de passar pelo tribunal do Outro e


esperar a resposta do Outro. É em sua linguagem, fora das coações
do discurso, que o louco é livre. Entrar no discurso é atar-se, perder

a liberda
esse lugarde. Arior,
exte loucura
que cri
osadiscursos,
uma exceçãoso qua
etro
é por
deLessa exceção,
acan, constituepo
mr
um conjunto.
L acan reiterou em 1968' o quehavia dito há vinte anos, em
suas “Observações sobre a causalidade psíquica”: “O ser do homem
não apenas é impossível de compreender sem a loucura; não seria
ele ser do homem se não levasse em si a loucura como o limite de
sua liberdade ” .2 Sua posição é diáfana: a liberdade tem uma fronteira
e o nome desse limite, borderline
do , é loucura, linha onde acaba a
liberdade. A crescentava na segunda oportunidade: “O psicótico
apresenta-se essencialmente como o signo, signo em impasse,
daquilo que legitima a referência à liberdade” .1 Impasse, o que nã
o
pode se atravessar, o que separa de um e outro lado a liberdade de
sua ausência.
Observe-se que não há lugar para mais um discurso, o do
psicótico, esse no qual a palavra não seria semblante, mas que sc
colocaria diretamente no ponto de união da verdade com o real, isso
que J ulia K risteva4 batizou como “vreal”. Todo discurso é semblante
porque se apresenta como verdadeiro sem sê-lo. Todo discurso é do
semblante,5 6 porque fala de entidades que não existem senão por
meio do discurso que lhes dá seu estatuto linguageiro. E, finalmente,
todo discurso é do semblante porque seu agente (o que se dirige ao
outro e o interpela), é o semblante, que toma o lugar da verdade ao
mesmo tempo em que a põe a respeitosa distância, seja ele senhor,
universitário, analista ou histérica. E o psicótico não é nem faz

1. J . L acan (1968).Autres écrits (A.E.). Paris: Seuil, 2001. p. 361.


2. J . L acan (1946). Écrits. Paris: Seuil, 1966. p. 176. Em espanhol, Escritos
l. M éxico: Siglo X X I, 1984. p. 166.
3. J . L acan (1968).A. E., p. 363.
4. J . K risteva. Locci verdad. M adrid: Fundamentos, 1985.
5. J . L acan (1971-1972). Le séminaire. Livre XVIII. D'un discours qui ne
serait pas du semblant.Paris: Seuil, 1984.
6. N. A. Braunstein. El concepto de semblante en Lacan. México: Siglo XXI.
p. 121-152.
270 Gozo

semblante. V ive fora dele mesmo quando não lhe esteja vedado
cruzar sua fronteira e dar-se a entender.
Não quer dizer, pois, que o louco seja livre para eleger. De fato,
e, como psicótico, são os demais queelegem porele. Aquilo de que
o louco está livre é de
ter de eleger,isso a que nos obriga o discurso
a todos os outros, que sabemos que não é possível eleger sem
perder, sem renunciar a uma parcela de gozo.
A psicose “salva” o sujeito depassar pela castração simbólica,
de ver-se obrigado a desalojar o gozo do corpo, de ter que se
manifestar em um discurso em que o objeto se constitui como
perdido, das barreiras (ao gozo) que obstruem a subjetividade na
significação fálica e que tomam impossível a relação sexual. O louco
é o sujeito que está em contato imediato com o objeto precisamente
porque não está submetido a ter de metaforizar e metonimizar sua
relação com ele no encadeamento dos significantes. A alucinação
toma o lugar que tem o fantasma para os enlaçados pela palavra.
A ssim a loucura nos mostrauma imagem da liberdade que é
alheia aosnormais, os mais ou menos neuróticos ou perversos, os
que nos defendemos do real por meio do simbólico, nos agarramos
à nossa imagem narcísica e nos instalamos em uma suposta
“realidade” que está feita de enlaces arbitrários entre significantes e
significados. Tal “realidade” não é mais que uma formação
fantasmática compartilhada por muitos bem-pensantes e que nos
deixa a ilusão de não estar loucos. Vivemos no reino do sentido; não
somos insensatos.Gostemos ou não.
O louco, particularmente o esquizofrênico, denuncia sem o
saber a presunção da razão que se confirma a si mesma, excluindo
o louco dos intercâmbios e subordinando-o, em nossas culturas, à
ordem médica por meio da psiquiatria que encerra e domina seu
corpo com a ajuda dos fármacos. A psicanálise se confronta assim
com um dilema: idealizar o louco e a loucura como paradigmas da
liberdade ou objetivá-lo com a noção de “doença” e justificar assim
as manipulações e a prisão. Nossa opção consiste em denunciar a
falsidade desse dilema e mostrar um caminho diferente, congruente
com o nunca de smentido determinismo deFreud e L acan.
O risco é duplo; por um lado o de justificar a redução do louco
a uma condição de animalidade, por outro, o de um bunuelesco
fantasma da liberdade em que aqueles que estamos encadeados a
@-dicção do gozo 271

subsistir à mercê dos ofícios de um significante que nos represente


ante outro acabamos por construir a idéia da “liberdade do louco”
como remendo imaginário à nossa falta .7dela
O problema
corpo, é que na
mas o entrega ao loucura
Outro, ocomo
loucoonão éo dono
fazem de seu
também, e
a seu modo, o farmacodependente e o suicida para que se ocupe
dele. Sua liberdade tem o âmbito dos muros do manicômio ou dos
miseráveis quartinhos de hotel onde são hoje encerrados depois de
impregná-los com produtos químicos. Se o louco fosse o único
homem livre, o invejaríamos. E assim?
Como se consegue ser psicótico? É a eleição de uma posição
subjetiva dessas pelas quais se é sempre responsável, como diz L a
cans cm “A ciência e a verdade”? A neurose, a adicção, o suicídio,
a perversão o são. Também o é, à luz do que nos ensina a clínica,
a psicose?
Eleger não é escolher um objeto do qual se haverá de gozar.
Caso se tome esse ponto de partida ficar-se-ia no mais tosco
psicologismo da consciência autônoma. Eleger é aceitar a perda,
abrir mão do gozo. O paradigma da eleição, uma eleição forçada, está
dado por L acan em seu célebre “a bolsa ou a vida” .9 A eleição
imposta ao sujeito exclui a conjunção de ambas. O psicótico é
precisamente aquele que responde o impossível: a bolsa e a vida,
aquele que não aceita, que recusa, a perda de gozo. Eleger é eleger
a perda do objeto e, a partir de aceitar o cerceamento (
écornement)
do gozo, elege-se o modo de se relacionar com o objeto como
perdido. Essa é, justamente, aNeurosenwahl. Não acontece o
mesmo na psicose.
E necessário seguir o pensamento lacaniano sobre as psicoses
e encontrar em seu ensino o momento de inflexão a esse respeito.
E verdade que L acan pôde falar da psicose como uma“decisão in
sondável do ser ” . 10 Esta expressão aparece no artigo dedicado à
causalidade psíquica, escrito a pedido deHenry Ey em 1946, no qual

7. Chr. Fierens. Comment penser la folie. Ramonville: Erès, 2005.


8. J. L acan. Écrits, p. 858;Escritos 2, p. 838.
9. J. L acan (1964). Le seminaire. Livre XI. Les quatre concepts fondamentaux
de la psychanalyse.Paris: Seuil, 1973. p. 193.
10. J. L acan (1948). Écrits, p. 177;Escritos I, p. 167.
272 Gozo

L acan enfrentava a
ssim as pretensões vet
erinarizantesd) organodi-
namismo. A “decisão insondável” está imbuída do espírio sartreano
que dominava nesses anos. E, por mais que se pretend negá-lo, c
abertamente
tamente de contestada
z anos depois, pela concepção
no perí odo de el lacaniana que
aboração ^ st deduz
ue vai do len
seminário III sobre as psicoses11 até a escritura (em 1»58) de “A
questão preliminar a todo tratamento possível da ”psicos. 12 Aqui a
questão da psicose aparece centrada em torno do conceto de “for-
clusão”. totalmente oposto à idéia de uma “decisão insoidável”. A
nova tese estabelece a não intervenção da metáfora paDrna. O de
terminismo próprio da psicose deve ser buscado na relaçã>do sujeito
com a linguagem: o significante que seria o eixo de todaarticulação
não tomou seu lugar na cadeia e todos os demais vagamsem rumo.
Bloqueou-se a artéria principal e o sujeito deve errar peloicaminho-
zinhos secundários onde todos os sinais se põem a falir por sua
conta. Produz-se um desencadeamento com relação ao Iço discur
sivo, com relaçãoà cadeia borromeana e com a cadeia da gerações
e é esse ruído de cadeias rompidas que ensurdece o psidtico.
Quando o significante do nome-do-Pai falta em seu hgar - nos
é ensinado pela cl ínica - o que fica não é um sijeito na
indeterminação e na liberdade absoluta, mas um sujeito ubmetido
ao inefável do gozo, submetido à arbitrariedade do desej) da Mãe.
Pois a metáfora paterna é o efeito da operação da ausênca da mãe,
cujo lugar o nome-do-Pai vem ocupar. Para que estaoperação
fracassada, para que estaforclitsão se produza, disse .acan em
1968, nas J ornadas sobre a P sicose I nf antil , 13 é ireciso o
encadeamento de três gerações que são as necessárias pan produzir
uma criança psicótica. A tese das três gerações se lontrapõe
evidentemente com a “decisão insondável” de 25 anosmtes e se
soma à compreensão das psicoses como um deeito não
compensado na junção da cadeia borromeana (R, S, ) que foi
elaborada nos seminários de L acan de 1974a 1977.

11. J. Lacan (1955-1956). Le seminaire. Livre III. Les psychoses.'aris: Seuil,


1981.
12. J. Lacan (1958). Écrits, p 531-585;Escritos 2, p. 513-564.
13. J. Lacan (1968). A. E., p. 362.
@- dicçao do gozo 273

O Pai vem dar fim ao pior. Não resta nenhuma dúvida de que
ele é um impostor e que a conseqüência de sua impostura é a
submissão do sujeito às ataduras do discurso. Pela interferência do

nome-do-Pai
Coisa. o sujeito
Impostura é desalojado
não é, em doo gozo,
contrapartida, desejo da sarsa
da M ardente
ãe; esse sim da
é bem real. Sabe-se de seus efeitos quando a impostura fracassa,
quando o sujeito não entra nessas formações de discurso e
formações do inconsciente que não são senão semblante. Sobrevêm
o pior, isso que deve evitar qualquer tratamento da psicose para não
“se exaurir com os remos quando o bote está na” .14 areia
E ntre a proposta do senhor que fecha e reduz o louco e o
recurso idealista a uma liberdade insondável e fantasmática, o desafio
para os psicanalistas é encontrar uma terceira via. O determinismo
freudiano
seguir. e a causalidade estrutural lacaniana indicam a direção a

2. Psicose e discurso

Para o psicótico não há escapatória. Nele não existe a


possibilidade de uma entrada e saída manipulável, operatória, das
transações linguageiras. Sua separação da cadeia significante é um
efeito, a conseqüência de um defeito da cadeia simbólica do sujeito.
O psicótico se situa e sempre
U ma dificuldade é situado foraring
se aprese do
ntado
ao discurso.
escrever deforma
geral sobre as psicoses: tende-se a fazer delas um modelo global que
resulta sempre uma alusão ao que se encontra na clínica dos
pacientes diagnosticados como psicóticos, mas que quase nunca se
confirma plenamente nos casos singulares. E assim como “a
psicose” e “o psicótico” que chegam a ser rótulos esquemáticos que
extraviam o clínico e o leitor que investiga no lugar de orientá-lo com
relação ao processo estudado. Freud bem o sabia no final de sua
vida. quando escrevia em um texto que os lacanianos, com razão,
tendemos a esquecer, quando não nos esquecemos de ler. No
"Esboço de psicanálise
” 15 (1940[ 1938]) o fundador manifestava qu
e

14. J. Lacan (1958). Écrits, p. 583;Escritos 2, p. 564.


15. S. Freud (1938). Obras completas, v. XX III, p. 241-242.
274 Gozo

O problema das psicoses será simples e transparente se o


desatamento do eu com relação à realidade objetiva pudesse se
consumar sem deix ar rastros. M as, ao que parece, isso oc orre
raramente, talvez nunca... Provavelmente tenhamos o direito de
conjeturar, com universal validade, que o sobrevindo em tais
casos é uma cisão psíquica. Formam-se duas posturas psíquicas
em vez de uma postura única: a que leva em consideração a
realidade objetiva, a normal, e outra que, sob a influência do
pulsional, desfaz-se o eu da realidade.

Deve-se sempre ter presente estaSpaltung.Falar ou escrever


sobre “a psicose” e sobre “o psicótico” é se restringir a uma das
duas “posturas psíquicas”, a que se separou da realidade, ou seja,
do Outro do significante, e ignorar a presença constante da outra
postura, a que continua vinculada ao Outro. Por isso em nenhum
psicótico singular se encontrará plenamente o que este ou outro autor
escreve sobre “a psicose” como modelo ideal.
Esta consideração é essencial para justificar a afirmação feita
linhas acima de que o psicótico, pelo fracasso da metáfora paterna
com forclusão do nome-do-Pai, fica situado fora do discurso.
Possivelmente não valha absolutamente para nenhum psicótico e,
não obstante, tem validade clínica geral com relação “à psicose”.
A definição lacaniana do discurso como vínculo social, vínculo
entre corpos habitados pela linguagem, é o recurso essencial para
aceder à concepção psicanalítica das estruturas clínicas em geral e
às psicoses em particular. Desde a definição do significante e sua
concretização na matriz de todo discurso que é o discurso do senhor.
“Um significanteé o querepresent a a um sujeito ante (ou para) outro
significante” ,16 é definição incompleta caso não se acrescente: “...
que deixa como produção um resto, um real fugidio que escapa
à articulação discursiva do S, e do S2. Na posição da verdade dessa
articulação discursiva está o sujeito S, o que é representado pelo
significante primeiro ante o segundo.
A definição do significante escreve-se como matema do
discurso do senhor:

16. J . L acan (1960-1964). Écrits, p. 860;Escritos 2, p. 840,


@-dicção do gozo 275

agente —> outro S, —> S2


verdade // produção S // @

formaEntre os lugares
de uma da verdade
dupla barra e da produção
de separação, se que
um corte inscreve,
marcasob
a a
disjunção, o desencontro necessário entre os dois elementos. Ao
serem estes lugares ocupados na fórmula do discurso do senhor,
toma-se vidente que a relação de corte ou de disjunção é a que existe
entre o sujeito e o objeto e que a escritura assim produzida é a do
fantasma, em que o corte é indicado pelo losango 0: S 0.
Como esta fórmula é aplicada na intelecção das psicoses? J á
desde o Seminário XI, anos antes de produzir os maternas dos
quatro discursos, L acan havia estabelecido que devia se buscar a
chave
separa,nanoligação entre
“ante”auprès
( )oso dois
“parasignificantes,
(pour) o outronosignificante”
intervalo que
da os
definição. O S, não representa o sujeito ante o S2, seja porque não
há diferenciação entre ambos significantes, seja porque está rompida
a sintaxe que os articularia. E o efeito da forclusão.
Pela função da palavra, pelo discurso, obtém-se um saldo
fugitivo de gozo que é @, um @ que, por definição, é inacessível
para o sujeito. Nas psicoses esta função da palavra e do discurso está
radicalmente perturbada. A coagulação ou a desarticulação dos dois
significantes, esta é a tese que aqui se sustenta, provoca como efeito
uma falha estrutural na constituição do fantasma, um transtorno na
relação entre o sujeito $ e o objeto causa de seu desejo, @. A
psicose é um processo de afetação do intervalo significante, mas seu
efeito para o sujeito é a falha na constituição do fantasma no membro
que corresponde ao intervalo no matema do fantasma, ou seja, o
losango O. A escritura do losango foi dita por Lacan de três formas
diferentes: como a) corte; b) inconsciente; e c) desejo de. A relação
do sujeito com o objeto do fantasma pode ser expresso dessas três
formas. Isso é, precisamente, o que falha na psicose. Poder-se-ia
dizer que está ausente ou rompido o losango e que por isso não há
fantasma ou o próprio termo fantasma deveria receber outra
definição se se quisesse conservar o incerto sintagma “fantasma
psicótico”.
Bem, a função do fantasma é a de distanciar o sujeito do objeto
causa de desejo que é, por sua vez, o objeto do gozo ou o gozo
276 Gozo

como objeto. Graças ao fantasma o sujeito está protegido em relação


ao gozo, mantida a respeitosa distância dele. O losango equivale, na
fórmula, à imagem gráfica do cristal de uma vidraça (ou um espelho)
que separaria o sujeito do objeto desejado e proibido, perigoso. A
psicose é a quebra do cristal, a situação na qual o sujeito fica
exposto ao gozo e é extrapolado por ele.
V oltando ao matema do discurso do senhor, que é o da
definição do significante, temos que expor agora a situação anômala
que se encontra na psicose: a) S, 2 coagulados,
c S como uma massa
indi stinta, homologados entre si, o que L acan designara
prematuramente de holofrase.11Esse grude é o responsável, segundo
disse, não apenas pelas psicoses, mas também por outros processos,
como a debilidade mental ou as afecções psicossomáticas, e b) S,

e S, desarticulados,
inelutável carentes
entre si. Em ambos osde casos
sintáxe, separados
deixou de omodo
de existir discurso
como vínculo social. Tomando como matriz o discurso do senhor,
cabe arriscar agora a escritura da relação do psicótico com a palavra,
desta maneira:

S, 0 S,
8 @

Esta escritura pretende mostrar que a relação de disjunção ou


corte, indicada pelo losango
0 , foi deslocada para a relação entre o
S, e 2Se que esse mesmo corte deixou de existir entre o sujeito e o
gozo, desaparecendo a barra que os mantinha separados e que
alentava no imaginário a busca de um reencontro posterior. Assim
era o fantasma(8 0 @) como resposta ao desejo ilustrado no
gráfico de “Subversão do sujeito e dialética do desejo”.IS Dupla
ruptura, pois, no psicótico: de um significante com outro e do
fantasma como barreira frente ao gozo. Duplo efeito clínico:
interrupção da dialética intersubjetiva e invasão irrefreável do gozo
do Outro, não submetido à regulação fálica e à lei que ordena o
desejo.

17. J. Lacan (1954). Écrits, p. 256.


18. J . L acan (1958-1960).Écrits, p, 817;Escritos 2, p. 797.
@-dicção do gozo 277

Ou o gozo ou o discurso. Temos recordado que L acan quase


nunca falou de um sujeito do gozo. A primeira vez, já mencionada,
foi no seminário da angústia (13 de março de 1963 ) para propor o
momento mítico de início que haveria de culminar na divisão
subjetiva (fórmula da divisão ecausação
a subjetiva). A segundafoi
em 1966, ao apresentara publicação, em francês, dasmemórias de
Schreber.1'' Escreveu n
etão sobre arecém-surgida polaridade entre
o sujeito do gozo- por um lado - e o sujeito, a quem o significante
representa para um significante, sempre outro, por outro lado.
A forclusão opera sobre a relação do significante do nome-do-
Pai com o restante da cadeia. Desamarrado, o falante é lançado à
deriva dos discursos, à dependência da resposta do Outro, a ter que
se significar por meio de sua palavra, à ex-sistência. É por isto que
no psicótico anão
intercâmbio, palavra não como
funciona é símbolo, não édoconvite
diafragma gozo. ou invenção do
O significante representa ao sujeito que não é psicótico. O
sujeito está no lugar do significato, ele é o significado ante outro
significante. Nunca do todo, porque fica um resto que é @. Esta
articulação com o segundo significante é o que falta na psicose. Um
significante suplanta completamente o sujeito, não o (re)presenta;
esse significante não necessita se conjugar com outro, há
coalescência do significante e o sujeito (significado). Não há um
resto inassimilável, um resíduo da operação. O psicótico está
invadido pelo gozo, esse gozo do qual, de ordinário, cada um fica
excluído pela não coalescência do significante e o significado. Aí
palavras são as coisasdo psicótico, não um saldo fugitivo que
obriga a prosseguir o encadeamento discursivo. N ele há um
significate S, que representa o sujeito de modo absoluto,
confundindo-se com ele, sem remédio nem perdão, sem que a falta
se simbolize. Por isso falamos do gozo psicótico, mas não do desejo
psicótico. Não há falta em ser que motorize o discurso.
O psicótico não se sustenta à distância do gozo. habita nele;
está identificado com seu gozo. Ele é gozo. A alucinação ali não é
uma percepção de alguém. Não há distinção entre perceptum e
percipiens. Faltando o losango que afasta o sujeito do gozo do ob
jeto a condensação é agora produzida entre os dois termos do

19. J . L acan (1966). A. E., p. 215.


278 G ozo

fantasma. Deveria se pensar em um vocábulo análogo ao de


holofrase para designar esta coalescência entre S e @ cujo exem
plo mais notável é a alucinação. Na percepção o sujeito à sua fren

te um objeto
alucinação e podeestá
o sujeito submetê-lo
fundido,àconfundido,
“prova de realidade” freudiana;
com seu objeto. Não na
são dois, mas apenas um, não guardam uma relação de exterioridade
recíproca.
Nas psicoses o gozo não se localiza em uma região do corpo,
não está reprimido e limitadopelo significante fálico, representante
de -cp, daquilo que no corpo falta à imagem desejada, mas que
invade o corpo inteiro transformado em quebra-luz onde se projetam
metamorfoses arrepiantes que deixa o sujeito atônito, um sujeito que
se vê reduzido a ser o cenário passivo de transformações que
obedecem a escura vontade de um Outro onisciente que rege e
regula o acontecer orgânico. Influência, hipocondria, alucinação de
ordens, persecução, magnetismo, irradiações, transexualismo,
negação, putrefação, cadaverização de um corpo onde não impera
senão a O utra vontade, a que governa a carne do presidente
Schreber pelos séculos futuros.
Outro efeito dessa ausência de regulação do gozo pelo falo (pela
castração) é que a vertente paterna, freudiana, do supereu, herdeira
do complexo de Edipo, não se apresenta para incitar a outra mulher,
a prometida e possível. Subsiste, então, irrefreável e incoercível, a
ordem obscena e feroz do supereu arcaico, materno, kleiniano, que
comanda oGozo! impossível,gozo! ilimitado da Coisa que está antes
e aquém da castração.
Pela defeituosa integração do sujeito na ordem simbólica é que
ele não chega a se distanciar do real como impossível. E produzida
sucessivamente uma desorganização completa do imaginário do
corpo. Sobre esse fundo de fragmentação, sobre esse transtorno
radical da existência, implanta-se a função restitutiva do delírio que
pretende voltar a ligar o sujeito em uma cadeia significante e dar

conta
desta da experiência
dispersão dos vivida. O conjunto
significantes da aventura
que ficaram psicótica resulta
invertebrados^
desligados do vínculo social. A metáfora delirante pretende remendar
a falha da metáfora paterna na sua função de conferir uma
significação à falta no Outro. Pretende devolver o sujeito às redes
@-dicção do gozo 279

do laço social. Restaurar a ligação, Bindung


a do gozo com a
palavra.

