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Costa, Ronaldo Pamplona da. 1941.

Os onze sexos: as múltiplas faces da sexualidade humana / Ronaldo


Pamplona da Costa. São Paulo. Editora Gente, 1994.
A apresentação segmentada tem apenas um objeti-
vo prático: o de facilitar a leitura e a compreensão. Nas
escalas que você vai encontrar nos primeiros capítulos
e na Conclusão, os segmentos A, B, C, D e E não
expressam a proporção de pessoas contidas em cada um
deles, pois essa quantificação depende de pesquisas
cientificas que deverão ser realizadas.
Os casos relatados são todos reais. Nomes, profissões
e eventualmente detalhes de situações foram alterados em
respeito à ética médica, salvo aqueles recolhidos direta-
mente da mídia e que são de domínio público.
Ainda não completamos nossos estudos a respeito
da função dos hormõnios e das complexas redes do
sistema nervoso sobre a sexualidade. Esses aspectos
A VAl?Tr= r= () T()()()
estão inseridos neste trabalho apenas a titulo de infor-
mação geral.
Neste livro estamos apresentando uma visão de
Sexualidade é o termo que se refere ao conjunto de sexualidade que não se atém especificamente à vida
fenómenos da vida sexual. Ela é o aspecto central de sexual, propriamente dita, e sim a uma visão mais ampla
nossa personalidade, por meio da qual nos relacionamos do ser humano. O papel de gênero, masculino ou femi-
com os outros, conseguimos amar, ter prazer e procriar. nino, é a base para o desenvolvimento de todos os
Entendemos o ser humano como um todo, indivisí- demais papéis sociais. Portanto, é impossível dissociar
vel. Nossas partes podem e devem ser estudadas em esse primeiro papel de gênero da sexualidade, à qual
separado, mas não confundidas ou tomadas pelo todo. está diretamente vinculado.
Quando se implanta uma ponte safena, não se faz isso A sexualidade é o aspecto mais conflituoso, contro-
apenas num coração, um órgão que pulsa e faz circular verso e desconhecido do ser humano. A nossa cultura
o sangue pelo corpo. lida mal com esse importante aspecto da vida e, para
Na verdade, opera-se um coração que está no corpo agravar, cria modelos estanques nos quais pretende
vivo de um ser humano, que tem nome, profissão, encaixar e classificar as pessoas. Esses moldes, muitos
família, medo, inquietudes, dúvidas, necessidades. Não dos quais baseados apenas no preconceito e na falta de
é só o coração que precisa ficar bom, sarar, mas sim o informação, não nos permitem que sejamos exatamente
ser humano ao qual essa pequena parte pertence. aquilo que somos ou que poderíamos ser.
Este livro pretende abordar a sexualidade como A dimensão total do ser humano tem três aborda-
gens básicas que são a biológica, a psicológica e a social.
parte integrante dos seres humanos, com suas sensa-
Essas três bases são inter-relacionadas e inseparáveis.
ções, conflitos e relacionamentos sociais. O presente
A abordagem biológica nos diz que temos um corpo
trabalho exclui os distúrbios sexuais, que são como fisico, que sentimos, que vemos, e que somos vistos. A
sintomas secundários de doenças mentais. abordagem psicológica nos remete a nossa mente, ao
nosso psiquismo, as nossas emoções mais primárias, aos Esse movimento afetivo e emocional de mão dupla
nossos afetos, aos nossos desejos, as nossas fantasias, aos é responsável pela dinâmica do funcionamento das
nossos sonhos. O mundo social é o mundo que nos rodeia, pessoas, a dois, a três ou em grupo. Quando essas
povoado de outros seres, inseridos na natureza ou naquilo capacidades inatas não são bem desenvolvidas, em
em que o homem a transformou, as cidades. funçâo do ambiente onde crescemos, podem acabar se
O nosso corpo "contém" o psicológico e está no distorcendo. Essas três potencialidades sâo "motores"
mundo em relaçâo com as outras pessoas. É impossível para o desenvolvimento da identidade sexual. Nossa
pensarmos em um desses três compartimentos de forma teoria é que a identidade sexual pode ser dividida em
estanque. O ser humano não pode ser visto só pelo seu três aspectos: identidade genital, identidade de gênero
corpo, porque sem o psiquismo ele está morto. e orientação afetivo-sexual.
Um homem apenas "psicológico" também não exis- O corpo e o psiquismo precisam do social para se
te, porque ele se expressa por meio da fala, da postura completar. E no social nos expressamos e nos relacio-
e do corpo. Além disso, um ser humano, com corpo e namos através de papéis. Estamos também fazendo uma
mente perfeitos, não sobrevive se não estiver EM RELA- distinção entre papéis sociais de gênero e o papel afetivo-
çÃO com outras pessoas. sexual. Para que possamos exercer a nossa sexualidade
Todos, quando nascemos, trazemos dentro de nós em toda a plenitude é indispensável que o corpo seja
três potencialidades a serem desenvolvidas. A esponta- provido das necessidades básicas e o psiquismo tenha os
neidade, a criatividade e o fator tele: . A espontaneidade três fatores inatos desenvolvidos. Isso, no entanto, só é
é a capacidade de responder adequadamente a uma possível a partir da convivência com outros seres.
situação nova ou dar uma resposta diferente a uma Um ser humano completo, porém, só pode ser enten-
situação antiga. dido dessa forma se tiver a sua cidadania e seus direitos e
Essa adequação se refere, antes de mais nada, a nós deveres garantidos por leis. Se tiver direito ao trabalho, à
mesmos. Nesse sentido, ser espontâneo é estar presente moradia, à educação, à saúde, ao voto, à participação nos
"de corpo e alma" nas relações existentes a nossa volta. governos e, no tema de que estamos tratando, o direito de
A espontaneidade, por outro lado, é o fator que nos exercer a sua sexualidade independentemente da forma
permite ser criativos, ou seja, criar algo novo. como ela se exteriorizar.
A criança, ao nascer, traz consigo o chamado fator Isso significa respeito ao seu corpo e aos seus
tele em seu psiquismo, que em grego quer dizer à sentimentos, bem como aos das outras pessoas. Se houver
distância, e significa que todos nós, já nos primeiros um mínimo dessas condições, o individuo poderá se de-
anos de vida, somos capazes de, aos poucos, ir perce- senvolver saudavelmente e assumir os papéis por meio dos
bendo as outras pessoas com quem nos relacionamos, quais vai se relacionar com seus semelhantes.
da forma mais aproximada possível de como elas são, na Aquilo que afirmamos ser indissociável, ou seja,
mesma medida em que também nos sentimos, e somos, corpo, mente e aspectos sociais, aparecem em capítulos
percebidos. separados ao longo deste livro apenas para facilitar a
leitura e a compreensâo de um tema tão complexo. Os
1. Conceitos desenvolvidos pelo médico romeno J. L. Moreno componentes da sexualidade humana, descritos em se-
(1889-1974), criador do psicodrama e da terapia de grupo, que parado na primeira parte deste livro, também são total-
emigrou para os EUA, onde completou e aplicou suas teorias. mente interligados e interdependentes.
A cada capítulo do livro você vai se deparar com
"fragmentos" que compõem um "caleidoscópio". A reu-
nião das escalas que estamos propondo permitirá que
você. quando chegar à Conclusão. gire esse "caleidoscó-
pio". fazendo surgir as mais diversas "imagens" da se-
xualidade humana.
Não estamos afirmando que essas "imagens" são
definitivas.
Mas são como nós as vemos. Hoje.

o Autor
São Paulo. Setembro de 1994.

COMPONENTES DA
SEXUALIDADE HUMANA
1

CAMI/IllI/ti()§ ()CULT()§

Você, que está lendo este livro, foi gerado e nasceu.


Isso é óbvio. Tanto que você nem se dá conta. Quando
você nasceu, os seus pais, sua família ou os médicos da
maternidade também não tiveram dúvidas. Tratava-se
de um menino ou de uma menina.
No entanto, por trás do que parece tão natural, há
uma complicada "obra de engenharia". Essa "constru-
ção" precisa ser "bem-executada" desde o primeiro ins-
tante, para que hoje você seja o que é: um homem ou
uma mulher. Ou, do ponto de vista biológico, um ser
humano macho ou um ser humano fêmea.
Alguns "projetos", no entanto, têm pequenos
erros de cálculo, que podem levar a resultados ines-
perados. Embora esses "erros" sejam raros, algumas
crianças nascem sem serem totalmente fêmeas ou
totalmente machos.
Para ter uma idéia do que é o corpo humano, basta
saber que somos formados pelo gigantesco número de
la trilhões de células, e que todas elas estão interliga-
das. Umas não funcionam sem as outras. Esses grupos
de células formam os órgãos que nos permitem comer, mano poderá seguir o caminho feminino. masculino. ou
pensar, amar. Enfim. existir. um terceiro. como veremos ao longo deste livro.
No centro de cada uma dessas células estão 23 Do ponto de vista da Biologia. o sexo pode ser
pares de corpúsculos, os cromossomos, que contêm os cromossômico. gonadal e genital. Cromossômico é o sexo
genes. responsáveis por nossas características fisicas. identificado pelos pares xx e xy. Sexo gonadal está
São os genes. imaginados como um "rosário de contas", relacionado com um tipo especial de glândulas. ou
que vão definir se nossos olhos serão castanhos ou gônadas, na linguagem científica. Essas glândulas sâo
azuis. se o cabelo será ondulado ou crespo. se seremos os ovários da futura mulher e os testículos do futuro
altos ou baixos. se calçaremos 38 ou 42. Até mesmo se homem.
teremos predisposição para sofrer do coração, pulmão
Finalmente. sexo genital sâo os órgãos sexuais visí-
ou de outras doenças.
veis. Nos homens. o pênis e a bolsa escrotal. Nas mulhe-
Um par de cromossomos. os cromossomos sexuais. res. a vulva. a vagina e o clitóris.
é o responsável. ou culpado. dependendo de como se enca-
Não estamos falando de "sexos" diferentes. Apenas
re a vida. por nascermos homem ou mulher. Na mulher.
lembrando que sexo não é só aquela parte íntima do
esse par foi batizado de xx, e no homem o par é xy.
corpo que costuma ficar bem escondida debaixo da
Ao contrário do que ocorre com todas as células do roupa. O sexo também está dentro do corpo. Mais
corpo. o espermatozóide e o óvulo contêm apenas 23 adiante veremos que ele está principalmente na cabeça.
cromossomos cada. e não 23 pares. e só sobreviverão se
A fecundação ocorre quando um espermatozóide do
puderem juntar-se. O espermatozóide morre horas de-
homem penetra no óvulo da mulher. Esse encontro
pois da ejaculação. e o óvulo não-fecundado é expelido
acontece nas trompas. região próxima ao útero. Quando
mensalmente pela menstruação. No óvulo. o cromosso-
o homem ejacula, cerca de 100 milhões de espermato-
mo é sempre x. enquanto os espermatozóides presentes
zóides se deslocam em "grande velocidade" para as
na ejaculação podem ter o cromossomo x ou y.
trompas e não há qualquer pista sobre "quem" vencerá
O encontro desses dois cromossomos. no ato da a corrida.
fecundação. é o começo do futuro ser.
Se o espermatozóide mais veloz trouxer dentro de si
um cromossomo x, este. ao juntar-se com o x do cromos-
somo feminino, dará origem a uma menina. Por outro
lado, se "no campeâo" estiver presente o cromossomo y.
Durante o tempo de gestação, todos nós passamos começará a ser gerado um menino. Quem define o sexo
por momentos cruciais de definição biológica. O psicó- biológico da futura criança é sempre o pai.
logo clínico norte-americano John Money chama esses A fecundação é a primeira encruzilhada pela qual
"momentos", significativamente. de quatro encruzilha- passa o desenvolvimento da sexualidade humana.
das l . Para Money, são encruzilhadas porque o ser hu- embora nesse momento exista apenas uma única
célula. chamada ovo.
1. John Money, psicólogo clínico norte-americano, estudioso e
pesquisador de intersexos no HospitalJohns Hopkíns, Universida- Quatro dias após a fecundação. o ovo alcança a
de de Baltimore, EUA. cavidade do útero e já tem, mais ou menos. cem células.

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Ao longo das primeiras semanas. o embrião desenvolve Caso esteja em gestação o embrião de uma futura
os órgãos rudimentares. Nesse momento. ele tem "bro- menina. "não precisa acontecer nada". Nenhum "motor
tos" tanto da estrutura sexual masculina quanto da precisa ser ligado". Quando o par é xx (mulher), a
feminina. estrutura de Wolff fica quieta em seu canto, sem dar
Esses "brotos" são minúsculas estruturas. uma sinal de vida.
espécie de filamento. Elas foram descobertas por dois Nos embriões femininos. a estrutura de Müller leva
embriologistas alemães, Caspar Wolff e Johannes Mül- à formação dos ovários. Mas. como no caso anterior.
ler. há dois séculos. também as mulheres vão sempre ter dentro de si "peda-
Wolff descobriu a estrutura que contém a potencia- ços" da velha estrutura masculina de Wolff.
lidade para o desenvolvimento sexual de um ser humano Biologicamente falando, por mais estranho que isso
masculino. A estrutura que leva ao desenvolvimento possa soar. é como se a "tendência natural" dos seres
feminino foi descoberta por Müller. São essas estruturas humanos fosse sempre ser mulher. Isso "só" não acon-
que darão origem aos órgãos sexuais internos e externos tece porque o cromossomo y do par xy (homem) é "um
do homem e da mulher. inconformado", e logo que pode desencadeia uma forte
Até o final do segundo mês. embora traga dentro de reação química no embrião para que ele se desenvolva
si uma combinação de cromossomos que o definirá como como macho.
homem ou mulher. o embrião. do ponto de vista sexual,
Essa é a segunda encruzilhada da vida. Nesse mo-
é "neutro".
mento. os cromossomos não podem bobear. Se eles não
enviarem "mensagens" corretas. isso causará uma gran-
de complicação nos órgãos sexuais internos e. mais à
frente. nos externos. como acontece com as crianças que
A partir da sétima semana de gravidez, o cromosso- nascem com a genítálía dúbia ou malformada.
mo y (do par xy) sente uma "irresistível" necessidade de
ativar a estrutura de Wolff, o lado masculino do embrião.
Por meio de uma combinação química, ele indica que ()UTI2() UI:SÁf'I()
está na hora de serem formados os testículos.
Os testículos, que após o nascimento descerão para Quando chega o terceiro mês de gravidez o embrião
a bolsa escrotal do menino, são glândulas especializadas tem que enfrentar a terceira encruzilhada. O desenvolvi-
na produção de hormônios sexuais e espermatozóides. mento do embrião vai caminhando bem. no conforto do
O desenvolvimento dos testículos, ainda no embrião. é útero matemo. Esse clima de tranqüilidade é. na verda-
fundamental para que todo o aparelho sexual masculi- de. aparente. Todas as partes de seu organismo conti-
no. interno e externo. seja adequadamente formado. nuam em intensa atividade.
Quando o cromossomo y "liga o motor" da estrutura A decisão agora sobre o caminho a ser seguido ficará
de Wolff, a estrutura de Müller, feminina. se retrai, não por conta de uma complexa combinação de substãncias
se desenvolve. Mas continua existindo. não desaparece. químicas. os hormônios sexuais, produzidos pelos tes-
Todos os homens carregam. até o fim de suas vidas. tículos no embrião masculino ou pelos ovários no em-
fragmentos da estrutura feminina de Müller. brião feminino.

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Se o bebê em gestação for fêmea, o tubérculo genital
Os hormônios sexuais são responsáveis pelo desen-
continua pequeno e se transforma no clitóris. As duas
volvimento dos demais órgãos genitais internos ou ex-
pregas de pele não se fundem e formam os pequenos
ternos, femininos ou masculinos. Tanto os testículos
lábios e a cobertura do clitóris, e as duas protuberân-
quanto os ovários produzem os mesmos tipos de hormô-
cias ficam separadas e formam os grandes lábios.
nios, apenas em quantidade e em combinações diferen-
tes, dependendo do sexo. Com o mesmo material forma-se a genitália externa
do bebê macho. O tubérculo genital cresce e dá origem
Se tudo correr bem, a mistura hormonal no embrião
ao pênis, as duas pregas de pele se fundem para formar
masculino levará formação das vesículas seminais, da
à

a uretra e as duas protuberáncias se fecham, constituin-


próstata, do epidídimo e dos canais deferentes. Caso
do a bolsa escrotal.
esteja em gestação um ser do sexo feminino, e se a sua
mistura hormonal teve dosagem correta, seu desenvol- Antes de se declarar a guerra dos sexos com base
vimento será natural, com a formação do útero, das apenas nas diferenças da genitália, é bom lembrar que
trompas e da parede superior da vagina. na "construção desses aparelhos" foi utilizada a mesma
matéria-prima.

Nem tudo está completo. Os órgãos genitais Até agora, da fecundação ao nascimento, parece que
internos já se formaram mas, no quarto mês de o nosso piloto automático seguiu risca, em cada uma
à

gravidez, nem mesmo com um exame de ultra-som é das quatro encruzilhadas, o plano de vôo, tomando o
possível identificar o ser em gestação como um me- rumo certo. No entanto, embora isso quase nunca acon-
nino ou uma menina. Falta uma parte vital: a geni- teça, mesmo os melhores mapas de navegação têm
tália externa. Vital porque é nesse órgão que a falhas.
sociedade se baseia para designar o sexo de nasci- O hermafrodita é o resultado de uma dessas falhas.
mento: macho ou fêmea. Ele é um ser que não seguiu um desses dois caminhos,
Chegou o momento da "moldagem" dos órgãos se- normais para quase todas as pessoas. Ele é um inter-
xuais externos. Chamamos de "moldagem" porque o sexo. Logo na primeira encruzilhada a sua combinação
"material" que vai formar o órgão sexual masculino e cromossômica se complicou. Ele não tem o par xy ou xx,
feminino é exatamente o mesmo. Essa é a quarta encru- mas uma mistura desses, numa variação que pode ser
zilhada. muito grande.
Entre o terceiro e o quarto mês de gravidez, o feto, Esse problema surgido no ato da fecundação pode
tanto o masculino quanto o feminino, apresenta, na levar um hermafrodita, na segunda encruzilhada, a
região localizada entre as pernas, uma estrutura cha- desenvolver um testículo e um ovário ao mesmo tempo,
mada de tubérculo genital, duas faixas de pele e uma ou um único órgão, chamado ovotéstis, onde estão
pequena protuberância de cada lado. mesclados testiculos e ovário.
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o mesmo vai ocorrer nas outras duas encruzi- Depois da adolescência, tanto um homem como
lhadas, quando os órgãos sexuais internos são mal- uma mulher. que tenham nascido com um corpo nor-
formados. indefinidos e não têm funcionamento mal de macho ou fêmea. podem. com hormônios ou
normal. Isso também ocorre com os genitais exter- cirurgias, "adquirir" caracteres sexuais secundários do
nos. que são dúbios e incompletos. Na realidade. não sexo oposto.
existem hermafroditas com genitais masculino e O desenrolar de nossa existência não é uma linha
feminino inteiramente formados e conjugados. Isso reta, tenhamos ou não consciência disso, queiramos
é um mito. ou não.
Essas e outras anomalias são raras e atingem A verdade é que. aos poucos. a decisão sobre o
apenas uma pequena parcela dos recém-nascidos. caminho a seguir vai passando das mãos da Natureza
Nem todos podem ser consideradas verdadeiros her- para as nossas próprias mãos.
mafroditas e apenas um médico poderá fazer um
diagnóstico correto.

() VÁV~L ()() CÁl?TÚl?I()

É preciso fazer uma distinção entre o sexo genital.


que é aquele com o qual nascemos. e o sexo registrado
em cartório. Para as crianças que nascem com a genítá-
lia normal, o erro no momento do registro não existe.
No entanto, bebês com algum problema relacionado
à formação dos órgãos sexuais, às vezes de fácil correção
I -ESCALA DO SEXO BIOLÓGICO
pela Medicina. podem ser registrados com o sexo troca- (FENÓTIPO)
do, causando a essas futuras pessoas dificuldades imen-
sas. Um casal que tenha um bebê com a genitália dúbia MACHO ItITER5EXOS FÊMEA
deve procurar orientação médica. o quanto antes, retar- MACHO com caracteres
sexuais (hermafrodita)
com caracteres
sexuais FÊMEA
sscundórlos secundórlos
dando o registro de nascimento até que se possa ter de MACHO
de FÊMEA
certeza do sexo da criança. A c o
A Ciência avança e novos tratamentos surgem para
É possível. através do uso de honnônios e de cirurgia
corrigir problemas congênitos. Esses fatores biológicos, plástica, uma pessoa MACHO (A) passar para o seg-
juntamente com outros igualmente importantes. como mento B da escala e deste para E, assim como uma
pessoa FÊMEA (E) passar para o segmento D e deste
a atitude dos pais. a educação e o meio social, vão influir chegar a A. As pessoas de intersexos, dependendo de
na formação de nossa identidade sexual e no nosso sua estrutura biológica, psicológica e social. podem
comportamento ao longo da vida. tanto ir de C para A, quanto de C para E.

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Até agora, falamos de nossa constituição fisica,
como se estivéssemos diante de uma fotografia. O passo
seguinte é acompanhar um filme, movimentado, que se
desenrola dentro de nós. Nesse "filme", vamos acom-
panhar as nossas sensações e "ver" COMO NOS
SENTIMOS.
Se nasce um menino, no futuro ele SE SENTIRÁ
HOMEM. Se nasce menina, SE SENTIRÁ MULHER.
Óbvio, não? Nem sempre, como veremos ao longo
desse livro.
Essa sensação interna de pertencermos ao gênero
masculino ou feminino, bem como a capacidade de nos
relacionarmos socialmente, denominada identidade de
gênero, é muito natural para a grande maioria das
pessoas.
O termo identidade de gênero foi criado em 1964
pelo médico e psicanalista norte-americano Robert Stol-
ler'. Essa sensação interna, para se formar adequada-

1. Robert Stoller, pesquisador norte-americano. Através da investi-


gação psicanalítica, estuda, há quarenta anos, pacientes ínterse-
xuadosetransexuais.