3. Droga-@-dicção

Não se eleje a psicose. Há, no entanto, um método de sub


tração do sujeito ao intercâmbio simbólico que é, este sim, objeto de
uma decisão e de uma eleição. A lgo que permite uma conexão
quase experimental com o gozo e que opera um curto-circuito com
relação ao Outro e aseu desejo. Uma senda que permite ao sujeito
um certo balizamento, a produção mais ou menos regulável de uma
separação com relação aos efeitos da operação de alienação signifi-
cante. Uma separação que pode ser completa, ou seja, uma recusa
absoluta da alienação significante. Não deixa de ser paradoxal
que este método seja posto à disposição do sujeito justamente
por esse Outro do qual o sujeito pretende se separar. Com efeito, é
um produto da indústria, algo que se trafica, algo que é proposto
e oferecido pelo Outro no comércio que pode satisfazer esta de
manda de uma separação radical, de aniquilação do “penso” em
benefício de um “sou” sem atenuantes e além de qualquer cogita
ção. Estou falando, como já se deve ter entendido, da droga, das

drogas
drogadiçse
ão.2preferem,
0 e de seu efeito permanente no sujeito que é a
A intenção de separação (do Outro), entendida como operação
oposta à alienação (no Outro), é, conforme acredito, a chave que nos
permite internarmos na selva das drogas, que é uma das
características específicas de nosso mundo e de nossas vidas
atualmente. Uma realidade cuja presença irá ganhando importância
sem que possamos contemplar qualquer limite à criação de novas

20. A níbal L enis B. de Cali publicou um artigo que intitulou “Interpelar la dro-
ga-dicción”. O hífen de seu título serviu de estímulo para estas reflexões,
assim como suaafirmação de que “o drogadito é quem ‘cria’ ou ‘adminis
tra’ sem necessidade dos outros, que o demandam como sujeito, seu pró
prio gozo”. O texto de L enis foi publicado no número 2 do Boletín de
Estúdios Psicoanalíticosde Cali, Colômbia.
280 Gozo

substâncias que cheguem ao organismo e o modifiquem sem passar


pelo filtro da subjetividade.
O modo mais barulhento da separação do Outro é, sem dúvida,

odiferente.
suicídio de queela
Com logo
ou falare
commos.
elasAo droga
clamoroferece uma rumor,
é apenas alternativa
a batida
toma-se um mero escorregar, a soberba se torna humildade, a pompa
se torna recôndita, a altivez suicida se faz vergonha. Uma diferença
salta para o primeiro plano: na intoxicação não há morto, mas um
“dar-se por morto” que não reivindica com orgulhoso desdém o
corpo que se entrega como uma esmola ao Outro, mas que o
degrada e o mostra na miséria de suas servidões orgânicas.
O suicídio destaca o nome, o toma próprio, o livra da entrega
ao Outro. Em contrapartida, os alcoólicos são anônimos, enquanto
alcoólicos e alcoolizados, claro.
De qualquer forma, deve-se ter cuidado de não falar leve e
superficialmente dos adictos, toxicômanos ou fármacodependentes
conforme se prefira chamá-los. O uso do álcool e das demais drogas
configura uma “conduta” e não uma estrutura clínica. Tal conduta
pode se manifestar em neuróticos, perversos ou psicóticos e a
maneira de encarar psicanaliticamente os casos não depende do uso
das drogas, mas dos reparos estruturais; são eles que permitirão
orientar a direção do tratamento. Sempre será sábio por parte do
analista que encontra o uso de drogas no lugar mais visível da
apresentação de um caso, a retroação a este modo encobridor no
qual o sujeito se mostra ou é levado a se mostrar ao psicanalista.
“Sou toxicômano” é um dizer comum para fugir à pergunta pelo ser:
o nome-do-Pai, do pai como quem nomeia o sujeito, é o da droga
da qual o sujeito está pendente (de-pende). A própria toxicomania
cobre e esconde essa questão conferindo um semblante de
identidade que não deixa de ser uma máscara que deve ser tirada
para que as verdadeiras perguntas do sujeito sejam ouvidas.
O interessante deste comportamento está no modo como o
sujeito enfrenta este objeto peculiar que é a droga. Supõe-se que sua
adicção lhe permitiria uma via de acesso privilegiada e direta, em
curto-circuito, até o gozo e que seria um modo de contestar a
exigência do Outro e da cultura de renunciar ao gozo. A droga
consegue ser o objeto de uma necessidade imperiosa que não aceita
@-dicçã'do gozo 281

nem os diamentos nem as diferenças dasatisfação demandada.


Temos a uma diferença radical entre o objeto da toxicomania e o
objeto a pulsão ou do fantasma. A falta a ser não parece ser

provocaia
mercadcria por
queum objeto inominado
se compra no mercadoe. irrecuperável,
Neste sentido mas a de uma
a droga,
objeto d. necessidade, mascara ou substitui o desejo inconsciente
que ficanais desconhecido do que nunca ao se disfarçar como uma
exigêncii do organismo.Trata-se de uma necessidade colocada em
termos asolutos, de vida ou morte: ou há o gozo químico ou há o
nada. 0;ujeito fica abolido, reduzido ã condição de desfeito, @. A
droga nô é um objeto sexual substitutivo, carece de valor fálico; é,
pelo cor.rário, um substituto da sexualidade mesma, um modo de
afastar-s das coações relacionais impostas pelo falo. E assim que
a droga;e assemelha ao auto-erotismo da proibição srcinária: o
sujeito dministra em si mesmo uma substância que o conecta
diretamnte com um gozo que não passa pelo filtro da aquiescência
ou pelo orçamento do corpo de outro; consegue-se deste modo a
substituião da sexualidade.
E ecasso o queencontramos no ensino de L acan acerca de ste
tema, ms a escassez não é necessariamente a pobreza. E preciosa
a indicaão que deixara plantada na única oportunidade em que se
referiu droga com esse nome, no final de sua vida,21 quando
expressai que a dificuldade para nós, falantes, é tirar da castração
um goze permitir que a castração e o desejo nos liberem da angústia,
conduzido-nos até o investimento do corpo do Outro que simboliza
a falta o nosso. Pois a angústia vem para nós, homenzinhos ou
futuras nulherzinhas, de descobrir - como no caso do pequeno
Hans - |ue estamos casados com o p aito e que a difícil questão é
como dssolver esse matrimônio funesto, contraindo outro, com o
corpo d) Outro ou com o que quer que seja; daí que seja bem
recebidctudo que permita escapar dessa união, “de onde vem o êxito
da drogi”. E conclui: “Não há outra definição da droga: é o que
permiteomper o casamento com o pipi”. A droga é o companheiro
que ven depois do divórcio do homem ou da mulher com a ordem

21. J . L ean. Séance de C lausure de la J ournée des Cartels de 1’E col e


Freucenne(18 deabril de 1975),L ettres de iE cole Freudienne, n. 18, 1976.
282 Gozo

fálica, com a admissão da falta. É a promessa de um paraíso où tout


n ’est qu’ordre, beauté, calme, luxe et volupté,1
2no qual o Outro é
substituído por um objeto sem desejos nem caprichos, um objeto
que deixa como único problema procurá-lo como mercadoria e que
não trai.
O alcoolista, o droga-a-dicto, impugna a dúvida simbólica,
dúvida eterna e externa que não contraiu e que não quer pagar.
Porque, para ele, é impagável. Alíngua mexicana diz que contrair
uma dúvida é “endrogarse”. A própria dúvida é chamada “droga”.
Deve-se insistir nessa relação entre droga e dúvida (simbólica) com
o Pai, com o Outro, com o credor onipotente que exige renunciar
ao gozo e entrar no comércio.
Frente à marca imposta sobre ele por um Ideal, I (A) que aspira
o que procededo sujeito (vectorS — I [A]) no gráfico do desejo),
ele entrega sua vontade sob a forma de um corpo privado de reações
vitais, pura máquina metabólica sem desejo, negação fantástica e
fantasmática da castração por meio da negação do falo.
A fenomenologia mostra a diferença aparente entre a
impotência que afeta os alcoólicos e os drogaditos do sexo masculino
e a promiscuidade sexual com multiplicação das buscas e dos
contatos sexuais nas mulheres de igual condição. A contradição não
é estrutural. A função fálica cumprida pelos homens através da
investidura fálica de uma mulher que alcança assim valor de gozo
(e de sintoma) é algo que o alcoolista, paradigma do grupo, não
realiza. Ele se coloca fora, aquém do desejo. A alcoolista, por sua
vez, nega-se a receber essa significação fálica; seu corpo já não é
um objeto de investiduras narcísicas, é algo que se dá, objeto de
ínfimo valor quequalquer umpode pegar ou largar. A promiscuidade
de uma tem o mesmo sentido que a importância do outro. Em
ambos a castração passou a ser real porque não funciona como via
para alcançar o gozo “na escala invertida da Lei do desejo”. O gozo
não foi recusado, a castração não foi simbolizada, o gozo se fez
inalcançável, a lei do desejo, a que ordena desejar, não opera,
Há o Outro. Ai, o Outro! Esse Outro que demanda que se
deseje seu desejo, que o sujeito se inscreva nele sob as insígnias do

22. Ch. Baudelaire.L esfleurs du mal.


@-dicção do gozo 283

trabalho, do amor, da paternidade ou da maternidade, da


descendência e da condescendência, da decência e da docência, da
produção de objetos como significantes e de significantes como
objetos. Eis o Outro que, ainda que barrado e ainda que não exista,
impõe sua Lei e faz o sujeito responsável por suaposição desujeito.
O Outro que pede que se dê conta da passagem pelo mundo, que
impõe que o sujeito explique e responda pela vida que lhe foi dada
no simbólico quando lhe foi atribuído um nome próprio que o
representa ante o conjunto dos significantes.
Nem sempre o Outro pede; às vezes é mais letal quando não
o faz. A adicção não é tão-somente uma renúnica a pronunciar as
palavras que representariam o sujeito ante o Outro exigente. A vida
no mundo capitalista tardio mostra outra forma de dispor a
capitulação do falante, a derrota da palavra. Isso ocorre quando o
Outro não diz nem pede nem espera, quando o outro cala. Proponho
que em tal caso falemosA-dicção.
de “Faça o que quiser. A mim não
importa. Nem te falo nem te escuto.” A função dogmática de
transmitir verticalmente uma mensagem que descende das alturas da
terra, essa função cumprida por Deus, o Imperador, o Rei, o
Estado, o Partido, o Pai em todas as suas formas históricas, tem sido
abandonadapor todos os seus figurões. A Lei é objeto de desdém;
não está presente no horizonte. A parentemente a liberdade foi
entronizada. Para muitos o inconveniente da atualidade pós-moderna
é que a palavra que se podia dizer carece de efeitos. São contadas
ao sujeito, mas ninguém as leva em consideração. São números em
estatísticas e sua presença se reduz a dizer “sim” e “não” às
perguntas do pesquisador.
A palavra que se diz com-promete, é uma promessa, uma
invocação ao entendimento e ao desejo do Outro; em última
instância, a uma falta que teria de habitar nele para que a existência
de alguém tenha sentido. Poderíamos jogar com os dois sentidos do
vocábulo “oração”. Sai da boca ( ), mas não é simples exalação
oris

de ar; é àdemanda
se dará de sentido
oração no uma resposta, é expectativa
gramatical de um
e no religioso. O sentido
sentido que
depende da resposta; nunca habita com autonomia no sujeito.
Procede sempre daquele que escuta, tal como é demonstrado
freqüentemente na experiência analítica. O gozo do sujeito está
284 Gozo

refreado por essa expectativa de resposta, pelo desejo, na instância


do diálogo. Bem, se o outro nem espera algo nem deixa saber o que
quer, se o Outro não é desejante, para que falar?

O sujeito
As drogas é aniquilado
queembriaga pela surdez
m e oferece do Outro
m um atalho e eleje
ao gozo sem opas
mutismo.
sar
pelo desejo, que chegam ao cérebro e atuam sem a mediação do
diafragma da palavra, permitem desprender-se dos compromissos
que unem o corpo com a cultura. Da abolição do sujeito fica, como
resto, o corpo feito objeto, @. Neste caso permitimo-nos falar de
@dicção.
Recordemos: “Que se diga fica esquecido detrás do que se
disse naquilo que se escuta”.23Temos comentado que a enunciação
do sujeito é o que se esquece no enunciado pela escuta que
corresponde
é o sentido deaodizer?
que oO Outro ouviu.
anulado E se
em tal o Outro
caso não escuta,
é o sujeito qual
da enunciação.
O gozo fálico, o do blábláblá, o que poderia abrir caminho para que,
transitando pelo desejo se chegue ao gozo, está obstruído. Sendo
impermeáveis as vias que levariam ao gozo, que está além da
palavra, resta apenas o gozo do aquém, o primitivo gozo do ser,
anterior à palavra. Sentimos a confluência de nossos três termos:
adicção, @dicçãoc Adicção, todas modalidades nas quais o sujeito
deixa de dizer e se separaKulturarbeit
do , desse trabalho da cultura
reclamado por Freud, e que pode fazer que onde o Isso estava o Eu
possa advir. A indiferença em matéria de política, a renúncia à
congregação e a aceitação da segregação são as manifestações mais
visíveis em nosso mundo desta a-@-A -dicção. A psicanálise e os
psicanalistas têm que se envolver nesta situação sem somar-se à já
dita indiferença.
O corpo em todas estas formas da sem-dicção é assento de um
gozo que desaloja o sujeito, colocando-o fora do discurso como
expressão do vínculo social. Sob o efeito das drogas o corpo é
objeto @ e não, como nos suicidas, S (A ). Neles o corpo é a
oferenda que se entrega em troca da dívida, uma libra de carne que
é toda a carne que se livra nas mãos e na vontade do Outro. Assim,

23. J . Lacan (1973). A. É„ p. 449.


@-dicção do gozo 285

materializa-se a suspensão de pagamentos, o “disponham de mim”.


A rremessando seu corpo para o abismo é como os suicidas
respondem à demanda insaciável de um credor usurário.

A fastar-se
ordenada do Outro,
conciliação dosdedesejos,
sua demanda (ou de que
é operação seu silêncio),
se pode da fazer de
modo barulhento por meio da passagem ao ato suicida, a forma mais
radical de fechar a porta que, sob pretexto de “não querer saber mais
nada” dos condicionamentos da vida, da completa aspiração ao
apagamento do sujeito na cadeia significante, produz paradoxalmente
uma inscrição indelével. Pois o ato suicida auxilia, com o
afastamento, uma contestação feroz e desapiedada do Outro e de seu
gozo. O suicida mata, é um “homicida tímido” conforme o definiu
o suicida Cesare Pavese. O sujeito da auto-imolação não disse, mas
coloca seu cadáver como objeto livre da decomposição orgânica.
Sua tácita proposição (sentence):“Aqui tem meus restos (corpse)”
é uma determinação que , longe de brindar ao Outro esseobjeto @
que é o corpo como desfeito, marca esse Outro, inscrevendo nele
uma cicatriz que érecordação pe rpétuade sua inconsistência. Assim,
a carne putrefatível inscreve-se de modo indelével como S(A),
justamente quando não é mais que (the rest is...)silêncio. Ao apagar
por decisão própria a vida do corpo é oa Outro daL ei que se barra.
Daí a fascinação e o espanto, daí a repulsa, a secular condenação
e culpa, eterna se fosse possível, que recai ou que se pretende fazer
recair sobre o suicida e sobre seu ato.
De qualquer forma, há um vínculo essencial entre o suicídio
e a drogadição. Recordemos o Lacan dos primeiros tempos (1938)2 4
quando falava da “formação do indivíduo” e de “os complexos
familiares”:
E ssa tendênci a psíqu ica para a morte... revela- se nos sui
cídios especialíssimos que se caracterizam como “não violentos”,
ao mesmo tempo em que neles se evidencia a forma oral do com
plexo: a greve de fome da anorexia nervosa, o envenenamento
lento de certas toxicomanias pela boca, o regime de fome das
neuroses gástri cas. A análi se desses casos mostra que, em seu
abandono à morte, o sujeito procura reencontrar a imago da mãe.

24. J . L acan ( 1938). A. E., p. 35.


286 Gozo

Se a relação sexual não existe, se o amor não pode supri-la e


cumprir sua promessa, se o trabalho valoriza e consagra a escravi
dão em vez de se ibertar
l del
a, o que resta se
não o desespero, a sede,
a atração pelomaelstromde que dão conta em suas obras um Poe,
um L owry, um personagem de Drieu la Rochell e{El fuego fatuo)
ou um Rimbaud que seapagado mundodepois de ter tratado, e nã o
em vão, de fixar suas vertigens? O que fica senão se empanturrar
com essa comida que o Outro pede que se “lhe” coma (bulimia) para
depois vomitá-la e se negar a seguir comendo (anorexia)? As desor
dens da pulsão oral são também formas clínicas da a-@-A -dicção.
O que pedem - sem palavras - os a-dictos? Ser deixados em
paz, sem querer nada do que o Outro quer deles; gozar sem desejar,
contestando assim o falo e suas pretensões unificadoras; sair do
jogo com os dados carregados do dar e receber, dos intercâmbios
de palavras, objetos, signos, criaturas, para chegar a viver essa
relação perfeita do alcoolista com sua garrafa, manifestada por Freud
como modelo invejável de um amor que não conhece as falhas, as
traições nem os apelos recíprocos. Viver desconhecendo essa dúvida
simbólica com que são importunados.
Eu disse que a-@-A -dicção ilustra um apelo da e-dicção, do
edicto promulgado pelo Outro. O adicto o faz por meio de um
afastamento experimental, instrumental, operatório, com relação ao
Outro, por meio de um movimento de vai-e-vem do qual o sujeito,
pois há, sim, sujeito, sujeito da a-dicção, queria ser o senhor. Todas
as a-dicções começam - como se constata diariamente - com a
ideia do “controle” das entradas e saídas do gozo. “Sei bem até onde
posso chegar se m me perder”. M as “Eu é Outro”, e o Outro, que
pretende atuar por meio de Eu, que pretende “controlar” o vai-e-vem,
termina sendo arrastado; o gozo sem dicção se apodera e muitas
vezes consegue destruir o diafragma da palavra. No período clínico,
desde a perspectiva da psicanálise, a única que aqui considero, o
sujeito se apresenta como um pestanejar, uma piscadela
reiteradamente dada ao Outro, fort e da, que é o que põe em ação
esse Outro do qual nada quer saber e que, no mais das vezes, assume
e se torna depositário de seu desespero.
É assim que o álcool e as demais drogas rompem o diafragma
da palavra e abrem as comportas dos paraísos artif iciais. M as a
situação do psicótico não é artificial não.
@-dicçao do gozo 287

Chegando neste ponto creio que posso assinalar outra forma


da adicção à qual não me deterei a considerar: refiro-me à escritura,
não a qualquer uma: a de quem a utiliza como modo de
separação
(contrária àalienação)em relação ao Outro e suas exigências. Penso
em diversas figuras do século passado: K afka, Joyce e Beckett,
Plath, Woolf y Pizarnik, Camus, Céline e Sebald, Roth, M usil e
Broch. Penso no magnífico ensaio de Serge A ndré:25 “A escritura
começa onde termina a psicanálise”, no qual se analisam a fundo as
relações entre psicanálise e literatura e a presença do gozo e o desejo
do escritor na obra acabada. M as penso ainda que não apenas a
escritura, mas também a música e as artes plásticas são mostruários
da criatividade que se desencadeia em certos criados que se
separam do laço social e optam pelas dores do gozo à custa dos

prazeres do
criadores reconheci
anônimos mentfazem
que o.26Penso,
artefinalmente
uma , na
bruta(art multidão
brut), obras de
de
tolos e ingênuos fora dos editoriais e das galerias, não dirigidas a
nenhum outro nem Outro. Deixo apenas indicado este caminho para
a investigação dos gozos adictos.
Em síntese, resumindo o movimento deste capítulo: definiram-
se três formas polares de ruptura dos laços entre o sujeito e o
discurso: a psicose, a drogadicção e o suicídio. Em todos os casos
o parentesco se estabelece pela divisão da função do discurso. Nos
três trata-se de um fato de linguagem, no campo da linguagem. A

esaída é escolhida,
forçada no sentido
no terceiro. freudiano
A relação com o ()gozo
Wahl , pelos dois primeiros;
e com o Outro da
dialética subjetiva é radicalmente diferente para cada uma destas três
posições de a-dicção. E o desafio para o analista é, em cada uma
delas, o de restaurar o movimento do desejo que se deteve. Com
poucas possibilidades; apenas conta com um instrumento, a
transferência, cujo fio está desfeito pelo próprio processo que
atravessa o sujeito. Há razões, sem dúvida, para que estas três
a-dicções não sejam o campo eletivo da psicanálise. M as se não for
a psicanálise, que outra coisa cabe eticamente tentar?