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mente, precisa passar por muitas fases, onde entram chamado de "cérebro inteligente". O neocórtex matiza o
fatores biológicos e sociais. sentimento amoroso com fantasias, é responsável pela
Um exemplo extremo de inadequação da identida- sensação erótica, pelos tabus e até pela noção de culpa.
de de gênero ao corpo biológico de nascimento são os O prazer que sentimos diante de uma obra de arte,
transexuais. Para eles, o corpo "é de um sexo e a alma ou ao ouvir uma bela música, tem seu ponto de partida
é do outro". nessa região cerebral. O neocórtex não funciona auto-
nomamente, sendo atingido e influenciado por fatores
sócio-culturais. Para alguns pesquisadores, a "força
biológica", presente em todos nós, faz com que nasçamos
A sexualidade começa a se definir no ato da. fecun- com "uma intuição" de que pertencemos ao gênero
dação e, desse momento até a hora de nascer, passamos masculino ou feminino.
por transformações fisiológicas e bioquímicas, que "re- Os estudos a respeito da influência hormonal
forçaram" a nossa estrutura masculina ou feminina. durante a vida intra-uterina, assim como sobre o papel
Durante esse período, se a produção de hormônios do hipotálamo e do neocórtex, são recentes e não estão
sexuais ocorreu no momento certo e com a estrutura. concluídos.
química correta, uma região do cérebro denominada
hipotálamo recebeu um "banho" de masculínízação ou O desenvolvimento completo dessa consciência na
de feminilização. criança só se dará a partir de inúmeros outros fatores,
As células do hipotálamo são muito sensiveis ao como o tratamento recebido da mãe, ou de quem
androgênío ou ao estrogênio, que são hormônios sexuais estiver em seu lugar, da família e da sociedade na qual
masculinos e femininos, respectivamente. Dependendo ela vive.
da quantidade dessas substâncias presentes no hípotá-
lamo, o indivíduo pode ser predisposto a manifestar
certos padrões de comportamento, característicos de
homem ou de mulher. Menino ou menina?
O hipotálamo é um centro integrador e coordena- Essa é a pergunta imediata que parentes e vizi-
dor das emoções, está conectado com o sistema límbí- nhos fazem quando uma mulher tem um bebê. Hoje,
co e outras áreas do cérebro. É essa rede do cérebro com o exame de ultra-som, o nascimento perdeu muito
que regula a vida emocional, modula o desejo sexual "de sua surpresa".
e comanda o funcionamento das glândulas que produ- Na maioria dos casos, ao nascer, não há dúvida, é
zem os hormônios sexuais. Um "excesso" de atividade um menino ou uma menina, pela simples observação de
do hipotálamo não transforma ninguém num grande sua genitália externa. Porém, alguns bebês nascem com
conquistador, pois até aqui estamos falando das nos- o sexo malformado, duvidoso.
sas sensações. Uma menina normal mas que tenha um clitóris um
O relacionamento com as demais pessoas é regula- pouco maior, parecendo um "pintinho", corre o risco de
do por outra parte do cérebro, o neocórtex, também ser considerada um menino. Um bebê fêmea nascido de

12 13
9 meses de gestação poderá ter um clitóris de 7 a 10 No final da década de 60, uma mulher teve gêmeos
milímetros, variando conforme seu pes02 . saudáveis, dois meninos. Como é comum naquele país,
Constatado o sexo da criança, providencia-se o os bebês passaram por uma circuncisão, popularmente
registro em cartório. Esse documento público vai confir- conhecida como "operação de fímose".
mar, perante a sociedade e para toda a vida, se a pessoa Um dos bebês não teve qualquer problema, mas o
pertence ao sexo masculino ou feminino. Não é apenas outro, durante a cauterização, teve o pênis ofendido e
esse documento que vai pesar na formação da identida-
ficou sem o órgão. A equipe do psicólogo John Money
de de gênero masculina ou feminina, pois para isso
acompanhou o caso. O que fazer agora? O menino não
contribuem muitos fatores.
poderia crescer sem pênis e a feitura de um novo órgão
A partir do momento em que a criança é identificada
não seria possível nessa idade.
e registrada como menino ou como menina, toda a
sociedade vai se comportar em relação a ela de uma Os pais foram consultados e tomaram, em conjunto
maneira particular e diferente. com a equipe de especialistas, uma decisão. O menino
foi submetido a algumas cirurgias, a bolsa escrotal e os
testículos foram retirados e, no lugar, moldada uma
vulva para a saída da uretra.
Depois disso e da devida preparação psicológica
Menina ou menino? da família, a criança teve o seu registro alterado e
A mãe que traz nos braços uma menina, ou alguém passou a ser criada pelos pais como uma menina.
que ela julga ser uma menina, trata a criança de forma Segundo John Money, essa criança, aos cinco anos, já
mais cuidadosa, terna. Não faltam expressões como tinha desenvolvido a consciência de pertencer ao gê-
"fofura", "gracínha", "um doce", seguindo-se enfeites nero feminino e se comportava como tal. Quando
como lacinhos no cabelo, fitinhas. adulta resolveria se "construiria" cirurgicamente um
Se o filho é "homem", o tratamento é um pouco mais canal vaginal ou não.
"duro", segura-se a criança com mais firmeza. Pela casa
ouvem-se frases como "que menino forte", "como é es-
perto", "puxou o pai". Os enfeites, quando existem, são
azuis e discretos. Os pais, sem se dar conta, estão
tentando dizer que homens e mulheres devem ser e se Shakespeare usou essa famosa expressão em outro
comportar de forma diferente. contexto, mas "ser ou não ser" também se aplica quando
Um caso conhecido nos Estados Unidos mostra falamos da sexualidade humana. E podemos adicionar
como a atitude dos pais influencia na formação da a essa frase a palavra "completamente".
identidade de gênero, mesmo que no caminho inverso Por volta dos 2 anos e meio, a criança 'Já sabe" que
da constituição biológica da criança. é um menino ou uma menina e não perde tempo com o
assunto porque o mundo oferece caminhos muito claros
2. Pesquisa sobre o tamanho do clitóris em recém-natos fêmeas para o homem e para a mulher. Na infáncia apenas não
realizada por A. Ltwín, I. Aitin e P. Merlob na Universidade de Tel há amadurecimento neurológico e psicológico para en-
Avív, Israel. em' 1990.
tender e distinguir essa sensação.
14 15
Nos primeiros meses de vida desenvolvemos a cons- Quando nascemos temos boca. cordas vocais, ouvidos,
ciência sobre o nosso próprio corpo e vamos criando uma vias neurológicas, mas não sabemos falar. Da mesma
"identidade corporal". principalmente sobre os órgãos forma, nascemos com uma genitália masculina ou femi-
genitais. No bebê. a primeira "noção" de possuir uma nina. mas "não sabemos SER homem ou mulher". Isso
genitália vem do ato de urinar. precisa ser aprendido a partir de nós mesmos. com
A genitália masculina é tocada e manuseada sem nossos pais, com a família e com a sociedade. Trata-se
grandes problemas pelos meninos. Ela é visível, e a de um processo longo e a identidade de gênero mas-
culina ou feminina só se evidenciará por completo com
nossa cultura valoriza a sua exibição pelos garotos.
o surgimento dos caracteres sexuais secundários. na
Em nossa cultura. a genitália da mulher. mesmo fase da adolescência.
enquanto criança. é algo proibido. misterioso. intocável.
Na menina. o que se vê é a vulva. ou seja. os grandes e
pequenos lábios. O cuidado dos pais é maior. e ela é
ensinada a não tocar no sexo. a não introduzir nada (até
para não romper o hímen) e a não exíbí-lo. Nascemos sozinhos. mas não podemos crescer iso-
Cada parte do nosso corpo tem uma sensibilidade lados de outras pessoas. A consciência que temos de
própria. Ela não é a mesma na língua. na palma da mão. pertencer ao gênero masculino ou feminino vem do
na orelha e nos órgãos sexuais. No entanto. para que a comportamento dos pais. dos familiares e da sociedade.
criança conheça o seu corpo é preciso tocá-lo. o que A isso, soma-se a percepção de nosso próprio corpo. É
poderá lhe dar prazer. impossível. do ponto de vista social, que alguém cresça
Essas sensações prazerosas. vindas do toque nos sem pertencer ao gênero masculino ou feminino. Pes-
genitais, não devem ser confundidas com sensações soas "neutras". socialmente falando. não existem.
eróticas. O menino, mesmo na mais tenra idade, pode Nem mesmo os travestis. os transexuais ou os
ter ereção. o que não significa que ele esteja sentindo hermafroditas são pessoas neutras. uma vez que têm
desejo sexual. "almas" masculinas ou femininas. ou uma combina-
Embora o contato da menina com sua genitália seja ção das duas. Os sexos podem ser 11. mas as "almas"
menor. os homens estão mais propensos a carregar são apenas duas. Não estamos nos referindo aqui ao
dúvidas sobre a identidade genital3 . Como o relaciona- que hoje se diz "meu lado feminino" ou "meu lado
mento entre os meninos é mais livre, o efeito comparativo masculino". Trata-se de uma sensação particular e
das genitálias é mais freqüente. É comum o garotinho mais profunda que leva ao comportamento social dife-
querer ver o "pipi" do amiguinho para comparar com o seu. rente. como veremos na segunda parte deste livro.
Reconhecer e sentir a nossa anatomia sexual tem Existem relatos de casos em que uma mãe. desejan-
grande importáncia para desenvolvermos a consciência
do muito ter uma filha. ao ter um filho. passa a tratá-lo
de pertencermos ao gênero masculino ou feminino.
como menina. Esse tipo de atitude pode atrapalhar a
formação da identidade de gênero da criança.
3. O conceito de identidade sexual (consciência que se tem do
próprio sexo biológico) foi proposto por Charlote Wolff, médica Durante muito tempo. como parte da nossa cul-
alemã, sexóloga e exístencialísta radicada na Inglaterra. Preferimos tura popular. muitas mães. principalmente em situa-
dar a esse conceito o nome de Identidade genital.

16 17
ção de doença ou de aflição, faziam promessas de vestir
o filho como menina até uma certa idade - o que poderia
O que é uma família? São pessoas que convivem,
ou não alterar a sua identidade de gênero. dividem o mesmo espaço numa casa, têm afinidade por
Os travestis são pessoas com identidade de gênero parentesco ou não. Fazem parte da família os pais, tios,
diferente da maioria, pois SENTEM-SE ora homens, ora avós, irmãos, a empregada e até amigos que possam
mulheres. Os transexuais, no entanto, têm uma identi- temporariamente estar morando na mesma casa. Esse
dade de gênero bem definida, embora em desacordo com núcleo familiar é de fundamental importãncia para o
o seu corpo biológico. desenvolvimento da identidade de gênero, pois aí nasce
Até o momento, não se conhece totalmente como se e cresce uma criança. Chamaremos esse núcleo de Ma-
triz de Identídade''.
dá o desenvolvimento da identidade de gênero e as
causas de suas alterações. Não há uma regra geral. Uma Mesmo na fase de gestação, o relacionamento da
mãe e do pai com o bebê que ainda está no útero materno
família pode criar adequadamente um menino saudável
não é igual. A mãe e seu filho são um todo. A criança
e ele, no entanto, acabar crescendo com UM SENTIMEN-
não "está" dentro dela, faz parte dela. Para o pai, o futuro
TO de que É uma mulher, e tudo fará para conseguir filho ou filha existe apenas na sua imaginação. É extre-
moldar para si um corpo feminino. Ele é um transexual. mamente difícil para um homem ter uma idéia aproxi-
Existem também relatos de meninos que foram mada do que sente uma mulher quando está grávida,
criados como meninas, mas, com a explosão hormonal porque esta é uma das poucas experiências exclusivas
da adolescência, afirmaram-se como homens. Cresce- do ser humano feminino. As outras são amamentar,
ram, casaram-se, tiveram filhos, numa trajetória de vida menstruar e conceber.
absolutamente comum. O relacionamento da mãe com a criança é primor-
A família é uma referência importante, porque o dial e obedecerá algumas etapas de desenvolvimento
psicológico, a partir do desenvolvimento biológico. Para
desenvolvimento da identidade sexual também se faz
o bebê, ele e sua mãe são um todo. É como se o mundo
pela semelhança e pela diferenciação. Para meninos e tivesse se transformado num imenso útero e continuas-
meninas, a presença dos pais, portanto de um homem sem existindo apenas ele e ela.
e de uma mulher, cria a consciência de que existem seres Aos .poucos, o bebê "percebe" que há "algo dife-
iguais e diferentes deles mesmos. Estamos nos referindo rente". E como se ele pensasse assim: "Eu sou dife-
a uma estrutura familiar convencional, sem discutir se rente dela, mas somos tão ligados que não nos
esse modelo é válido ou não. sentimos separados".
Mesmo quando a formação familiar é pouco habi- Vamos continuar "dando a palavra" a esse bebê
tual, como no caso de duas lésbicas que criam as que todos nós fomos um dia, para que ele "conte" a
sua experiência:
crianças nascidas de uma ou da outra, o desenvolvimen-
to da identidade de gênero se dá adequadamente. Essas
crianças sempre terão algum tipo de contato com a figura 4. O conceito de Matriz de Identidade, proposto por J. L. Moreno,
refere-se ao lugar onde a criança se insere desde o nascimento.
masculina, seja por meio dos pais, tios ou vizinhos. Esseconceito foirevistopelomédico brasileiro, dou toremPsiq uía-
tr a pela USP e psicodramatista José Fonseca.
í

18 19
"Aos pouquinhos vou me desligando dela e passo a Quando nasci, me lembro bem, trouxe duas coisas
perceber que EU existo em separado de minha mã~. dentro de mim: a possibilidade de ser espontãnea e de
Começo a me dar conta do meu corpinho, meu pe, ser criativa. E uma coisa com nome estranho, "tele"
minhas mãos, minhas sensações. Ao mesmo tempo, (como se usa na palavra televisão), que é a capacidade
noto que ela é outro ser e o corpo dela é diferente do meu. de perceber as pessoas. Quando meu pai olha feio para
Eu sou eu, e ela é ela. mim, ele não precisa dizer nada. Já entendi tudo! Faço
Mas, que engraçado, só consigo me perceber .e bico de choro, fico quieta, e ele tira a carranca do rosto.
percebê-la como se eu estivesse "num corredor psícoló- Dizem que isso entre nós dois é uma tal de relação
gíco", onde só cabem eu e outra pessoa. Para um entrar télica."
o outro precisa sair. Vamos voltar ao trabalho, nossa amiguinha tem
Se o outro é minha mãe, sou eu e ela. Se o outro é mais o que fazer. De acordo com as psicólogas gaúchas
meu pai, sou eu e ele. Eu sei, é um pouco esquisito Bebeth Fassa e Marta Echeníque', o relacionamento
mesmo. Acho que é assim para todo mundo. Nesse principalmente da mãe mas também do pai é diferente
"corredor" estranho não cabe um terceiro. se estão criando um menino ou uma menina. E esse
Também não foi fácil, mas, de tanto olhar, começo comportamento, por vezes é consciente, ou intuitivo e
a me dar conta de que existe um corpo macho e um inconsciente.
corpo fêmea. E um dos dois é igual ao meu. Cheguei Quando se trata de um menino, embora ele se
a essa conclusão pela maneira como me tratam e como sinta fundido à mãe, ela, aos poucos, procura afastá-
os dois, meu pai e minha mãe, se comportam. Tudo
lo. Ela teme, inconscientemente, um sentimento in-
isso foi possível porque tenho tempo de sobra. Não
cestuoso ou que ele cresça como mulher. Isso não é
posso fazer muita coisa fora do berço, fico o tempo todo
rejeição. Apenas a mãe deseja que seu filho desenvolva
olhando, olhando".
a sensação de que pertence ao gênero masculino. Com
O tempo passou um pouco, o engatinhar e o esfolar
isso o garoto começará a se sentir macho (no corpo) e
dos joelhos ficou para trás. O bebê agora é uma criança,
que há algumas semanas apagou duas velinhas no bolo masculino (na mente).
de aniversário. Vamos deixá-la falar: Quando a mãe tem uma filha, os sentimentos são
"Agora as coisas estão mais fáceis. Posso andar pela outros. Ela a manterá por mais tempo perto de si, pois
casa, embora viva batendo a cabeça nas coisas. A mesa são criaturas iguais. É como se uma filha "mulher" fosse
parece que está tão longe, dou um passo e pimba. Um uma continuação de si mesma. A situação se inverte
galo. Tenho um bonequinha e às vezes finjo que sou a naturalmente com o pai e seu filho ou filha.
mãe dela, do mesmo jeito que minha mãe faz comigo. Por volta dos 2 anos e meio, a criançajá possui uma
Alguma coisa dentro de mim diz que sou uma identidade genital. Ela "sabe" que tem pênis e bolsa
menina, mas eu não sei bem dizer que coisa é essa. Os escrotal, ou vulva, vagina e clitóris. SENTEM-SE MENI-
psicólogos devem saber, pois vivem estudando as pes-
soas por dentro. Tenho a impressão de que os garotos 5. As psícológa s e psicodramatistas Bebeth Fassa e Marta Echení-
não sentem a mesma coisa. São tão diferentes de mim. que estudaram o desenvolvimento do ser humano levando em
conta o gênero a que pertence a criança, sua relação com os pais,
Acho que também sentem alguma coisa de meninos.
e tendo como foco o "papel de gênero", em seu livro Poder e Amor.

20 21
NOS OU MENINAS. Sua identidade de gênero está sela-
da e será imutável para toda a vida.

Quem somos, afinal?


A resposta a essa pergunta poderá ser mais fácil ou
mais dífícil, dependendo de como vivemos cada uma das
diversas fases, sem esquecer que muitas acontecem ao
mesmo tempo.
Pessoas que cresceram em ambientes sadios, com
3
liberdade e podendo exercer toda a sua espontaneida-
de e criatividade, talvez respondam com mais rapidez
e segurança.
Crescem a violência urbana e a incerteza econômi-
ca, enquanto os meios de comunicação despersonalizam
culturas e embotam os sentimentos. Num país como o ~abemos quem somos, mas por que nos comporta-
Brasil, onde nem mesmo as necessidades básicas de mos desta ou daquela maneira?
sobrevivência são atendidas, é quase um "luxo" esperar
que a grande maioria das pessoas possa crescer de Mais uma vez tudo parece muito natural. A menos
que alguma coisa não vá bem.
maneira criativa e espontánea.
Quando falamos em identidade de gênero, nos refe-
rimos ás sensaçôes internas, que estão dentro de cada
um de nós. Essas sensações podem vir para fora ou não.
SENTIMOS pertencer ao gênero masculino ou feminino,
11 ·ESCALA DE IDENTIDADE DE GÊNERO que SOMOS homens ou mulheres.
(SENTIR-SE COMO) Papel de gênero nada mais é que o nosso compor-
tamento frente ás demais pessoas e á SOCiedade como
HOMEM HOMEM MULHER um todo. Nesse caso, temos "uma maneira de ser"
HOMEM um pouco
mulher E um pouco
homem
MULHER masculina ou feminina. É preciso haver uma perfeita
MULHER sintonia entre o que sentimos e nossa maneira de agir.
A c o
Do contrário, surgirá um conflito entre a nossa identi-
Segundo os estudiosos, por volta dos 2 anos e meio esta dade de gênero e o papel que desempenhamos.
identidade é estabelecida e depois é imutável, ou seja, "O papel é a forma de funcionamento que o indiví-
náo se mudará mais de A para C ou E. Até essa idade
é possível educar-se alguém para sentir-se em A ou E,
duo assume num momento específico, ou quando reage
independentemente de seu sexo biológico. a uma situação específica, na qual outras pessoas ou

22
23
objetos estão envolvidos"l. Ao longo de apenas um dia Que normas são essas das quais ninguém fala, e
podemos desempenhar o papel de pai, em casa, de que diferenças existem no tratamento da menina e do
funcionário, no escritório, e de esportista, à noite. menino?
Somos sempre a mesma pessoa. No entanto, a São "regras" sobre as quais pouco pensamos porque
maneira como nos comportamos com os demais não é a estão incorporadas em nosso dia-a-dia. Esse tratamento
mesma, dependendo da situação, embora essas formas
"diferente" para meninos e meninas está nos gestos da
de comportamento tenham a nossa marca particular.
mãe, na maneira de pegar a criança no colo, de dar o
Como definição de papel, podemos afirmar que se
seio ou a mamadeira, e tantos outros.
trata da "unidade de conduta que se dá entre duas ou
mais pessoas, o que é observável e resultante de elemen- A higiene dos genitais do bebê, que é feita pela mãe,
tos constitutivos da singularidade do agente e de sua tem muita importáncia para o desenvolvimento da iden-
inserção na vida social". tidade genital (a sensação de que se tem pênis ou
vagina), da identidade de gênero (se sente pertencer ao
gênero masculino ou feminino) e para a formação do
papel de gênero, ou seja, se esse bebê, no futuro, terá
Os nossos primeiros papéis têm sua origem na um desempenho social masculino ou feminino.
família, como vimos no capítulo anterior. O meio em que Isso acontece porque é no órgão genital do menino
nascemos, somos criados e nos desenvolvemos será a ou da menina que vai desembocar a uretra, canal por
base psicológica para o desempenho de todos os papéis. onde passa a urina. Dessa maneira, todas as vezes que
Nos primeiros meses de vida, o bebê tem apenas a mãe faz a higiene da criança. ela está lhe dando a
esboços de papéis. Esses papéis estão relacionados com consciência da genitália que possui. A atitude do adulto
as suas necessidades fisiológicas, como se alimentar. diante dos órgãos sexuais difere dependendo do que
urinar, defecar. Para atender suas necessidades existe "sentem" e "pensam" sobre eles.
a mãe, ou a substituta, que lhe dá amor e carinho, A mãe, ao amamentar. faz isso com sentimentos e
ajudando-o a desenvolver-se. emoções. O bebê, por sua vez, ao ser alimentado, não
O atendimento a essas necessidades pela mãe é de apenas ingere o leite, mas percebe o que há de mais
fundamental importância. Cada cultura e cada socieda- profundo no ato realizado pela mãe.
de deixam claro como devem se comportar as mães Quando esse ato está envolvido de muito amor, não
nesses casos e até mesmo as diferentes formas de ama- é por acaso que as mães procuram, intuitivamente, os
mentar ou trocar um menino ou uma menina. locais mais calmos e silenciosos para amamentar. Nesse
momento. o bebê está recebendo e "reagindo". a seu
1. O termo "papel", proposto por J. L. Moreno, em inglês role, vem
do latim rotula. Isso porque na Grêcia antiga, para as apresenta- modo, ao carinho materno. Essa "reação" do bebê às
ções teatrais, o texto era lido em "rolos" de papel. Moreno iniciou o emoções da mãe também acontece na hora do banho ou
desenvolvimento desse conceito, que pressupõe inter-relação e ação da fralda limpinha.
em todas as dimensões da vida, como o nascimento, a experiência
vívencíada do individuo e a sua participação na sociedade.