25. S. A ndré. Flac. M éxico: Siglo XX I, 1999; en francês, M arselha: Que, 2000.
26. G. Steiner.G rammars o f creation. New Haven e L ondres: Y ale 11niversity
Press, 2001. Cap. 1, p. 17-64.
V III

Gozo e ética na experiência psicanalítica

1. U ma prática linguageira

M uito e muitas vezes falamos antes deste último capítulo


acerca das relações entre o gozo e a palavra. Tanto que pode parecer
um excesso. Deve-se justificar por isso? Direi primeiro que não se
deve fazê-lo e logo o farei.
A clínica psicanalítica explora o modo de relação do sujeito com
o gozo que pass a - é nossa tese - pela mediação ativa do diafragma
da palavra. A clínica não tem outra base senão o que es diz em uma
análise e o que se faz numa análise é criar condições para o
desdobramento do saber inconsciente, condições para a tradução em
palavras. Portanto, a experiência psicanalítica está jogada
integralmente na relação do sujeito com o gozoe está orientada para
um certo bem que é o gozo como possível, como aquilo sem o qual
seria vão o universo, mas também como aquilo que deve ser
recusado para que possa ser alcançado. Na rota até o gozo há que
fazer, forçosamente, uma escala no porto do desejo.
Esta é a razão que gora
a encontramos para aorganização es trita
e exclusivamente linguageira dessa experiência da análise. Ela tende
para que a verdade seja dita depois de aceitar que a verdade não se
pode dizer senão por meias palavras, que deve ser filtrada pelo
semblante, pelo discurso. As palavras sempre faltarão para dizê-la
toda. Apenas pela linguagem é que estamos no mundo e, do mundo,
290 Gozo

a linguagem não nos dá mais do que um semblante, algo que parece,


que para-é. E a análise está desenhada em relação com esse gozo do
ser que a linguagem mesma forclui; não pode mais do que prometer
dele, do gozo, o deciframento.
Em seu fundamento, há uma presunção que a experiência
mesma revelará como falsa: que a verdade poderia ser dita - é a
consigna inicial: Diga tudo...etc. Essa injunção da regra fundamental
não tem outro objetivo senão confrontar o sujeito com a
impossibilidade de dizer tudo e assim tornar manifesta a inconsciente
estratégia discursiva seguida pelo analisante ante a evidência dessa
impossibilidade. O “diga tudo” inicial é seguido de ainda
um que
pareça desagradável, que é uma segunda injunção, a mais
superegóica que se possa imaginar, porque seria indiferente formulá-
la deste modo ou sob a forma que esse modo encobre e que é uma
ordem:Goze\ Em outras palavras, a experiência da análise consiste
em confrontar o sujeito do sintoma com o impossível do gozo e
oferecer para tal impossibilidade o caminho da colocação em palavras
em condições suaves, ideais, artificiais; as do dispositivo analítico,
as da transferência, propícias ao amor.
U ma palavra, sim, isso é o sintoma (ao menos no primeiro
L acan), mas palavra ausente, “... farrapo de discurso, na
impossibilidade de proferi-lo pela garganta, cada um de nós é
condenado, para traçar sua linha fatal, a se fazer o alfabeto vivo”.1
Uma palavra, sim, mas se essa palavra pode esr lida no sintoma “é
que (o sintoma) já está, em si mesmo, inscrito em um processo de
escri tura” .2 A crescentemos, escri tura do gozo, capaz de
deciframento conforme sabemos desde a carta 52 que revisamos no
capítulo IV. Para tal deciframento é que teve de inventar, como o fez
Freud, um dispositivo psicanalítico destinado a formar o
inconsciente,o inconsciente lacaniano.
“Para queo gozo possa ser alcançado naescala invertida daLei
do desejo”.3Fazer com que o gozo condescenda ao desejo - já o
sabemos - é a função do amor. Na experiência da transferência é

1. J . L acan (1957). Ecrits. Paris: Seuil, 1996. p 446. Em espanhol, Escritos


1. M éxico: Siglo XX I, 1984. p. 427.
2. J . L acan (1957). Écrils , p. 445;Escritos !, p. 426.
3. J . L acan (1960). Écrits, p. 825;Escritos 2, p. 805.
Gozo e ética na experiência psicanalítica 291

o amor que está em jogo: ama-se o Outro porque supõe-se-lhe o


saber, o saber que falta, o que deverá resultar da leitura do sintoma.
M as a suposição de saber não está somentedo lado do analisante.
O analista, por suavez, também supõe- e é um ato de caridade -,
algo que ainda deverá demonstrar: que há saber no Outro, que existe
o inconsciente. Deste encontro entre dois saberes supostos, surge
a faísca que permite que se fale “de verdade”, que se constitua o
inconsciente e que se goze com seu deciframento. Não é fácil.
A atividade analítica está orientada para flexibilizar o diafragma
da palavra, para que por ele passe o gozo. Isto na situação srcinária
(historicamente) das neuroses. Reconhecendo esta orientação é que
é possível se pensar o funcionamento especial que adquire o
diafragma da palavra em casos de perversão e psicose, quando os
sujeitos provisoriamente inscritos em tais estruturas clínicas são
postos sob a prova da análise e de seu dispositivo.
“Do gozo ao desejo” não quer dizer que o desejo tenha de ser
dito. Pois a natureza última do desejo é, como sabemos, a de uma
barreira posta ao gozo; é em relação a esta função fundamental,
escondida pelo disfarce do fantasma, que há “incompatibilidade do
desejo com a palavra”.4Não que o desejo deva ser dito, mas que
seja tomado à letra, “posto que são as redes da letra que determinam
e sobredeterminam seu lugar” (idem). Não que seja dito, mas que
seja levado ao ponto de impossibilidade, o do gozo recusado, de onde
ele emana.
Deve passar pela palavra, emitida nas condições legisladas pela
regra fundamental, para chegar à letra, aos codicilos srcinais do gozo
inscritos no corpo, às formas em que se inscreveu a relação do
sujeito com o gozo; essa história é a das migrações libidinais ou das
renúncias gozosas, avatares da castração que podem ser recordados
ao permitir que na análise opere a compulsão à repetição.
Recordação, repetição e perlaboração. Da pulsão à compulsão e aos
encontros fracassados com que tropeça o desejo. Para passar de
uma escritura à outra, a do livro que todos levamos dentro (p. 208).
Pois a letra está escrita e o desejo, saldo inarticulável da
demanda, deve ser tomado etra. à l Terá de ir além da demanda, até

4. J L acan ( 1958). Écrits, p. 641 ; Escritos 2, p. 621


292 Gozo

encontrar isso do desejo que passa para a palavra ainda que seja
incompartilhável com ele. Deve-se reconhecer nestas afirmações a
teoria do dispositivo analítico e do que se faz com ele. A regra
fundamental é equivalente ao imperativo de gozar, de transcender a
função tradicionalmente acordada à palavra. O uso “normal” da
palavra tende a “ratificar”, a “com-preender”, a confirmar na
reciprocidade do sentido consentido, as imagens especulares dos que
se “comunicam”. Na análise pretende-se atravessar a barreira
narcísica do cuidado do eu ou do self, esse fantasma organizador
em cada um da relação com o mundo, esse tampão que protege do
real. O sujeito, empurrado pela consigna de associar “livremente”,
logo se vê desalojado do terreno do prazer e é forçado a se
confrontar com o traumático e com o inconciliável para o eu, com
“isso” inominado que é o núcleo de seu ser.
Desde o princípio (cf. p. 21), reconhecemos que a repressão
esconde, mas também conserva um gozo seqüestrado, não
disponível para o sujeito, vivido dolorosamente como sintoma. O
gozo do Outro, do corpo desabitado pela palavra. A neurose é esta
defesa do gozo, defesa de no duplo sentido: uma proteção contra o
acesso a um gozo desmedido e um gozo que está protegido,
coagulado, isento do comércio da palavra. O sujeito da neurose se
defende subtraindo-se ao que percebe como um perigo na relação
com o Outro do vínculo social: o desejo do Outro. Tal desejo é
negado pelas operações de autodomínio que são essenciais na
estratégia do obsessivo e que se sustentam na insatisfação pela intriga
histérica. Com esta defesa neurótica ante o desejo como o traço que
define a estrutura clínica da neurose, compreende-se bem que o
desejo, assim, não condescenda ao gozo e que a relação com o Outro
seja o campo minado e alambrado das defesas. Compreende-se
também que o sujeito retroceda espantado ante o suposto gozo de
um Outro que pediria sua castração. Defendendo-se do Outro,
justificando-se ante ele, experimentando-se sempre como culpável,
o neurótico renuncia a fazer valer seu desejo, o dele, confunde-o
com a demanda do Outro, submete-se ou se insubordina, mas
sempre em dependência dessa demanda, retrocede ante a
possibilidade de inscrever seu nome próprio, esse nome que o
importuna e o estorva e o substitui por uma demanda dirigida ao
Outro para que o nomeie: “Como você quiser; isso e assim serei”.
Gozo e ética na experiência psicanalítica 293

A operação analítica consiste em reanimar este movimento das


defesas ante o Outro, esta demanda de alienação guiada pelo
fantasma que protege e faz debarreira ao gozo. Uma vez queseja
reanimado, operando na transferência, é-lhe posto um limite, é
levado ao seu inevitável atoleiro, a seu ponto de impossibilidade.
Chegado a este ponto o sujeito se vê forçado a ir além de seu
fantasma, das satisfações gozosas a que poderia prestar-se a situação
analítica; é levado a se identificar com a causa de seu desejo, com
sua falta. Esta ação levada a cabo Lanto pelo corte oportuno do
encadeamento discursivo quanto pela surpreendente intervenção
interpretativa implica um forçamento do narcisismo que se conforta
por hábito com a aquiescência complacente do Outro e que aponta
para a simpatia, para a compreensão, para a reciprocidade dos
sentimentos e dosrarefeito,
Sim; é raro, reconhecimentos.
o ambiente da análise. Para que esta
marcha contrária aos bons costumes do diálogo seja possível, é
necessário que o discurso do analisante e seu motor fantasmático
se encontrem, se choquem, com um desejo que esteja, por sua vez,
além das miragens do narcisismo, da solidariedade, da confusão dos
eus, da benevolência e dos ideais compartilhados. E necessário que
este discurso e este motor não se encontrem com outro sujeito, mas
com um vazio que os confronte com seu próprio vazio em vez de
lhes oferecer tampões ilusórios para sua falta a ser.

2. Pulsionar e seus destinos

“Tomar o desejo à letra” é reconhecer que a letra do desejo é


esta inscrição do gozo no corpo e que a palavra é, a partir do
inconsciente, uma tentativa de ler esta letra, de traduzi-la em termos
de um discurso queé sempre do semblante. A subjetividadegermina,
expande-se nesta fenda fecunda que se abre entre a escritura do
gozo e o dizer que a cinge até topar com o impossível de sua
(e)missão, com essa zona inacessível e inanimada que se abre além
do fantasmae que recebe
u de Freud o nome de “morte” e de L acan
o conceito que designa aí esse radical a que a pulsão conduz, o real
impossível.
294 Gozo

O movimento na experiência in:iada por;reud está orientado


por esta pretensão de tocar o real con o signiícante, ainda que se
saiba que as palavras não são feitas pra preencier o vazio da Coisa

(pelo menos
contornar na análise
o vazio, queorepuda
delimitar o mistcismo),
oco, r.conhecero mas para É
impreenchível.
o Oceano emSolaris e a Zona em Salker,esses filmes definitivos
de Andréi Tarkovsky que ilustram mravil hosanente a relação dos
exploradores com o inominável da Cosa centrab êxtima e os modos
nos quais o núcleo inacessível de noso ser pod: ser contornado em
uma ventura cujo saldo é o desampaD.
Frente ao cancelado e inabordáel do oriício central do toro,
o que fazer, o que fazer senão dar vetas em tono de sua alma, do
espaço vazio periférico e interior que ircunda oorifício central pelo
qual correnão
palavras, o ar semsenão
resta nunca nele pnetrar? p. asim
“pulsionar’\criando 85). um
Em novo
outras
verbo
que falta à língua portuguesa para traazir o da língua alemã,
treien
sem faltar com sua íntima conexão con o ie Freud.Pulsionar
Trieb
em relação a uma propulsão, com um ; força queestimula, indomada
e indomável, sempre para frente, satando po cima das alegrias
(.Erde Freuden) terrenas, dos prazere, caracterstica do espírito de
Fausto no discurso de M efistófeles qie serviu Freud para definir
a pulsão.3O que Freud concebeu é otalmente congruente com o
que vimos desenvolvendo. Apulsão é áustica poque o caminho para
a Coisa, “o(...)
obstruído caminho para
e então trás,
não paramas
resta satisfaça plena, em pela
do queivançar geraloutra
é
direção do desenvolvimento, todava diligene, na verdade sem
perspectivas de enclausurar a marchanem alcaiçar a meta” (idem).
Do atrás e da frente freudianos é qie passaros à complexidade
enriquecedora dos dois espaços rodados pelo‘oro, o interno e o
externo, rodeados pela superfície aa e esféri:a do toro. É esse
pulsionar interminável o que encamiiha a vida em outra clausura
da marcha que a pontuação final da rorte.
Um pulsionar que salta sobre a; valas do jrazer, que de tanto
negar se torna afirmação e que é rentente a trnsacionar com os

5. S. Freud (1921). Obras completas.Trac J. L. Etchverry. Buenos A ires:


A morrortu. 1979. v. XV III, p. 42.
Gozo e ética na experiência psicanalítica 295

perigos que o extraviam e que se escrevem como outros tantos


prefixos: com-, im-, re-, ex-... pulsões.
Surge a pergunta: de que natureza poderia ser a força
pulsionante
necessidadesseenão
por for a de um homeostáticas
tendências organismo biológico
nem amovido
de umpelas
sujeito
psicológico incapaz de distinguir entre o desejo e o capricho? Nem
biológica, nem cultural, nem psicológica; ética é a natureza deste
movimento no campo do simbólico por meio do qual um sujeito se
inscreve, deixa as marcas memoráveis de seu ato, se historiza,
mediante esta força negativa e criadora que é a pulsão de morte
freudiana, alheia ao movimento energético de abolição das tensões
que se chamou “princípio de N irvana” nessa vacilação, instante
bárbaro elow da reflexão de Freud.
Pulsionar, rodear a Zona, a Coisa, reconhecer que ante ela
naufragam as ilusõese chegar ao ponto proposto por Lacan no auge
do seminário sobre a ética, em que o sujeito afronta a realidade da
condição humana, esse fundo de angústia em que se perfila um
desamparo insondável e irremissível. É então quando, confrontado
com sua própria morte, é sacudido pela certeza de que não pode
nem tem que esperar o socorro de ninguém. Não há proteção nem
escudo. Assim define Lacan a experiência, didática, do fim da análise.
Colocar-se além da angústia, pois a angústia supõe um perigo, apesar
de inomeável, escondido atrás dela, enquanto o desespero e o
desamparo aparecem quando a angústia foi atravessada, quando já
não há perigo, nada que temer e nenhum Outro ao qual demandar
(tanto no sentido de lhe pedir como no de abrir-lhe o juízo e imputar-
lhe a responsabilidade). Nada alentador para es propor em virtude
de que “não há nenhuma razão para que nos façamos avalistas do
sonho burguês”.6
Certamenteesta ética vinculada à perseverança no ser, ao
desejo como caminho para o gozo, à confrontação sustentada com
a falta, vai contra as idéias difundidas sobre o bem-estar e contra
as propostas
terapia, mas atranquilizadoras. Por de
contestação tácita issotodas
é queelas
a análise
e que não
não é uma
pode

6. J . L acan (1959). Le seminaire. Livre VII. L 'étique dans la psychanalyse.


Paris: Seuil, 1986. p. 350-351.
296 Gozo

esperar mais que fracassos e postergações, caso pretenda


comparar-se aos ansiolíticos de hoje. Pois sua meta não aponta para
o princípio de prazer, para o “completo bem-estar” da definição
“mundial” da saúde, mas para o além, a esse corpo que se
experimenta ainda no sofrimento e por meio de uma tensão sem
pausa, ao gozo que, se sofre, é pelos impedimentos e os limites que
o prazer lhe opõe.
Pulsionar, empurrar, reanimar a busca além do fantasma em
que os objetos @, como elementos imaginários do fanta
sma, vêm
enganar o sujeito, recobrindo o condenado lugar da Coisa,
sustentando aí a isca das representações e dos ideais.7N esse
fantasma, formação imaginária, ramo da árvore narcísica do eu
quando não é o próprio eu sob a forma deself,um“si mesmo”, o
que
A í o égoz
fantasma, nesse
o permanece fantasma,
estancado, nesse
desconhe ramo,
cido, se sustenta
renunciado, o sintoma.
des-dito
(versagt), fora da palavra, carregado de um sentido que não se pode
reconhecer. E desde este reduto da ignorância produz-se e se
fundamenta a demanda dirigida ao saber, ao saber suposto no Outro,
que permitiria subjetivar o gozo.
A transferência é o primeiro, é a razão quefundamenta a de
manda feita a alguém, a qualquer umsignifiant
(Sq, quelconque, no
matema da transferência que L acan propôs).8Ela permitirá ao su
jeito se produzir em um discurso significante (S, - S2) do qual ele
mesmo é o significado. O encontro com qualquer um que, sendo
analista, se negará a entrar no campo das significações, a tamponar
a demanda com respostas, a se oferecer como objeto de identificação
ou como assento de um saber que estivesse à espera do momento
em que se poderia aplicar colmatando o lugar da ignorância e do
erro. Se o sintoma fazia o curto-circuito que afastava o sujeito de
seu desejo, esse desejo do grande e inacabável circuito, o analista
virá no lugar do sintoma, reanimará o movimento estancado, fará
cinema a partir da foto fixa e tomará o lugar indicado topologica-
mente como a alma do toro,ágalma do desejo. E em torno dele que
girarão as demandas... e encontrarão seu topo. (p. 85).

7. Idem. p. 119.
8. J . L acan (1967). Autres écrits (A. E.). Paris: Seuil, 2001. p. 248.
Gozo e ética na experiênciçsicanalítica 297

Esse é o sentido ae convém dar - creio - ao termo freudiano


“neurose de transferêma”. O psicanalista, fazendo semblante, no
lugar do semblante cono agente de seu discurso, ocupará o lugar
do objeto causa do desijo e (já sabemos:minus,falta) de gozo.
plus
O analista colocará en andamento e sustentará o movimento
pulsional em torno dojbjeto @, sempre deixando vazio o espaço
central da Coisa.
A topologia do tco (p. 85) vem novamente nos ajudar, agora
para ilustrar o lugar d) @-analista. Na superfície tórica pode-se
definir qual é a colocaão correta e quais as incorretas do analista
em relação à demandaque recebe. E possível dizer sem rubor que
o analista engana e ilud o analisante dizia
(/’escroquerie analytique,
L acan),9pois faz sembinte, para-é, apresenta-se como sendo o que
não
para é,o desejo,
oculta opermite
que sinoé;sujeito
desteemergir
modo, oferecendo-se como isca
a partir da inutilidade do
desejar, além da vanidae de uma completudequalquer. Ao colocar-
se nessa posição periféica com relação ao centro inarticulado do
desejo, ao tomar o lugr de @ e não o do saber obturador ou da
Coisa inacessível, ofence-se como pasto para o fantasma e pode
chegar a substituir o sinoma, dissolvê-lo, apaziguar o conflito e até
converter-se em um obtáculo no processo do tratamento. São os
momentos, talvez eterms, de estancamento da análise em torno de
uma certa “trama de saisfações”1" que procede daprópria análise.
A análise toma-se resistncia à análise pelo gozo (fálico) que nela se
alcança e ao qual não siquer renunciar ou, por outro lado, fracassa
pela possibilidade de s conformar com o bom funcionamento do
sujeito no mundo que pode levar a um término prematuro da
experiência.
Caríbdis e Cila dcgozo dentro e do gozo fora da análise que
bloqueiam o movimeito que consiste em sustentar a pergunta
dissimulada ao princípa sob essa aparência de resposta que era o
sintoma. Pois, se umaanálise pode começar, isto é, caso tenha
acabado a fase das entevistas preliminares, é porque o sintoma,
resposta inconsciente, tonou-se pergunta ou enigma e essa incógnita

9. J. L acan ( 1977). Seminrio XXIV, aula de 26 de fevereiro.


10. J. L acan (1958).Écritsp. 602; Escritos 2, p. 582.
298 Gozo

encarnou em qualquer fatosignificante de todos os dizeres do sujeito.


Produzido este deslocarrjnto do significante do sintoma para o
significante da translerênáa, desenha-se o risco de que a análise e

o próprioaberta
manter analista sejam Dmados
a questão mas como já não como para
pretexto oportunidade para
seu des-vio
(“trans-ferência”) e feche
E por isso que o anaista não se dirige para seu paciente nem
como $ nem como S, nen como S„ mas como @ —* S, como um
objeto que sustenta sempr a abertura, a não coalescência entre dois
discursos complementares O analista representa a exigência perma
nente de um dizer e de un trabalhar incessante em torno da falha
subjetiva. A história, essacoisa que L acan tanto elogiou no come
ço de seu ensino e tanto dsvalorizou ao final porque não pôde dei
xar de fazer crer que tem entido, porque está sempre disposta a se
carregar de sentido, a hisôria - dizíamos - deve voltar a se escre
ver, claro que atravessano as telas e os disfarces do sentido. Se a
neurose era o bloqueio a-iistórico, o cegamento-secamento do de
sejo (no sentido de cegar im poço, de secar um depósito de água),
a análise deverá ser reabetura das fontes e das vias interrompidas,
a ocasião oferecida à moblização do gozo sintomático, à simboliza-
ção do corpo que se torneu o reduto de um Gozo Outro, gozo que
já localizamos com o esqisma deÁ terceira(p. 110) na intersecção
do imaginário e do real foa da mediação simbólica.
Penso que isto deveser dito correndo o risco de criar a im
pressão da fixação de novis metas ideais para a experiência da aná
lise, algo que o analista, :om razão, recusa fazer (a ser),* porque
indicar metas causa uma ombra de imaginário, de neofantasmati-
zação, de prescrição do “om” caminho, inclusive a promessa que
se adianta à demanda, dealienação em um Bem que, por não pro
vir do deslinde feito pelo póprio analisante, apareceria como o fan
tasma do analista. Além desainterpretação possível, no entanto, deve
se dar conta de por que a aálise existe, por que se inicia e por que
prossegue para que se posa definir também quando e por que aca
ba. Em outras palavras, dive ser evitado o comentário do sentiflo

Em espanhol são homófons:hacer e a ser. (N. da T.)


Gozo e ética na experiência psicanalítica 299

(evitem compreender!)atravessado na intersecção do simbólico e do


imaginário, fora do real, campo das psicoterapias.