24 25
Aos poucos, a criança aprende a falar. Seus movi- Na verdade, todos os papéis são complementares.
mentos tomam-se coordenados e ela reage diante de Um não existe sem o outro. O modo de ser, a identi-
situações novas. Na medida em que ela percebe o que se dade de um indivíduo, decorre dos papéis que ele vai
passa entre as outras pessoas e a diferenciar a realidade desenvolvendo ao longo de sua existência e de suas
da fantasia, começa a desenvolver-se o que chamamos experiências. Não existe o papel do senhor se não
de papéis sociais de gênero. existir o do servo, nem o do chefe sem o do funcionário.
"A função de realidade lhe é imposta por outras As contradições, crises e transformações nas relações
pessoas, suas relações, coisas e distãncias nos espa- humanas através dos papéis de gênero fazem parte do
ços, e atos e distãncias no tempo,,2. Assim, a criança desenvolvimento de cada um de nós.
aprende como deve se relacionar com seu corpo e Quando a criança "percebe o mundo" não apenas
também que atitude deverá tomar em cada papel que pelos olhos, pelos ouvidos e os outros órgãos dos senti-
estiver desempenhando. dos, ela começa a distinguir objetos materiais de seres
Nos papéis sociais de gênero, entra em operação a humanos. Aos poucos, o fator inato chamado tele3 vai
função de realidade. A criança tem consciência de que é se desenvolvendo. Esse fator faz com que percebamos a
filho, sobrinho, neto. De que tem pais, avós, família, outra pessoa, ao mesmo tempo que somos e nos senti-
mos percebidos.
coleguinhas de rua ou de creche. A partir do momento
em que a criança sabe o que é realidade, conquista os Por volta dos seis meses, a criança já é capaz de
chamados papéis de fantasia. reconhecer um sorriso num rosto humano e "correspon-
der" sorrindo. Esse sorriso do bebê também é percebido
Esses papéis correspondem à dimensão mais indi-
pelas outras pessoas que estão a sua volta. Isso é
vidual da vida psíquica ou psicológica do ser humano.
possível graças ao fator tele. O encontro télico sugere que
Esse é o momento em que a criança "viaja" com seus as pessoas são capazes de colocar-se uma no lugar da
brinquedos, finge ser o herói da 'IV ou personagem de outra, realizando a inversão de papéis.
sua própria criação, com a consciência de que tudo isso
é fantasia, é de brincadeira.
Por volta dos 2 anos e meio, a criança já desenvol-
veu, em situações de crescimento normal, uma identi- Existe algo entre as pessoas que a maioria das
dade de gênero (já "sabe" que é um menino ou uma teorias psicológicas não aborda, que é a relação co-in-
menina). Isso lhe permite relacionar-se com as pessoas
e até mesmo assumir outros papéis. Nessa fase, a me- 3. Fator Tele: J. L. Moreno afirma que todos os seres nascem com a
nina já pode dizer "sou a mamãe" enquanto acaricia uma potencialidade de perceber o mundo, o que vai se desenvolvendo
boneca. desde os primeiros meses e se aprimorando ao longo da vida. É a
capacidade de perceber a si próprio (autotele), perceber o outro de
forma objetiva. e sentir-se percebido, numa comunicação de mão
2. Refere-se ao desenvolvimento da Matriz de Identidade, na fase dupla. O fator tele é um dos pontos principais da teoria desenvol-
denominada por Moreno de "brecha entre fantasia e realidade". vida por Moreno.

26 27
conscienté. Essa relação ocorre quando alguma coisa ser o papel-base. Ele servirá de eixo para o desenvolvi-
de mim passa para o outro sem que eu mesmo saiba. mento de todos os outros papéis de gênero, inclusive o
do papel afetivo-sexual.
Como há uma relação co-inconsciente entre todas
Na Infância, esse desenvolvimento é muito lento.
as pessoas, a mãe pode ter um desejo ou uma fantasia Primeiro, a criança se relaciona com a mãe e com o pai,
inconsciente em relação ao bebê. Isso, de alguma depois com os demais familiares, com a escola, com a
forma, será captado por ele e ficará registrado em seu sociedade. A cada momento os seus papéis de gênero
inconsciente. vão sendo confirmados.
O co-inconsciente pode ser grupal, como na comu- Quando chega a adolescência, que muitos chamam
nicação entre as pessoas que estão juntas, convivendo de "aborrescência", o processo "explode" e se torna acele-
em família. O melhor exemplo que se pode dar é o sexto rado. Então, rapidamente, em dois ou três anos, aquela
sentido da mãe. Ela, de repente, diz que está acontecen- criança, que tinha um papel de gênero tranqüilo, pode ficar
do alguma coisa com o seu filho, distante, e o fato se muito perturbada com a eclosão dos hormônios.
confirma. Surgem os caracteres sexuais secundários, como
Mãe e filho têm um relacionamento muito próximo. barba nos rapazes e seios e menstruação nas moças,
Essa proximidade desenvolve muito a relação co-incons- além do timbre de voz diferenciado. Também os carac-
ciente. Isso também acontece com o pai, que muitas
teres sexuais primários, os genitais externos, se trans-
vezes tem uma relação com seus filhos tão próxima formam.
O pênis e a bolsa escrotal se desenvolvem, a vulva
quando a da mãe.
toma outra conformação, e é como se aquele corpinho,
que até então era igual para os dois sexos, com exceção
() ()ISVAI2() ()() I2I:L{)C3I() da genitália, passasse a ter uma outra moldura biológi-
ca. No entanto, só será possível ser um homem ou uma
O início do desempenho do papel de gênero, ou mulher, com os papéis de gênero bem desenvolvidos, na
nosso comportamento social, se dá no momento .em que
idade adulta.
nos percebemos enquanto menino ou menina. E a fase
em que o menino tem consciência do seu pênis, passan-
do a ter uma identidade genital, e percebe que pertence
ao gênero masculino. A menina vive o mesmo processo,
e os dois passarão a ter comportamentos masculino e Em que momento podemos ter certeza sobre quem
feminino, respectivamente. somos?
O desenvolvimento desse papel de gênero precisa Essa pergunta crucial para muitos de nós só pode
ser o mais livre possível, e é de suma ímportãncía. por ser respondida se a nossa identidade de gênero e nossos
papéis de gênero foram completamente desenvolvidos,
4. Co-inconsciente: Para Moreno, esse estado pressupõe a relação de tal maneira que exista uma total sintonia entre o que
entre duas ou mais pessoas, vivências, desejos, sentimentos e até
fantasias que são comuns e se dão em "estado inconsciente". Esse
sentimos e a maneira como exteriorizamos esses senti-
estado se daria concomitantemente aos "estados co-conscientes" mentos, por meio do comportamento e das atitudes.
de comunicação entre as pessoas.

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Existem alguns aspectos, a maioria de ordem cul- O homem não deve chorar, não deve exteriorizar
tural, que podem definir o papel de gênero masculino e muitos de seus sentimentos, porque isso seria uma
o papel de gênero feminino. As diferenças entre as característica feminina. A mulher, por sua vez, não pode
genitálias externas masculina e feminina e entre os demonstrar força nem determinação, pois isso é próprio
caracteres sexuais secundários que surgem na adoles- do comportamento "masculino". Essa situação acaba
cência são evidentes e não necessitam ser comentadas. criando dois seres pela metade. Hoje, a mulher já pode
Outro aspecto é a saúde do corpo, a aparência fisíca, mostrar a sua força, mas o homem ainda não conquistou
a semelhança existente entre homens e mulheres muito o direito de expor a sua fragilidade. E menos ainda de
magros ou obesos. Os homens e as mulheres saudáveis expor suas fraquezas.
têm condições de mostrar mais claramente a sua mas- Nem sempre os papéis de gênero assumidos pelo
culinidade ou a sua feminilidade. indíviduo estão em consonância com os seus atributos
Os cuidados com o corpo que os meninos e as fisicos. Um caso muito conhecido é o da modelo Roberta
meninas aprendem a ter são completamente diferentes. Close, que nasceu biologicamente homem mas desen-
A menina aprende a escovar o cabelo, desde cedo usa volveu papéis de gênero totalmente femininos. Se não
xampu e outros cremes, passa esmalte nas unhas, conhecêssemos a sua história, diríamos sempre tratar-
começa a se embelezar. O menino limita os cuidados com se de uma mulher, e nâo de um homem.
o corpo à higiene. O desempenho dos papéis de gênero são estabele-
Na medida em que ocorre o desenvolvimento da cidos pela sociedade. Existe, nessa sociedade, sempre
sociedade, a transmissão desses papéis vai se tornando uma linha mais ou menos comum a todos os homens e
mais elástica e, felizmente, menos rígida. As pessoas aos mulheres, em termos de comportamento. As diferenças
poucos se dão conta de que não é um creme para a pele vâo acontecer de cultura para cultura, ou de época para
que o garoto usa, benéfico para a saúde, que vai, no época.
futuro, torná-lo menos homem. Muitas dessas mudan- No mundo, a maior parte das relações entre as
ças devem-se ao movimento feminista que começou nos pessoas é de gênero e pouco envolve a sexualidade
Estados Unidos na década de 60 e chegou ao Brasil na propriamente dita. Se considerarmos a grande quanti-
década de 70. dade de papéis que assumimos, o lado sexual só vai se
A postura do corpo, a gesticulação, tudo isso é manifestar com uma pessoa que amamos ou desejamos.
"ensinado" muito cedo. A criança aprende muito pela No entanto, nossa cultura tende a erotizar muitas
imitação do comportamento dos pais. Assim, a menina dessas relações. É fácil hoje ver anúncios dos mais
aprende que não deve sentar de pernas abertas, não diferentes produtos, de cigarros a peças para automó-
pode mostrar a calcinha. O menino é "treinado" de outra veis, relacionados com situações em que estão envolvi-
forma, e não há tanta preocupação com seus modos, dos o sexo e "um convite ao prazer".
limitando-se ao que se entende por boa educação. É também comum ouvir que é impossível a amizade
Como podemos ver, todos esses aspectos são rela- entre um homem e uma mulher, porque nessa relação
tivos a como um homem e uma mulher lidam com o seu estaria sempre presente uma segunda intençâo de cará-
corpo e o seu psiquismo e como se comportam em nossa ter sexual. Isso nâo é verdade e, se ocorre na cabeça
sociedade. Isso vale para o modo de falar, a abordagem
dessas pessoas, é porque está havendo uma mistura de
dos assuntos, o tipo de roupa e até o uso dos enfeites.

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papéis: o papel de amigo (de gênero) e o papel afetivo-se-
xual (relacionado ao sexo).
É evidente que duas pessoas amigas podem fazer
amor ou até se apaixonar, mas, nesse caso, estarão
assumindo um novo papel. Esse amor pode, e até deve,
conter a amizade, mas essas duas pessoas não estarão
mais desempenhando o papel de amigos.

~ós podemos definir orientação afetivo-sexual


como a sensação interna de que temos a capacidade
para nos relacionarmos amorosa ou sexualmente com
alguém. Ela é parte da identidade sexual, algo que
pertence ao nosso mundo interno, ou ao psicológico.
111 .ESCALA DE PAPÉIS DE GÊNERO O termo "orientação sexual" é mundialmente usado
(PAPEL SOCIALI para designar se esse relacionamento vai se dar com
alguém do sexo oposto, do mesmo sexo, ou com pessoas
de ambos os sexos. Preferimos acrescentar ao termo a
MASCULINO FEMININO palavra "afetivo" para deixar claro que esse relaciona-
MASCUUNO Afeminado E Mascullnlzado FEMININO
FEMININO mento não é só de ordem sexual, mas também envolve
c D o amor e o afeto. E os afetos podem ser de natureza
A
positiva ou negativa. E também porque nem sempre
Nesta escala. as pessoas podem ir e vir. independente- afeto e sexo caminham de mãos dadas.
mente do seu sexo biológico e de sua identidade de A orientação afetivo-sexual está vinculada aos sen-
gênero. Os papéis de gênero podem ser treinados e
desenvolvidos. Os atores profissionais mostram. atra-
timentos que existem dentro de todos nós em relação a
vés de sua arte. esta possibilidade. Os transexuais outra pessoa. Entre esses sentimentos estão o desejo e
masculinos podem ir de A. passar por B. C. e adaptar-se o prazer sexual, as sensações do orgasmo, as fantasias
em E. O mesmo pode ocorrer com as transexuais sexuais, os sonhos eróticos, o amor e a paixão.
femininas. no sentido inverso da escala. Algumas pes-
soas. como por exemplo os travestis. podem passar Esses sentimentos têm seus contrários, como o
parte do dia em A e outra em E. independentemente do ódio, a repulsa, a frieza, a indiferença e todas as outras
sexo biológico.
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emoções que perpassam as relações humanas. Também Anteriormente, ainda na infância, todos os senti-
pode ser acrescentado à orientação afetivo-sexual o sen- mentos, considerados prévios ou primários à orientação
timento de se ter a capacidade da reprodução. Uma afetivo-sexual, são indefinidos ou discretos, e dos quais,
pessoa pode ser fértil, mas carregar a sensação de que nessa fase, temos pouca consciência. Não é difícil encon-
não pode procriar, e muitas vezes ocorre a situação trar casos de crianças, principalmente meninos, que se
exatamente inversa. "apaixonam" por uma babá ou uma prima de mais idade.
Não se trata, como vimos em capítulos anteriores, Mas, nessa "paixão", está ausente o componente erótico
da sensação interna de que pertencemos ao gênero e, conseqüentemente, o desejo sexual.
masculino ou feminino e nem mesmo se o nosso com- Na infáncia, desde os 4 ou 5 anos até a adolescência,
portamento, nas diversas atividades da vida, é masculi- é como se nós passássemos por um período de latência
no ou feminino. Estamos falando agora de uma questão em relação a esses sentimentos. Na realidade, esses
tão específica quanto importante, que é a capacidade de sentimentos ainda não emergiram.
escolher a pessoa que vamos amar ou com quem teremos
Na adolescência eclodem os hormônios sexuais,
um relacionamento sexual. disparados pelo relógio biológico, o que pode ocorrer,
conforme a pessoa, aos 10, 11, 12 anos ou até mais tarde
um pouco. A explosão desses hormônios faz surgir os
caracteres sexuais secundários.
As atuais pesquisas científicas consideram que a
orientação afetivo-sexual é construída, psicologicamen-
te, na primeira infância, até os quatro ou cinco anos de
idade. No entanto, somente na adolescência passamos
a ter consciência desses sentimentos, que se confirmam A orientação afetivo-sexual pode ser básica ou cir-
ou não na idade adulta. cunstancial. Uma pessoa pode ser basicamente heteros-
Quem não se lembra de suas grandes paixões de sexual, ou basicamente homossexual, mas somente na
adolescente, muitas impossíveis, "amenizadas" com idade adulta terá essa certeza. No período da adolescên-
memoráveis bebedeiras? Relembradas anos depois cia, quando essa revelação acontece, a própria pessoa
com os olhos da realidade parecem não ter significa- pode não ter muito claro qual é, afinal, a sua orientação.
do algum. Mesmo na idade adulta, essa orientação pode ser
a tempo é sábio e tudo acontece na hora certa. Com temporária, dependendo das circunstáncias da vida. Em
o despertar do desejo sexual na adolescência, a partir ambientes onde ficam confinadas por longo tempo pes-
da explosão hormonal própria da idade, começamos a soas do mesmo sexo, como presídios, um indivíduo
ter consciência de que nossos sentimentos amorosos e poderá ter um sentimento ou um comportamento hete-
emoçôes dirigem-se para alguém do sexo oposto, para rossexual ou homossexual, retornando a sua orientação
alguém do mesmo sexo ou para pessoas de ambos os básica assim que a situação de vida se modifique. A bem
sexos. Essa consciência nos revela como heterossexual, da verdade, todos nós podemos "ser" heterossexuais ou
homossexual ou bissexual, o que poderá ou não ser "estar" heterossexuais, "ser" homossexuais ou "estar"
confirmado mais tarde. homossexuais.

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o mundo, em meados do século passado, foi dividi- Existem muitas teorias psicológicas sobre como se
do pela Medicina em pessoas heterossexuais e homos- dá a construção da orientação afetivo-sexual, o que quer
1
sexuais. A partir de 1869 , momento em que a dizer que nenhuma delas é definitiva. As teorias desen-
homossexualidade, como comportamento, ganha esse volvidas por Freud no ínícío do século procuram explicar
nome, essa orientação afetivo-sexual entra para a Medi- a orientação afetivo-sexual como sendo algo que se
cina como algo patológico ou doentio. estabelece a partir do relacionamento da criança com os
Os sentimentos e os comportamentos heterosse- pais, nos primeiros anos de vida.
xuais e homossexuais, no entanto, são tão velhos quanto De acordo com Freud, nesse estágio de desenvolvi-
o mundo. Desde que o homem existe, esses sentimentos mento, a criança experimentaria sentimentos incons-
estão presentes, sempre aconteceram em todas as socie- cientes de "desejo sexual" em relação a um dos pais,
dades e em todas as culturas, independentemente de juntamente com sentimentos de "rivalidade", também
serem primitivas ou avançadas. inconscientes, para com o outro, e vice-versa.
O fato é que até a metade do século passado não Para o médico-psiquiatra e psicodramatistaJosé Fon-
havia uma preocupação em considerar a homossexua- seca, a criança, após manter uma relação apenas e exclu-
lidade como doença. Desde então, os homens passa- sivamente com a mãe, ou só com o pai, se dá conta de que
ram a ser categorizados como sendo normais os os dois, pai e mãe, têm um relacionamento entre si.
heterossexuais e patológicos os homossexuais. Dessa Nesse momento, de acordo com Fonseca, que faz
forma, a Medicina, a Genética, a Sociologia, a Antro- uma releitura do desenvolvimento da Matriz de Identi-
pologia passaram a estudar a orientação afetivo-sexual dade ou núcleo familiar proposta por Moreno, a criança
dos homossexuais. entra na chamada "crise da triangulação", podendo
Na medida em que a grande maioria das pessoas sentir-se rejeitada ou não, dependendo de como se dá a
tem uma orientação heterossexual, perto de 90% da intercomunicação entre os três.
população, isso foi considerado como o normal, e a A resolução dessa crise pode ser a criança aceitar
homossexualidade, como o desvio. Essa visão levou as que ela não é o centro do mundo, que as outras pessoas
pesquisas a sempre se dirigir para a busca das "causas" têm relacionamentos entre si, independentemente dela,
da orientação afetivo-sexual homossexual. A Ciência pa- o que não significa que ela receberá menos afeto por isso.
rece ter-se esquecido de perguntar quais são os mecanis- Superada essa crise, ela estará pronta para relacionar-se
mos que levam uma pessoa a ser heterossexual. com as demais pessoas, entrando na fase da socialização.
Tudo isso acontece com a criança de forma incons-
1. Até 1869 a relação afetivo-sexual entre homens era objeto de
estudo do campo da Filosofia, da Religião e do Direito. Naquele ano, ciente, e por volta dos 5 ou 6 anos ela já pode ter
quando o 11 Reich germânico havia introdl;lzido essa forma de resolvido essa crise. Nessa fase, a criança tem como
sexualidade no código penal como sendo passível de pena de morte, primeiro modelo o relacionamento entre um casal, ge-
o médico húngaro Karoly Benkert passou a denominar esse com-
portamento como "homossexual" e a defini-lo como de natureza
ralmente heterossexual. E esse primeiro modelo poderá
congênita. Com isso, a homossexualidade deixou de ser crime e servir como ponto de partida para seus relacionamentos
começou a serestudada pela Medicina como "uma doençamental afetivos e sexuais no futuro.
a ser tratada".

36 Ronaldo Pamplona da Costa Os Onze Sexos 37


Acreditamos que, do ponto de vista psicológico, todo, foram realizadas 41 autópsias de pacientes faleci-
o primeiro passo para a construção da orientação dos em decorrência da Aids, dentre os quais estavam
afetivo-sexual é a definição da identidade de gênero. mulheres, e homens homo e heterossexuais.
Antes de "sabermos" para quem dirigiremos nossos O pesquisador concluiu que essas células estuda-
afetos e nossas emoções de cunho sexual, nós preci- das eram de tamanho menor nos homossexuais se .
samos saber se somos uma pessoa do gênero mascu- comparadas com as obtidas das mulheres e dos homens
heterossexuais, o que indicaria alguma relação entre a
lino ou do gênero feminino.
conformação celular do hipotálamo e a orientação afeti-
Esse é o primeiro passo, mas não o determinante. vo-sexual.
O segundo passo importante para a orientação afeti-
Nessa pesquisa publicada por LeVay, ele não havia
vo-sexual é a resolução da crise da fase da triangula- obtido material de mulheres lésbicas e também não
ção, a partir do relacionamento da criança com o pai descarta alguma implicação da "causa mortis" relacio-
e com a mãe. nada com a Aids no tamanho das células.
O fato é que as teorias psicológicas não explicam, Richard Pillard, professor de Psiquiatria da Uni-
para a Ciência, como um todo, o modo como isso acon- versidade de Boston, nos Estados Unidos, desenvolveu
tece. Os cientistas que desenvolvem seu trabalho de um estudo com gêmeos idênticos (unívítelínosl. com-
pesquisa sob um ponto de vista mais biológico ou social parando-os com os não-idênticos (bivitelinos). Ele
não aceitam que só isso explique a construção da orien- mostrou que existe uma incidência maior de homos-
tação afetivo-sexual. sexualidade nos dois univitelinos, mesmo que criados
por famílias diferentes, do que no caso dos gêmeos
não-idênticos. Isso faz pensar que poderia existir algo
de genético determinando a orientação afetivo-sexual
Nos últimos tempos, cientistas especializados em das pessoas, uma vez que os gêmeos idênticos têm a
Biologia e Genética desenvolveram estudos que pudes- mesma configuração genética.
sem indicar uma predisposição inata para a homosse- Em julho de 1993 a revista Science publicou um
xualidade, mas nenhuma dessas teorias conseguiu ser artigo sobre uma pesquisa que estava sendo desenvol-
conclusiva para explicar como se determina a orientação vida pelo Instituto Nacional do Cáncer dos Estados
afetivo-sexual. Unidos, sob a coordenação do professor Dean Hamer.
Em agosto de 1991, o pesquisador norte-americano Hamer selecionou 76 homens homossexuais, e pas-
Simon LeVay publicou um importante artigo na revista sou a estudar seus familiares paternos e maternos. O
Science. Nesse trabalho, o pesquisador mostra as dife- resultado do estudo mostrou que entre os familiares
renças de tamanho de um determinado grupo de células paternos do pesquisado havia a incidência de 2% de
que pode ser encontrado no hipotálamo, a região do pessoas homossexuais, índice que crescia para 7,5%
cérebro responsável pela elaboração das emoções e dos quando se tratava do lado matemo.
sentimentos eróticos. Isso levantou a hipótese de que a homossexualidade
Com base nesses estudos preliminares, Simon Le- estaria vinculada a um fator genético do lado matemo,
Vay passou a estudar esse grupo de células cerebrais mais diretamente relacionado com o cromossomo x.
obtidas de autópsias de três grupos de indivíduos. Ao

38 39
A equipe de Hamer também selecionou, posterior- Uma pessoa, qualquer que seja sua orientação afe-
mente, 40 pares de irmãos homossexuais, que não tivo-sexual, só será feliz se estiver em sintonia e em paz
tinham características semelhantes. Dentre essas 40 consigo mesma.
duplas, 33 delas, ou seja, 82,5%, tinham a mesma
seqüência de DNA (a substância dos genes) em uma
parte específica do cromossomo x da mãe.
A partir desses dados ele levantou uma hipótese, a
ser confirmada, de que alguns homossexuais apresen-
tariam uma predisposição genética para ter essa orien-
tação. O estudo de mulheres lésbicas não mostra os
mesmos resultados e ainda não foi concluído.
Dean Hamer deixa claro que seu achado poderá
mostrar uma predisposição ou tendência, para esse
comportamento. Como se trata de tendência, ao longo
da vida ela será ou não confirmada, dependendo de
inúmeros outros fatores.
Preferimos considerar que as origens da orientação
afetivo-sexual no ser humano seriam fruto de uma gama
de fatores que podem ser de ordem orgãnica (neurológica
ou genética), psicológica, e social, ainda não totalmente
compreendidas e variando de pessoa para pessoa. IV ·ESCALA DE ORIENTAÇÃO AFETIVO·SEXUAL
(DESEJO)
O casal de pesquisadores norte-americanos Mas-
ters e Johnson2 afirmou em 1979: "Até que se conheça
mais sobre as origens da heterossexualidade é dificil HOMOSSEXUAl.
acreditar que um entendimento significativo seja atingi- HETEROSSEXUAL HETEROSSEXUAl. BISSEXUAL HOMOSSEX\W.
fOOSEXUI.l. HmoossEXlW.
do. acerca das origens da homossexualidade". A c o
Somos seres dotados de inteligência, e é impor-
tante que descubramos como e por que nos compor- A partir da idade adulta estaremos, basicamente, em um
tamos desta ou daquela maneira. No mínimo para nos segmento da escala. Entretanto, o deslocamento ao lon-
entendermos melhor e vivermos mais saudáveis, do go da escala é possível e dependerá dafase da vida, do
momento psicológico e das circunstâncias sociais. Por
ponto de vista biológico, psicológico e social. exemplo, ir de A até E e voltar ao seu ponto básico e
vice-versa. Ou., ainda, de A para C, de D para A e assim
por diante. Ao nível das fantasias e dos sonhos o percur-
2. O médico William Masters e a psicóloga Vírgínía Johnson são so de cada um através de todos os segmentos poderá ser
pesquisadores norte-americanos especializados no estudo dase- livre. O deslocamento do desejo básico não significa que
xualidade. O livro do casal, Conduta Sexual Humana, lançado em o indivíduo viverá obrigatoriamente relações ao nível do
1966, é um marco na sexologia moderna. Masters e Johnson papel afetivo-sexual pois. para muitas pessoas. este
estudaram em laboratório relações sexuais de casais hetero e sentimento é passível de ser "controlado".
homossexuais.

40 41
--Quem nunca viveu uma paixao, nunca vai ter
nada não", dizia o poeta Vinicius de Moraes.
Toda a história da humanidade está repleta de
paixões, amor, sexo. Até mesmo se decidiu o destino de
nações a partir do relacionamento amoroso entre ho-
mens e mulheres ou entre homens.
Verdade ou não, a famosa Guerra de Tróia começou
com o rapto de Helena, mulher do rei de Esparta, por
Páris, príncipe de Tróia. Ao que parece, ele se apaixonou
perdidamente pela bela grega. Após dez longos anos de
batalha, entre gregos e troianos, que teria acontecido por
volta de 1300 a.C., a cidade de Tróia foi finalmente
destruída, e com ela uma civilização.
O amor tem sido tema constante na literatura mun-
dial, em todas as épocas. Hoje milhões de pessoas
acompanham, noite após noite, os encontros e desen-
contros amorosos nas novelas da 1V. Por que esse
assunto desperta tanto interesse?
Uma resposta é que o afeto, o amor e o sexo são
necessidades básicas para nós. E, de todas as relações
humanas, estas são consideradas as menos resolvidas.

43
O papel afetivo-sexual é o mais importante de "aprender" a fazer sexo com alguém mais experiente,
nossa vida. É através dele que conseguimos estabele- como as "profissionais", ou com alguém que saiba tão
cer um vínculo que pode ser de amor e sexo, de amor pouco quanto nós.
sem sexo ou ainda de sexo sem amor. Na adolescência, entre rapazes e moças que ainda não
Somente nessa relação vamos poder experimentar tiveram uma experiência sexual, é comum a criação das
o prazer da paixão e do amor, o prazer de nos entregar- mais variadas fantasias, desproporcionais ao fato real.
mos um ao outro, o prazer sexual e o prazer de nos Para o rapaz, existe um medo difuso no sentido de
reproduzirmos, gerando filhos. que talvez, "naquele momento", ele não saiba como
reagirá a sua parceira, se vai machucá-la ou não satis-
fazê-la. As moças, por sua vez, criam um verdadeiro mito
sobre o orgasmo, como se esse prazer fosse capaz de
Alguns dos mais dolorosos conflitos humanos estão fazê-las "subir pelas paredes", enquanto explodiriam
direta ou indiretamente relacionados com a impossibili- toneladas de imaginários fogos de artificio.
dade ou dificuldade de se desempenhar adequadamente Quando a primeira relação sexual acontece, muitas
o papel afetivo-sexual. Essa parte de nossa vida é a única vezes o que poderia ter sido bom e agradável ganha os
que precisamos desenvolver, por nossa própria conta, contornos da frustração. Uma sensação desconfortável
sem a presença "de um professor". Na sociedade moder- de que "tudo aquilo era só isso" toma conta da pessoa.
na, não existe nenhuma atividade que não possa ser O desenvolvimento de todos os papéis da vida de-
ensinada e aprendida na escola ou na vida, salvo o papel pende de aprendizado, pois não são características ina-
afetivo-sexual. tas nos seres humanos. Aprendemos a comer à mesa, a
Quando falamos em aprendizado, referimo-nos a um fazer nossas necessidades fisiológicas em local e de
processo sistemático de orientação, tal como se ensina a forma adequados, a higiene corporal é acompanhada
ler, a tocar piano, a dançar. Do ponto de vista afetivo e pela mãe ou alguém de nossa família. Ninguém nasce
amoroso é até possível "algum aprendizado", observando sabendo como escovar os dentes.
como fazem as outras pessoas, inclusive nossos pais. Numa fase posterior, aos 4 ou 5 anos, vamos à pré-es-
Aqueles que têm uma orientação heterossexual na- cola, depois recebemos conhecimentos gerais no curso
moram na frente dos pais, na presença dos amigos, em primário, secundário e, por fim, aprendemos uma profissão,
sociedade. As cenas de amor são veiculadas à exaustão na prática, numa escola técnica ou na universidade. Em
em todos os meios de comunicação, e esse sentimento é todos os papéis da vida temos a possibilidade de assimilar
permitido, possível, desejado, cantado "em verso e prosa". os novos conhecimentos e de treiná-los na presença de
alguém que ensine e nos oriente. Porém, quando chegamos
Mas, mesmo assim, quem não ficou um tanto perdido
à vida sexual, nada pode ser visto e nem mostrado.
no primeiro beijo? Quem não ficou em dúvida sobre o que
fazer com a boca naquele momento? Mesmo com os olhos
fechados, provavelmente gastamos alguns segundos ten-
tando entender como e o que estava acontecendo.
A relação amorosa é aplaudida, onde quer que ela Como o papel afetivo-sexual se desenvolve em nos-
aconteça, desde que não traga consigo, explicitamente, sas vidas? Ele começa a aparecer na adolescência. Na
o seu lado sexual. Dessa maneira, só temos a chance de infáncia, não se pode afirmar que já exista o desejo

44 45
sexual. Evidentemente, quando nos referimos a essa A orientação sexual e a educação sexual precisam
idade cronológica estamos considerando aquelas crian- ser feitas com naturalidade, sem tabus nem moralismos.
ças que vivem num ambiente social favorável e fazem Infelizmente, muitos pais têm, eles mesmos, pouca ou
parte de uma família minimamente estruturada. nenhuma informação sobre sexo, "acham vergonhoso" o
A realidade brasileira coloca nas ruas uma quanti- que fazem na cama ou não querem "correr o risco" de
dade muito grande de crianças que, por necessidade de ensinar aos filhos aquilo que para muitos é proibido, feio
sobrevivência, "amadurecem" muito cedo, motivo pelo ou mesmo "pecado".
qual a sua idade biológica nem sempre está de acordo Aos poucos essa situação está se modificando, e
com o seu crescimento psicológico. Ainda não existem hoje, na década de 90, quem tem 18 anos foi criado com
estudos completos sobre qual pode ser a influência desse um pouco mais de liberdade. Isso comparado com as
gerações que nasceram nas décadas de 40 e 50.
meio hostil na formação do papel afetivo-sexual.
Quando a criança, menino ou menina, entra na
idade da meninice, que começa por volta dos 5 anos e ~XVL~SÁ~I~~VITÁV~L
vai até os lO, ela passa a ter um prenúncio de sensação Na realidade, a possibilidade de assumir o papel
sexual. Essa sensação é como se fosse um tipo de energia afetivo-sexual só vai se dar na adolescência, com a
latente que perpassa o seu corpo de maneira muito sutil, explosão dos hormõnios e com a transformação do corpo.
tanto que a criança sequer tem noção disso. É comum, Na puberdade, os caracteres sexuais primários, que se
nessa fase, os jogos considerados "sexuais", que nada referem aos órgãos genitais, desenvolvem-se. O desen-
têm de erótico, e que visam apenas reconhecer o próprio volvimento desse papel a partir da adolescência será
corpo e o do outro, quanto ao gênero a que pertencem. diferente para rapazes e moças.
Não podemos falar ainda em sexualidade, propria- Nessa fase surgem também os caracteres sexuais
mente dita, uma vez que esta continua em estado de secundários, que vão moldando o corpo do menino e da
latência, e porque nesse momento outros papéis têm muito menina, transformando-os num homem ou numa mu-
mais importãncia. A criança se percebe como filho, sobri- lher. No homem, o timbre de voz torna-se mais grave,
ocorre a distribuição de pêlos pelo corpo e os ombros
nho, que tem tios, avós, coleguinhas de escola. As brinca-
ficam mais largos.
deiras e o estudo tomam muito tempo e compõem o
Na mulher crescem os seios, os pêlos se concentram
universo de preocupações das crianças nessa idade.
em apenas algumas regiões e os quadris tornam-se mais
volumosos. Também são considerados caracteres se-
xuais secundários a menstruação das mulheres e a
ejaculação dos homens.
Seria ideal que a educação sexual se iniciasse nessa Quando essas transformações ocorrem, os adoles-
idade, pois a criança está descobrindo como funciona o centes iniciam a descoberta de seu corpo, das emoções
mundo e está cheia de perguntas. A quantidade de que ele desperta nas outras pessoas e daquelas que os
informações que ela recebe principalmente da televisão outros despertam neles mesmos. As mudanças são tan-
é muito grande. Mas não pode interagir, questionar, tas e simultãneas que muitos se sentem perturbados e
dizer que não entendeu. necessitam, tanto quanto for possível, da compreensão
dos pais e dos outros adultos.
46 47
Nessa fase, rapazes e moças descobrem o funciona- e, se desejar, pode ser mãe. A formação profissional da
mento de seus genitais, costumam se masturbar com mulher é importante mas ainda secundária.
maior ou menor freqüência e, na verdade, isto os levará O rapaz passa por uma outra situação, que torna
a saber mais sobre si mesmos e nem devem bloquear explícito o seu desejo sexual. Ao ter sonhos eróticos,
essa necessidade. Na realidade, a masturbação é o acontece o que se chama de polução noturna, ou seja,
primeiro passo para o desenvolvimento desse papel. ele ejacula dormindo. No dia seguinte, a marca no lençol
ou na cueca deixam claro para si mesmo e para os pais
A nossa cultura estimula o rapaz a desempenhar o
o quanto "é necessário" um relacionamento sexual. Mas
seu papel sexual muito precocemente, mas o mesmo não
ele não é alertado de que já pode ser pai, e não é disso
acontece com o papel afetivo. Muitos pais, tios ou irmãos
que se gaba.
mais velhos incentivam o adolescente para que ele exer-
A mulher "aprende" a vincular amor e sexo, e são
ça a sua "potência" sexual. Hoje, isso ocorre com menor
poucas as que conseguem vislumbrar essas duas vivên-
intensidade, pois muitos jovens, criados de forma mais
cias como separadas. Na verdade, acreditam que essa é
livre, têm a sua primeira experiência sexual com uma uma situação natural, inata, quase biológica para elas,
namorada ou com alguém de quem gostem. e que é "diferente para os homens". Amor e sexo, no
Para os rapazes, não existe a preocupação com a entanto, podem ser separados se nós assim o desejar-
paternidade. O papel de pai não é estimulado nessa mos ou se assim nos ensinarem.
idade, é postergado ao máximo e, quando acontece uma O homem, ao se relacionar sexualmente com a
gravidez, a "culpa em geral é da moça". pessoa que ama, pode integrar, nesse momento, o lado
O rapaz pode e deve namorar, deve fazer sexo (ele é afetivo e o lado sexual, que se distanciaram durante o
quase obrigado a isso), mas não deve exagerar no seu "aprendizado". É essa distância que faz com que muitos
afeto, para não se casar precocemente. Muitos pais homens tenham relações sexuais sem amor, ou, mesmo
defendem que o casamento deve ser adiado ao máximo, amando alguém, façam sexo com outra pessoa.
para que isso só aconteça quando ele tiver uma profis-
são, e puder "manter" a sua família. Outros afirmam, () MUiIllIlU() MUUÁ
orgulhosos, que o "rapaz precisa, antes, viver a vida".
Seja lá o que isso possa significar. O comportamento humano, no que diz respeito ao
A adolescência das meninas toma outro rumo. amor, ao afeto e ao sexo tem muito de cultural e vai se
Elas aprendem que não podem e nem devem tocar nos modificando com o passar do tempo. Os valores de hoje
seus genitais para não descobrir o prazer erótico e diferem daqueles de 50 anos atrás e certamente não
existe uma grande preocupação com a virgindade. serão os mesmos no século 21.
Muitas moças só voltam a atenção para a sua Hoje, cada vez mais, aumenta o número de ado-
lescentes que preferem viver a sexualidade apenas
genitália quanto vão ao ginecologista, no clima de total
com as pessoas que eles amam. Se fala cada vez menos
frieza que a situação exige. E isso acontece, na maioria
em prostituição para os jovens, também pelo temor de
das vezes, quando o exame clínico se faz necessário
se contrair a Aids, mas muitos ainda têm sua iniciação
devido a uma doença ou à suspeita de uma gravidez.
com uma profissional.
Muito precocemente a menina tem a noção de que As moças adolescentes também, aos poucos, vão
pode ser mãe, a partir do momento em que começa a vir reduzindo a importância da virgindade e, com o corihe-
a menstruação. Ela se sente então uma pequena mulher
48 49
cimento de métodos anticoncepcionais e da camisi- o papel afetivo-sexual, dentre todos os papéis do ser
nha, têm sua primeira experiência sexual bem antes humano é aquele cujo desenvolvimento se dá em condi-
do casamento. ções mais precárias. Ele é o que merece ser reeducado
A nova maneira de criar as meninas também está com todo conhecimento, cuidado e carinho porque apa-
abrindo, para as mulheres, a possibilidade de deSvincu- rece conflituoso na maioria das pessoas. A pedagogia
lar o sexo do amor. Isso pode ser até uma opção, mas o desenvolveu os melhores métodos para que possamos
relacionamento sexual com a pessoa que se ama traz aprender toda e qualquer coisa, mas ainda engatinha a
uma gama muito maior de emoções e o próprio prazer respeito da educação e orientação sexual.
erótico tem outro colorido. Essa é a situação ideal para Em nosso país, algumas pessoas enfrentaram com
todos mas nem sempre possível. muita coragem o assunto, entre elas a psicanalista e
A partir do "aprendizado" convencional, vão surgir sexóloga Marta Suplicy. Ela desenvolveu, na década de
dois seres adultos muito diferentes na forma de viver o 80, um trabalho pioneiro na 1V, e o Brasil, naquela
amor e o sexo. Por isso, não é á toa que o relacionamento época, era um dos únicos países que tinha um programa
entre homens e mulheres ainda é tão dificil e complica- diário de educação sexual na televisão 1 . Apesar de todos
do, o que se demonstra estatisticamente pelo número os problemas com a censura então vigente.
crescente de separações. É preciso reconhecer que há algum esforço do poder
público e de organizações não-governamentais em levar
a orientação sexual para as escolas, tema que sequer era
abordado 10 anos atrás. No entanto, essa disposição
Na medida em que a adolescência termina, o esbarra no pouco ou nenhum preparo dos professores
homem ou a mulher, agora donos de si, podem desem- para lidar com o assunto.
penhar completamente o seu papel afetivo-sexual, re-
Os educadores, é claro, não têm culpa pela sua falta
lacionando-se com alguém do sexo oposto, do mesmo
de conhecimento, pois quase não há onde buscá-lo. Só
sexo, ou de ambos os sexos. É a fase da criatividade
agora, em alguns pontos do país, principalmente nas
do papel afetivo-sexual.
grandes cidades, começam a surgir grupos de trabalho
Desse momento em diante, cada um coloca a sua e de formação de professores de orientação sexual.
própria marca ou a do par que se forma. Esse seria o
O cinema, o vídeo e as revistas eróticos e pornográ-
momento ideal para uma vida a dois e para pensar em
ficos acabam preenchendo um espaço. Nesse tipo de
filhos, pois as duas pessoas estão preparadas, com
material, pelo menos, os adolescentes, assim como os
vários de seus papéis consolidados e com todas as fases
adultos, podem ter uma idéia do que acontece, explici-
anteriores resolvidas.
tamente, entre duas pessoas num momento de intimi-
É também na fase adulta que se vai ter certeza sobre dade sexual.
a sua orientação afetivo-sexual básica na vida. Essa
Amor e sexo são necessidades básicas de todos nós.
vinculação entre orientação e papel afetivo-sexual é
O ato sexual é normal, natural e fisiológico. Cercar essa
fundamental, pois o mundo interno e o mundo externo
são duas partes totalmente intercomunicáveis e, para o 1. Programa IV Mulher. da Rede Globo de Televisão. Ia ao ar pela
nosso perfeito equilíbrio, é necessário haver uma sinto- manhã. diariamente. e foi mantido de 1980 a 1986. com produção das
nia fina entre ambas. jornalistas Rose Nogueira e Irede Cardoso.

50 51
realidade com uma aura de mistério só contribui para
aumentar os conflitos internos, intensificar o sofrimento
e empobrecer a alma.
Precisamos viver nosso lado afetivo e sexual sem "ter
que nos preocupar demais com o assunto", da mesma
forma como nos alimentamos, andamos, respiramos, so-
nhamos, ou nos absorvemos diante de um belo pôr-do-sol.

V ·ESCALA DE RELAÇÕES AFETIVO·SEXUAIS


DE HOMENS (PAPÉIS AFETIVO·SEXUAIS)

HOMEM HOMEM HOMEM HOMEM HOMEM


COM
COM COM COM COM
MULHER
MULHER E HOMEM TRAVESTI TRANSEXUAL
Até agora procuramos clarear, explicar ou expli-
HOMEM MASCULINO MASCULINO
citar todos os elementos que compôem a sexualidade
A c o humana na sua esfera biopsicossocial. Pode ser que
você, em alguns momentos da leitura, tenha achado
tudo muito simples ou muito óbvio e, em outros,
VI ·ESCALA DE RELAÇÕES AFETIVO·SEXUAIS algumas idéias e informações complexas das quais
DE MULHERES (PAPÉIS AFETIVO·SEXUAIS) nunca tinha ouvido falar.