3. O dever do desejo

Wo Es war, soll Ich werden,onde o Isso, o gozo do se r, a


sincronia dos significantes, a desordem de todas as bolinhas da
linguagem na imensa bola da loteria, o conjunto das escrituras do
gozo que jazem indecifradas como os hieróglifos no deserto, onde
o Isso estava, deverá haver uma ordenação, uma articulação
discursiva capaz de provocar efeitos insólitos e regozijantes de
significação, um encadeamento
revelará o inconsciente como umdiacrônico dos significantes
saber ordenado que
pelo nome-do-Pai
no lugar de S,, que faça do resto dos significantes (o saber
inconsciente) um S2, a partir do qual um novo S, produto do discurso
do analista poderá representar o sujeito. Essa é também, e em outra
dimensão, a meta da análise, seu dever ser indicado pelo sollen
freudiano que é a antecipação do gozo pelo bem-dizer e pela
invenção do saber.
Para produzir este efeito, é necessária a presença física do
analista. Que tenha tetas, essas mencionadas
mamelles de Thirésias
por Lacan no seminário de 1964." Que seu corpo se preste para a
investidura amorosa tomando o lugar de causa do desejo; que ponha
suas veias e seu sangue para que opere o amor de transferência c
para que o sujeito possa chegar a reconhecer seu desejo como falta
a ser. Terá que emprestar não apenas useser e suas palavras, mas
também sua imagem, entregar-se como i (@), como outro
especular, pois “a imagem especular é o canal que toma a transfusão
da libido do corpopara o objeto”.12E a razão pela qual não há análise
sem encontro dos corpos; a transferência requer suporte imaginário,
um suporte que se sublinhe mais do que se apague quando se adota

11. J . Lacan (1964). Le seminaire. Livre XI. L es qiiatre conceptsfondamentaux


de la psychanalyse.Paris: Seuil, 1973. p. 238.
12. J . Lacan (1960). Écrits, p. 822;Escritos 2, p. 802.
300 Gozo

um dispositivo que subtrai o corpo do analista como objeto no


campo visual do analisante. Não se pode esquecer de que, se o
sujeito S fala na análise, ele dirige suas palavras, antes de qualquer
outra coisa, à imagem do outro e que este é o ponto inicial e
ineludível para chegar às maiúsculas I (A) que se colocam no outro
extremo do gráfico do desejo. Esta disposição é observada com
clareza quando se faz abstração de todos os demais momentos:

No lugar de I(A ) temos, mais do que um ponto dechegada,


um ponto de sucção, uma máquina aspiradora das palavras que
arranca quando o sujeito aceita a regra fundamental da análise e a
coloca no lugar do supereu: gozar pela articulação discursiva dizendo
tudo, enfrentando a dor, o pudor, o asco e a vergonha que resistem
à confissão do fantasma, tabernáculo do gozo, ligado ao incesto, à
perversão e às satisfações libidinais auto-eróticas. E evidente que o
prazer constitui a principal das resistências que se encontram na
análise, tanto por parte do analisante quanto do analista, e que se
fosse por obedecer ao princípio de prazer não haveria quem se
analisasse. E óbvio que, se a análise existe, é pelo gozo que está
além das complacências narcisistas, sempre à mão.
Nestes parágrafos, definiu-se a tripla função do analista: a)
como semblante de @, resto caído do real que é impossível de
simbolizar;
suporte da b) como
regra imagem deque
fundamental umobriga
semelhante especular;
o sujeito e c)como
a dizer(se), como
orelha-sopapa que aspira os dizeres do analisante em função da lei
da análise que se inscreve como I (A). Real, imaginário, simbólico.
Esse é o abc da prática da psicanálise.
Gozo e ética naexperiência psicanalítica 301

Se o que há é um dispositivo para uma invenção constante e


não uma “técnica psicanalítica” é porque esta tripla função legisla
não um código de procedimentos, mas uma posição do analista
frente ao entramado linguageiro criado por Freud, no qual ele
mesmo foi pego. É a “estratégia da aranha” que comprime em uma
face a tática, a estratégia e a política da análise em função da ética.
Disons que j ’y lie la technique à la fin première. “Digamos que eu
vinculo a técnica com seu fim primordial”.13
A precia-se, por exemplo, nessa “neutralidade benevolente” que
sempre parece um ideal impossível a quem ouve falar dela sem ha
ver passado pela experiência de uma análise verdadeira e, particu
larmente, quando essa prescrição de neutralidade se reforça com o
dever lacaniano de “preservar para o outro a dimensão imaginária do
não-domí nio, da“a
seu momento neces
sária impe
vacilação rfeição”14que
calculada toma aconselhável
da neutralidade”, essaem
que pode
valer (e não apenas) para uma histérica mais do que todas as inter
pretações. Em todas estas formulações que podem parecer inclusi
ve contraditórias, de que se trata? De assegurar a presença do
analista, sim, e também de fazer dela uma força ativa e atuante em
função deseu desejopara preservar o horizonte do gozo em cada
momento do encadeamento discursivo e, ao mesmo tempo, para pôr
freio a esse gozo, para pontuá-lo, para canalizá-lo para um dizer iné
dito, para dinamizá-lo desde seu enclausuramento no sintoma, para
fazê-lo atravessar a barreira da angústia que o separa do desejo.
O gozo é assim convocado e derivado, provocado e expulso
e, ao fim, recuperado, manifestado e desnaturalizado. A manobra do
analista sempre o leva em conta; o tempo e o dinheiro das sessões
se regulam em função destes indicadores ou, em outras palavras, por
esses imperativos de aspecto contraditório.
E aqui que resplandece a dimensão ética da análise que a
distancia de todo código universal de conselhos e obrigações morais
ou deontológicas e a habilita para a busca sempre e em todos desse
núcleoparticular que é para cada falante a relação articulada do gozo
e do desejo. Em cada caso deverá fazer valer a ignorância renovada

13. J. L acan (1964).Écrits, p. 854;Escritos 2, p. 833.


14. J. Lacan (1960).Écrits, p. 824; Escritos 2, p. 804.
302 Gozo

do analista seguindo o conselho freudiano de abordá-los,


renunciando ao saber previamente adquirido; em cada caso haverá
de inventar o inconsciente e a teoria sexual a partir da srcinalidade
da nova experiência.
A ética analítica é comandada não pelos mandamentos do
Outro, mas pelo desejo inconsciente, ela faz do desejo um dever,
ordena o dever de cada um para com seu desejo inconsciente e
desconfia, quando não contradiz, as suspeitas regras morais. Essas
regras morais que, por sua vez, dependem do desejo, pois se fazem
de barreiras interpostas em seu caminho a serviço de um suposto
bem comum e comunitário, como unitário, como se todos fossem
Um, o Um unificador da psicologia das massas, o ideal uniformante
do senhor com seus códigos e suas censuras legais.

que, Em psicanáloi segozo


ao proibir não (da
se trata das no
Coisa) leis,real,
mas odadesloca
Lei e essa Leioéterreno
para a
do semblante, ordena que seja alcançado por vias discursivas, toman
do o gozo, feito semblante, o lugar de agente de um novo discur
so, o discurso analítico, inverso, inversão, avesso, do discurso do
senhor. E a Lei que ordena de sejar ao mesmo tempo que tornanal- i
cansável o objeto (absoluto) do desejo, a Coisa. Obriga, então, a
desejar em vão eé assim, rodeando o b ojeto @ como causa de seu
desejo, relacionando-se com ele somente sob as aparências do sem
blante do gozo impossível, elevando esse semblante ao lugar da Coi
sa, é assim - dizíamos - que os homens e as mulheres se inscrevem
como seres históricos, se fazem um nome que é o significado do
nome que receberam ao nascer como significante, deixam a cons
tância de seu caminho para o gozo que passa por seu desejo.
Essa formulação permitiria talvez sonhar com uma superação
da L ei por meio da articulação significante. Implicaria uma dimensão
de promessa. Nada disto. Não há comportamento possível com o
Outro ou por meio do Outro. É hora de voltar às formulações sobre
os três gozos que nos ampararam ante a possibilidade de um erro
tão funesto. A palavra ea ordem fálica, induzidas pelo nome-do-Pai,
vêm colocar um fim ao gozo do ser, arrancam da pátria srcinária
da Coisa e lançam ao exílio linguageiro. M as o Outro manca. Há
nele (nEle) um significante que falta e esse é o significante da mulher
que possibilitaria a relação sexual. A ordem fálica não assegura
Gozo e ética na experiência psicanalítica 303

nenhuma completude e tampouco pode fazê-lo em nome próprio, O


que o nome-do-Pai faz, representante S, do Falo, é abrir uma brecha
de impossibilidade para o registro discursivo e essa brecha
correspondeao significante dA mulher que falta no Outro eque está
além do Falo. O gozo fálico, semiótico, tropeça em seu próprio
limite, como o inarticulável que começa além dele que é o gozo do
Outro, o gozo feminino. A palavra, submetida à L ei que proíbe o
gozo, produz esse outro gozo como ummais indizível. Aquilo que
na condição neurótica da existência, a de todos aqueles em que se
produz o corte da castração, aparece como impotência, como não
poder nomear o objeto do desejo, resulta, como conseqüência da
travessia da experiência analítica, estar não no campo do poderio
imaginário sobre um objeto submetido ao domínio e ao controle,
mas numa área de impossibilidade que se abre além do significante.
A sexualidade está ligada ao significante fálico, o significante
sem par. Além do que ele cobre e encobre, abre-se o suposto dark
continentda feminilidade e de seu gozo enigmático, louco, inefável,
verdadeiro Outro do Outro que se coloca fora da linguagem e que,
assim, justifica reiterar agora que não há metalinguagem, que não há
possibilidade de uma análise “completa”, se é que alguém se agarra
de maneira dogmática à ordem linguageira. E, nem mais nem menos,
essa rocha viva na qual se machucou o fundador da psicanálise.
Rocha viva há se o analista se constringe à função da palavra
historizadora como devendo dizer tudo sobre o gozo, como devendo
subsumir tudo o que é do sujeito; isto é, se o analista se deixa
aprisionar pelo imperialismo da palavra.
E verdadeque a Lei ordenadesejar. M as o desejo, no registro
neurótico da experiência, apresenta-se como transgressão, o desejo
do delito é o delito do desejo impasse
no neurótico e “a consciência
nos toma a todos culpados”. A vida e o gozo se erguem e prosperam
no solo fecundo da culpa, assumindo o risco de ir além do pai...
para o qual há que seservir dele.
Cabe dizer, invertendo a fórmula freudiana, que o complexo de
Edipo é um herdeiro do supereu, desse supereu primitivo e feroz
que profere a ordem inaceitável e impossível de gozar. O complexo
é um alívio, uma atenuação, um deslocamento para o imaginário da
relação triangular; cumpre com a função de colocar cenário e limites
304 Gozo

à culpa, ao mesmo tempo em que possibilita uma via para o gozo,


um gozo limitado, floreado, depois de haver tomado o caminho
sinuoso da castração: é a via fálica com todas as limitações que já
apontamos, tanto para os homens quanto para as mulheres. Neste
sentido, o Edipo é o fundamento da existência... e o complexo
nuclear... das neuroses, da submissão absoluta ao Falo e ao nome-
do-Pai. Como se, devendo estar agradecidos a ele por nos haver
tirado do gozo do ser e da psicose concomitante, tivéssemos de ficar
para sempre submetidos à ordem de impotência que eles instauram,
à culpa neurótica.
Denunciar deste modo o ponto em que se deteve Freud é re
encontrar a proposta de Nietzsche sobre uma ética em que se aceite
orgulhosamente que, se matamos Deus, o Pai, não é para ficarmos

submetidos
um; à sua palavra,
é para explorar a zonapois
queEle
seestá tão castrado
estende além de quanto qualquer
seus domínios,
além do bem e do mal. E necessário, falantes, um esforço a mais;
é nesse esforço extra que se joga o destino ético da psicanálise.

4. O ato e a culpa

Que fique claro: primeiro está a voz tonante do Outro: “Goza!”


ou, quando se abandona a segunda pessoa, “Goze!”. Frente ao
impossível de seu mandamento enlouquecedor, o sujeito advém à ex-
sistência por meio da palavra, da concessão feita ao Outro da
linguagem, que é a localização fálica do gozo, a desertificação do
gozo do corpo e asubmissão do gozo àLei do simbólico. Coloca-
se em ação um artefato da identificação masculina com o pai real
falóforo ou o da demanda feminina feita ao(père-version).
pai Essa
passagem pela castração que não deve ser confundida com o ponto
de chegada da subjetividade; não é questão de submeter-se ao pai,
de aceitar suas condições para se fazer querer por ele, mas de aceder
a outras vicissitudes, as do desejo que é parricida e transgressor, que
inscreve outros significantes que aqueles que puderam comprazer
o pai. É o destino do pulsionar, um dever Outro, outro dever.
Em um texto muito sugestivo, Gerard Pommier escreve: “O
sentimento de uma falta não se reduz à culpa edípica, mas é inerente
Gozo e ética na experiência psicanalítica 305

à existência- pois um sujeito deve distinguir-se dos determinismos


(superegóicos) que o esperavam antes inclusive de seu nascimen
to”.15Ele não pode existir como desejante, senão desmarcando-se

do desejo do Outro
Com tudo o quee, vimos,
portanto, caindoentender
podemos em falta.o dever, no sentido
psicanalítico, como duplo: edipizar-se para transcender o gozo louco
do ser fora da linguagem e, depois, transedipizar-se, ir além do
Edipo, para não ficar preso nas redes do fantasma, da impotência
e do sintoma.
A ética da análise se afirma além da culpa, na relação consubs
tanciai do sujeito e da culpa que ele/ela encontra necessariamente ao
se afirmar comodesejante. A meta não é então de bem-aventurança
e absolvição: cada um afrontará a culpa inerente ao desejo e para isso
não há regras ou mandamentos que indiquem o que e como fazer.
Neste caminho, não há “companheiros de viagem”, igrejas, partidos
ou mestres iluminados que guiem pelo bom caminho, tampouco cabe
a possibilidade de renunciar à responsabilidade de eleger, dissolvendo-
se nos interesses superiores do grupo ou da instituição. Cada um
está só e não pode esperar a ajuda do Outro. O sujeito deve jogar
quando chega a sua vez e não pode “passar” como acontece em
certos jogos. Zugszwangcomo é chamado no xadrez. Fazer a jogada
conforme o desejo e submeter-se às suas conseqüências, a uma li
mitação do gozo que lhe abre caminhos diferentes na escala inver
tida da Lei do desejo.
A neurose, um mal ético e não uma doença predestinada a
classificações e tratamentos médicos, é a impotência ou a renúncia
ante a jogada que cada um deveria fazer para chegar a ser. É a
recusa ao ato afirmativo particular em função da sujeição aos
significanles da demanda do Outro, seja por critérios normativos,
seja pela chantagem do abandono e da perda do amor. Pois o dizer,
a experiência discursiva ordenada pela regra analítica, não tem a
finalidade de compreender, de se satisfazer com um novo saber,
com
comouma “inteligência”
no conto de Borgesqualquer, mas aIsidoro
sobre Tadeo de produzir um com
Cruz, faça ato que,
que

15. G. Pommier.Le dénouement d'une analyse.Paris: Point Hors L igne, 1987.


p. 197.
306 Gozo

o sujeito acate o destino que leva dentro, que escreva seu livro
proustiano, que saiba, por séu ato, quem é (p. 208-210).
A análise como “tratamento” da neurose tem uma meta ética
que é a de reabrir este campo da decisão particular que não se com
padecede ordens, ordenações eordenamentos. Atenção! Não setra
ta de encontrar, assim, mais uma vez essa ideologia da liberdade
solidária da psicologia mais obscurantista nem de recair nos cantos
laudatórios daindividualidade. “O eu é a teologia da livre empresa”.16
Por isso, acabamos de evocarZugszwang
o enxadrístico: deve-se
jogar e o saldo da ação é uma perda irreparável; deve equivocar-se.
O obsessivo que posterga sempre seu ato para não perder, sabe-o
melhor que ninguém.
“Saber para sempre quem se é”, efeito retroativo do ato, de
uma jogada que compromete o ser e o escreve como um destino,
de uma aposta cujo saldo é de abandono e de solidão. Poder~se-ia
dizer também de uma ou
identificação com a causa de seu desejo,
seja, com uma falta impreenchível que subjaz às decisões e aos atos.
Esse é, psicanaliticamente, o destino. Não é uma predestinação real,
mas uma razão que se constitui retroativamente a partir dos atos. Por
atuar, por falhar, por inscrever essa falha como rastro de sua
passagem pelo mundo, o sujeito “sabe para sempre quem é”. O novo
saber é ambíguo: desolado e desolador por um lado, mas também
“gaio saber”, fonte do entusiasmo e de um contato renovado com
o gozo, de uma curiosidade aguçada que desterra a tristeza e o tédio,
esses estados da alma que anulam as diferenças e que tiram do
mundo seu relevo.
Citando novamente Pommier,17o analisante se equipara nisto
ao herói moderno, definido não tanto por sua valentia, mas pelo fato
de afrontar sua angústia e sua culpa. Ele percorre na análise um
trajeto paradoxal:tendo vindo para apre
nder a gozar, para pe
rder as
travas de seu gozo, fica sabendo que existe apenas a possibilidade
de negociar seu gozo por meio da insistência da falta em ser que nele

habita,
mesclaseu
dedese
jo. A ambigüidade
desolação do fim da
e entusiasmo análise
que se está feita desta
experimenta

16. J. L acan (1955). Écrits, p. 335;Escritos 1, p. 324.


17. G Pommier. Le dénouement d’une analyse, p. 215.
Gozo e ética na experiência psicanalítica 307

psicologicamente como “estado maníaco-depressivo” em termos


retomados pelas crias inglesas da escola húngara de psicanálise. Uma
exaltação desolada que não deixa de se acompanhar de mau humor
porque as coisas não vão como se quer, porque andam com um
ritmo que não acompanha o desejo, devorador do tempo. O desejo,
o autêntico desejo, não quer saber de adiamentos, tem pressa de
concluir.
N esta ética sem ideais, além dos di eais, não sepode saber
gozar, mas pode-se, sim, saber sobre o desejo que aponta o gozo
como seu horizonte sempre fugitivo, sempre evocado nos
interstícios da cadeia significante e produzido pelo próprio fato de
falar: o significante um representa o sujeito para outro significante,
o significante dois; este segundo significante reverte sobre o
significante um e o toma representantedo sujeito. Mas o processo
da significação não se basta, porque o saldo desta operação dos dois
significantes é aprodução de @, do objeto mais de gozo que escapa
à articulação significante e que, enquanto causa do desejo, é seu
motor. O @ que foge à frente do buscapé da palavra não podeser
abarcado por uma expressão “exata” que o recupere e o faça entrar
no discurso. E o elemento real organizador do discurso da ciência,
sucessora da religião, que em nossos dias pretende dizer a verdade
do real. E o resto indizível que cai pelo fato básico de que não há
discurso que não esteja infiltrado pelo semblante e que a ciência
aprendeu há muito tempo a indicar com certos nomes próprios, o
de Heisenberg (incerteza) e o de Godel (incompletitude).
A ilusão da metalinguagem, do suposto saber, do discurso que
diga o verdadeiro sobre a verdade, de um Outro sem barra, Outro
do Outro e garantia dos enunciados, é fecunda e fundadora da
situação analítica. O fantasma da garantia e de um gozo ao alcance
do discurso constitui o Outro da transferência e é a esse Outro que
não existe, que é uma pura suposição, que se dirige o discurso do
inconsciente, transcrição e deciframento de um gozo do qual não se
pode nem se quer saber. E um saber sem sujeito, um saber que nos
sabe e que faz o sujeitocomo efeito de seu dizer, um saber de onde
o sujeito ocupa o lugar do significado e fica em uma relação de
disjunção com relação ao objeto @, escritura do gozo, que está no
lugar da produção:
108 Gozo

;ito acatc o destino que leva dentro, que escreva seu livro
tiano, que saiba, por seu ato, quem é (p. 208-210).
A análise como “tratamento” da neurose tem uma meta ética