MULHER MULHER MULHER MULHER MULHER


Na realidade, tudo o que mostramos nos capítulos
COM anteriores acontece com os seres humanos ao mesmo
COM COM COM COM
HOMEM tempo, ou quase ao mesmo tempo. Tratamos o assunto
HOMEM E MULHER TRAVESTI TRANSEXUAL
MULHER FEMININO FEMININO de maneira separada apenas para facilitar o entendi-
mento das tantas situações pelas quais todos nós pas-
A B c o
samos sem muitas vezes nos darmos conta, e,
Embora a maioria dos homens e das mulheres se propositalmente, não aprofundamos temas muito com-
relacione com pessoas do sexo oposto (Ve VIlA) ao
plexos.
longo de sua vida uma parte significativa deles, depen-
dendo âafase de vida, do momento psicológico ou de Na infância, os fatores biológicos, psicológicos e
circunstâncias sociais, pode mudar de segmento na
escala, e, portanto, nâo estar fIXO em nenhum deles. O
sociais, elementos básicos que vão formar a sexualidade,
estar em um ou outro segmento dependerá nâo apenas se desenvolvem simultaneamente e de forma interligada.
mas, principalmente, da decisâo de cada indivíduo. Na medida em que a criança vai tendo a sua identidade
corporal, e conseqüentemente a sua identidade genital,

52
53
ela passa por momentos de intensa vivência com as J. L. Moreno entendia que o ápice do relaciona-
pessoas que a educam. A identidade de gênero e o papel mento humano se dá quando acontece o que ele cha-
de gênero vão se desenvolvendo ao mesmo tempo. Essa mou de encontro. Para que um encontro aconteça entre
diferenciação que estamos propondo entre identidade de duas pessoas, é necessário que a relação entre elas
gênero e papel de gênero, além de ser teórica, na prática seja uma relação télica, onde as duas percebem uma
também existe. A mesma coisa acontece com relação à a outra da maneira a mais intensa e próxima possível
orientação afetivo-sexual e o papel afetivo-sexual. da realidade de ambas.
O homem transexual, como veremos na segunda O encontro de que estamos falando não pode ser
parte deste livro, sente-se mulher (identidade de gênero), confundido com aquele que nós marcamos no relógio
mas seu comportamento, eventualmente, pode ser mas- com alguém. É um encontro que implica a sensibilidade,
culino (papel de gênero). a espontaneidade. É um encontro que se pode dar em
Esses dois aspectos da identidade sexual, gênero e qualquer um dos vários papéis que nós estivermos
sexo, podem também ser dissonantes entre si. Um ho- assumindo na vida.
mem bastante feminino e uma mulher bastante mas- Wilson Castelo de Almeida, psiquiatra e psicodra-
culinizada podem ser heterossexuais e passar por 1
matista afirma que a palavra encontro abrange diversas
conflitos sociais, em função dessa "dissonância".
esferas da vida. Significa estar junto, reunir-se, o con-
Em nossa cultura, infelizmente, muitos papéis de tato de dois corpos, ver e observar, tocar, sentir, parti-
gênero estão distorcidos e "sexualízados". A maior parte cipar e amar, compreender, conhecer intuitivamente
das relações humanas se baseia, ou deveria se basear, através do silêncio ou do movimento, do beijo ou do
em papéis de gênero, que nada têm que ver com sexua- abraço, da palavra ou do gesto.
lidade propriamente dita. No entanto, às vezes as "esta-
Encontro significa tornar-se um só. Significa não
ções se misturam" e um exemplo comum são os casos
apenas que duas pessoas se reúnem, mas que elas
de assédio sexual no ambiente de trabalho.
se vivenciam e se compreendem cada uma com todo
Os próprios pais estão interpretando erroneamen- o seu ser.
te os seus filhos que, com 3 ou 4 anos, lhes dizem que Se nós compreendermos melhor o gênero a que
têm um "namorado". Nesse caso está havendo uma pertencemos e a nossa sexualidade, estaremos mais
confusão de papéis porque o que essas crianças têm, prontos para o verdadeiro encontro amoroso e sexual e
nessa idade, é apenas uma relação de "amizade espe- é para isso e em busca disso também que o ser humano
cial", ou também podem estar tentando imitar os vive. Independente da forma de sexualidade das pessoas
adultos. no mundo, como nós veremos na segunda parte deste
Na medida em que pudermos perceber as diferenças livro, seria de suma importància que todos se dispuses-
existentes entre os papéis de gênero (comportamento sem a ter verdadeiros encontros uns com os outros.
social) e o afetivo-sexual (comportamento amoroso e se-
1. Wilson Castelo de Almeida é médico e mestre em Psiquiatria pela
xual), certamente estaremos facilitando a nossa vida e a USP. O conceito de encontro está em seu livro Fonnas de Encontro -
dos outros. Psicoterapia Aberta.

54 55
o encontro revigora, revitaliza, reenergíza os seres.
Ele dá o colorido mais intenso aos momentos da vida e
transforma o ser humano.
Moreno, médico, também vivia a poesia e escreveu
em 1915:

Um encontro entre dois: olho no olho, cara a cara.


E quando estiveres próximo tomarei teus olhos
e os colocarei no lugar dos meus,
e tu tomarás os meus olhos
e os colocará no lugar dos teus,
então te olharei com teus olhos
e tu me olharás com os meus.

Assim, nosso silêncio se serve até das coisas mais


comuns e o nosso encontro é meta livre:
O lugar indeterminado, em um momento indefinido,
a palavra ilimitada para o homem não cerceado.

56
1

f) corredor do Fórum está cheio. com advogados


andando para lá e para cá. No meio do burburinho. um
homem visivelmente abatido acende um cigarro e se
aproxima. cabisbaixo. de outro. para puxar conversa.
"É duro se separar quando a gente gosta tanto de
uma mulher". diz ele. com a voz embargada, mal con-
tendo o choro. O outro, com ódio incontido no rosto,
responde: "Nunca mais quero me casar na vida. estou
contando os minutos para me ver livre daquela imbecil.
daquela filha da puta. daquela..." A conversa fica pela
metade quando o funcionário da repartição chama um
dos casais para a audiência.
Atrás de um grande homem sempre há uma grande
mulher heterossexual. Para outros não há motivo de
orgulho. e muitos se convenceram de que a mulher
representou a ruína. a falência. a perdição ou o ponto
de partida para as mais absurdas violências. Grande
parte da nossa cultura, da nossa literatura, do cinema
e de todas as artes tem como tema a figura feminina.
Que mistério é esse que nos leva a considerar até mesmo
o nosso planeta como "Mãe Terra"?

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São muitas perguntas para poucas respostas. Mas, servem apenas para colocar limites nas pessoas, na
em boa parte, a raiz do problema está na incompreensão maioria das vezes contra a sua própria natureza. É
a respeito da mulher. Essa incompreensão é tão profun- evidente que hoje, na década de 90, grande parte das
da que alguns, sem pensar no que estão dizendo, che- mulheres não se comporta dessa forma, principalmente
gam a afirmar que mulheres fazem parte das "minorias", as mais jovens.
quando mais de 50% da população mundial é formada No entanto, para muitas que hoje estão perto dos
por pessoas do sexo feminino. 40 anos e que pertencem às camadas médias da popu-
lação, esses "moldes" transformaram-se na sua verda-
deira maneira de ser. Elas acham perfeitamente
"normal" serem sustentadas pelos maridos, evitam fazer
Da incompreensão nascem os estereótipos, que são cursos de profissionalização, "respeitam cegamente" a
aqueles moldes nos quais todos devem se encaixar, fidelidade conjugal, seja o casamento bom ou não, e se
queiram ou não. A mulher heterossexual será um fracas- consideram felizes por terem uma família e filhos que
so se não se casar e não tiver filhos. O casamento deve por sua vez vão se casar. E não são poucas as que
ser o objetivo de sua vida e com todas as armas precisa verdadeiramente "voltam a viver" quando ficam viúvas,
conquistar "o seu homem". Mas atenção! Esse desejo de não como se tivessem perdido um ser amado, mas se
livrado de um pesado fardo.
conquista fica proibido de se manifestar, e só pode
aparecer, de leve, se o "escolhido" mostrar alguma atra- A mulher de hoje é mais livre na sua maneira de ser,
mas isso não quer dizer que os estereótipos deixaram de
ção por ela.
existir. Eles apenas se modificaram, e somente daqui a
Depois do casamento, com bolo e champanhe, é a alguns anos poderemos avaliar os prejuízos que causa-
vez de a mulher se transformar numa boa dona-de-casa, ram. Hoje, por exemplo, a mulher liberada é aquela que
boa esposa, boa mãe, e pouco importa se ela será capaz disputa, com os homens, o mercado de trabalho, que
de tudo isso, depois de passar o dia inteiro trabalhando exerce profissões arriscadas e que toma a iniciativa na
fora, para equilibrar o orçamento doméstico. E, novamen- conquista amorosa.
te, atenção! Olhar para outros homens, NEM PENSAR. Muitas mulheres heterossexuais transformaram em
Se ela quiser ter uma profissão, "não há problema". verdadeiro símbolo de liberdade a decisão de colocar o
Desde que não deixe de ser a "dona-de-casa" e que, de seu êxito pessoal acima de tudo, o que inclui os filhos e
preferência, não ganhe mais que o marido, para não o marido. Uma mulher, hoje, que, por natureza pessoal
criar "constrangimentos" diante dos amigos dele e da e por escolha, decida se dedicar a tarefas domésticas em
vizinhança. E não cai bem para ela falar, mesmo com o sua própria casa certamente será discriminada, como se
esposo, sobre sexo. Com outros homens, NUNCA. Se ela administrar um lar e acompanhar de perto a educação
sentir necessidade de abordar esse assunto, que faça dos filhos fossem "tarefas humilhantes e desprezíveis".
com uma amiga íntima, de preferência sem que os seus Mais uma vez, neste caso, a sociedade está procu-
maridos saibam. rando encaixar as pessoas em "moldes" estabelecidos. O
Como podemos ver, todos esses estereótipos são de direito à cidadania não existe enquanto as pessoas não
ordem cultural, não definem ninguém e na verdade puderem ser o que desejarem, da forma que desejarem,
livres de moldes de qualquer espécie.
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projeto de vida é traçado no berço, e não passa pela
Não há mistério algum. Claro que não conseguimos cabeça de muitos pais que a sua filha possa não desejar
entender muita coisa, principalmente sobre o nosso esse futuro para si.
comportamento, porque, na realidade, ele não vai bem. Vivemos hoje uma época de transformação de valo-
Se pudéssemos crescer espontáneos, criativos e com res familiares e culturais e as crianças começam a
liberdade, certamente levariamos a vida toda sem gran- crescer com mais liberdade. No entanto, a grande maio-
des problemas. Por razões complexas, a sociedade, or- ria das moças, qualquer que seja a sua classe social,
ganizada como está, acabou prejudicando nossa ainda tem como sonho dourado o vestido de noiva, o véu
espontaneidade e criatividade, capacidades com as e a grinalda.
quais todos nós nascemos. O tratamento dado pela mãe á filha, como já disse-
Então, o que é uma mulher heterossexual? Mulheres mos, é muito diferente daquele dispensado ao filho. Com
heterossexuais são aquelas que têm como objeto de amor a menina ela é dócil, carinhosa, reservando para o
e de desejo sexual o homem. Em uma determinada fase menino um pouco mais de "firmeza". E esse tratamento
da vida, a sua orientação afetivo-sexual levou-a ao en- é comum a todos os demais membros da família, prin-
contro do sexo oposto. cipalmente por parte do pai. Mesmo que ele seja um
No entanto, quando afirmamos isso não estamos tanto severo e sisudo, com a filha no colo se derrama em
nos referindo apenas á realidade do corpo, mas princi- ternura, suavidade, proteção e cuidados. Sem se dar
palmente sobre como ela se sente. Não basta ter um conta, ele está transmitindo o modo como, na vida adulta,
corpo feminino perfeito, mas SE SENTIR MULHER, se os homens tratam ou procuram tratar as mulheres.
comportar como mulher, e desejar um homem. Todas as A partir do comportamento da família, a menina
mulheres têm quatro características biológicas básicas, percebe as diferenças que existem entre homens e mu-
que as distinguem dos homens. Só a mulher pode lheres. A percepção intuitiva dessas diferenças vai levan-
ovular, menstruar, gerar e amamentar. do a menina a ter certeza de que é mulher. Esse
Em situações de profunda crise, algumas mulheres sentimento é reforçado com o aprendizado do modo de
heterossexuais só encontram apoio em outras mulheres. se comportar, também diferente dos meninos.
Esse companheirismo e solidariedade pode resultar É muito importante que os pais consigam perceber
numa relação afetiva, o que representa uma expressão sua filha como ela é, e acompanhem o seu desenvolvi-
de carinho e conforto humano. Superada a crise, se a mento. Mas não é só. Eles também devem ser capazes
orientação afetivo-sexual de ambas estiver definida de expressar, entre si e para a criança, com naturalida-
como heterossexual, a relação amorosa poderá termi- de, os sentimentos de amor, carinho, paciência, inveja,
nar, restando apenas uma íntima amizade. prazer, ciúmes, irritação, raiva, impaciência, "saco
cheio" e tantos outros que fazem parte da natureza huma-
na. Com isso, estarão permitindo aos filhos que não
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bloqueiem a sua espontaneidade e cresçam criativos.
Quando nasce uma menina, já está implícito para Educar uma criança pode ser muito fácil ou muito
a nossa sociedade que ela será feminina, desejará um difícil. Se nós mesmos tivemos a sorte de crescer livres
homem para se casar, terá filhos e uma família. Seu e espontâneos, criar uma filha ou filho é tarefa simples.
No entanto, se a nossa infãncia foi recheada de limita-
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ções sociais, no caminho contrário da nossa forma de o crescimento dos seios, o timbre de voz feminino,
ser interna, a tarefa será muito difícil, porque não o arredondamento das formas do corpo, a menstruação,
seremos espontáneos. fazem com que essa adolescente desenvolva dentro de si
A criança não nasce com regras sociais embutidas o sentimento de que pode gerar e amamentar, como a
em sua cabeça e, mesmo pequena, já possui um cérebro, maioria das mulheres. Surgem então as grandes pai-
embora não totalmente desenvolvido, o que lhe permite xões, muitas impossíveis ou inviáveis, pelo famoso joga-
"perceber claramente" quando um adulto está transmi- dor de vôlei, pelo ator de televisão, por um professor.
tindo algo sem convicção, "da boca para fora". Diante São os sentimentos de amor e de desejo sexual,
disso, ela reage, a sua maneira, embirrando, chorando, que muitas vezes elas não denominam dessa forma
ou quebrando o vaso de cristal. Torna-se então uma nem para si mesmas. Essas sensações, que surgem
criança "difícil". nos primeiros anos da adolescência, indicam que a
Somente nos últimos trinta anos, a Psicologia pas- sua escolha está se dando em direção a um homem, e
sou a ser estudada e ensinada entre nós e chegou à que sua orientação poderá ser de uma mulher heteros-
população através dos livros, dos jornais e da televisão. sexual. Estamos colocando a questão propositalmente
Até então não existia essa profissão no Brasil. Isso está no condicional porque essa orientação só será confir-
representando uma grande ajuda, mas algumas idéias
mada, ou não, na idade adulta.
mal-compreendidas têm levado pais a criarem seus
filhos sem limites. A liberdade excessiva, o medo de Na fase da adolescência a identidade e os papéis de
"criar traumas", acaba formando dentro de casa uma gênero já estão estabelecidos. O comportamento das
pequena tirana ou um pequeno tirano. moças é bem definido, grande parte estuda, trabalha e
já tem suas próprias opiniões. Muitas namoram e já
passaram por sua primeira experiência sexual. Essa
maneira de ser difere, dependendo de sua classe social,
do ambiente em que vivem e de sua formação cultural.
A partir do movimento feminista, que começou nos
Estados Unidos na década de 60, e chegou ao Brasil dez A primeira menstruação infelizmente não é come-
anos depois, as mulheres passaram a ter a chance de se morada em nossa sociedade, nem mesmo pelas mães.
comportar, socialmente falando, de maneira mais pare- Muitas deixam suas filhas na solidão do quarto, às voltas
cida com a dos homens. As roupas se tornaram unissex, com sentimentos de medo, dúvida, frustração e culpa.
cabelos longos ou curtos podem ser usados por homens Mas a natureza está dando o sinal de que, a partir
e mulheres e, com a difusão da pílula anticoncepcional daquele momento, a menina se tomou mulher, e está
e hoje da camisinha, o relacionamento sexual se tornou em condições de gerar e amamentar. Pode ser mãe.
mais livre. Entretanto, a desigualdade hoje ainda é Algumas poucas decidem que chegou o momento
muito grande. de ter dentro de si uma criança. Outras engravidam
As meninas que nasceram biologicamente fêmeas sem querer ou sem saber. A maioria deixa essa possi-
saudáveis, cresceram num meio familiar relativamente bilidade para mais tarde, para quando a vida estiver
equilibrado e estão tranqüilas quanto ao seu sexo reve- mais em ordem. Mas a primeira menstruação mudou
larão na adolescência qual será a sua orientação afeti- tudo em sua vida.
vo-sexual, que será confirmada ou não na vida adulta.

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Para essa grande maioria, onde está o tempo para
pensar, sentir, aprender e experimentar as nuances de
Quase todas as novelas de TV terminam com um seu papel afetivo-sexual? O papel foi assumido por
casamento heterossexual. Depois de mil encontros e "instinto", por "exigência" da natureza e se desenvolveu
desencontros, o par romàntico encontra-se em frente ao como foi possível. Trabalhando fora, sem chance de
altar, é abençoado e vive feliz para sempre. E nunca estudar, vivendo em condições precárias nos bairros
ficamos sabendo como continuou a história. distantes, essa mulher mal conhece suas emoções e
É comum que nós queiramos ter esse mesmo des- simplesmente "se casa".
tino, porque, afinal de contas, o principal motivo para a Pode ser virgem ou não e, nessas condições, isso
vida é a busca da felicidade. Ninguém, com um mínimo
nem faz tanta diferença para ela. Suas experiências
de equilíbrio mental, faz alguma coisa sabendo de ante-
sexuais anteriores podem ter sido insatisfatórias, às
mão que vai sofrer e ser infeliz.
pressas, e sem qualquer prazer. Orgasmo na primeira
No entanto, a nossa sociedade não facilita muito a noite com o marido, nem pensar. Para aquelas que se
trilha para a felicidade e, tantas vezes, "no meio do
casaram virgens, a principal recordação é a dor, que nem
caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do
sempre existe "fisicamente", ou a estranheza de ser
caminho". Se isso vale para todos nós, para a mulher
penetrada por um outro ser.
mais ainda. Além da liberdade sexual e de expressão, o
movimento feminista trouxe uma segunda preocupação: Considera-se que uma mulher heterossexual pode
a da profissionalização da mulher. levar até dois anos para ter o seu primeiro orgasmo
Colocamos como segunda preocupação porque, numa relação amorosa estável. Nesse ínterim, não é raro
além da formação profissional, a mulher heterossexual que já tenha um filho no colo e outro na barriga. O
"tem" que continuar com seu papel de boa mãe, boa planejamento familiar simplesmente não existe, e usar
esposa, boa dona-de-casa, se desdobrando numa dupla camisinha para quê, se os dois "são fiéis um ao outro e
jornada. Na primeira, em geral, não é remunerada. Na a Aids é um fantasma distante"?
segunda, quase sempre, é mal paga. Enquanto isso, o homem, seu companheiro, está
Claro que não podemos perder de vista a realidade alheio a tudo. Durante o dia ele foi massacrado na
brasileira. Para muitas mulheres, na verdade milhões fábrica, esmagado na condução lotada, humilhado pela
delas, não há profissionalização alguma, no sentido da falta de dinheiro e, com as últimas forças, encontrou
realização pessoal, mas apenas uma luta desesperada com dificuldade o caminho de casa. Na cama, de noite,
pela sobrevivência. São as cobradoras de ônibus, as a exaustão é mais forte que o desejo, e a anestesia do
faxineiras, as empregadas domésticas, as bóias-frias, as sono é preferível ao prazer do sexo.
telefonistas, as balconistas, as feirantes, e tantas e tantas. Outras, infelizmente poucas, são mais privilegia-
São em geral mulheres heterossexuais, casadas ou das. Receberam noções de orientação sexual, puderam
solteiras. Sua orientação afetivo-sexual se desenvolveu conversar em família sobre amor e sexo, sabem da vida
como foi possível e ela assumiu seu papel. Com exceção amorosa dos seus pais. Viajam, vão ao cinema, ao teatro,
de uma minoria que tem acesso à informação, à cultura, têm vídeo em casa, trabalham nas férias, curtem um
e até a um tratamento psicoterápico quando necessitam, pouco mais a vida.
as demais vivem como podem.

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Mas mesmo para elas as coisas não estão totalmen- Treinadas desde meninas para não tocar em sua
te resolvidas. Os padrões de comportamento de uma genítálía, muitas mulheres passam a vida sem passar
sociedade atravessam todas as classes sociais e nem pela experiência da masturbação. Isso não significa
sempre a fartura, o dinheiro, a formação em uma univer- apenas uma maneira de se excitar sexualmente, mas de
sidade são passaportes para viver com liberdade. conhecer, profundamente, o seu corpo e suas emoções.
Algumas, depois de toda uma vida de frigidez, desco-
brem o prazer do orgasmo com seu parceiro somente
depois de superarem a enorme barreira do tocar em si
mesma. Descobrir o próprio corpo é o primeiro passo
As mulheres mais esclarecidas sabem que têm vul- para uma relação a dois.
va, onde estão os grandes e pequenos lábios e o clitóris.
Para que a mulher heterossexual possa se vincular,
Já descobriram, ou pelo menos ouviram falar, que o
através de seu papel afetivo-sexual, a um homem, ela pre-
toque manual do clitóris pode levar ao orgasmo e que
cisa estar em paz com a sua identidade de gênero e sua
esse é o primeiro passo para o aprendizado de uma boa
identidade corporal, e especialmente com a sua identi-
relação sexual com prazer.
dade genital. Isso significa que ela precisa SE SENTIR
Será que sabem mesmo? Essas mulheres que vão MULHER, estar satisfeita com o fato de ter nascido fêmea
com regularidade ao ginecologista, em geral, mesmo fora e reconhecer o seu órgão sexual como uma parte do seu
do consultório, referem-se aos seus órgãos sexuais com corpo, tão importante quanto qualquer outra parte.
termos técnicos, como se estivessem tratando de um
O sexo é vital para a vida, pois, além do prazer que
aparelho que liga e desliga, funciona ou não funciona.
nos propicia, sem ele simplesmente não existiríamos.
Elas sabem que têm vagina, mas poucas se enchem Você só está lendo esse livro porque, anos atrás, seus
de coragem para observá-la num espelho e conhecer pais se amaram e desse ato resultou a gravidez de sua
todos os meandros da sua anatomia. Não têm uma idéia mãe e conseqüentemente o seu nascimento. Mas uma
muito clara de onde é o colo do útero e provavelmente coisa é o órgão sexual, e outra, muito diferente, é a
nunca ouviram falar do ponto "G" (ou ponto de Graffen- maneira como o sentimos, e como o utilizamos na nossa
berg), que fica logo depois da entrada da vagina, e é um vida amorosa.
dos pontos responsáveis pelo orgasmo vaginal. Sendo uma parte do corpo, você pode estar insatis-
O corpo humano tem no mínimo 20 e no máximo feita com ela por qualquer razão, inclusive de ordem
800 pontos erógenos, que tocados podem despertar o estética. Assim, não há motivo para não se recorrer a
prazer, como uma preparação para a relação sexual. Mas uma cirurgia plástica. Uma mulher pode reduzir o ta-
onde estão? Algumas, lendo ísso.já devem estar pedindo manho dos grandes lábios, alterar o formato do Monte
um mapa, pelo amor de Deus. de Vênus, onde estão os pêlos pubianos, ou tomar mais
Cada mulher heterossexual, sozinha ou com seu saliente um clitóris demasiadamente embutido.
parceiro, pode explorar seu corpo e o dele, descobrindo Estamos nos referindo a uma região do nosso corpo
esses pontos, que vão dos pés à cabeça. Isso é tarefa para que desperta emoções e sentimentos intensos e no caso
toda uma vida. dessas cirurgias a avaliação de um psicoterapeuta é
fundamental. Muitas pessoas, inconformadas com o
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formato do nariz, procuram um cirurgião plástico. Por a menopausa, voltar a ter filhos. Entretanto, se com o
mais competente que seja o médico, não é raro o pacien- consentimento ou não da mulher um homem a fecun-
te, ao se ver no espelho com "o nariz novo", chegar à dou, a lei brasileira proíbe que uma gestação seja inter-
conclusão de que ficou pior. O caso é que algumas vezes rompida, a não ser em casos específicos, como a gravidez
o problema está na cabeça e não no nariz. Infelizmente por estupro ou a que coloca em risco a vida da mãe.
a pessoa procurou o profissional "errado". Mesmo para estes dois tipos de aborto permitidos por lei
No Brasil, as cirurgias plásticas corretivas dos ór- são poucos os hospitais públicos que atendem a mulher
gãos sexuais da mulher ainda mal engatinham. para o ato cirúrgico e posterior acompanhamento.
Para interromper uma gravidez indesejada, a não
ser nesses dois casos, no Brasil é necessário burlar a lei.
Para essas mulheres, as conseqüências podem ser dra-
máticas, e uma grande quantidade delas morre por falta
Um homem pode mudar tudo em seu corpo e até de atendimento médico adequado.
alterar o seu sexo. Mas é impossível sentir e até mesmo Todo ser humano tem o direito de decidir sobre o
compreender o que sente uma mulher que está gerando seu corpo, seja homem ou mulher. Assim, apenas à
uma criança. Para os homens, não há qualquer possibi- mulher, e a ninguém mais, cabe o direito de decidir se
lidade de captar que sensações são essas de se ter dentro uma gravidez deve ou não ser levada adiante.
de si, no ventre, um outro ser. E mais: que espécie de
prazer ou desprazer é esse.
A partir do momento em que a mulher deseja ser
mãe e se percebe grávida, ela passa por um profundo Mulheres não são anjos e nem demônios.
processo de transformação, consciente ou não. Volta-se São seres humanos.
mais para si, e para o ser que está sendo gerado,
Entre elas existem as determinadas e as submissas,
intuitivamente alimentado-o e protegendo-o. Ela e o
as corajosas e as covardes, as amáveis e as desagradá-
bebê não se diferenciam e talvez não seja exatamente veis, as carinhosas e as cruéis.
correto afirmar que a mãe tem dentro de si uma criança.
A nossa cultura, infelizmente com a concordância
Aparentemente, ela não sente o bebê como outra pessoa
de muitas mulheres, tem transformado as relações de
mas como parte de si mesma, um pedaço de seu coração. amor, afeto e sexo em mercadoria. O corpo feminino
Durante o período de gravidez é comum surgir despido, hoje, ajuda a vender sabão, refrigerante, carro,
algum desentendimento entre o casal heterossexual. seguros...
Toda a atenção da mulher, que antes era dispensada ao Isso está se tomando tão confuso, que em muitos
homem, se transfere não para a criança, que ainda não painéis espalhados pela cidade já não temos mais certe-
nasceu, mas para si mesma. São momentos de crise, e za de qual é a "mercadoria" que está à venda. Se o
muitos homens se sentem abandonados. bronzeador ou a linda morena de tanga.
O mundo mudou muito. Para engravidar e gerar, a
Ciência estudou e conseguiu vários métodos. Por meio
de hormônios tornou-se possível fazer uma mulher, após

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tiomem que é homem não chora.
Mas o que é ser homem e, como a maioria, heteros-
sexual? É brigar na rua por não levar desaforos para
casa? É competir em tudo sem nunca admitir uma
derrota? É ser capaz, com seu dinheiro, de manter uma
família? É não lavar a louça e nem cuidar das crianças
quando a mulher está fora?
Muitos, entre os que gostam de contar vantagens
nas rodas de amigos, são servis no trabalho mas se
acham no direito de reinar absolutos no lar, "doce lar".
Os mais "liberais" e mais abastados concordam até que
a esposa trabalhe fora. desde que seja apenas para dar
"uma mãozinha" no orçamento doméstico, comprar ba-
tom ou outras bijuterias.
Abraçar e beijar a mulher e os filhos é "permitido"
às vezes, mas com grande economia de afetos. Não fica
bem demonstrar carinho, ternura. porque isso "não é
coisa de homem". Quanta diferença do namorado apai-
xonado, que um dia até comprou flores. "Como você
mudou", é a frase inevitável na boca de tantas mulheres,
confusas e decepcionadas com seus maridos.

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E o carinho com as outras pessoas, principalmente nasceu um bebê macho e se desenvolveu, em termos
se forem homens? Nem brincando. "Somos grandes biológicos, normalmente, sem qualquer deficiência. Ele
amigos", mas a aproximação máxima termina no aperto SE SENTE masculino e desenvolve um comportamento
de mão e no tradicional tapinha nas costas. O abraço adequado a esse gênero.
apertado só é permitido em ocasiões muito especiais, como Ao longo da infância e da adolescência, o contato
no Natal, no Ano-Novo, na final do campeonato de futebol. com a sua genitália foi relativamente tranqüila, e ele
Um homem entra numa loja para comprar apenas pôde descobrir, sem maiores conflitos, suas emoções,
seu primeiro amor e suas primeiras desilusões afetivas.
uma gravata. A balconista se aproxima, sorri, e faz uma
É na adolescência, quando os hormônios entram em
sugestão de cor e estampa. Que sorriso especial era
ação, que começa a se revelar a sua orientação afetivo-
aquele? Ele começa então a perguntar sobre ternos,
sexual. E é na idade adulta que a verdadeira orientação
camisas, meias, inflação e, finalmente "...a que horas afetivo-sexual vai se confirmar, podendo ou não ser
você sai?" A funcionária, desinteressada, certamente aquela revelada na adolescência.
nem ouviu a "cantada".
Muitos pais se preocupam com a preferência sexual
É a permanente confusão entre os papéis de gênero, de seus filhos na fase de adolescência e, no caso dos
que são os papéis comuns do nosso dia-a-dia, tais como rapazes, o medo de que se tornem homossexuais é muito
comprar, estudar, ir ao dentista, e o papel afetivo-sexual, grande. Alguns pais procuram se informar como podem,
em que estão envolvidos o amor, o desejo e o sexo. Para enquanto outros ficam inseguros achando que falharam
muitos homens heterossexuais, o simples contato com na educação. Toda essa preocupação é desnecessária
uma mulher já coloca em sua cabeça o "colorido sexual". porque o seu desenvolvimento, no devido tempo, vai
Eles parecem só pensar "naquilo". mostrar o caminho.
Em nossa sociedade, os meninos são "preparados"
para o desempenho sexual desde a mais tenra idade.
Essa forma de educação pode acabar impedindo que um
homem heterossexual, na idade adulta, tenha urna ver- O mundo, tal como o conhecemos, das eras mais
dadeira amizade com uma mulher. Ainda hoje, são raros remotas até hoje, é dominado pelos homens. Um ou
os homens que têm amigas, com exceção talvez dos outro caso isolado de sociedade matriarcal só confirma
pertencentes a uma pequena elite cultural. a regra geral. Esse domínio significa que ainda está só
É evidente que aos poucos as coisas estão mudan- nas mãos dos homens a decisão sobre o destino de
do. Muitos jovens de hoje já superaram essas barreiras nações, de impérios econômicos e até dos rumos e da
e comportam-se de maneira mais espontânea. A força aplicação da Ciência.
da televisão, e principalmente a da publicidade, está crian- Se para a sociedade o poder está com os homens,
do novos valores. O "machão" começa a ficar fora de moda. para eles mesmos o seu ponto mais forte, e estranha-
Muitos já se deram conta de que "ser homem" desse jeito
mente o mais frágil, está no pênis. Mesmo em culturas
é o caminho mais curto para, no mínimo, o infarto.
antigas, objetos de arte ou decoração retratam a figura
Homens heterossexuais são aqueles que desejam
do pênis ereto, geralmente desproporcional ao tama-
amar e se relacionar sexualmente com mulheres. Mas,
nho real.
para chegar a essa definição, o homem heterossexual

74 75
Para os homens, o pênis tem um valor inestimável dentro da normalidade um pênis ereto de 9 a 22 centí-
porque ele é o símbolo da sua masculinidade e da sua metros. O tamanho médio do pênis ereto fica entre 12 e
virilidade. Em geral, eles são muito preocupados com o 15 centímetros.
aparelho genital externo, pênis e bolsa escrotal. A não Um pênis ereto de 9 a 12 centimetros pode ser
ser que adoeçam, poucos se lembram de outros órgãos considerado normal embora pequeno, assim como os de
genitais internos, como a próstata. 17 a 22 centímetros são considerados grandes. O tama-
A identidade corporal de alguns homens heterosse- nho do pênis flácido nada tem a ver com o tamanho do
xuais, que é a sensação que têm de seu corpo, pode ser pênis ereto. Isso quer dizer que um homem que tem um
perturbada por suas próprias características fisicas. Por pênis flácido de la centimetros, quando ereto não é
exemplo, um acúmulo maior de gordura no peito, que necessariamente maior do que o de um homem cujo
pode dar a aparência de seio. Mas para corrigir esse pênis flácido mede 6 centimetros.
problema, basta uma cirurgia. O tamanho do pênis também nada tem a ver com
Uma barba muito rala ou a falta de pêlos pelo corpo a performance sexual. A vagina é um órgão elástico,
também pode ser um problema. Mas, o que traz um que pode se contrair ou se dilatar, na largura e na
transtorno, sem dúvida, é o tamanho das nádegas, profundidade, tanto que é capaz de dar passagem a
principalmente no Brasil onde essa parte é muito valo- uma criança no parto.
rizada nas mulheres. Alguns homens heterossexuais Na maioria das mulheres, o tamanho da vagina
passam a vida usando a camisa fora da calça, para varia de 8 a 12 centimetros de profundidade, por 4 a 7
disfarçar o seu constrangimento. centimetros de largura. Ela tanto pode abrigar um pênis
Todos esses caracteres sexuais secundários tam- de 9 centimetros e a relação ser muito boa, como receber
bém diferenciam homens de mulheres. E os homens, dentro de si um pênis de 20 centimetros e o ato ser
com problemas dessa natureza, podem recorrer aos igualmente satisfatório.
tratamentos possíveis. Seria sempre recomendável uma É um outro engano achar que os homens de pênis
avaliação psicológica, pois a sensação de possuir um maiores satisfazem mais as mulheres heterossexuais.
corpo não tão masculino pode não coincidir com a Na realidade, elas até preferem, na sua maioria, homens
realidade do corpo fisico. que tenham um pênis de tamanho médio. Outras estão
E há um outro detalhe. As mulheres heterossexuais totalmente despreocupadas com o tamanho do pênis
têm preferências variadas por corpos masculinos e nem ereto de seus parceiros, pois ato sexual envolve o corpo
sempre os homens estão informados sobre esses gostos. todo. O prazer nem sempre está relacionado só com a
Na realidade, se o homem está bem consigo mesmo, ele penetração. Até porque a maioria das mulheres tem
poderá estar bem com a sua identidade corporal. orgasmo a partir do clitóris.
O prazer sexual e o orgasmo fazem parte de uma
inter-relação. Mas ele também pode ser solitário. Tan-
to o corpo do homem quanto o da mulher podem
Existem mentiras ou enganos a respeito do tama- buscar o prazer por meio das carícias, do carinho,da
nho do pênis nos homens. É considerado normal um relação pele a pele. A preocupação dos homens heteros-
pênis flácido que tenha de 4 a la centímetros e está sexuais com o pênis pode levá-los a buscar um médico

76 77
para saber se o tamanho é normal, se está relacionado
com suas dificuldades com o orgasmo, ou se a ausência
de orgasmo de sua mulher está relacionada com o A avaliação médica do pênis em ereção é importante
para se determinar as causas da impotência. Em nosso
tamanho do seu pênis. Esquecem-se de que o orgasmo
país, até meados da década de 80, os homens impotentes
feminino não depende só deles. Mesmo um pênis de 7 eram vistos como pessoas que tinham problemas psico-
centímetros quando ereto (micro pênis) poderá propiciar lógicos a serem resolvidos pelos psicoterapeutas. De lá
uma boa performance em termos da penetração. para cá, a Sexologia e a Andrología, ciência que estuda
Existem cirurgias plásticas que podem modificar o o comportamento sexual do homem, começaram a des-
tamanho e a circunferência do pênis. Em geral, o órgão vendar os mistérios que existem nos pênis eretos.
pode ser aumentado em 2 ou 3 centímetros. Entretanto, Essa nova abordagem da Medicina resultou na
essas cirurgias têm uma indicação muito resU-ita e só descoberta de que uma quantidade muito grande de
devem ser procuradas nos casos em que o tamanho do homens impotentes necessitam muito mais do trata-
pênis possa estar sendo insuficiente para a penetração mento médico clínico do que do psicoterápico.
vaginal. No caso de uma cirurgia, é necessátio uma A impotência é um fantasma do qual os homens
têm verdadeiro pavor. Hoje um grande número de
avaliação psicológica anterior.
médicos e psicólogos se dedica ao estudo desse distúr-
Esses casos são raríssimos. Infelizmente, a nossa bio de funcionamento do órgão sexual masculino.
cultura supervaloriza o tamanho do pênis e isso, aliado Entretanto, homens em avançado estado de diabetes ou
à falta de informação, tem levado muitos homens a que sofreram um acidente e se tornaram paraplégicos
procurar tratamento cirúrgico sem necessidade. Existe ou tetraplégicos, e que não têm ereção, poderão ter
ainda um outro risco, pois nem sempre o atendimento também relacionamento sexual com as suas parceiras.
é feito por profissionais competentes, o que pode resultar Nessa situação, o modo de se obter o orgasmo não
num prejuízo para a saúde. será só genital, mas corporal, levando-se em conta o
corpo como um todo. Existem possibilidades, em caso
É importante que se diga que um homem com o
de impotência irreversível, da colocação de uma prótese
pênis nos limites normais, quando se torna muito preo- peniana, que é uma espécie de haste flexivel de silicone
cupado com seu tamanho, não deve estar bem Com sua dentro do pênis, o que só deve ser indicado por médicos
masculinidade. Provavelmente o seu "pênis mental" é também especializados em sexualidade.
que é pequeno. A ejaculação precoce, outro problema, tem causa
O pênis ereto era um órgão que não existia para a psicológica. Muitas vezes, o orgasmo rápido demais nos
Medicina e, no Brasil, o órgão em ereção só passou a ser homens pode estar relacionado com uma ansiedade,
pesquisado e tratado na década de 80. Na realidade, esse com a vontade de terminar "bem" a relação sexual, antes
órgão quando flácido tem algumas características e que ele "se perca".
quando ereto outras. Em casos de impotência e neces- Novamente a avaliação psicológica é importante.
Alguns médicos chegam a propor uma cirurgia para
sário, por exemplo, que se faça a medida de pressão do
reduzir a sensibilidade da cabeça do pênis, como forma
pênis, além de outros exames, porque existem algumas de corrigir a ejaculação precoce, o que é discutível por-
patologias (doenças orgânicas) que interferem na ereção. que não existe comprovação científica de sua eficácia.
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acontece com a maioria dos homens, e isso afeta até
mesmo o relacionamento de um pai com o seu filho. Um
Muitos homens heterossexuais confundem a sua pai intranqüilo com a própria sexualidade pode, até sem
identidade de gênero com desempenho sexual. Os ho- pensar. ter um relacionamento "distante" com o filho.
mens heterossexuais SE SENTEM HOMENS, têm certeza Além do pavor da atração por um homem, há outro, pior,
de que são masculinos no seu corpo e na sua cabeça, que é o terror inconsciente do incesto, entre eles.
mas alguns se atrapalham no trabalho, por exemplo, Até que ponto a extrema competição entre os ho-
quando alguma coisa deu errado na cama, na noite mens não tem, lá no fundo, um pouco desse medo?
anterior. Como ser cooperativo com alguém que representa "ta-
Uma dificuldade qualquer de ereção, coisa absolu- manho risco"? Será que um pequeno favor, uma genti-
tamente normal, transforma-se num pânico. Algo que leza. não estaria escondendo "algo proibido"?
poderia ser facilmente resolvido com a parceira entre O código de conduta entre os homens é rígido e
quatro paredes, passa para a vida do cotidiano. Assim explícito. mas também implícito. e muitas relações do
como nosso estômago às vezes funciona mal, com o gênero estão escoradas nessa preocupação de ordem
pênis pode acontecer o mesmo. sexual. Um homem só cede seu lugar no õnibus a um
Quando isso se dá, é como se "toda" a masculinida- outro se este for muito idoso ou estiver passando mal.
de tivesse "ido para o brejo". Alguns, competentes pro- Cabe lembrar também que esse medo vem muito da
fissionais, se tornam inseguros diante do chefe. Outros influência cultural e social e, aos poucos, vai desapare-
ficam melancólicos e não são poucos os que descarre- cendo. Os homens que. hoje, no meio da década de 90,
gam com violência a sua frustração no trânsito. O pior estão chegando à idade adulta já não enfrentam tanto
é que depois de um dia estressante como esse, o desejo esse problema. Alguns, propositadamente, assumem
sexual está liquidado, pondo a pique, de uma vez. o pênis uma aparência feminil. com cabelos longos e bem-trata-
dos. Pelo visto, fazem grande sucesso entre as garotas
e tudo o mais.
da mesma idade.
Outro pânico incontrolável se instala quando um
Os homens heterossexuais podem e devem se rela-
homem heterossexual começa a ter medo da homosse- cionar com os outros homens sem qualquer preocupa-
xualidade. Depois de ter passado toda uma vida ouvindo
ção. Grandes amigos devem ter a liberdade de se abraçar
dos pais e do mundo que tem de ser homem, a idéia, e de se beijar. sem qualquer risco de, depois disso,
mesmo remota, de que possa sentir "algo" por outro transformarem-se em homossexuais, até porque isto
homem é simplesmente terrivel. O medo de ser homos- não é possível. Em alguns países, como a Rússia, o beijo
sexual se chama homofobia. entre homens é sinal de profundo respeito e faz parte do
Essa situaçâo é particularmente grave não só por- protocolo entre as autoridades.
que afasta, sem qualquer razão, os homens uns dos O companheirismo entre homens é absolutamente
outros, mas também porque pode ser motivo para vio- necessário e saudável e, em alguns momentos da vida,
lências e crimes. Quantas mortes já não aconteceram a um homem fragilizado precisa encontrar apoio em outro
partir de uma brincadeira ingênua, ou de uma palavra homem. Problemas de homens seriam melhor com-
impensada, entre dois homens? preendidos por outros homens mas, com tantas dúvidas
As mulheres não têm esse problema. Costumam ser sexuais, o máximo de ajuda que se consegue pedir é
amigas mais próximas umas das outras, o que já não apenas algum dinheiro emprestado.