íea de
deordens,
reabrir oeste campo
rdenações da decisão
e ordenamentos.particular
Atenção! que
Não não se com-
se tra
que o encontrar, assim, mais uma vez essa ideologia da liberdade
corpoíria da psicologia mais obscurantista nem de recair nos cantos
mtervtórios da individualidade. “O eu é a teologia da livre empresa”.16
estofojso, acabamos de evocarZugszwang
o enxadrístico: deve-se
respore o saldo da ação é uma perda irreparável; deve equivocar-se.
como ícssívo que posterga sempre seu ato para não perder, sabe-o
produ^r qUe ninguém.
do sujf'Saber para sempre quem se é”, efeito retroativo do ato, de
ogada
ia quecujo
aposta compromete
saldo é deoabandono
ser e o escreve como um
e de solidão. destino,
Poder-se-ia
também de uma identificação com a causa de seu desejo,ou
:om uma falta impreenchível que subjaz às decisões e aos atos.
B, psicanaliticamente, o destino. Não é uma predestinação real,
saber, ma razão que se constitui retroativamente a partir dos atos. Por
maiêu, por falhar, por inscrever essa falha como rastro de sua
Hussegempelo mundo, o suj eito “sabe para sempre quem é”. O novo
renuncé ambíguo: desolado e desolador por um lado, mas também
anterk saber”, fonte do entusiasmo e de um contato renovado com
saber t>, de uma curiosidade aguçada que desterra a tristeza eo tédio,
signifii estados da alma que anulam as diferenças e que tiram do
Co seu relevo.
mas nâCitando novamente Pommier,17o anali sante se equipara nisto
deverrói moderno, definido não tanto por sua valentia, mas pelo fato
(prescirontar sua angústia e sua culpa. Ele percorre na análise um
uma iroparadoxal: tendo vindo para parender a gozar, para perder as
“E seu; de seu gozo, fica sabendo que existe apenas a possibilidade
relaçãcgociar seu gozo por meio da insistência da falta em ser que nele
único a, seu desejo. A ambigüidade do fim da análise está feita desta
la de desolação e entusiasmo que se experimenta
18. J . L
d° lL acan (1955). Écrits, p. 335;Escritos 1, p. 324.
PetrPommier. Le dénouement d’une analyse, p. 215.
Gozo e ética na experiência psicanalítica 307

psicologicamente como “estado maníaco-depressivo” em termos


retomados pelas crias inglesas da escola húngara de psicanálise. Uma
exaltação desolada que não deixa de se acompanhar de mau humor
porque
ritmo queas não
coisas não vão como
acompanha se quer,
o desejo, porquedoandam
devorador tempo.com um
O desejo,
o autêntico desejo, não quer saber de adiamentos, tem pressa de
concluir.
N esta ética sem ideais, além dos ideais, não sepode saber
gozar, mas pode-se, sim, saber sobre o desejo que aponta o gozo
como seu horizonte sempre fugitivo, sempre evocado nos
interstícios da cadeia significante e produzido pelo próprio fato de
falar: o significante um representa o sujeito para outro significante,
o significante dois; este segundo significante reverte sobre o
significante um e o toma representante do sujeito. Mas o process
o
da significação não se basta, porque o saldo desta operação dos dois
significantes é a produção de @, do objeto mais de gozo que escapa
à articulação significante e que, enquanto causa do desejo, é seu
motor. O @ que foge à frente do buscapéda palavra não pode se r
abarcado por uma expressão “exata” que o recupere e o faça entrar
no discurso. E o elemento real organizador do discurso da ciência,
sucessora da religião, que em nossos dias pretende dizer a verdade
do real. E o resto indizível que cai pelo fato básico de que não há

discurso
aprendeuquehá não
muitoesteja
tempoinfiltrado pelo
a indicar comsemblante e quepróprios,
certos nomes a ciênciao
de Heisenberg (incerteza) e o de Gõdel (incompletitude).
A ilusão da metalinguagem, do suposto sa ber, do discurso que
diga o verdadeiro sobre a verdade, de um Outro sem barra, Outro
do Outro e garantia dos enunciados, é fecunda e fundadora da
situação analítica. O fantasma da garantia e de um gozo ao alcance
do discurso constitui o Outro da transferência e é a esse Outro que
não existe, que é uma pura suposição, que se dirige o discurso do
inconsciente, transcrição e deciframento de um gozo do qual não se
pode nem se quer saber. E um saber sem sujeito, um saber que nos
sabe e quefaz o sujeito como efeito de seu dizer, um saber de onde
o sujeito ocupa o lugar do significado e fica em uma relação de
disjunção com relação ao objeto @, escritura do gozo, que está no
lugar da produção:
310 Gozo

do analisante a partir do que nele se produziu pelo ato (e mais ainda


pelo silêncio que trabalha) do analista.
Com efeito, o gozo ordena que a técnica se subordine à ética,

o
Emenunciado
todo caso,à como
enunciação, o que se diz ao que não se pode dizer.
dizia Wittgenstein...
Que o ser se faça na retroatividade de seu ato é algo que não
concerne somente ao analisante. Está implicado aí, e em primeiro
lugar, o próprio analista. É ele quem, borgesianamente, sabe então
e para sempre o que é e quem é. Seu desejo se equipara à
interpretação, fórmula avançada por Lacan desde o sexto de seus
seminários. E sua interpretação não diz o ser, mas o faz ao modo
de um corte em uma superfície topológica que modifica suas
propriedades, quefaz algo diferentedo que havia. Não se trata de
uma frase, que
castração, maséde um atodo
bloqueio que une gozo
louco o desejo e o condição
do ser, gozo passando pela
do gozo
fálico e barreira significante interposta ao gozo do Outro de acordo
com a concepção já trabalhada sobre os três gozos (capítulo II).
A interpretaçã
o abre parao desejo, uma vez que funciona como
significante reordenador do conjunto. E, de fato, um nome-do-Pai
que abre o campo de gozo pela via do bem- dizer; deixa o sujeito
em condições de procurar a aventura do gozo desamarrando-o das
cadeias linguageiras que o continham em sua jaula de sintomas; em
outras palavras, o intima tacitamente, por sua mera presença, a atuar
além da resignação e da culpa.
A interpretação é oracular, é um dizer que se apresenta como
equivalente do real, além da articulação significante. Não é um
discurso que se agrega a outro discurso para confirmá-lo, infirmá-
lo ou desviá-lo. É uma evocação do gozo que se propõe ao
deciframento sem dizer a verdade e sabendo que o gozo não é o que
se cifra, mas o que se decifra. E oracular porque o inconsciente,
discurso do Outro, é um oráculo e a interpretação lhe é homóloga.
Na interpretação, definem-se tanto o ser do analista como o
analítico. É uma manifestação do “sou” que se convalidará pelo
“penso” que lhe seguirá. Faz-se pela presença simbólica, imaginária
e real de um analista que não se separa de seu dizer para re ser
presentado por tal dizer; ele é e está em seu dizer. O dito é a
conseqüência do ato e manifesta a posição ética, o desejo do analista.
Gozo e ética na experiência psicanalítica Ml

Não vale pela afirmação ou pela respost que lhe segue (discurso do
senhor), não é julgado no plano do safer (discurso universitário),
não responde auma cisão no sujeito (dscurso dahistérica). Uma
interpretação, um dizer traduzido :m um dito que não é a
excrescência da subjetividade deste oudaquele analista e que não
surge de nenhuma contratransferência nascarada do desejo.

5. A analogia imunológica

Para que uma enunciação interpetativa possa ter efeitos, é


condição necessária e prévia a entradaio sujeito na transferência.
Sobre este ponto, o acordo dos analista é universal, ainda que não
coincidam na significação dos termos iferpretaçãoe transferência.
Em termos lacanianos, que já são lujar-comum, é necessária a
constituição do sujeito suposto saber. Chegado a este ponto, sinto
a tentação de recorrer a uma (quase) par bola (de fato, uma alegoria)
para ilustrar o ponto da relação entre axansferência e o gozo. Não
faltam - está claro - os antecedentes feudianos, mas em lugar de
recorrer, como Freud, a analogias nilitares, farei uso de uma
comparação com a imunologia que s tristes circunstâncias do

presente
se trata tornaram quasecom
de provocar do saber de tidos.
a anilise umaDirei, em síntese,
síndrome de que
imunodeficiência.
O sujeito, exceção feita ao psiotico, chega armado de um
sistema defensivo de anticorpos. Um aiticorpo, se escutamos isso
que o significante faz ouvir, é o que põi freio e se opõe ao gozo que
é do corpo. Façamos agora, por um mcnento, uma mistura insólita
com a ignorância provocada, as rtsistências e a repressão;
pensaremos todas elas como antiiorpos. N osso sujeito do
inconsciente, o falante, foi banhadodesde antes de nascer em
palavras e discursos que, vindo do Qtro, levaram-no a rotular
como indevidos e inconciliáveis a<ueles significantes que,
articulando-se, poderiam fazer com iuè a palavra consoasse e
ressoasse com o corpo. Com o gozo. br isso os recusa.
O organismo, diz-nos a imunologi; vulgarizada, aprende desde
o princípio a reconhecer seus próprios omponentes protéicos como
312 Gozo

seus e os tolera sem reagir contra eles. Os linfócitos circulam por


todas as partes, levando a informação que permite distinguir o
próprio do alheio no indivíduo normal; quando aparece na circulação

uma proteína
provoca estranha,
uma reação ela funciona
de recusa, como um
um processo “antígeno”
defensivo que
que culmina
com sua assimilação ou sua expulsão. Quando as proteínas estranhas
não entram na circulação - como normalmente acontece - mas no
aparelho digestivo, elas são destruídas cm partículas elementares que
logo se usam para reconstruir outras proteínas que sejam
compatíveis com as do próprio organismo.
N ão percamos nem por um instante nosso ponto de
comparação analógica. O sistema estável reconhecimento
de dos
próprios componentes compatíveis no plano do significante é o “eu”,

o velho
com eu oficial
Fliess. indiciado desde
Os signifícantes vindosos
detempos da correspondência
fora (a palavra do Outro), não
entram no sujeito sem passar por uma alfândega “linfocitária” que
decide se essa palavra é assimilada às próprias, às que o eu aceita
por julgá-las inofensivas ou se é recusada. O destino comum é que
lhes sejam soltos seus componentes elemenlares e logo sejam
rescontruídos em compostos complexos de acordo com a
organização do Eu. Toda intervenção do saber do Outro que recaia
sobre o sujeito ativará o sistema de defesas imunológicas já
preparado. O radicalmente incompatível será recusado como vil

enxerto.
A palavraSão os efeitos
estranha dolmente
éhabitua que Freud
assimilchamou “análise
ada e neutrali selvagem”.
zada por um
sistema “protetor” onipresente. E uma função do “timo” como
dizem os médicos e também, porém com um sentido mais vulgar,
os analistas. O sujeito é ludibriado para não reagir frente aos
componentes que sente como próprios (egóicos); é induzido a
tolerar suas próprias proteínas, pela armação discursiva e imaginária
que se chama “eu”. A palavra estranha é recebida e integrada ao
aparelho defensivo. E mais; pode atuar como “vacina” que o imuniza
contra uma palavra nova e imprevisível, devastadora. Deverá para
isso ser semelhante,
“perigosos” que falammasde atenuada com que
uma verdade relação
seriaaos significantes
preferível
desconhecer.
O processo analítico foi concebido desde o princípio para
desativar esse sistema de resistências que passa ora pela assimilação
G o/o e ética na experiência psicanalítica 313

ao “eu”, ora pela recusa desses significantes que, por repressão,


ignorância ou má-fé, não são reconhecidos como próprios. O sujeito
é levado pelo processo mesmo da análise a se estranhar com relação
à sua própria palavra. O sonho, essa palavra própria que se escuta
como procedente do Outro é a via régia que conduz a este resultado.
Os lapsos e o que se produz pelas escanções e pontuações do
analista não estão atrás.
O “próprio” ao qual não se reage, o sistema imunológico ar
mado no seio de cada um é, na realidade, o discurso do Outro que
tomou posse do corpo do sujeito, de seu gozo, deslocando-o, tor
nando-o estranho, convertendo-o em zona interior inabordável, cm
Isso, cm uma satisfação irrcdenta e irredimível pelo discurso. O
gozo, o próprio, é tratado como alheio. “Eu é Outro”, mas não o
sabe. Nemsequer
tal como saber
diz no disso; de
discurso “Dissolver
Roma, éas“outrificar”
miragens imaginárias”,
o Eu, desco
brir a castração que se encobre sob sua máscara, revelar a falta a
ser, o desejo que lhe subjaz e denunciar sua impostura, sua falsa
unidade monolítica.
E Outro, mas acredita ser “Um”. A ignorância em si mesma
não é seu pecado; no final das contas a ignorância é o único uni
versal em matéria de saber. O problema é a ignorância quando se
acredita saber; não é a ausência do saber, mas a resistência à ver
dade a partir e em nome do saber, de um saber referencial que per
mite colocar-se na realidade e que é ativo desconhecimento da
verdade e do gozo que ela inscreve. Essa é a ação dos “anticorpos”
de que estou falando.
Retomemos o ponto de partida: trata-se, com a psicanálise, de
provocar uma síndrome de imunodeficiência, ou seja, de neutralizar
este sistema supostamente protetor que é o conjunto de barreiras ao
gozo. Nesta analogia que julgo ilustrativa (e se não, para quê?), a
neurose, condição universal, aparece como uma doença auto-imune.
E, em poucas palavras, o eu recusando o sujeito. O sujeito trata o
que lhe é próprio, as pulsões que aspiram ao gozo, como estranhas,
desconhece os significantes que as representam, as reprime, erige
um sistema de defesas para se proteger delas, faz do seu íntimo algo
êxtimo, trata-o como um corpo (uma proteína) estranho, torna-o
sintoma, gozo incógnito, disfarçado e vivido como sofrimento
corporal incompreensível. O sintoma se apresenta como “o mais
314 Gozo

alheio ao eu que se encontra no interior da alma”, é, como todo o


reprimido, “terra estrangeira interior”.” Talvez nunca tenha se
definido sintoma melhor do que com estas três palavras. Poder-se-
ia dizer também que é um enclave do discurso do Outro, um
remanescente da ordem superegóica inicial de gozar que não
encontra o exutório da travessia da castração e a canalização pela via
do ato que é conseqüência da articulação significante.
Outra vez,Wo Es war soll Ich werden. Onde o inominado do
sintoma fundia suas raízes, terra estrangeira interior, deverá o eu
advir, significar, dar lugar a um saber que está aí, desconhecido.
Deverá desarmar as resistências que recusam o autêntico por julgá-
lo ameaçador. Certamente advertindo que a relação entre o sujeito e
o Outro não é de oposição e exclusão recíproca (em uma polarida
de meu/alheio), mas de intersecção de círculos eulerianos, onde o
que falta em um se superpõe e se reúne com o que falta no outro
(ver gráfico na p. 116). O resultado é a dupla barra, a do sujeito e
a do Outro.
O engano do eu, o cerne da neurose, é justamente este
desconhecimento de que entre Sujeito e O utro (A ) não há a
possibilidade da completude e o recobrimento recíproco que o
fantasma promete, que a cisão é irremissível e que o saldo do duplo
corte é o objeto do gozo (@) que se perde para ambos. Na neurose
é produzida esta plena identificação do sujeito com o eu e com o
desconhecimento de que esse eu é efeito e aliado do Outro; a serviço
desse eu que é Outro, renuncia-se ao desejo e se submete o desejo
à demanda do Outro. Troca-se o pulsionar pelo satisfazer (ao
Outro), com a esperança fantasmática de assim ser satisfeito.
O tratamento analítico tende a reconquistar a terra estrangeira
interior, fazendo-a passar pelo diafragmade uma palavra inédita e
insólita que invente uma saída para o desejo pela via do ato que
declara a particularidade subjetiva. Aí onde Isso estava. Deverá
colocar limites ao sistema pseudoprotetor dos anticorpos egóicos,
defesa do Outro encravada noalante
f , habilitar o corpo paraqüe seja
experimentado como gozante, desmarcarar os anticorpos,

23. S. Freud (1932).Obras completas, v. XV I, p. 53.


Gozo e éca na experiência psicanalítica 315

eencaninhar o gozo que se exilou depois de padcer uma


ransubtanciação e atravessar pelos sistemas de colo ação em
Dalavra; o que se sucedem de uma ponta à outra do es|uema da
;arta 5! (cf. p. 190). Depois de decifrar o gozo e go.ando do
iecifrarento. Advindo Eu nesse lugar.
A nterpretação terá de ser uma palavra que burl
e o istema de
iefesasissimiladoras e/ou recusantes. Por isso não pod ser uma
palavra ilheia que ponha em andamento o sistema imundógico de
■ecusa <os enxertos. O erro das intervenções feitas dese o saber
refererxial) do analista, erro do qual os analistas lacaninos esta-
nos mas alertas, consiste em recair sobre a significaçã', sobre o
sentido io sintoma ou da transferência tratadacomo sinoma. E a
nterpreação lacaniana, surpreendente e equívoca, atuanco sobre o
signo, rio proposicional, burla o sistema dos anticorpos imvez de
;stimul<-los como um antígeno ou de se integrar a ele depis de ser
iubmetila a um processo digestivo de assimilação. “Evoc o gozo”.
Iambéri o provoca. Seu enunciado está mais próximo dcchiste do
que da inferência. É, antes, uma negativa a con-ferir. Colocação
;m ato.
A pnas terá efeito se a “proteção imunológica” for eficiente,
>e for eifraquecido o eu forte da metapsicologia revisiorista, o do

‘timo”A estratégia
iuspeitcde consiste
cumplicidade em fazer do daquilo
e encobrimento eu outro,demque;e
Outroqueixa.
D denuiciante é o primeiro suspeito; isso é algo que nm o mais
inexper;nte dos detetives pode ignorar. Deve-se fazê-lofalar para
que caiim as máscaras que ocultam suas verdadeirs razão e
identidáie. Essa identidade é a mesmaque ado sintoma, iois como
um sintoma está estruturado. A interpretação cairá obre seu
discursojma vez que se tenham desativado os processos lefensivos
habituai, as barreiras fantasmáticas. Por isso comecei :ste item
propomo que se induza uma “imunodeficiência”, una AIDS
analítica que faz o sujeito passar para uma situação de desroteção,
de desanparo, de travessia dos fantasmas da vida para mtrar em
contato om o real descarnado que se encontra além.
A sanalogias e as parábolas cativam, mas depois deexpô-las
deve-se .dvertir o público sobre sua estrutura de ficção: osssencial
que as onstitui é a diferença entre os dois termos que asintegram
316 Gozo

além do parentesco imaginário que elas estabelecem. Pois a


imunologia e a psicanálise dependem de legalidades diferentes.
De qualquer forma, não gostaria de abandonar a comparação
sem relembrar que estes recursos retóricos são convenientes; um
discurso trata sempre de uma realidade que foi configurada por outro
discurso e que o real pode ser circundado, ainda que não agarrado
pela palavra. A sombrado imaginário cai sobretodo discurso,áj que
a verdade tem estrutura de ficção.
L acan consumou uma singular façanha ao revisar na sua
totalidade os ditos de Freud e integrá-los com o dizer de Freud. Seu
gesto deve ser constantemente renovado. Deve-se criar uma
imunodeficiência com relação ao ensino de L acan e à proteção que
muitos encontram em um discurso que se assegura de si mesmo e
que recusaas inovações como enxertosperigosos. L acan fez com
que a psicanálise “convencionalizada” se tornasse estranha a si
mesma mediante a importação de outros discursos (lingüística,
filosofia, lógica, topologia), autênticos anticorpos que mostravam
por onde mancava essa verdade que se desgastava pelo manuseio
do saber textual do inconsciente que apenas do texto de Freud tira
sua consistência. E assim, difícil, estranho, apetitoso é o objeto da
psicanálise. Desejável.

6. A carta ao pai
O analista se submete à exigência ética de realizar com seu
sujeito a travessia que os levará pelos caminhos perdidos do
fantasma sem se deixar deslumbrar pelas miragens do conforto
físico e anímico. Essa travessia é a que ele mesmo fez e tentará com
quem o procura para fazê-la juntos. No final encontará um último
obstáculo que não é o da castração postulada por Freud, mas a
subjetivação da morte.
Uma exigência ética para o analista. Qual? Não a dos universais
e dos da
ética preceitos, não uma
indiferença ou moral. Isso da
da apatia, é claro. M as tampouco
complacência uma do
na morte,
desdém. Uma ética anunciada desde o título de uma obra anterior
a Freud, mas que resume todo o programa ético da psicanálise quase

L
Gozo e ética na experiência psicanalítica 317

- poder-se-ia dizer - até a última vírgula de su teto: “Além do bem


e do mal” do qual nosso tão citado “A lém o pincípio de prazer”
não é somente uma paráfrase, mas tambén urr comentário, uma
continuação, a culminação. O seminário de lacaisobre a ética pode
e talvez deva ser lido como a constatação d una linha secreta, de
um fio até agora invisível que une Nietzsch; a Peud como os dois
grandes imoralistas que se perguntam: “Mcalizir não seria... uma
coisa imoral?”.24 Não será o projeto subjaentea todas as morais
conhecidas até hoje o de refrear e ordenaro g>zo sujeitando-o a
normas e princípios surdos erefratários a>aneio dos sujeitos a
quem regulam, todos esses códigos pro:edeites de Deus, da
natureza, da convivência, do prazer, da realilade’ Será por isso que

“toda ante
gozo, moralo éespetáculo
uma ampla,dauma
alma,ousada falsifiaçãi, graças à qual um
é impossív,l”?;
Em meio ao arsenal das morais crava-s o ardo psicanalítico:
“Anuncia-se uma ética, convertida ao silêndo pio advento não do
espanto, mas do desejo: e a questão é sab r c<mo o caminho da
tagarelice da experiência analítica conduza ek”.26A spirando as
palavras que se exigem do analisando e esvaiamo-as de sentido até
encontrar o silencioso núcleo pulsionahm [ue se rebaixou a
angústia para encontrar nesse além a falta feuna do ser. Não é um
além do bem e do mal, se não na medida en qe se consegue esse
objetivo indo além da angústia.
A originalidade da psicanálise nesse trreio é a de colocar o
desejo, o desejo inconsciente e não a “inteçãoque não é mais do
que umsigno e um sintomaque tem necessiadeje interpretação”,27
no lugar central da ética. Um desejo que seapôi à inércia letal, um
desejo que opta, que decide e que atua. O sieitcnão pode se evadir
dizendo que outro decidiu por ele; é um dcejocolocado por cima
dos determinismos e dos ideais, no qua nala está escrito de
antemão, ainda que, se há decisão, pode esar ecrito para sempre.
Um Wunschde Freud que em NietzscheVille é ur Macht,vontade
de poder, e um Macht de Nietzscheque errLaca éjouissance.

24. F. Nietzsche.M ás allá dei bien e dei mal, aforimo 28.


25. Idem, aforismo 291.
26. J. L acan (1960). Écrits, p. 684;Escritos 2, p. 63.
27. F. Nietzsche. Más allá dei bien e dei mal,aforimo 2.
3I 8 Gozo

Deve-se eleger, decidir. É mister. Nem sequer a sexuação está


prefixada. Ainda que queriam chamá-lo de terrorismo, L acan dizia,
em “A ciência e a verdade”,28 que de nossa posição de sujeitos
somos sempre responsáveis, temos de responder por ela, pelo gozo
que aceitamos, pelo gozo que recusamos, por dizer se queremos ou
não o que desejamos.
Eis um exemplo clínico de validade universal, que tem a estru
tura discursiva de uma demanda de análise. Aos 34 anos de idade
um homem solteiro, que vive na casa do pai e que trabalha no prós
pero comércio que seu pai possui e dirige, escreve uma longa car
ta ao seu progenitor, que é uma violenta recriminação por todos os
males que lhe aconteceram na vida e uma acusação pela incapaci
dade de gozar queexperimenta. A carta de Franz Kafka é amplamen
te conhecida
massiva e interessa
identificação quetanto em relação
seu texto aonos
provoca seuneuróticos,
autor quanto pela
anali-
santes ou não. Bem, esta assunção especular de um texto alheio di
rigido a um pai tão abaixo de sua função como um outro qualquer,
é possível somente ao preço de ignorar a última página da célebre
carta que, até esse final, é a queixa que qualquer analista escuta todo
dia. E o ponto em queFranz, que já não tem 17 anos no que sere
fere às suas possibilidades de decidir e de pôr em prática suas
resoluções, interrompe seu desacato para dizer em poucas linhas o
que o pai poderia lhe dizer (se “o inconsciente é o discurso do Ou
tro”, o que Kafka põe naboca de seu pai é esclarecedor):
A fi rma que me ponho em situação cômoda a o exp licar
minha atitude em relação a você simplesmente por suas culpas,
mas considero que, em que pesem seus esforços visíveis, você
se encontra em posição muito mais favorável ou, pelo menos, não
mais difícil. Em primeiro lugar, também recusa toda a culpa e
responsabilidade suas, no que estaríamos procedendo igual.
E nquanto, com a mesma franqueza com que o penso, faço recair
sobre você a única culpa, você quer ser “superinteligente” e
“superterno” e absolver-me, por sua vez, de toda a culpa.
C onsegue-o, cl aro que apenas aparentemente (tampouco o guia
outra intenção), e... fica nas entrelinhas que na realidade fui eu

28. J. Lacan (1965). Écrits , p. 858;Escritos 2, p. 837,


Gozo e ética na expenencia psicanalítica 31

o agressor e que tudo o que você fez foi aitolefesa. Portanto,


graças à tua falta de sinceridade, teria consgudo seu objetivo,
pois demonstrou três coisas: primeiro, que (incente; segundo,

que
não eu
só asou
meculpado;
perdoar,e, mas
terceiro, que sendo
também, o que sblme está
é rai ou disposto
menos igual,
a demonstrar e querer crer você mesmo cuetambém eu sou
inocente; logo, contra a verdade. Isto podri; bastar-lhe, mas
não. M eteu em sua cabeça a intenção de vive tcalmente à minha
custa. R econheço que bri gamos um com oouro, mas há duas
classes de luta. O combate cavalheiresco, en |ue se medem as
forças de adversários independentes; cada un stá só, perde só,
vence só. E a luta do parasita, que não apns pica, mas que
também sorve o sangue de quem o mantém A sim é o soldado
mercenário e assim é você. É incapaz para a id; mas para poder
arrumá-las comodamente, sem preocupçês nem peso na
consciência, demonstra que lhe tirei toda ; sia aptidão para a
vida e que a coloquei no bolso. O que lheinporta agora se é
incapaz para a vida; a responsabilidade : riinha, e você se
desespera com tranqüilidade e se deixa le\»r>or mim, física e
espiritualmente pela vida. Um exemplo.h; pouco, quando
pensava em casar-se, queria ao mesmo temperío se casar, o que
admite em sua carta; mas para não ter que reover você mesmo,
desejava que o ajudasse a não se casar, proiliido-lhe essa boda
pela “desonra” que a união traria a meu nom.V Ias isso nem me
ocorreu. Em primeiro lugar, porque neste casi, omo em todos os
outros, não desejava “ser um obstáculo paras í felicidade”, e em
segundo, porque não desejo escutar jamasjma reprimenda
semelhante de meu filho. Significou-me algui; vantagem ter-me
vencido ao dar-lhe liberdade para a boda? /bolutamente nada.
M inha recusa em relação à boda não a h ad a evi tado; pelo
contrário, teria significado um estímulo pa você, já que a
“tentativa de evasão”, como se expressa, s-se-ia feito mais
co mpl eta. M eu con sentim ento para a boianão evi tou sua s
reprimendas, pois demonstra, de todas asfrmas, que sou o

culpado de que
e em todos se tenha
os outro realizado.
s casos, Para nãc
no f undo min,no entanto,ouneste
lemonstrou tra
coisa senão que minhas reprimendas se justiiavam e que entre
elas faltava uma mais, particularmente jisificada, que é a
reprimenda pela falta de sinceridade, docilidd' e parasitismo. Se
não me engano muito, também com sua cart tua como parasita
320 Gozo

sobre mim. (C ito a tradução de H aeberle ent re as várias


existentes.)

Essas linhas quase finais são a razão de a carta nunca ter sido
enviada: a carta chegou antes ao seu destino, que era o próprio autor.
O parágrafo final consiste em um certo reconhecimento das razões
do pai e em uma certa insistência nas razões do filho, mas - termina
dizendo o escritor - “conseguiu-se, em minha opinião, algo tão
próximo à verdade que pode nos tranqüilizar um pouco a ambos e
nos tomar mais fácil viver e morrer. Franz”. São as palavras que um
analista espera quando ouve o longo relato do sofrimento da alma
bela até o ponto em que se produz a inversão dialética da reprimenda,
o ponto em que o analista pode resolver que as entrevistas
preliminares acabaram e que a análise pode começar. Aí onde o
sujeito alcança o limite de sua auto-expiação acusatória para aceitar
sua responsabilidade no gozo que alcança em direção ao desejo em
sua dupla função de barreira e de caminho para o gozo e o sujeito
acabará sendo, terá sido, um modo de conjugação do desejo e do
gozo que se abrirá, em meio e por meio da linguagem, de uma
relação diferente com o saber inconsciente. E a ética da psicanálise
se dará em torno do desejo, de sua cessão ou não e do bem-dizer
conforme o gozo que assim se conjuga com o desejo.
Essa é a função atribuída ao nome-do-Pai. A seu nome, que é
de um morto no aquário do simbólico onde bóiam as palavras. Não
o pai que aterroriza com seu poder aniquilador, tal como Kafka o
apresenta, mas o que pode harmonizar a lei com o desejo, o
significante com o gozo.
O desejo e o gozo, o Outro e a Coisa. A experiência da análise
se inaugura e se prossegue pela articulação dialética desses dois pares
de conceitos entre os quais se destaca o sujeito S. Razão demais para
que o dizer, o dizer que decifra, seja a articulação e o diafragma que
os liga.
Podem vir ao caso outros exemplos históricos e clínicos que
não ganham cm peso, nem em celebridade, nem em caráter
paradigmático do de Kafka: os deFreud eL acan, esses sujeitos que
se constroem em um dizer e em um escrever seu desejo que
convocam em um único ato o desejo e o gozo: isso se chamaestilo,
um estilete que deixa sua marca no Outro ao realizar a inscrição
Gozo e ética na experiência psicanalítica 321

histórica de um desejo. Um desejo que não é variável psicológica,


mas que se constrói retroativamente, para nós, a partir do que os
pais da psicanálise deixaram: analistas, escritos, discípulos,
instituições, dissoluções...

7. Ceder o desejo?

J acques-A lain M iller em seu seminário chamou justamente a


atenção sobre o erro que se comete quando se lê apressadamente,
e de modo voluntarioso, o seminário de L acan sobre a ética da
psicanálise e se extrai dali, como consigna, um “não ceder o desejo”
que Lacan nunca d i sse. Desde essa consigna espúria se avaliza uma
justificação da perversão, da birra, do negativismo ou de um
egoísmo desenfreado que ora passa pelo desconhecimento, ora pelo
avassalamento do outro. É uma leitura perversa que confunde o
desejo inconsciente com a intenção de gozar e ue q faz passar o gozo
pela afirmação soberana do eu. Contra esta interpretação que
favorece advogar por um “eu forte” ergue-se a orientação lacaniana.
Devemos ler com atenção o texto da reunião final do seminário
de L acan sobre a ética em 19602 9 e ver que seus enunciados são
sumamente cautelosos. Com efeito, não se poderia comparar o
L acan habitualmente apodítico com oque começaadvertindo:“E a
título experimental que profiro diante vocês estas proposições.
Formulemo-las paradoxalmente. V ejamos o que isto dá para os
ouvidos de analistas”. Imediatamente depois de tomar estas
precauções, disse: “Proponho que a única coisa de que se pode ser
culpado, pelo menos na experiência analítica, é de haver cedido em
relação a seu desejo”.
A proposta diz que a cessão do desejo engendraculpa; este é
um dado clínico, uma observação irrefutável da qual cabe extrair
conseqüências éticas. O sujeito cede seu desejo e para isso tem boas
razões, “inclusive a melhor” (ibid.), ou seja, o bem, a conveniência

29. J. Lacan (1960). Le seminaire. L ivre VII. L 'elique dans la psychanalyse,


p. 368.
322 Gozo

do Outro e a do próprio sujeito, posto que seu lugar lhe é designado


no Outro pelo Outro. Mas isto implica uma traição e um engano, que
o sujeito realiza em si mesmo ou aos quais se presta, pretendendo
que vhaja
equi reciprocidade,
alente de seu próprioque o Outro
desejo. por
E isto é osua vez
que façave
- uma uma renúncia
z feitas
as contas - não seconsegue. Não por egoísmo deum ou outro,mas
porque o gozo de um é incomensurável em relação ao gozo do
Outro, porque as renúncias não podem se comparar, porque a perda
e o prejuízo são inerentes à renúncia. O gozo clama, reivindica sua
oferta. Nega-se ao conluio. Não se pode trocar. Trocá-lo é trucá-
lo. E traí-lo. A aspiração do desejo se paga com uma cota de gozo,
com uma moeda que é a libra de carne extraída do corpo e
reclamada pelo Outro. E a oposição entre desejo e gozo: os pólos
enfrentados daquele seminário de 5 de maio de 1958 que
comentamos no n i ício, e do qual se tira a reflexão deL acan em tomo
deste insólito e impossível objeto de conhecimento que é o gozo.
Não se cede o desejo sem culpa porque ceder o desejo é
adormecê-lo, anulá-lo como força (pro)pulsora, admitir em seu
lugar a conveniência, o conforto, o prazer, o serviço dos bens, o mal
menor, o risco calculado, a submissão à demanda manifesta ou
suposta do Outro, a conformidade com o fantasma que realiza o
desejo no imaginário ao mesmo tempo que o resigna, a detenção do
movimento de inscrição do nome próprio, a obediência à proibição
edípica de não ir além do pai. Bem podia Freud experimentar tristeza
entre as colunas da A crópole, mas maior e definitiva teria sido sua
culpa se, para não chegar até este ápice, para não rebaixar o pai,
tivesse ficado nos pés da colina.-10A tristeza e a solidão eram o
corolário da façanha de seu desejo. O Édipo e seus fantasmas de
crime e castigo operam como lugares de detenção para o desejo
inconsciente, protegem do gozo considerado transgressivo,
incestuoso, pagável com a cegueira. Por isso que ao fim da marcha
analítica o que advém não é o espanto, mas o desejo de atravessar
o alambrado de
possibilidade de alcançar
uma lei esse
que ordena
gozo a deter-se, retrair-se
que o Outro, sujeitoante a
também
ele da castração, teve de renunciar.

30. S. Freud (1936).Obras completas, v. XX II, p. 209.


Gozo e ética na experiência psicanalítica 323

Freud não podia chegar a Roma, não podia subir na A cropole,


não podia “ir longe”, porque isto lhe era apresentado como “algo
injusto, proibido de muito... e é como se continuasse proibido querer

ultrapassar o pai”.
antigo trabalho Por “os
sobre isso,que
ele fracassam
evoca na carta
ante aoRomain
êxito”. Rolland seu
Reconhece
em sua incredulidade e recusa psíquica de alcançar algo
fervorosamente desejado “a motivação universalmente válida” do
Edipo. Ante o desejo é mais seguro recuar, desvanecer-se como
sujeito, padecer de uma inibição (fading), refugiar-se no sintoma
neurótico por ação dos anticorpos que recusam o gozo como o
alheio ou paralisar-se pela angústia erigida como última barreira para
desconectar o desejo do gozo. Inibição, sintoma e angústia.
A neurose, o mal-estar na cultura, deriva da L ei que torna a
cultura possível, o sujeito desejante, o gozo transgressão e crime,
os afãs do desejante malditos, incompreensíveis, loucos. A cultura
é o mal-estar. Do gozo contido, esse ao qual não se resigna.
A psicanálise, como sedisse, é umaprática quenão se guia por
ideais ou prescrições. Sem dúvida não fica excluída a possibilidade
de julgar. A promoção freudiana do desejo (em sua relação com o
gozo) ao lugar central da ética permite uma revisão crítica de todos
os desvios impostos ao desejo inconsciente. E então cabe um juízo
e até um J uízo Final no tribunal ético, aquele em que não cabe o
perjúrio, do qual sairá uma sentença inapelável conforme a respos
ta dada pelo sujeito à pergunta:
“Você atuou conforme o desejo que
o habita?”.3'A pergunta enfatiza as conseqüências fáticas do desejo
e não o próprio desejo, questiona a ação orientada pelo desejo que
não é, como se vê, o desejode alguém, mas aquilo que habita em
alguém. Por este matiz é que este modo de colocar a pergunta é mais
preciso do que o da fórmula previamente citada e proferida por L a
can nesse mesmo dia sobre “ceder seu desejo”. Pois o desejo não
é de alguém, como se poderia entender pelo genitivo; o desejo está
do lado do Outro e “habita” em um. “A medida da revisão32da éti
ca a que nos leva a psicanálise é a relação da ação com o desejo que

31. J. Lacan (1960). Le seminaire. L ivre VII. L ’étique dans la psychanalyse,


p. 362.
32. Idem, p. 361.
324 Gozo

a habita” e tal ação se inscreve em uma dimensão trágica, tragicô-


mica, davida. Normalmente em sua pergunta, Lacan insiste em que
ela só pode ser colocada em sua pureza no contexto analítico e que
essa pergunta,
dicional ape
nas
, a de A ristót ao que
eles, colocar-se,
pre
conizajá aé tuma oposição
emperança à ética
, o afast tra
amento
dos extremos e, em última instância, a obediência às consignas es-
cravizantes e benevolentes do senhor que impõem a postergação do
desejo. E é neste ponto que a ética da análise se separa e contesta
o poder.
Psicanaliticamente não há ato inocente. O ato implica
conseqüências éticas que tornam o atuante culpado. O ato é uma
irrupção criadora na ordem significante e implica uma transgressão,
um parricídio. O herói analítico não é um inocente; é quem encara
a culpa. A meta não é a beatitude, tampoucoa absolvição. Se Deus
(o pai) morreu, e é o fundamento da ordem inconsciente, é porque
o matamos. E-se culpado pelo único fato de existir, por se separar
da (de todos os modos impossível) alienação absoluta no desejo do
Outro. E-se culpado por afirmar uma palavra, por atravessar a
castração para explorar os limites do gozo fálico que está filtrado
pelo diafragma da palavra.
Há assim duas variedades daculpa. Uma que se experimenta
por não haver atuado segundo o desejo, imaginária, expressa em
fantasmas masoquistas de castigo e redenção; outra, real, encarada
como preço do desejo, assumida e reivindicada como uma façanha
movida pelo desejo. Esta culpa é a que proclama o louco de
Nietzsche emA gaia ciênciae cujo resultado é a exaltação:33 “A
alegria ou, para falar minha linguagem, o gaio saber, é uma
recompensa: a recompensa de um esforço continuado, atrevido,
tenaz, subterrâneo, que, a bem dizer, não é para todo mundo”.
O gozo, razão e medida do ato, arrasta a sombra de parricí
dio. “A consciência nos torna culpados”, sim, mas por uma culpa
que é anterior e inominada. Edipo, inconsciente, não é menos cul
pado do que A ntígona que sabe de seu delito. Mais ainda, porque
Edipo não sabia qual era seu crime; é que o Outro, o Coro, estaria
disposto a perdoá-lo, mas ele mesmo sabe que não há absolvição

33. F. Nietzsche.Genealogia de la morai aforismo 7.


Gozo e ética na experiência psicanalítica 325

possível e por isso se mutila. Antígona, suafilha e irmã, assume a


culpa com orgulho e desce ao sepulcro para que se cumpra a sen
tença que lhe impõe o Outro da Lei. Ela não se arrependenem se

castiga; pelo contrário,


o comandou, reivindica
uma lei superior seu carras
à de seus ato ecos
advoga por outra
políticos. A he lei que
roicidade analítica distingue, como antes Hegel, entre estes dois
modelos de crime e castigo. E opta: o que atua conforme seu de
sejo é o que pode designar-se como eu aí onde Isso estavae afronta
a responsabilidade de sua posição de sujeito, não aquele que, incons
ciente, cedendo às armadilhas do amor próprio (narcisismo) provoca
em si mesmo o sofrimento e a destruição.
“Da única coisa que se pode ser culpado é de ter cedido o seu
desejo.” E o caso de Édipo, não o de A ntígona. Edipo se sacrifica
a serviço dos bens, do bem-estar da cidade, abdica, se exila.
A ntígona atravessa a barreira do conforto próprio e alheio que
personifica sua irmã Ismênia e refuta com violência o argumento das
conveniências políticas da obediência. Ismênia lhe fala em nome da
condição feminina que impõe a submissão aos ditados do Outro.
A ntígona responde desde outra concepçã o da feminilidade que está
ligada ao que do desejo da Mãe, explicitamente invocado no te xto
de Sófocles, não foi regulamentado pelo nome-do-Pai. A ntígona
reivindica esta outra concepção; ela fala desde um lugar de não-toda
dentro da função fálica, desde um desejo que aponta não para o falo,
mas além, para o significante que falta no Outro, aquele pelo qual
A mulher não existe.
A lém da culpa e da angústia, aceitando que acastração é n
i icial
e estrutural, o herói analítico faz sua jogada, arrisca e perde, toca
os limites do (im)-possível em função do desejo e do que corre sob
a cadeia significante, inarticulado e inarticulável, que é o gozo, uma
escritura no pergaminho corporal. Põe-se além do bem e do mal,
além da organização judiciária da vida cotidiana, que torna todo ato
criador um delito passível de punição pelo supereu como carrasco
ou pelo Outro
o sujeito pôde que
ter toma sobre sidea atravessar
feito depois carga de vigiar e punir
as travas pelo que
internas do
supereu, cumprindo seu imperativo fundamental que é gozar. Trata-
se aqui dessa culpa anterior e refreadora do ato feito conforme o
desejo que secontrapõe àcastração, omo
c ameaça. A análise mostra
326 Gozo

a inutilidade de ameaçar com uma pena que já foi executada e que,


além disso, nem penaé, pois somente pa
ssando por ela é quese abre
a possibilidade do gozo.

Por seujá desejo,


inocuidade o sujeito
que, passada afronta essa
a castração ameaça
primeira e revelahavendo
e essencial, sua
recebido sobre si a marca que habilita o gozo fálico, não há a
castração, mas a afânise,fading
o do sujeito, seu desaparecimento
sob a demanda do Outro, a neurose. O neurótico é o personagem
que cede seu desejo, que se protege dele como se fosse perigoso.
O cumprimento do desejo parece-lhe pior que a frustração e por isso
a ele renuncia, “coloca-o cm seu bolso”.34Quando poderia realizá-
lo sobrevêm a angústia c a inibição. Quem melhor ilustra isso é o
fóbico.

evocaO egozo fálico,oefeito


contorna da mas
incesto, passagem
é, por do
suasujeito pela precária
vez, uma castração,
e
sempre incerta garantia de que não há incesto, de que o sujeito é algo
mais que o objeto @, mais de gozo do Outro, submetido à sua
demanda. As vias de acesso à sexuali dade são vias de saída do
incesto, enquanto a castidade (“castigade” dizia alguém em análise)
é em si incestuosa, pois mostra o sujeito encadeado ao gozo
incestuoso da Mãe, figurando ele com seu corpo esse gozo materno
que é perverso, que é a forma mais generalizada da perversão
feminina, que passa por desmentir que haja outro gozo que o gozo
fálico por meio da posse da sexualidade do filho (ou filha) sujeita a
sob seu pé. Ofetichismo tem
suas ordens, literalmente sujeitada,
sanção etimológica.
Cabe aqui recordar a sagaz observação clínica de Freud: a
obediência ao Supereu, o sacrifício do gozo fálico para satisfazer
suas exigências não acarreta a paz interior, mas quanto mais
“virtuoso” se é, mais se encontra o sujeito assediado pelos escrúpulos
e pela culpa. As renúncias pulsionais não fazem senão incrementar
o mal-estar tanto no indivíduo quanto na cultura.