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É evidente que se homens heterossexuais ficarem. ele e agora chegou mais alguém. E, de repente, todo o afeto
durante anos confinados em espaços onde não exista a que recebia da mulher é transferido para a criança. Insta-
possibilidade de contato sexual com o sexo oposto, eles la-se então uma verdadeira crise "pós-parto masculina".
poderão "estar", durante algum tempo, homossexuais. O bêbe começa a se tomar um rival para ele, ainda
Isso é comum em presídios e, embora hoje, no Brasil, se que seja amado e desejado. Equacionar esse "triângulo
permita a visita de companheiras para o relacionamento amoroso" não é fácil, e o próprio casamento pode passar
amoroso, nem todos têm essa chance.
por dificuldades. Alguns chegam a romper a relação
Esses homens poderão estabelecer relações homos- amorosa por causa desse conflito, afastando-se, retor-
sexuais de sexo e até de afeto. O que não quer dizer que a nando um pouco mais tarde, ou nunca mais voltando.
partir daí esses homens mudaram a sua orientação afeti-
E o motivo não foi o choro permanente do bebê.
vo-sexual básica. Assim que ele deixar a situação de
confmamento, provavelmente voltará a se relacionar com A natureza não possibilita aos homens compreen-
mulheres, sem nenhum problema. der os sentimentos de uma mulher grávida e de uma
Alguns homens heterossexuais também podem so- mãe. Um homem não consegue se colocar nesse papel,
frer de heterofobia. Esse é o nome que se dá para os no que diz respeito às emoções. Diante dessa "crueldade"
homens que têm um medo muito grande do relaciona- da natureza com os homens, não há outro caminho a
mento afetivo e amoroso com mulheres. Alguns são não ser as mulheres falarem, o quanto puderem, com os
solteirões, outros até certo ponto "assexuados". seus companheiros, sobre o que estão sentindo durante
Quem nunca ouviu falar do amor sem sexo? Muitos a gravidez, o parto e a amamentação.
homens passam a vida tendo um relacionamento platõ- Num primeiro momento, provavelmente os homens
nico com mulheres, numa verdadeira "amizade amoro- levarão um tremendo susto, ficarão pálidos, e se senta-
sa", sem relacionar-se sexualmente com elas. Eles não rão na cadeira mais próxima, "para disfarçar a vertigem".
são homossexuais, e resolvem essa parte da vida com Mas é um risco que vale a pena, para o bem de todos.
mulheres com quem não tenham um vínculo amoroso.
Todos esses problemas mencionados são alterações
da orientação afetivo-sexual heterossexual, que pode-
riam ser atendidas através de um tratamento psicoterá- O mundo está nas mãos dos homens. Eles mandam,
pico. Em nosso país, porém, o serviço público de saúde desmandam e têm a "liberdade" de cometer todo tipo de
ainda engatínha na possibilidade de oferecer às pessoas desatino. São mais "inteligentes", mais "competentes",
a psicoterapia. mais "fortes". No entanto, em todo o mundo, o homem
vive menos que a mulher.
Será outra "crueldade" da natureza? Ou dos pró-
prios homens, que além de desconsiderarem a mulher
Quando um homem heterossexual se toma pai, ele passam o tempo todo se discriminando e, em última
se enche de orgulho, que será maior se for um menino. análise, se autodestruindo? As mulheres estão cada vez
Distribui charutos ou bombons e às vezes toma um mais organizadas, assumem novos papéis, alteram seu
"porre". Mas, e depois? A mulher amada era tudo para comportamento, lutam, brigam por seus direitos, exigem
tratamento justo.
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E os homens? Permanecem sentados à beira do
caminho vendo a caravana passar. Agora, com o avanço
feminino, começam a ficar desestruturados. Quando
levam uma "cantada" de uma mulher, coisa que fazem
há milênios sem qualquer cerimônia, entram em pânico,
coram ou simplesmente saem correndo.
O mundo precisa com urgência de um movimento
"masculinista", que propicie um relacionamento de igual
para igual com as mulheres e também para tirar dos
ombros dos homens um fardo absurdo, que deveria ter
sido jogado há tempos nos subterrâneos da histôria.
3
Afinal, fardos são para serem carregados por máquinas
ou, se preferirem, por burros de carga. Não por seres
humanos.
Quem sabe um dia os homens descubram que o
"poder" dividido com as mulheres fica mais leve e que
assim possam viver tanto quanto elas.
() que são homens homossexuais?
Antes de tudo, são HOMENS que nascem biologica-
mente machos.
Os homens homossexuais são aqueles que têm
como objeto de amor e desejo um outro homem. Essa é
a única diferença em relação aos demais homens, o que
se dá na orientação afetivo-sexual.
Podemos dizer que essa orientação homossexual
tem apenas alguma semelhança com a das mulheres
lésbicas, uma vez que, nos dois casos, o objeto do amor
e do desejo é sempre uma pessoa do mesmo sexo.
O comportamento de um homem homossexual não
é igual ao de uma mulher lésbica. Na medida em que são
seres biologicamente diferentes, cujas identidades de
gênero são respectivamente masculina e feminina, os
papéis que vão desempenhar na vida, inclusive o sexual,
não poderão ser iguais.
As estatísticas apontam como sendo de 10% a
população homossexual no mundo. Esses dados prova-

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velmente incluem as mulheres lésbicas, os bissexuais, significa que estas pessoas se relacionarão, com relação
os travestis e os transexuais. Isso significa que quando ao papel visível, com mulheres. Entretanto, internamen-
nos referimos especificamente aos homens exclusivamente te, o desejo amoroso e sexual de se relacionar com um
homossexuais, essa porcentagem deve ser muito menor. homem não desaparecerá.
Alguns homens homossexuais, quanto ao seu com- Quando isso acontece, esse homem homossexual
portamento sexual e amoroso, têm a possibilidade de certamente poderá dar um outro encaminhamento ao
escolher, de forma madura, se desejarão ou não se seu verdadeiro desejo, vivendo-o apenas nas fantasias e
relacionar exclusivamente com outros homens. Entre- nos sonhos. Outros escolhem o caminho da sublimação,
tanto, quando falamos da orientação afetivo-sexual, que "transformando" esse desejo em energia para ações mais
é algo interno, um sentimento que está dentro da pessoa, "nobres", como tarefas sociais ou religiosas. O desejo,
não é possível impedi-lo. mesmo "transformado", continuará existindo dentro
dele e poderá até não incomodá-lo.
Infelizmente, os meios de comunicação, por desco-
nhecimento do assunto, vêm insistindo na tese de que
ser ou não homossexual é uma questão de escolha
pessoal. Isso não é verdade. O máximo que pode acon-
tecer é a pessoa optar por exteriorizar ou não a sua O homem homossexual ao nascer é um bebê macho
orientação sexual. Se uma pessoa tem dentro de si uma como qualquer outro. Ele não traz qualquer alteração
orientação homossexual estabelecida, é possível que ela biológica interna ou externa, e nada permite dizer que
seja imutável. aquela criança, no futuro, será um homossexual. Em
Fazemos aqui uma ressalva. Alguns homens são nossa cultura, casal algum quando tem um filho deseja
"pseudo-homossexuais", porque dentro de si a escolha que ele seja um homossexual. O mundo é regido pelo
do outro para amor e sexo seria do sexo oposto, ou seja, império da heterossexualidade, uma vez que essa con-
heterossexual. Como são heterofóbicos, ou seja, têm dição representa a maioria demográfica dos seres huma-
medo interno exagerado do sexo oposto, podem se rela- nos, que, por sua vez, discrimina as minorias sexuais.
cionar de forma homossexual, como uma saída. Resol- Dessa maneira, o comportamento dos pais, dos
vendo a heterofobia, poderão assumir sua heterosse- familiares, seus cuidados com o bebê, a forma como o
xualidade. Alguns dirão: "o doutor fulano curou-o do trata e o educa na infância será sempre no sentido de
homossexualismo". Mas, na realidade, o que aconteceu "encaminhá-lo" para um relacionamento com o sexo
foi a liberação de uma heterossexualidade aprisionada. oposto. Mesmo assim os homens homossexuais poderão
não ter conflito quanto à sua identidade de gênero.
Do ponto de vista cientifico, ainda não foi possível
saber porque alguém tem essa orientação. E nem mesmo A partir dos 2 anos e meio, aqueles que futuramente
como se dá a orientação afetivo-sexual dos seres huma- serão homossexuais passam a sentir-se MASCULINOS
nos, sejam hetero ou homossexuais. e aceitam isso com naturalidade. O mesmo acontece com
os demais meninos. Na idade adulta, eles SABEM que
Alguns homens, basicamente homossexuais, a par-
são homens, SENTEM-SE homens e comportam-se
tir de um determinado momento da vida, de uma cir-
como homens nas relações sociais. É totalmente falsa a
cunstância ou de um envolvimento amoroso muito
idéia de que um homem homossexual deseja ser mulher
intenso com uma mulher, passam a ser bissexuais. Isso
ou pensa que é mulher.

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Certa maneira de se criar um menino poderá fazer brincadeiras. embora envolvam os órgãos genitais. nada
com que ele seja mais delicado. aparentemente feminil, ou têm de sexual no sentido do desejo e da busca do prazer.
que não tenha as características que a sociedade considera São apenas brincadeiras como tantas outras. que visam
como masculinas. Entre elas estão a competitividade e a também a descoberta do corpo.
agressividade. Sua ausência. no entanto. não quer dizer que São raros os homens que. nessa fase da vida. não
ele esteja exteriorizando uma orientação homossexual. fizeram troca-troca. A brincadeira. de tão popular. dis-
Alguns pais entram em verdadeiro pánico quando pensa explicações. E nem por isso tornaram-se homos-
pegam o filho inocentemente brincando com uma bone- sexuais. E os que mais tarde perceberam uma
ca. o que é saudável, pois está "treinando"o papel de pai. orientação homossexual certamente não foi por causa
Ficam desesperados quando o pequeno garoto começa dessa brincadeira.
com trejeitos "femininos" e nem por um minuto param
Por volta dos 5 ou 6 anos. a sexualidade está latente
para pensar que a criança poderá estar apenas imitando
no que diz respeito à orientação futura. Os meninos que
um personagem da 1V ou experimentando como é ser
do gênero oposto ao seu. nessa fase já carregam dentro de si "um leve sentimento"
identificado como desejo homossexual poderão sentir
Algumas mães aflitas. com um pouco mais de esco-
algo estranho durante as brincadeiras "sexuais" com os
laridade e dinheiro. correm para o psicólogo. O pai.
mesmo prevendo uma provável atitude tranqüilizadora outros garotos. No entanto. a sua orientação está em
do terapeuta. apressa-se em matricular o garoto numa formação e ela só poderá ser confirmada na idade adulta.
escola de judô e passa a levá-lo. domingos seguidos. ao Alguns homossexuais afirmam que tiveram esse
estádio de futebol. sentimento na infáncia. "Eu sabia que era homossexual
Com exceção da busca de uma boa orientação desde criança porque sentia atração pelos meninos".
psicológica. evidentemente válida mais para os pais do Entretanto. um grande número de homens heterosse-
que para a criança. as demais atitudes são incorretas. xuais contam que tiveram esse mesmo tipo de sentimen-
descabidas e só fazem prejudicar o filho. Sua cabeça to e nem por isso se tornaram homossexuais.
pode ficar confusa. porque para ele a boneca é um
brinquedo como qualquer outro. E quem perguntou a
ele se gosta de judô ou de futebol?
Seria muito bom que os pais criassem os seus filhos É na adolescência que a orientação afetivo-sexual
de uma forma mais tranqüila. Mesmo que o menino começa a se explicitar. O rapaz sente-se "diferente". algo
tenha algumas características que fujam ao padrão de interno que ele não pode ou não consegue comunicar a
masculinidade determinado pela sociedade isso deve ser ninguém. Na sua cabeça. os sentimentos relacionados
encarado com naturalidade. Não há nada de anormal com a sexualidade homossexual representam assuntos
nisso e é um grande engano pensar que meninos sensí- proibidos pela família e pela sociedade.
veis serão homossexuais.
Quem hoje. na década de 90. tem 30 ou 35 anos
Outro pânico é instaurado. desta vez envolvendo
foi criado antes da revolução sexual. que chegou ao
também professores. quando garotos. na Infância, são
Brasil na década de 70. Antes disso. sexo era uma
descobertos em meio a uma brincadeira "sexual". O
termo está propositadamente entre aspas porque essas conversa proibida.

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Aos poucos. esse rapaz começa a perceber por que O conflito interno que os homens homossexuais
se sente diferente dos demais. Sua orientação. no caso trazem dentro de si nasce da sociedade. Ninguém faz
homossexual, está se consolidando e surgem os desejos uma opção por um modo de vida que sabe será discri-
e as fantasias dirigidos para outros homens. Ainda há minado. Para estar tranqüilo. o homem homossexual
uma sensação de estranheza. pois durante toda a sua precisa ter resolvido dentro de si essa proibição. que é
vida o meio social procurou encaminhá-lo para a hete- social. mas que está dentro dele. porque também está
rossexualidade. Há uma confusão interna entre amiza- dentro de todas as pessoas.
de. amor e desejo sexual. Na medida em que ele consegue resolver esses
Uma amizade muita intensa entre dois rapazes não conflitos. poderá assumir-se para si mesmo como um
é bem vista pela família. O relacionamento entre amigos homem homossexual. Esse caminho. para muitos, é
adolescentes "precisa" ter características bem heteros- tortuoso. problemático. dificil e cheio de obstáculos. Não
sexuais. Ela não deve ser sensualizada e esse afeto não há com quem falar. com quem conversar. e a sensação.
pode ser explicitado através do corpo. com gestos amis-
embora falsa. de ser o único a estar nessa situação é
tosos. Na realidade. a amizade entre os seres humanos
tem algo de sensual. Isso não quer dizer que envolva algo terrível.
de erótico ou de sexual. Com a ajuda de uma psicoterapia. de amigos. de
A certeza da homossexualidade só estará clara den- pessoas que possam compreender a situação ou de
tro do homem na idade adulta, após os primeiros anos grupos de militáncia homossexual. o homem homosse-
de juventude. O rapaz homossexual dá então outro xual pode se aceitar e se assumir. É bom lembrar que
passo. no sentido de explicitar e de concretizar a sua estamos falando de sensações íntimas. internas. de um
orientação afetivo-sexual. Ele começa a se reconhecer ser humano. A sociedade banalizou o verbo "assumir" e
como homossexual, para si mesmo. a partir do desejo ele perdeu o significado. Quando um homem homosse-
por outros rapazes. Nesse momento inicia-se o desen- xual se toma "visível" para a sociedade ele não está
volvimento do seu papel afetivo-sexual. assumindo nada. Está apenas exteriorizando publica-
mente a sua orientação afetivo-sexual.
Esse homem homossexual só se estabilizará psico-
lógica e emocionalmente quando aceitar esses sentimen-
tos e esse modo de vida para si mesmo. E quando tiver
claro para si que são sentimentos e um modo de vida
A sociedade é homofóbíca, ela tem medo. verdadeiro
ainda condenados e abominados pela sociedade. Com
pavor da homossexualidade. E esse é um sentimento
isso, ele não mais incorporará para si o que pensa a
coletivo tão forte que está. em maior ou menor intensi-
sociedade a seu respeito.
dade. dentro de todas as pessoas. sejam elas hetero ou
Para se aceitar homossexualmente. o homem passa
por quatro momentos. O sentir-se diferente. o começar homossexuais. Quando um homem homossexual é ho-
a dar um sentido sexual a essa diferença. o reconhe- mofóbíco. isso quer dizer que ele não promoveu a con-
cer-se como homossexual por meio do papel afetivo-se- tento a sua aceitação dessa forma de ser. Além de ter,
xual com outros e. finalmente. o aceitar esses injustificadamente. algo contra as pessoas homosse-
sentimentos e esse modo de vida. xuais. há o agravante de que ele é uma delas.

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Muitos homens heterossexuais também são homo- "desmunheca". Isso é uma bobagem. um clichê. um
fóbicos e esse sentimento poderá atrapalhar muitas molde. Apenas uma minoria de homens tem na aparên-
coisas em sua vida. em seus relacionamentos. A diferen- cia algo feminino e se comporta com "trejeitos" caricatos
ça é que ele "não é homossexual" e a sua agressividade de mulher. Esses homens tanto podem ser homosse-
se volta para outras pessoas. xuais quanto heterossexuais. A grande maioria dos
Um outro sentimento que pode aparecer no homem homossexuais é máscula, viril. e se comporta como
homossexual. ainda intranqüilo quanto a sua orientação. HOMEM. Alguns são inclusive "machistas" na forma de
é a heterofobia, ou seja. o medo de se relacionar com agir e de pensar. Quem poderá dizer que o cantor Fred
mulheres. Esse medo pode aparecer nas relações sociais. Mercury tinha aparência feminina?
o que não é comum. mas principalmente diante da possi- Aspectos masculinos ou femininos estão relacio-
bilidade de uma relação sexual. nados com o papel de gênero. ou seja. com o compor-
Há um senso comum na sociedade de que homens tamento social. que varia de cultura para cultura e de
homossexuais não "suportam mulheres". Na realidade. época para época. Quem é que encontra hoje na rua
a referência vale. com o devido desconto ao exagero. um jovem de fartos bigodes. com as pontas voltadas
apenas para os homens homossexuais heterofóbícos, para cima? Isso foi comum no início do século.
uma minoria. Os jovens hoje são cada vez mais unissex na apa-
A heterofobia é um sentimento que pode ter sua raiz rência. Seriam eles todos homens homossexuais? Claro
no relacionamento que esse homem homossexual teve que não, apenas o tempo mudou.
com seus pais na infância. É um problema que pode ser O que ocorre é que alguns poucos homens homos-
resolvido. Nada faz crer que um homem homossexual; sexuais um tanto "afeminados" revelam publicamente a
por ter essa orientação. deva temer relacionar-se sexual- sua orientação sexual e se tornam "tipos" para a socie-
mente com mulheres. Ele pode muito bem ser "cantado" dade. Outro fato que reforça essa visão tendenciosa é a
e desejado por alguém do sexo feminino e ter com ela força da televisão. onde o homem homossexual é sempre
uma relação sexual. Nada o impede que também tenha tratado de maneira caricata ou depreciativa.
atração sexual por mulheres. embora não as escolha A sociedade agora está começando a abrir mais
como parceiras. espaço para os homens menos masculinizados. sejam
homossexuais ou não. No entanto. quem caminha pelos
guetos gays. principalmente nos Estados Unidos. se dá
conta de que a maioria deles é composta de homens
homossexuais másculos, ou como ainda se diz. "homens
Os temas pouco discutidos pela sociedade acabam
com "H" maiúsculo.
sempre contaminados por mitos e preconceitos. Precon-
ceito é uma idéia preconcebida. baseada no desconheci-
mento da verdade sobre um fato. E se há muitas dúvidas UM f)()UC() [)~ LUZ
sobre o tema sexualidade. a homossexualidade está
saturada de idéias falsas e absurdas. Apesar de todo o malefício que está causando à
Uma dessas idéias é a de que o homem homosse- humanidade. a Aids trouxe pelo menos duas conseqüên-
xual é sempre o afeminado. o afetado. aquele que cias positivas. A primeira foi fazer a Ciência se debruçar

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profundamente sobre a questão da imunidade biológica. Depois de pesquisar 3.854 pessoas com idade entre
A segunda foi fazer a sociedade se acostumar mais com 25 e 46 anos. numa época em que a Aids ainda não
a existência de homens homossexuais em seu meio. existia. o estudo concluiu que 64% dos homens homos-
Quando se fala em homossexuais. a tendência é sexuais não eram promíscuos e que 39% mantinham
pensar que todos eles são iguais. Isso é um grande um vínculo amoroso e sexual estável.
engano e uma visão estreita do mundo. porque os
Um grupo de cerca de 20% era composto pelos
homens homossexuais são tão diferentes entre si
chamados homens homossexuais funcionais. Nesse seg-
quanto todos os demais seres humanos. Eles estão em
todas as camadas sociais. São ricos ou pobres. inteli- mento não havia vínculo amoroso e eles relacionavam-se
gentes ou limitados. honestos ou desonestos. com um número elevado de parceiros. Constituía-se em
Também não é verdade que os homens homosse- boa parte de homens jovens.
xuais são mais sensíveis e portanto têm grande pendor O restante do universo pesquisado era constituído
para as artes. Isso é um mito. Entre os homens homos- de homens homossexuais "assexuados" que não se acei-
sexuais estão gerentes de banco, vendedores. motoristas tavam bem ou que mantinham relações sexuais apenas
de táxi. grandes investidores e. também. artistas. esporadicamente. Estes somavam 25%.
Como a população homossexual corresponde a Embora não exista no Brasil uma pesquisa desse
cerca de 10% da população mundial, se transferirmos tipo com os homens heterossexuais. a nossa experiência
isso para o Brasil de hoje teremos perto de 15 milhões
clínica mostra que a maioria desses homens se vincula
de pessoas homossexuais. E. infelizmente. não temos
15 milhões de artistas! Essa falsa impressão de que a mulheres. uma parcela só mantém relacionamentos
todo homem homossexual é artista ou vice-versa de- sexuais e um número considerável permanece "assexua-
corre do fato de que. no mundo cultural e das artes, do" por escolha ou impossibilidade emocional.
eles se tornaram mais visíveis socialmente. Isso significa que as dificuldades de relacionamento
íntimo não estão diretamente ligadas ao tipo de orienta-
ção afetivo-sexual.
Os homens homossexuais também são singulares A revista Veja, de maio de 1993, trouxe uma reporta-
na sua maneira de se relacionar amorosa e sexualmente. gem de capa sobre a situação dos homossexuais brasi-
Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos em 1978, leiros. com destaque para uma pesquisa realizada pelo
que demorou dez anos para ser concluída. mostra bem Ibope. Depois de ouvir 2 mil pessoas. a pesquisa conclui
essas diferenças. O livro Homossexualidade - Informe que 50% já admitem conviver com homossexuais em seu
Kinseyl concluiu que existem cinco tipos de relaciona- bairro, local de trabalho ou em clubes que freqüentam.
mentos entre homens homossexuais. Mas trouxe também outros dados preocupantes.
Dentre os entrevistados. 36% não contratariam um
1. Homossexualidade - Informe Kinsey: Trabalho publicado em homossexual para a sua empresa, mesmo que ele fosse
1978 a partir de pesquisa realizada entre homossexuais em São
Francisco. Califórnia, EUA. No estudo. subvencionado pelo Insti-
o mais qualificado. No caso de uma eleição. 47% muda-
tuto Nacional de Saúde Mental dos EUA. foi utilizada a base teórica riam seu voto caso descobrissem que seu candidato é
formulada por Alfred Kinsey. É, até o momento, a pesquisa mais homossexual.
ampla e rigorosa sobre o estilo de vida dos homossexuais.

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E, finalmente, 79% ficariam tristes se tivessem um VAIS ~ -=ILti()S
filho homossexual e 8% seriam capazes de castigá-lo por
As famílias. em geral, lidam muito mal com o fato
isso. Os números falam por si. Sem comentários.
de te~em filhos homossexuais. Recentemente, umjovem
~me~cano deu o seguinte depoimento, publicado em
-=()[;>ÇA ()() STATUS
Jo~naIS dos Estados Unidos: "Se eu pudesse optar pela
No ambiente de trabalho. quanto maior for a impor- mmha sexualidade. logicamente escolheria a heterosse-
táncia do cargo ocupado, menor será a discriminação. A xualidade. Seria uma enorme burrice de minha parte eu
partir do momento em que uma pessoa atinge um status optar por a~go que é socialmente discriminado. dificul-
social elevado. ou passa a ser necessária para a socie- tado e considerado amoral e pecaminoso".
dade, como é o caso dos cientistas, a sua orientação Se uma família discrimina um filho porque ele tem,
sexual torna-se secundária. Claro que existem exceções. como ser humano, um único papel, o afetivo-sexual
Mas são raros os casos de que se tem noticia, pelo menos diferente da maioria. ela está dificultando muito a sua
no Brasil, de profissionais competentes que perderam o vida. Seria muito bom se os pais pudessem se perguntar
emprego apenas por sua orientação homossexual. Ou eles o que eles desejam para os seus filhos.
não teriam tido a coragem de denunciar a discriminação? Os pais desejam que seus filhos sejam seres huma-
Essa é uma questão delicada, pois alguns homens nos respeitáveis, alegres, satisfeitos, felizes e que te-
homossexuais sentem-se profissionalmente persegui- nham uma vida saudável? Ou querem para seus filhos
dos, e acreditam que isso acontece por causa de sua orien- a r~alização de um desejo, deles próprios. que não foi
tação sexual. É dificil saber com certeza, mas muitas satisfeito?
vezes uma demissão pode ocorrer mais por razões polí- Quando ~~ pai diz ao seu filho "prefiro pegar na
ticas ou até mesmo funcionais do que por outra coisa. alça do seu caixao a descobrir que você é bicha" ele não
Ou mesmo por pura discriminação inconseqüente. Nenhu- esta.:á pensando só em si mesmo ou naquilo' que ele
ma empresa vai demitir o seu principal gerente, que está supoe que a sociedade esteja pensando dele?
trazendo grandes lucros, apenas porque ele é homosse- Esse pai está mostrando que não tem o mínimo
xual mas tem um comportamento social adequado. interesse nem o mínimo respeito por seu filho. Na
No entanto, em algumas profissões, é proibida a verda~e, não quer que o filho seja algo que está mal
entrada de um homem homossexual. Entre essas profis- resolvido dentro dele próprio. O problema não é dele
sões está o serviço militar. A discussão sobre a presença ~ai. O problema é do filho. E o filho é que vai ter de
de homens homossexuais nas forças armadas tem sido lidar com todas as dificuldades que a vida oferece a
muito forte nos Estados Unidos. um homossexual.
No que diz respeito à religião, a discriminação é . Os pais precisam entender que não são responsá-
muito grande entre aquelas de origem cristã. Para essas, veis pela homossexualidade de seus filhos. ao contrário
a homossexualidade é um pecado grave e inaceitável. O do que dizem algumas teorias psicológicas. Se as teorias
estive.ssem certas, nós já poderiamos, ao longo de quase
mesmo j á não ocorre com as seitas de origem africana.
um seculo da Psicanálise de Freud e de outras teorias
O candomblé, por exemplo. tem muitos pais-de-santo psicológicas e psiquiátricas, ter descoberto a forma de
homossexuais. que são tratados com respeito e veneração. evitar ou "consertar" a homossexualidade.