34. J. L acan (1961). Le seminaire. Livre VIII. Le transferi.Paris: Seuil, 1991.


p. 271.
Gozo e ética na experiência psicanalítica 327

8. Para três gozos, três supereus15

O supereu freudiano c, corno se sabe, um herdeiro do


complexo de Édipo que supõe a substituição da ameaça de castração
como perigo externo pela regulação interna do sujeito das moções
pulsionais. O supereu é concebido como um sistema de habilitações
e proibições do gozo. Obediente à lei e dentro de seus marcos, o
gozo está permitido, mas é um gozo limitado, podado pelas tesouras
da castração.
O supereu lacaniano não pode ser confundido com o freudiano.
Seu imperativo não é o de obedecer, mas o de gozar e o gozo é
justamente o que o supereu freudiano proí be. O gozo é
transgressivo;
é, depois de por isso tem pouco
ter distinguido a vefizemos
como r com a obe
nosdiência. A que
primeiros stão
capítulos,
entre três formas do gozo, determinar o que quer dizer o
mandamento superegóico de “gozar”, posto que os gozos se
contrapõem e se excluem entre si.Trata-se degozar antes, em vez
ou depois da castração; inclinar-nos-emos pelo gozo do ser, pelo
gozo fálico ou pelo gozo do Outro? Optaremos pela concepção de
um supereu aniquilador que ordena uma loucura irresponsável, de
um supereu regulador que por sua vez permite e proíbe, mas que
sempre submete às suas demandas neurotizantes, ou por um
supereu transgressi vo que ordena reconhecero desejo que habita no
sujeito e fazer dele a Lei que facilite o caminho do gozo? (Psicose,
neurose e liberdade para o ato perverso, respectivamente.)
Proponho que a formulação lacaniana de que a ordem do
supereu é a de gozar pode ser estendida em toda a sua riqueza

35. M. Gerez A mbertín. Las voces dei superyó. Buenos A ires: M anantial,
1993 eImperativos dei superyó.T estimonios clínicos. Buenos A ires: L u
gar Editorial, 1999 (Em português: Imperativos do supereu.T estemunhos
clínicos. São Paulo: Escuta, 2006). Estas duas obras recapitulam e abordam
o essencial que a psicanálise pode dizer sobre o tema. Depois delas, já dis
semos, “o supereu nunca vo l tará a ser o que era”. A recomendação rres
i
trita de recorrer a essas obras imprescindíveis não se contrapõe às teses
diferentes,não estritamente de Freud nem deL acan, quese sustenta m neste
parágrafo.
328 Gozo

apenas quando se respeita a ambigüidade de seu enunciado,


reconhecendo a polissemia e a polivalência do gozo. Ao se aceitar
esta proposta, ter-se-á que reconhecer uma triplicidade superegóica

que inclui rocha


inevitável o supereu
viva dafreudiano
castraçãocomo aquele que
e o supereu tropeçacomo
lacaniano comaquele
a
que elege não se deter ante a castração simbólica, reconhecê-la como
o acesso possibilitado pela função e pela metáfora paterna ao campo
da linguagem e do discurso e atravessá-la no caminho da inscrição
do desejo no real por meio de atos que rompam as miragens
imaginárias e as permissões e licenças simbólicas. Atos que, por sua
própria realização, significam a impugnação da normatividade.
A distinção tripla deveria se realizar entre um supereu primitivo,
este sim obsceno e feroz, que exige um gozo irrefreado, alheio à
linguagem e que não quer saber nada do nome-do-Pai como função
metafórica que lança o desejo,
kleiniano, diríamos, para distingui-
lo de um supereu freudiano que seria consecutivo ao anterior,
pacificante (e não tão confiável) que promete recompensas pela
obediência às diretivas do ideal do eu procedentes, por sua vez, de
identificações com os significantes do Outro introjetados, pelas
admoestações recebidas de “viva voz”; é um supereu que maneja
com a armada culpa, que recomendadeter-se no caminho do desejo,
aceitar “que não se pode” e que deriva a subjetividade por caminhos
de impotência, inibição, sintoma e angústia. Estes dois supereus
devem, por sua vez, distinguir-se de um terceiro,lacaniano, que
impele a gozar como os outros dois, mas agora com uma diferença
essencial: nele o gozo terá de passar pelo discurso, ou seja, pelo
semblante,36que aspira recuperar o gozo perdido em um caminho
(recherche)que vai além das prescrições reguladoras e que confronta
o sujeito com o limite, comneco plus ultra,com o impossível que
é conseqüência da inexistência da relação sexual. Por suas
implicações clínicas, este terceiro supereu deve se distinguir da
perversão que poderia ser seu ponto de desembocadura, como são
para os outros dois a psicose e a neurose. A diferença, apesar de
sutil, é importante: é a diferença que há entre um fazer semblante de

36. J. Lacan (1971 -1972).Seminário XVIII e N. A. Braunstein.El concepto de


semblante en Lacan.México: Siglo XXI.
Gozo e ética na experiência psicanalítica 329

gozar, próprio do perverso e um gozar de fazer semblante, de uma


gaia ciência dionisíaca que se estende além do fracasso em ordenar
o saber e o viver segundo os objetivos apolíneos da completude, da
integração e da harmonia entre o homem e o mundo ou entre o
homem e a mulher. Além da culpa, além dos ideais, além do
princípio de prazer, além do bem e do mal, do pai e do sentido, mas
não além do sembl ante ou da máscar a.37
A relação entreo supereu lacaniano ea obediência do perverso
ao mandamento de gozar, levando ao Outro o gozo que lhe falta é,
repito, sutil mas substancial.Não é uma relação de exclusão , pois
para o sujeito no fim da análise o desejo tomou o lugar que era do
supereu normativo e freudiano e que condenava à impotência: o ato
perverso não está agora proibido em função de códigos jurídicos.
O sujeito está em condições de tentá-lo, tendo tão-somente que
decidir se quer o que deseja, se dá seu consentimento a esse desejo
que descobriu habitando nele. Não há uma condenação a priori, mas
uma possibilidade de decidir. A qui reside uma das diferenças em
relação à perversão: ela obedece a um imperativo que, recordemos,
“apenas acentua a função do desejo no homem” (p. 253). A
distinção é de estrutura: se o analisado se identifica com suafalta e
em função dela realiza seu ato, na perversão o sujeito se identifica
com a falta do Outro e a desmente, tornando-se ele o instrumento
do
ela gozo que falta outro
não houvesse ou que faltaria
gozo à mulher;
que não fosse oprocede como se para
gozo fálico.
O perverso toma o lugar do objeto @ para assegurar o gozo
do Outro, fazendo ele, por meio de sua encenação, o semblante de
sabergozar. O analista, por sua vez, como resultado de sua análise,
toma o lugar de semblante de lugar da falta no saber e no gozo
e desde aí questiona o sujeito em sua cisão, colocando ao Outro a
pergunta por seu desejo, recusando qualquer pretensão de obliterar
a falta, fazendo atuar a ignorância, reconhecendo o gozo em seu
horizonte de impossibilidade e deixando ao sujeito a consigna de se
venturar pelos caminhos do significante, gozando de fazer semblante,
de inventar o saber, de se exaltar sem se alterar, atuando segundo
o desejo que nele habita.

37, G. V attimo. El sujeto y la máscara.M adrid: Península, 1989.


330 Gozo

O supercu que chamamos freudiano, o que ordena submeter-


se ante a ameaça da castração, remanescente ou herdeiro do
complexo de Édipo, é o fundamento de uma forma particular do
gozo que é o gozo do sintoma neurótico e da culpa, de um gozo que
surge do recuar do sujeito ante a castração. E, nesse sentido, um
gozo fálico que não consegue canalizar-se no discurso, retido no
corpo e, por isso, aparentemente “pré-fálico” ou, como o chama a
doutrina estabelecida, pré-genital(caso se aceite que o único genital
é o falo). É gozo do significante, sim, mas submetido à repressão
secundária. E por isso que seu efeito é recolhido por alíngua como
sendo de manifestação oral: remorsos.
A culpa e o fantasma de castigo (“Bate-se numacriança”) não
são, todos sabem, alheios ao gozo. Pelo contrário, em torno deles
se tece um gozo retorcido por invocar e se oferecer de forma
propiciatória e sacrificial ao gozo do Outro. Este gozo é o
fundamento de uma compulsão à repetição que levou alguns analistas
a cunhar a fórmula de “neurose de destino” para designar este
fantasma de perversão que consiste em acomodar-se ao suposto
fantasma perverso do Outro e de seu gozo. O autocastigo, a paranóia
de autopunição, os despojos, a recorrência dos acidentes, as prisões,
as desgraças e as operações cirúrgicas não são as indicações de ter
atuado conforme o desejo, mas enquanto este desejo está alienado
no fantasma do gozo do Outro, esse Outro a que se ofertaria a
castração e o fracasso. Culpa e remorso estão assim na órbita do
gozo fálico, da fantasmatização masoquista e edípica, do castigo
imposto pelo retrocesso ante o desejo inconsciente.
O gozo no castigo do supereu existe e o sujeito tem horror a
saber disso. A melancolia e a neurose obsessivo-compulsiva
aparecem nesta ótica como cultivos do gozo. Freud falava em tais
(Entmischung)das pulsões. K afka mostrou
casos de desintricação
em suas narrações este gozo recôndito, este deserto subjetivo do
gozo, que corresponde à renúncia ao desejo para submeter-se ao
enigmáti co gozo do Outro. A af çanha de gozar por nã
o gozar não é
patrimônio exclusivo da histérica.
Para nós o supereu é o gozo sem o desejo, fora dele, em vez
dele.
Gozo e ética na experiência psicanalftica 331

9. Do amor em psicanálise

O amor, somenteele, dizia L acan em 13 de março de 1963,™


permite ao de
conciliação gozo condescender
opostos ao desejo.
seja possível Paradeverá
o sujeito que tal milagre de
mostrar-se
como desejante, habitado por uma falta que fecha a via ao gozo do
ser e abre a de um acesso ao gozo do Outro, transcastracional (se
for permitido neologizar). É mister que, para um, o Outro se @ize,
se faça @, sofra uma @ificação, passe a representar a causa desse
desejo que instiga a desafiar os impedimentos externos, os diques
da presumida impotência interna. Transitando por esta via maldita
ver-se-á conduzido ao (des)encontro @-muroso, ao a-muro, ao
impermeável muro que envolve a Coisa.

O encontro
castração e supõe dodesprender-se
de
sejo com o gozo da sópode ter lugar
angústia sob o signo daComo
correspondente.
já dissemos no final do capítulo II (p. 117-119), entre o desejo e o gozo
há, se não o amor, o grito desaforado e dissolvente da angústia.
A psicanálise tem a mais estreita relação com o amor, pois não
há nada mais do que o amor como desfiladeiro para que se produza
essa “condescendência” tão desejada quanto defendida. O bem na
análise - deve-se superar um certo pudor pa ra dizê-lo, para não cair
ou para não sustentar uma acusação de ridicularidade pastoral da
qual L acan estava a par - tem a ver com o desejo conjugado com
o gozo e, portanto, com o amor. Não se poderia deduzir disto uma
nova idealização do amor romanesco ou um retorno às exaltações
piedosas que adornam as primeiras apologias deO banquete
platônico e que chegam ao ápice no discurso de Fedro. O amor está
consagrado a um “destino fatal” e frente a ele só cabe a forçada
valentia de assumi-lo. Não se trata do amor-paixão nem do amor dos
avozinhos fundado na reciprocidade e na compreensão piedosa;
trata-se do amor como esse mal-entendido ineludível, esse equívoco
que, bem ou mal, leva à reprodução dos corpos.
Para que possa aflorar esta condescendência é necessário que
o gozo tenha sido recusado, perdido, renunciado, separado do corpo
pelo Outro do significante e da Lei. A condição do am or é arepressão

38. J. L acan (1963). Le seminaire. Livre X. L'angoise. (inédito)


332 Gozo

srcinária. Seu pano de fundo e seu abrigo é o inconsciente. É um


derivado da Lei de proibição do incesto que faz daM ãe primordial
um objeto proibido para o gozo e que, pela via da marca fálica, induz
ao desejo, esse desejo que encontra apenas objetos evocadores do
perdido e que levam a marca de uma diferença, objetos particulares
que são e que não são, que são por não serem aCoisa. A Lei faz
deste modo o gozo, proibindo-o. Todo amor tem este pano de fundo
culposo que bordeja a transgressão e a quer e a requer.
Do gozo e do auto-erotismo, passando pela L ei, ao desejo que
a L ei ordena. O gozo, sim, mas encaminhado desde o outro
(“extroversão da libido” diríamos recorrendo ao cemitério da
psicanálise), não desde dentro. Disso deriva a ligação inconsciente
entre masturbação e incesto e a culpa concomitante. O auto-

erotismo conduz opor


gozo paradoxal, suasdavias
gozo ao prazer edos
transgressão, esteremorsos,
prazer é razão de um
do castigo
imposto pelo Outro que leva a contabilidade do gozo, que está
preocupado pelo que o sujeito experimenta com seu corpo, que
esgrime o chicote, a loucura ou as chamas do inferno como
argumentos de sua lei. Ou a sífilis e a AIDS.
O sujeito, neuroticamente, assegura-se do Outro, imaginando
ser um perverso, um transgressor. O prazer serve assim ao gozo na
medida em que evoca a culpa. Quando esta culpa se atenua o gozo
acessível ao neurótico se vê reduzido, a sexualidade passa a ser uma
atividade a mais da qual pode se derivar um maior ou menor desfrute
e, finalmente, contamina-se com sensações de saciedade: é o que se
observa atualmente como conseqüência da tão apregoada “revolução
sexual” que não tocou certamente em nada a condição neurótica da
repressão que a precedeu. Que, melhor, nutriu-se da sexualidade,
fazendo dela uma mercadoria multiforme que permite abundantes
negócios que já não ofendem ninguém.
A “sabedoria” do judeu-cristianismo consistiu nesta operação
neurotizante que permitiu que o sexual chegasse a ser reduto e
paradigma do gozo, deslocado do resto do corpo, limitado ao
apêndice viril (perverso, segundo nossa definição), submetido a uma
legislação estrita e ligado à noção de pecado. A contrapartida é,
lógico, a localização, restrição e, na medida do possível, a exclusão
do gozo feminino que ficava confinado à maternidade. Essa
( lozo e ética na experiência psicanalítica 333

legislação condena o gozo a ter de se fazer perdoar depois de prestar


contas ao grande Outro, ao beneficiário final e generoso que concede
ii absolvição ao pecador a
rrependido que se auto-acusa. O resultado
desta operação, além do aumento constante do mal-estar na cultura,
loi a constituição de uma erótica e deu srcem à abundante mitologia
do amor no Ocidente. A instituição jurídica do matrimônio civil e sua
sacramentação serviu para dividir esquematicamente a sexualidade
ein campos opostos: o obrigado e o proibido. Fazer da sexualidade
uma obrigação, um inciso da deontologia, um dever para com o
partenaire afeta o narcisismo e cria uma tensão agressiva que
justifica a máxima de L a R ochefoucauld, cujo “rigor” sobre a
incompatibilidade entre matrimônio e as delícias39(Il y a des bons
) destaca Lacan.
mariages, mais il n ’y en a point des délicieux
J á o sabemos: o gozo se estabelece em uma relação
concorrente com o gozo do Outro. “Não desejarás a mulher do
próximo” é um mandamento ao mesmo tempo pleonástico e
impossível. Pleonástico porque toda mulher é a mulher do Outro e
impossível porque é justamente por ser a mulher do Outro que é
desejada. O objeto - vimos dizendo desde o princípio deste texto -
só pode ser possuído sobre a cena imaginária de algum outro que
c despossuído. E mais, é apenas esta despossessão o que o torna
objeto para o desejo. Assim é com o esio, assim é com a mulher,
assim é com o falo. A mulher primeira é a mulher do pai, logo a do
irmão, logo a do rival. Desejá-la é consumar imaginariamente a
despossessão do Outro que reclamará seu bem. O gozo somente é
possível ao preço do pecado. Se o Outro não existe, é mister inventá-
lo, inventar esse ser da caixa registradora que tudo vê eque tudo
cobra, onipresente, esse Deus do judeu-cristianismo metido na
alcova para observar e reprovar, ocupado e preocupado pelo que
cada um faz com seu falo, ou seja, compartenaire
seu ou com sua
mão. Neste sentido é mais ou menos claro que a chamada revolução

sexual
até da provocou umSomente
pornografia. certo debilitamento
a AIDS veiodo erotismo
devolver ume,certo
ultimamente,
tempero
picante à sexualidade ao oferecer-se como um inferno prometido e
ameaçante que renova os imaginários da castração em um tempo em

39. J. Lacan (1948). Écrits, p. 119;Escritos I, p. 111.


334 Gozo

que quase todo mundo começava a se entediar ou a rir-se dos


anteriores. O resto é manipulação dos mecanismos cibernéticos
sucessores e substitutos das alcoviteiras de outrora.
A neurose,padecer universal que é efeito da primazia do discurso
do senhor, é a pena do desejo que deve tomar suas modalidades de
prevenido, insatisfeito ou impossível. Tal desejo, além da castração,
se constitui como o único regulador da ética da psicanálise; é a “me
dida incomensurável e infinita” que está no centro de nossa expe
riência como analistas e que subjaz à única pergunta válida que po
demos (nos) fazer:Você atuou conforme o desejo que o habita ?
O desejo - nunca é demais dizê-lo - não pode ser confundido
com esse engodo do gozo que é o fantasma, essa construção ima
ginária que o tampona e serve para manter o sujeito alijado do gozo
(neurose) ou atuando a serviço do gozo do Outro (perversão), fa
zendo semblante de não gozar no primeiro caso e de sim gozar no
segundo. Pelo Falo (O) como significante universal é que o gozo está
proibido a quem fala como tal e que o falante passará a vida con
tornando-o com seus dizeres, vivendo sua castração (-cp). O fantas
ma é a encenação do gozo como possível, apresenta imaginaria
mente a fusão do sujeito e do objeto, do pensamento e do ser, do
homem e da mulher, do fenômeno e do númeno, do racional e do

real, do semblante
animado pelo desejo, eaodaqual
verdade, unidos
adormece sem; éfalta
e suplanta nem
respost perda.
a subje Está
tiva à falta a ser e é, ao mesmo tempo, o que extravia o sujeito apre
sentando-lhe essa máscara do real que é a realidade consensual, o
mundo ideológico das significações, o sentido. Adiferençafundamen
tal entre as psicoterapias e a psicanálise passa por essa opção ética
entre reanimar e corrigir o fantasma, por um lado, ou atravessá-lo
e colocar-se além de seu tamponamento do de sejo pelo outro.
E comum que a leitura da observação clí nica de L acan sobre
a relação entre o “ceder-o-desejo” e a culpa seja transformada em
uma consigna tanto insistente quanto inexistente que seria a do “não
cedas teu desejo”. Quase se confunde, de imediato, este desejo que
não há que ceder com o fantasma de uma realização imaginária do
desejo supondo alguma confluência entre o sujeito S e o objeto @,
e ignorando que o essencial da fórmula do fantasma está dado por
esta punção O que separa os dois termos. Esta leitura do seminário
Gozo e ética na experiência psicanalítica 335

de L acan conduz a uma interpretação perversa da psicanáli se que


deveria levar à encenação para o sujeito de um cuidado do fantasma
desmentindo assim a castração que ordena o reconhecimento do real
(a Coisa) como impossível.
A meta da análise está, sim, certamente, no desejo liberado,
mas liberado justamente deste fantasma de realização e de auto-
suficiência que o ata e o ancora no imaginário ao propor-lhe uma
satisfação que desconhece o simbólico e que exclui o real. O
fantasma é a condenação do gozo que pretende representar.
No livro já citado, Pommier4" assinala o que todo psicanalista
sabe: a maioria das análises se detém a partir de um certo efeito
terapêutico e de um certo grau de realização do fantasma, efeitos que
podem inclusive durar para sempre. Deve-se lamentar que nem
todas as análises possam ser levadas até seu final lógico? Ou se deve
perguntar o que acontece com a maioria das análises que se detém
no meio do caminho quando o sujeito topa com certas metas que
coincidem com as do princípio de prazer?
O problema é de natureza ética e concerne ao bem buscado na
análise. Se a cura não coincide com o fim lógico da análise
concebido como a construção e a travessia do fantasma fundamental
e se háliappy endingssem lógica e finais “lógicos” sem cura, então,
como escolher? O analista fará bem em prosseguir com sua meta
de flexibilizar o diafragma da palavra para que o sujeito se confronte
com a verdade de seu ser, verdade limítrofe com a morte e com o
espanto de uma terra deserta cheia de cruzes que, abertas,
perguntam por quê, mas estará pronto também para reconhecer que
o sujeito pode, chegado o momento, manifestar que está em
condições de regulá-las somente com a dor de existir. L acan dizia
que quando isso acontecia, ele os deixava ir: “Uma análise não deve
ser levada demasiado longe. E suficiente quando o analisante pensa
que está feli z de viver”.41A insistência em alcançar aquele ideal
teórico da psicanálise pode se converter na imposição de um novo
ideal, em uma refantasmatização do desejo do analista, que, depois
de haver atravessado a formação imaginária que tamponava seu

40. G. Pommier.Lê dénouement d'une analyse , p. 217.


41. J. L acan (1975). Conférences aux Etats-U nis. Scilicet, n. 6-7, p. 15, 197
6.
336 Gozo

desejo, volta a erigi-lo como algo que deve se conseguir do analisante


e no qual seu “eu”, o da análise, não deixaria de estar comprometido.
Toda precaução é pouca quando se trata de fixar critérios de

atérmino da universal.
um novo análise, pois
Nãoquaisquer quesenão
pode haver sejamcritérios
implicariam
para oa término
submissão
de uma análise, infinitamente variáveis para cada análise. M elhor
ainda, critérios - como diz em seu título Gerard Pommier - de
desenlacede uma análise. E que nada permitiria assimilar o desenlace
de uma análise ao de outra. N unca se deve esquecer que, de
qualquer forma, o desejo do analista, desejo sem fantasma, “não é
um desejo puro”, mas é o “desejo de obter a diferença absoluta (...)
na qual pode surgir a significação de um amor sem limite, porque
está fora dos ilmitesda lei, em que somente ele pode viver”.42
Um amor sem limites é o amor que, de saída, renuncia a seu
objeto entendendo, como o faz a análise desde Freud, que o objeto
impõe limites ao amor e o (pre)destina à desgraça. E claro que se
trata do Freud indevidamente chamado de pessimista, o que
transcendeu aquilo que também pode ser encontrado sob sua
assinatura acerca das virtudes unitivas de Eros. A “diferença
absoluta” encontra-se no gozo, na travessia da angústia e do
fantasma dos perigos que espreitam no prosseguimento indefinido
e intransigente do desejo, a transcendência também do amor como
lugar privilegiado do reforço da imagem narcísica pelo encontro com
uma “alma gêmea”. Esta diferença absoluta que coloca se não uma
nova arte deamar, ao me nos uma con cepção do amor que vaialém
das miragens da identificação, do altruísmo, do “faça o bem sem
olhar a quem”, do “amarás a teu próximo como a ti mesmo”, do
“não faças aos outros o que não queres que façam a ti mesmo”, dos
imperativos categóricos kantiano e sadiano, da reciprocidade, da
oblatividade, da generosidade e demais belezas inscritas sob a rubrica
do “amor genital”. Sim; o fim da análise tem a ver com o amor
descarnado, sem objeto, absoluto, sem limites, sem miragens de

oharmoni
amor,a pode
ou completude
fazer , fora
com quedaolei, a particondescenda
desejo r do desejo, ali ao
onde ele,
gozo.

42. J . L acan (1964). Le seminaire. Livre XI. Les quatre conceplsfondamentaux


de la psychanalyse.Paris: Seuil, 1973. p. 249.
LIVROS PUBLICADOS PELA EDITORA ESCUTA

Psicanálise, judaísmo: ressonâncias, Renato Mezan (esg.)


Do gozo criador,Carlos D. Pérez
O manuscrito perdido de Freud, H. Haydt de S. Mello
O psicanalista e seu ofício, Conrad Stein
Elementos da interpretação, Guy Rosolato
A puhão de morte, A ndré Green et al.
Psicanálise de sintomas sociais, Sergio A. Rodriguez/Manoel T. Berlinck (orgs.)
Família e doença mental, Isidoro Berenstein
Narcisismo de vida, narcisismo de morte, AndréGreen
As Erínias de uma mãe, Conrad Stein
Notas de psicologia e psiquiatria social, A rmando Bauleo
Trauma, amor e fantasia, Franklin Goldgrub
Clínica psicanalítica: estudos, Pierre Fédida
Psicanálise da clínica cotidiana, Manoel Tosta Berlinck
O acalanto e o horror,A na L ucia C. J orge
A Representação. Ensaio psicanalítico, Nicos Nicolaídis
O desenvolvimento kleiniano I. Desenv. clínico de Freud, Donald Meltzer
Edipo africano, M arie-Cécile e Edmond Ortigues
Comunicação e representação, Pierre Fédida (org.)
Ensaios de psicanálise e semiótica, M iriam Chnaiderman
F reud e o problema do poder, L eón Rozitchner
Melanie Klein: evoluções, Elias M. da Rocha Barros (org.)
F igurações do feminino, Danièle Brun
14 conferências sobre JacquesLacan, Fani Hisgail (org.)
Introdução à psicanálise, L uis Hornstein
O aprendiz de historiador eo mestre-feiticeiro, Piera Aulagnier
O desenvolvimento kleiniano II. Des. clínico de M. Klein, Donald Meltzer
Tausk e o aparelho de influenciar na psicose, Joel Birman ( org.)
A construção do espaço analítico, SergeViderman
Um intérprete em busca de sentido -
/, Piera A ulagnier
Um intérprete em busca de sentido - II,Piera Aulagnier
Ter um talento, ter um sintoma, Denise Morei
A dialética freudiana I: Prática do método psicanalítico,
Claude Le Guen
O inconsciente: várias leituras,
Felicia Knobloch (org.)
Psicose. uma leitura psicanalítica,Chaim S. Katz (org.)

História
A rua comda histeria,
o espaço Etienne
clí Trillatde A.T. do Hospital-Dia A CASA (org.)
nico,Equipe
A clínica freudiana,Isidoro Vegh
O título da letra,J ean-Luc Nancy e Philippe Lacoue-L abarthe
Quando a primavera chegar, M. Masud R Khan
O Deus odioso. O diabo amoroso. Psicanáli se e representação do mal,Mareio
Peter de Souza Leite e J acques Cazotte
As bases do amor materno,M argarete Hilferding, Teresa Pinheiro e Helena B.
Vianna
Transferências, Abrão Slavutzky
Do sujeito à imagem. Uma história do olho em Ficud, Hervé Huot
O sentimento de identidade, Nicole Berry
Gigante pela própria natureza, Emilio Rodrigué
F reud e o homem dos ratos, Patrick J . Mahony
Nome, figura e memória, Pierre Fédida
A supervisão na psicanálise, Conrad Stein et al.
Perturbador mundo novo,SBPSP (org.)
Cidadãos não vão ao paraíso, Alba Zaluar (Co-cd.Edunicamp)
Casal e família como paciente, M agdalena Ramos (org.)
Mancar não é pecado,L ucien Israel
Crônicas científicas,Anna Verônica Mautner
Penare,Celia Eid e Maria Lucia Arroyo
A histérica, o sexo e o médico,L ucien Israel
Olho d'água. Arte e loucura em exposição, J oão Frayze-Pereira
Vida bandida,V oltaire de Souza
F iguras da teoria psicanalítica, Renato Mezan (Co-ed. Edusp)
Em busca da escola ideal, Neda Lian Branco Martins
A casca e o núcleo, Nicolas Abraham e Maria Tõrok
Ah! As belas lições!,Radmila Zygouris
Sigmund Freud. O século cia Psicanálise (3 vols.),Emilio Rodrigué
A dialética da falta,Alba Gomes Guerra ePatrícia Simões
A interpretação,Elisabeth Saporiti

Fato em psicanál
O corpo i se, Mode
de Ulisses. UPA rnidade e materialismo em Adorno e Horkheimer,Pau
lo Ghiraldelli Jr. (esg.)
Considerações sobre o psiquismo do feto, Therezinha G. de Souza Dias
IsaíasMelsohn. A psicanálise e a vida.Bela Sister e Marilsa Taffarel (orgs.)
Outra beleza. Estudo da beleza para a psicanáli se,Cláudio Bastidas
Pierre Fédida
O sitio de estrangeiro,
Haydée C. Kahtuni
Psicoterapia breve psicanalitica,
O processo analítico,IJPA
Elaboração psíquica. Teoria e clínica psicanalitica, Paulina Oymrot
A linguagemdos bebês, M arie-Claire Busnel
Uma pulsão espetacular, Psicanálise e teatro,M auro P. M eiches
Freud. Um ciclo de leituras,Silvia L. Alonso e Ana M. S. Leal (orgs.)
Cadernos de Bion I,J úlio C. Conte(org.)
O estrangeiro,C aterina Koltai (org.)
Eu corpando. O ego e o corpo em Freud,L iana A lbernaz de M. Bastos
Diálogos, Gilles Deleuze e Claire Parnet
O sintoma da criançae a dinâm ica do casal,Isabel Cristina Gomes
A escuta, a transferência e o brincar,IJPA
Sexo,Rosely Sayão(Co-ed. V ia Lettera)
A prova pela fala, Roland Gori (Co-ed.UCG)
Marie-Jose Del Volgo (Co-ed.UCG)
O instante de dizer,
O desenv. kleiniano III. O significado clínico da obra de Bion,D onald Meltzer
Achados chistosos da psicanálisenas crônicasdeJ .Simão,J anedeAlmeida (Co-E duc)
A história de Tobias. Um estudo sobre o aninuis e o pai,Fabíola Luz
F reud e a consciência, Oswaldo França Neto
Putsões de vida,Radmila Zygouris
Palavras cruzadas entre Freud e Ferenczi,L uis Cláudio Figueiredo
Transferência, sedução e colonização, IJPA
Febem, família e identidade. O lugar do Outro. Isabel Kahn Marin
A criança adotiva na psicoterapia psicanalitica, Gina K. Levinzon
Mosaico de letras. Ensaios de psicanálise, Urania Tourinho Peres
Cadernos de Bion II,J úlio César Conte (org.)
Memórias de um autodidata no Brasil, M auricio Tragtemberg
L uís Cláudio Figueiredo e Nelson Coelho Jr.
Ética e técnica em psicanálise,
A arte do encontro de Vinícius de Moraes,Sonia Alem Marrach
Educação para o futuro. Psicanálise e educação, M, Cristina M. Kupfer
Política epsicanálise. O estrangeiro, Caterina K oltai
Nas encruzilhadas do ódio, M icheline Enriquez
Aids. A nova desrazão da hum anidade, Henrique F. Carneiro
O problema da identificação em Freud, Paulo de Carvalho Ribeiro
Catástrofe erepresentação, A rthur Nestrovski e M árcio Seligmann-Silva (orgs.)
Conformismo, ética, subjetividade e objetividade, IJPA
A histérica entre Freud e Lacan, M onique David-Ménard
Como a mente humana produz idéias, J . Vasconcelos
Mulher no Brasil. Nossasmarcas e mitos, Marisa Belém
A clínica conta histórias,L ucia B Fuks e Flávio C. Ferraz (orgs.)
O olhar do engano. Autismo e outro primordial, L.ia Ribeiro Fernandes
Doença ocupacional, Marina Durand
Os avatares da transmissão psíquica geracional,Olga B. R. Correa (org.)
Abertura para uma discoteca,
Roland de Candé
A conversa infinita- l. A palavra plural, Maurice Blanchot
A morte de Sócrates. Monólogo filosófico,Zeferino Rocha
Cenários sociais e abordagem clínica, J osé Newton Garcia de Araújo e Teresa
Cristina Carreteiro (orgs.) (Co-Fumec)
O que é diagnosticar em psiquiatria, J orge J Saurí
A constituição do ni consciente em práticas clínica na França do século XIX,Sid-
nei J osé Cazeto
Narcisismo, superego e o sonhar, IJPA
Psicofarmacologia e psicanálise,M. C ristina Rios M agalhães (org.)
A Escola Livre de Sociologia e Política. Anos de F ormação 1933-1953. De
poimentos,íris K antor, D ébora A . M aciel, J úlio A ssis Simões (orgs.)
Linha de horizonte - por uma poética do ato criador,
Diagnóstico compreensivo simbólico. Uma psicossom Edith
ática Derdyk
para a práti
ca clíni
ca, Susanade AlbuquerqueLins Serino
O carvalho e o pinheiro. F reud e o estilo romântico, Ines L oureiro
O conceito de repetição em F reud, L ucia Grossi dos Santos (co-F umec)
Driblando a perversão. P sicanálise, futebol e subjetividade brasileira, Cláu
dio Bastidas
O cálculo neurótico do gozo, Christian n I go Lenz Dunker
Psicanálise e educação. Questões do cotidiano, Renate Meyer Sanches
Espinosa. F ilosofia prática,Gilles Deleuze
Os gregos e o irracional, E. R. Dodds
Vínculos e instituições. Uma escuta psicanalítica, Olga B. Ruiz Correa (org.)
Em torno de O mal-estar na cultura de Freud, J acques Le Rider, Michel Plon,
Gérard Raulet, Henri Rey-Flaud
Personalidade, ideologia e psicopatologia crí tica,Virginia Moreira e Tod Sloan
Encontros e desencontros entre Winnicott e Lacan, Perla Klautau
Figuras clínicasdofeminino no mal-estar contemporâneo,Silvia Alonso et.al. (orgs.)
Psicopatologia psicanalítica e outros estudos, IJPA
O gozo en- cena. Sobre o masoquismo e a mulher,Eliane Z. Schermann
Anne Dufounnant elle convida J acques Derrida a falar Da hospitalidade, Anne
Dufourmantelle/Jacques Derrida
Os rumos da psicanálise no Brasil: um estudo sobre a transmissão psicanalítica,
Eliana Araújo Nogueira do Vale
Psicanálise. Elementos para a clínica contemporânea,Luís Cláudio Figueiredo
Psicologia do desempenho. Corpo pulsional & corpo mocional,J osé Luis Moraguès
Memória e exílio, Sybil Safdie Douek
Desafios para a psicanálise contemporânea,Lúcia B. Fuks e Flávio C. Ferra?, (orgs.)
Os caminhos do trauma em N. Abraham e Maria Torok, Suzana P. Antunes
Universidade e governo. Professores da Unicamp no período FHC. Mônica Tei
xeira (org.)
Envelhecer com desenvolvimento pessoal, Ana Maria S. R. Varella
Mudanças no relacionamento afetivo-sexual, Tânia da G. Nogueira (co-Fumec)
F alar em público. Experiência de mal-estar na trajetória profissional contempo
rânea,Nazildes Lôbo
TPM - Tensão, paixão e mal-estar. A subjetivação de uma mulher em tensão
pré-menstrual.J uçaraRocha SoaresMapurunga
MelanieKlein. Estilo e pensamento, M. Elisa de Ulhoa Cintra e L uis Cláudio Fi
gueiredo
Ética e finitude,Zeljko Loparic
Transferência, contratransferência e outros estudos, IJPA

A formação do psicólogo, J oão L . Ferreira Neto (Co-Fumec)


A dominação do corpo no mundo administrado, Conrado Ramos
O analista trabalhando,IJPA
Eliana dos Reis Calligaris
Prostituição: o eterno feminino,
Cruzamentos 2. Pensando a violência, Fernando Kunzler e Bárbara Conte (orgs .)
A violência no coração da cidade. Um estudo psicanalítico,Paulo Cesar Endo
Renate Meyer Sanches (org.)
Winnicott na clínica e na instituição,
Perversãoem cena,Eliane Chermann Kogut
Autoritarismo afetivo. A Prússia como sentimento, Gisálio Cerqueira Filho
Dialética da vertigem. Adorno e a filosofia moral, Douglas Garcia A lves J unior
(co-Fumec)
Glaucia Dunley (Co-Fiocruz)
A festa tecnológica,
História da psicanálise. São Paulo 1920-1969, Carmen Lucia M. V. de Oliveira
Memória da língua. Imigração e nacionalidade, M aria Onice Paye
Sobre arte epsicanáli se, Tania Rivera e V ladimir Safatle (orgs.)
O sintoma e suas faces, L ucia B. Fuks e Flávio C. Ferraz (orgs.)
Controvérsias psicanalíticas,IJPA
Tornar-se herdeiro. A transmissão psíquica entre gerações, T atiana Inglez-
Mazzarella
COLEÇÃO
BIBL IOTECA DE PSICOPATOL OGIA FUND AM ENTAL
Melancolia, Urania Tourinho Peres (org.)
Histeria, Manoel Tosta Berlinck (org.)
Autismos,Paulina S. Rocha (org.)
Depressão,Pierre Fédida
Pânico e desamparo, M ario Eduardo Costa Pereira
Anorexia e bulimia,Rodolfo Urribarri (org.)
Dor, M anoel Tosta Berlinck (org.)
Toxicomanias, Durval Mazzei Nogueira Filho
Paulo Roberto Ceccarelli
Diferenças sexuais,
Zeferino Rocha
Os destinos da angústia na psicanálise freudiana,
Hysteria,Christopher Bollas
Psicopatologia fundamental, Manoel Tosta Berlinck
Culpa, Urania T. Peres (org.)
A paixão silenciosa,M aria Helenade Barrose Silva
Clínica da melancolia,A na Cleide G. M oreira (C o-E dufpa)
D epressão, estação psique. Refúgio, espera, encontro, Daniel Delouya
Hipocondria, M. A isenstein, A. Fine e G. Pragier (orgs.)
Dos benefícios da depressão. E logio da psicoterapia, Pierre Fédida
Superego,M arta RezendeCardoso
Angústia,Vera Lopes Besset
Doenças do corpo e doenças da alma, L azslo A. Ávila.
Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Edilene Freire de Queiroz e Antonio
Ricardo Rodrigues da Silva (orgs.)
Violências,Isabel da Silva Kahn Marin
Psicopatologia dos ataques de pânico, Mário Eduardo CostaPereira
Masoquismo mortífero e masoquism o guardião da vida, Benno Rosenberg
A bulimia, B. Brusset, C. Couvreur, A. Fine (orgs.)
A neurose obsessiva, Bernard Brusset e Catherine Couvreur (orgs.)
Limites,Marta Rezende Cardoso (org.)
O eu e o corpo, Lazslo A. Ávila
A clínica da perversão, Edilene Freire Queiroz
Maria Virgínia Filomena Cremasco Grassi
Psicopatologia e disfunção erétil,
Obsessiva neurose, Manoel T. Berlinck (org.)
Adolescentes, MartaRezende Cardoso (org.)
Imperativos do supereu, M arta Gerez Ambertín
Traumas, A na M aria Rudge (org.)
A fenomenologia das psicoses, Arthur Tatossian
COLEÇÃ O — INFÂNCIA E PSICANÁ LISE
Rumo à palavra. Três crianças autistas empsicanálise,M.-Christine L aznik-Penot
Sublimação da sexualidade infantil, Paulo A. Buchvitz
Silvia Abu-J amra Zornig
A criança e o infantil em psicanálise,
A história da psicanálise de crianças no Brasil,J orge Luís Ferreira Abrão
O lugar dos pais na psicanálise de crianças,Ana M aria Sigal de Rose mberg
0 que a psicanálise pode ensinar sobre a criança, sujeito em constituição,Leda
M ariza F. Bernardino (org.)
Cata-ventos. Invenções na clínica psicanalitica institucional,Paulina S. Rocha
(org.)
COLEÇÃO — O SEXTO LOBO
Hello Brasil!, Contardo Calligaris
Luiz Tarlei de Aragão (org.)
Clínica cio social. Ensaios,
Exílio e tortura,Maren e Marcelo Vinar
Extrasexo. Ensaio sobre o iransexualismo, Catherine Millot
Alcoolismo, delinqüência, toxicomania. Charles Melman
Imigrantes. Incidências subjetivas das mudanças de língua e país, Charles
M elman
F antasia de Brasil, Octavio Souza
Modos de subjetivação no Brasil e outros escritos,L uis Cláudio Figueiredo (Co-
Educ)
A face eo verso. Estudos sobre o homoerotismo - II,J urandir Freire Costa
O que é ser brasileiro? Carmen Backes
COLEÇÃO — ENSAIOS

Merleau-Pontv. F ilosofia como corpo e existência,Nelson Coelho Jr. e Paulo Sér


gio do Carmo
O inconsciente como potência Subversiva, Alfredo Naffah Neto
O pensamento japonês, Hiroshi Oshima
Comunicação e psicanálise,J eanne Marie Machado deFreitas
Clarice Lispector. A paixão segundo C.L.,Berta Waldmann
A pulsão anarquista,Nathalie Zaltzman
Luís Cláudio Figueiredo (Co-Educ)
Escutar, recordar, dizer,
Sintoma social dominante e moralização infantil,Heloísa Fernandez (Co-
Edusp)
Na sombra da cidade, Maria Cristina Rios Magalhães (org.)
Estados-da-alma da psicanálise,J acques Derrida
Radmila Zygouris
O vínculo inédito,
Nem todos os caminhos levam a Roma. Radmila Zygouris
COLEÇÃO — TÉL OS
François Perrier
Ensaios de clínica psicanalítica,
A formação do psicanalista,François Perrier
Afeto e linguagem nos primeiros escritos de Freud, M onique Schneider
Como a interpretação vem ao psicanalista,René M ajor (org.)
COLEÇÃ O — L INHAS D E FUG A

A invenção
Limiares dodo L uís
psicológico,
contemporâneo, Cláudio
Rogério daMCosta
endonça Figueiredo (Co-Educ)
(org.)
A psicoterapia em busca de Dioniso, Alfredo Naffah Neto (Co-Educ)
As árvores de conhecimentos, Pierre L évy e Michel Authier
As pulsões,A rthur Hyppólito de M oura (org.) (Co-Educ)
COL EÇÃ O — TRANS VESS AS
O corpo eróge
no. Uma introdução a teor
ia do complexo'e EdipoSerge Ixclaire
CO LEÇÃO _ PLET HO !

A palavra in sensata.Suzana
Contratransferência, Poesia Alves
c psicanál
ise, Eliane For.eca
Viana
Poética do erótico, Samira Chalhub
A Escola. Um enfoquefenomenológico. Vitória Helen Cunha Espósito
Psicanálise, política, lógica, Célio Garcia
A eternidade da maçã. Freud e a ética,Flávio Carvalb Ferraz
A cara e o rosto. Ensaio de Gestalt Terapia,Ana Mari L offredo (esg.)
Pacto Re-Velado. Psicanálise e clandestinidadepolitic, Maria Auxiliadora de Al
meida Cunha Arantes
A poesia, o mar e a mulher: um só Vinícius,Guaraciah Micheletti
Psiquismo humano, M arco Aurélio Baggio
Semiótica da canç ão. Melodia e letra,Luiz Tatit
A cientificidade da psicanálise. Popper e. Peirce, Elisabth Saporiti
A força da realidade na clínica freudiana, Nelson Codio Junior
Corpoafecto: o psicólogo no hospital geral, Marilia A M uylaert
Crianças na rua.A na Carmen Martin del Collado
Um olhar no meio do caminho, Sônia Wolf
Os dizeres nas esqiiizofrenias.Uma cartola sem fundoMariluciNovaes
COLEÇÃO - FILOS OF IA NO RA SIL
F reud na filosofia brasileira, Leopoldo Fulgencio e Rioard T. Simankc (orgs.)
Kant no Brasil.Daniel Omar Peres (org.)

Título Gozo
Projeto Gráfico Diogo Angelo/.i Rossao
Diagramação Diogo Angelozi Rossao
Revisão Tereza C ristina P. T eieira
F ormato 14x21 cm
Tipologia Times New Roman (1,5/12,5)
Papel Cartão Royal 25()g (caa)
Off set 75g (miolo)
Número de páginas 344
Tiragem 1 000
Impressão Gráfica e Editora Vida: Consciência
Os sucessivos desenvolvimentos
e seus efeitos sobre a teoria do
inconsciente, a sexualidade e
a ética permitem vincular o
gozo a questões tão urgentes
como a drogadiçào, as psicoses,
as formas da angústia
contemporânea e o debate
sobre as perversões.

N éstor B raunstein é médico e


psicanalista. Antes de seu exílio
da A rgentina foi professor na
Universidad Nacional deé
Córdoba, e atualmente
professor na pós-gradução da
Facultad de Psicologia de la
Universidad Nacional
A utónoma de México e
encarregado de uma cadeira
extraordinária na Facultad de
Filosofia y Letra de la
UNAM.
É permanentemente convidado
a dar cursos e seminários sobre
a teoria e a clínica lacaniana
em universidades e instituições
psicanalíticas da A mérica do
Norte, A mérica do Sul, Europa
e Ásia. De sua recente produção
destacamos os livrosiccionario
F
de psicoa nálisis e Por el caminho
de Freud, ambos publicados
pela Siglo XXI.
Em 1990 foi publicada pela
Siglo XXI a primeira versão

deste livro.
tornou Desde
a obra então, ele
de consulta maisse
citada e recomendada para
elucidar as dificuldades do
célebre conceito de J acques
Lacan, que coroa e dá sentido
ao conjunto do pensamento
psicanalítico tal como aparece
desde os primeiros trabalhos
de Sigmund Freud.
Anos mais tardes, após a
tradução para o francês, o
percurso internacional da obra
fez com que se acrescentassem
comentários, tendo sido
necessárias atualizações
bibliográficas e correções,
além de uma consideração de
novos temas que não faziam
parte da versão srcinal.
O autor efetuou uma revisão
completa do texto e, em seu
conjunto, esta edição
aumentada pode ser
considerada definitiva.
Entre a satisfação profunda e
a plenitude sexual, intelectual
ou espiritual, entre o prazer
próprio e o do outro, entre a
proibição e o desejo,
apresentadas em as noções
Gozo persistem
na tradição renovadora da
teoria e da clínica psicanalítica.
mÊm
A “diferença absoluta” encontra-se no gozo, na
travessia da angústia e do fantasma dos perigos
que espreitam no prosseguimento indefinido e
intransigente do desejo, a transcendência
também do amor como lugar privilegiado do
reforço da imagem narcísica pelo encontro com
uma “alma gêmea”.
0 auto-erotismo conduz por suas vias ao prazer e
este prazer é razão de um gozo paradoxal, o gozo da
transgressão, dos remorsos, do castigo imposto pelo
Outro que leva a contabilidade do gozo, que está
preocupado pelo que o sujeito experimenta com
seu corpo, que esgrime o chicote, a loucura ou as
chamas do inferno como argumentos de sua lei.
... o inconsciente é deciframento do gozo e seus
produtos são suscetíveis de interpretação. A práxis
da análise consiste em intervir sobre o discurso
desarmando a trama de significações para que
aflore esse gozo do deciframento de um saber que
não é saber de ninguém do qual alguém, o sujeito,
é o efeito, o filho.
Regozijo.

%
escuta

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