96 97
Melhor seria se homens e mulheres homossexuais
pudessem se tornar visíveis, ser aceitos, e conviver
As leis, principalmente no Brasil, também devem
normalmente na sociedade, denunciando e lutando con-
ser revistas. Os homens homossexuais não precisam tra qualquer discriminação ou preconceito.
criar um vinculo jurídico, na forma de um casamento.
Entretanto, a lei deveria repensar os casos nos quais dois
homens se vinculam, vivem um relacionamento estável UM MUN()() ()~ ()UAS CAVAS
durante anos, constroem um patrimônio e prever, no caso
da morte de um deles, como fica a partilha dos bens. A sociedade em que vivemos se mostra, na defesa
Essa partilha deveria ser mais justa, pois os bens de seus valores, muito contraditória, para não dizer
foram obtidos pelo esforço conjunto. Não existe no Brasil hipócrita. Não há um único ser humano que não defenda
jurisprudência para resolver esses casos. Quando um a solidariedade, o amor e o direito à vida. No entanto, o
dos parceiros morre, seja por acidente ou doença, e não texto que você vai ler a seguir, sem comentários, é o retrato
deixa claro em testamento como deverá ficar o patrimô- cruel e acabado de um mundo que tem duas caras:
nio dos dois, muitas vezes o outro parceiro acaba sendo
muito lesado em função da família, que será a única .~ Força Aérea me condecorou por matar dois

herdeira legal. homens no Vietnã e me expulsou por amar um".


A lei deveria prever que pessoas não-heterossexuais
pudessem estabelecer algum tipo de vinculo legal, que . Assinado por Leonardo Matlovich, soldado da Força
não precisaria ser o casamento, mas levasse em conta a Aerea Americana. Foi condecorado por sua atuação na
previdência social e o patrimônio material construído. Guerra do Vietnã e expulso da corporação em 1975 por
Muitos casos estão acontecendo no Brasil, por morte homossexualismo.
pela Aids, e os advogados não encontram saída para
isso. Por que duas pessoas que estabelecem uma parce-
ria amorosa estável não podem ter os mesmos direitos
previdenciários dos casais heterossexuais?

A ()VçÁ() V~L() C3U~T()

Como forma de resistência à discriminação, os ho-


mens homossexuais acabam criando pontos de encontro
onde podem conviver mais livremente. São bares, sau-
nas, clubes ou os grupos de amigos ou de militância.
Sendo tão discriminados, os homens homossexuais e
também as mulheres lésbicas sentem necessidade social
de conviver em grupo, longe do controle da sociedade
heterossexual.

98 99
~asce uma menina.
Essa criança, desde o nascimento, tem um destino
traçado pela sociedade. Ela deverá se comportar como
menina, como moça, escolher um homem para se rela-
cionar, casar, ter filhos. Deve se dedicar basicamente à
família, ao marido, à casa. Ela poderá até mesmo ter
uma profissão, mas isso é secundário. As fanúlias dese-
jam sobretudo que suas fílhas encontrem a felicidade
amorosa com alguém do sexo oposto.
No entanto, o caminho natural de vida para algu-
mas mulheres não é esse, principalmente quanto ao
amor. Seus desejos e seus afetos vão em outra direção.
São FÊMEAS, SENTEM-SE MULHERES, comportam-se
de maneira feminina, mas desejam vincular-se afetiva e
sexualmente a outra mulher e não a um homem.
A orientação afetivo-sexual dessas mulheres toma
um caminho diferente do da maioria. Essa orientação,
que começou na infância, revelou-se na adolescência e
definiu-se na idade adulta, é de natureza homossexual.
A formação da orientação afetivo-sexual de uma pessoa
é um processo não totalmente conhecido pela Ciência.

101
Pesquisas estão em andamento. mas ainda é impos- A palavra lésbica vem da Ilha de Lesbos, que foi um
sível afirmar com segurança o que determina a orienta- centro importante da Grécia na antigüidade. Nessa ilha.
ção amorosa e sexual, qualquer que seja. de uma pessoa. nasceu e viveu a poetisa grega Safo. Ela foi uma mulher
O que se pode dizer é que. no caso de uma orientação revolucionária. fundou uma escola para mulheres. onde
homossexual, ela não se dá por problemas familiares. não só ensinava poesia e música mas também, e princi-
repressão dos pais. famílias em desequilíbrio. falhas na palmente. sobre a emancipação social da mulher.
educação. "más companhias". disfunções genéticas ou Os versos que Safo escreveu falam do amor entre as
qualquer outra coisa. Existem pessoas homossexuais mulheres e da paixão por suas companheiras. Em fun-
em famílias estáveis ou não, entre ricos e pobres, entre ção disso, a palavra lésbica passou a designar as mu-
lheres que amam mulheres.
doutores e ignorantes.
As mulheres que se definem como lésbicas. que
Alguns pesquisadores vêm apresentando hipóteses.
assumem isso para si mesmas e que pertencem a grupos
mas nada há de conclusivo. A verdade é que desde a
militantes preferem ser chamadas dessa forma. Para
mais remota antigüidade existe a orientação homosse- elas. a palavra tem uma conotação de força e de liberda-
xual para homens e mulheres, em todas as culturas e de. Na sociedade. a palavra lésbica é vista como ofensa
em todas as sociedades, avançadas ou primitivas. e. muitas vezes. utilizada com a clara intenção de ferir.

Tal como os deuses que venero, quando me Assim como existe uma heterossexualidade mascu-
{sento a vossa frente, hóspede minha,
lina e uma feminina. há uma homossexualidade mascu-
Sinto-me feliz, com os ouvidos atentos a vossa lina e uma feminina. O relacionamento homossexual
{voz, tão doce. tão próxima,
masculino difere do feminino. Mas. nos dois casos. essas
Vosso riso encantadorfaz com que o coração
pessoas têm consciência de que são HOMENS ou são
{ pulse em meu peito!
MULHERES. Também é errada a idéia de que uma
Versos de Safo, poetisa grega que viveu há 2600 mulher lésbica deseja ser homem, ou pensa ser homem.
anos na Ilha de Lesbos. Situações como essa aparecem apenas nas travestis e
Mulher homossexual ou mulher lésbica? O prefixo nas transexuais.
"horno" vem do grego homós, que significa igual, seme- As mulheres lésbicas desenvolvem o seu papel de
lhante. No latim o termo identifica o homem. gênero "a contento" para a sociedade. ou seja, compor-
As mulheres homossexuais preferem ser chamadas tam-se como mulheres no dia-a-dia. no trabalho e nas
de lésbicas porque elas têm consciência de pertencer ao relações sociais de gênero. Afirmar que uma mulher cria
gênero feminino. Ao contrário do que pensam algumas problemas no trabalho porque "é lésbica". é puro pre-
pessoas, uma mulher lésbica não SE SENTE um homem. conceito e falta de informação. Como todos os demais
não pensa que é um homem e não quer ser homem. seres humanos. as mulheres lésbicas podem ser agradá-
Algumas têm comportamento um tanto "masculiniza- veis ou desagradáveis. criativas ou limitadas. afáveis ou
do". mas isso não quer dizer nada. pois o mesmo acon- impertinentes.
tece com outras mulheres que não são lésbicas.

102 103
De maneira geral, a sociedade permite maior liber- A necessidade de defender interesses comuns e de
dade para as mulheres entre si, o que torna "menos lutar contra a discriminação e os preconceitos levou o
visível" um relacionamento amoroso entre elas. As mu- movimento feminista, desde o início, a abrigar o movi-
lheres podem ser muito mais afetuosas, carinhosas e mento lésbico.
delicadas umas com as outras. As mulheres podem se As mulheres lésbicas, por sua necessidade de
beijar, andar de braços dados, se aconchegar. Para a autodefesa, formaram um dos grupos mais bem orga-
sociedade, isso é perfeitamente normal. nizados enquanto movimento social. Há anos elas
É evidente que essa liberdade das mulheres não leva mantêm uma rede "invisível" de grupos, que se reúnem
ao lesbianismo. Em função dessa liberdade talvez a para se defender do império machista. Essa rede tem
mulher lésbica possa ter menos dificuldade que os ho- conexões internacionais e é rapidamente acionada
mens homossexuais em "dissimular" socialmente a sua quando necessário.
verdadeira orientação sexual. Entretanto, a partir do Uma evidência da organização das mulheres lésbicas
momento em que essa condição da sexualidade humana e também dos homens gays foi a sua participação no IV
se torna visível para a sociedade, lésbicas e homosse- "Gay's Games", que se realizou em Nova York no fmal de
xuais passam a sofrer preconceitos, tabus e todo tipo de junho de 1994. Dessa grande olimpíada, que acontece de
discriminação. quatro em quatro anos, participaram cerca de 10 mil
As mulheres lésbicas, no entanto, são duplamente atletas homossexuais de 44 países, inclusive do Brasil.
discriminadas. Primeiro porque são mulheres e fazem parte A competição desse ano teve um caráter diferente,
de uma maioria demográfica desconsiderada. Segundo com forte conotação política, na luta pelos direitos dos
porque pertencem a uma minoria incompreendida. homossexuais, levada até o âmbito da ONU. Paralela-
mente aos jogos, foram realizados shows, apresentações
A mulher em nossa sociedade não tem a mesma
de teatro e festivais de filmes, tendo como tema a homos-
força, o mesmo espaço que os homens. São vistas como
sexualidade.
cidadãs de segunda classe e o trabalho não é remune-
O evento, oficialmente aberto pelo prefeito de Nova
rado à altura de sua competência ou função. A minoria
York, Rudolph Giuliani, em campanha pela reeleiçâo, foi
lésbica, além de tudo isso, acaba segregada pelo mundo encerrado com uma grande passeata com mais de 500
masculino e também pelo mundo feminino. mil pessoas, onde a palavra de ordem foi a luta pelos
direitos dos homossexuais.
Tanto os jogos quanto a passeata foram permeados
por campanhas de alerta para os riscos da Aids, assim
O trajeto de vida social das mulheres lésbicas segue como pela conquista de mais recursos para as pesquisas
o mesmo das demais mulheres. No Brasil, a partir de destinadas ao estudo e tratamento da doença.
1975, as mulheres passaram a desenvolver um trabalho No Brasil o movimento também avança e, em 1993,
feminista, para começar a fazer valer os seus direitos. foi realizado em Cajamar, cidade próxima a São Paulo,
Esse movimento passou a promover encontros periódi- o 7 2 Encontro Brasileiro de Militantes Gays e Lésbicas.
cos, nos quais se discutia os direitos da mulher, sua À época em que este livro foi escrito, já existiam no Brasil
saúde e sua inserção no trabalho e na vida pública. 47 grupos organizados de gays e lésbicas.

104 105
o importante dessa pesquisa foi mostrar o quan-
to é falsa a idéia de que uma mulher que se vincula
O relacionamento entre duas mulheres é algo estra- a outra foi atraída apenas pelo prazer da relação
nho para a sociedade "porque não existe o pênis". Os sexual. Cabe lembrar que somente uma pequena
corpos femininos não têm órgão sexual de penetração. porcentagem de mulheres, sejam heterossexuais ou
Isso intriga muito as pessoas, que ficam imaginando lésbicas, vivenciam a sexualidade desvinculada do
como pode ser possível duas mulheres fazerem amor afeto. A maioria, no entanto, necessita fazer esse
sem um órgão de penetração. vínculo entre o amor e o sexo.
Na realidade, as mulheres lésbicas têm muito para Poucas mulheres lésbicas, ao se vincularem amoro-
ensinar sobre o corpo feminino, até para os homens samente, procuram reproduzir um modelo de casamen-
heterossexuais, que pouco conhecem do corpo da mu- to heterossexual. A maioria delas percebe que dispõem
lher. Por que isso? Porque as mulheres lésbicas desco- de uma outra possibilidade, que é a de viver uma relação
brem o corpo feminino, que ambas possuem, numa amorosa em que as duas pessoas são do mesmo gênero,
intensidade e amplitude muito grande. Elas descobrem o feminino. Portanto, não precisam imitar relações de
que o prazer do relacionamento não está apenas na gênero diferente. Numa convivência entre duas lésbicas,
genitália, mas no corpo como um todo. uma não "precisa ser o homem da casa».
A relação entre duas mulheres é muito menos "ge- A convivência entre duas pessoas do mesmo sexo
nítalízada" do que entre dois homens. Os homens ho- pode propiciar uma relação mais harmoniosa, uma vez
mossexuais acabam, muitas vezes, "genitalizando" que seus padrões de mundo são semelhantes. Claro que
intensamente as suas relações. Os riscos da Aids aos isso vale para todos os seres humanos e a harmonia
poucos estão levando muitos homens a perceberem que entre as pessoas seria perfeitamente possível se a socie-
todo o corpo é fonte de prazer e não apenas os seus dade passasse a criar homens e mulheres de maneira
órgãos sexuais. mais igualitária, e não opostas, como tem sido até hoje.
Essa descoberta deveria ser a meta de todas as As relações entre mulheres lésbicas também tendem
a ser mais monogámícas do que entre homens homos-
pessoas. O nosso corpo oferece muitas possibilidades de
sexuais. O homem, hetero ou homossexual é criado para
nos dar prazer e de nos levar ao orgasmo. Os órgãos
o sexo e não para o afeto, e ele disvincula com muita
sexuais são apenas uma parte do corpo.
facilidade essas duas formas de relacionamento. Isso
O relacionamento amoroso e afetivo entre as mulhe- não acontece com as mulheres, lésbicas ou não.
res lésbicas também é diferente do relacionamento entre
os homens homossexuais, em função de serem casais
de gênero só feminino ou só masculino. O Informe
Kinsey, realizado nos Estados Unidos, e já citado no
O relacionamento entre duas mulheres lésbicas ten-
capítulo anterior, trouxe dados interessantes.
de a ser mais estável do que entre dois homens. Essa é
Esse estudo pioneiro mostrou que 63% das mu- uma diferença, mas não é a única. Entretanto, tais
lheres lésbicas constituem relacionamentos estáveis, relações passam por dificuldades que se não são seme-
com vínculos afetivos e amorosos duradouros. Essa lhantes pelo menos se parecem.
porcentagem para os homens é de quase 40%.

106 107
Duas mulheres lésbicas, muito femininas, bonitas,
channosas, bem vestidas, como pede a sociedade, e que
têm um relacionamento amoroso entre si, vão a uma
festa. E uma situação muito constrangedora acontece Quando duas mulheres lésbicas se vinculam, há um
quando uma delas, ou as duas, começam a ser "canta- problema que elas podem resolver de forma diferente em
das" pelos homens que estão na festa, uma vez que eles relação a dois homens homossexuais. As duas podem
não sabem que estão diante de duas lésbicas. gerar filhos. Uma mulher lésbica pode se deixar insemi-
Alguns "machões" desinformados acreditam que nar pelo esperma de um homem para ter um filho. Ou
uma mulher só é lésbica porque foi "mal-amada" por um até escolher um relacionamento sexual apenas para a
homem. A mulher lésbica passa a ser, para esse tipo de sua fecundação. Isso começa a acontecer no Brasil e é
homem, um desafio muito grande a ser vencido, um mais comum no Exterior.
"verdadeiro troféu de caça". Outro fato possível é uma mulher lésbica vir de um
A mulher lésbica que consegue obter um destaque relacionamento anterior heterossexual, do qual tem fi-
social mais elevado tem a chance de vivenciar a sua lhos, e se unir, "definitivamente", a outra mulher. As
sexualidade de maneira mais tranqüila. No mundo ar-
duas passam então a criar os filhos. Vale lembrar,
tístico, mais liberal se comparado a outros segmentos
porém, que ninguém "vira" lésbica.
da sociedade, muitas mulheres lésbicas demonstram ou
insinuam publicamente sua orientação, sendo não só A orientação dessa mulher já estava definida ao
aceitas como aplaudidas. longo de sua vida e o casamento heterossexual pode ter
É interessante notar que muitos homens heterosse- ocorrido por inúmeros fatores e não só o amor. A mu-
xuais sentem grande prazer em ver duas mulheres se dança para uma nova forma de sexualidade se deu, na
relacionando sexualmente. Isso fica claro nos vídeos verdade, externamente, quando ela tornou visível a sua
heterossexuais pornográficos, á disposição nas videolo- orientação afetivo-sexual básica. Em algumas mulheres
cadoras. No entanto, são mais raras as cenas, nesses isso pode acontecer tardiamente, até mesmo quando já
vídeos, de dois homens fazendo amor. são avós.
Os meios de comunicação, a publicidade e princi- Quando há filhos de casamento anterior numa
palmente os ensaios fotográficos publicados em revistas relação agora homossexual isso não quer dizer que as
de qualidade valorizam a relação entre mulheres. Alguns
crianças crescerão "traumatizadas ou neuróticas". Des-
desses trabalhos insinuantes, que retratam uma situação
de que a relação entre as duas mulheres seja amorosa,
real ou simulada, são de muito bom gosto e de grande
senso estético. A mídia as chama de lesbian chies. com muito respeito e com muita tranqüilidade, essas
A literatura para homens homossexuais e mulheres crianças não crescerão, obrigatoriamente, conflituosas.
lésbicas é farta no Exterior mas escassa no Brasil. Esse Essas mulheres deverão ter tranqüilidade no seu
quadro começa a mudar e o jornal Folha de S. Paulo, um relacionamento amoroso, assim como qualquer outro
dos mais importantes veículos de comunicação do Bra- casal, para que seus filhos cresçam saudáveis. Essas
sil, já traz na sua revista dominical um espaço exclusivo crianças precisam estar mais capacitadas a lidar com
para o mundo homossexual. essa diferença, que socialmente poderá ser visível.

108 109
o melhor será se essas mulheres conseguirem falar Os psicólogos têm outra visão do psiquismo humano.
abertamente de sua forma de relacionamento com os a maioria aceitando com mais tranqüilidade a homosse-
filhos. explicando como são os mundos homossexual e xualidade como uma possibilidade a mais de relação
heterossexual. E prepará-los para os preconceitos da humana. As abordagens e as posturas profissionais
sociedade. dependem. porém, das diferentes escolas psicológicas.
A idéia de que a presença da figura paterna em casa
é fundamental para o desenvolvimento saudável dos
filhos é um mito. principalmente em nossa sociedade.
Em sua maioria. os filhos são criados apenas pelas A sociedade humana. apesar de seu desenvolvimen-
mães. uma vez que o trabalho. a competição e as condi- to tecnológico. científico e cultural. ainda não aprendeu
ções de vida tornam os pais sempre "ausentes". Muitos a lidar com diferenças e com o diferente.
apenas "dormem" em casa. Estar "presente". seja mãe. O homem foi à Lua. em pouco tempo estará em
pai, ou qualquer outra pessoa da família. não é estar em Marte. A sociedade ainda continua considerando o "di-
casa. com os "olhos grudados" no jornal ou na 1V. E é ferente" às vezes como uma ameaça. As mulheres lésbi-
isso que faz a diferença. cas são discriminadas. Mas, no Brasil, isso também
ocorre com os negros. os albinos. os canhotos. os anões.
os pobres. Estranhamente, a segregação atinge até os
muito inteligentes.
Os profissionais médicos não estão. em sua maioria. O planeta Terra é uma esfera e saindo de um ponto,
habilitados a lidar com a sexualidade e só muito recen- sempre e~ direção ao Leste. chegaremos ao mesmo
temente no Brasil a Sexologia passou a ser uma das lugar da partida. Segregar para quê? De um jeito ou de
cadeiras em raros cursos de Medicina. As mulheres outro acabaremos nos encontrando mesmo.
lésbicas se queixam de problemas quando vão ao gine-
cologista para seus exames periódicos.
A primeira pergunta. "como vai a sua vida sexual?".
pressupõe apenas uma relação heterossexual. Diante da
revelação. muitos médicos não sabem como agir e al-
guns chegam a emitir uma guia para tratamento psi-
quiátrico.
A Organização Mundial de Saúde. na última versão
da sua Classificação Internacional de Doenças (CIO-
lO), deixou de considerar a homossexualidade como
patologia. Os médicos. em sua maioria. mesmo com
essa nova classificação, consideram esse modo de ser
como patológico.

110 111
Maria nasceu num vilarejo simples e humilde do
litoral da Bahia. Quarta menina de uma família de sete
irmãos, foi criada com poucos recursos numa comuni-
dade pequena e isolada, onde não havia padre. médico
e apenas uma precária escola rural. Ali, naquela vida
singela. plantava-se para comer e o que vinha de fora.
por barco. quando faltava. era o sal, o açúcar e algum
tecido.
A sua infãncia não foi diferente das outras meninas
do lugar. Ela passava horas brincando nas areias bran-
cas da praia, ou subindo nas árvores como as outras
crianças. O tempo passou. Maria se enamorou, e casou
com um homem do povoado. E desse casamento nasce-
ram filhos.
Nessa época, a pequena vila não conhecia o rádio.
a televisão, nem os jornais. As novidades. poucas. quan-
do vinham, chegavam pelos barcos. As viagens eram
raras e só por necessidade.
O tempo continuou passando. devagar. E Maria. já
casada, começou também a se relacionar, amorosamen-
te, com outras mulheres. O fato. para aquela gente

113
humilde. a princípio. pareceu estranho. mas não assus- Onde está a diferença entre as mulheres heterosse-
tou ninguém. Não se falava muito no caso. Maria não xuais. que são a maioria, e as mulheres bissexuais? A
perdeu suas amizades e nem a consideraç~o de. t~dos única diferença está no fato de que as bissexuais dese-
por causa disso. No meio daquele povo nao exístía a jam vincular-se afetiva e sexualmente tanto a homens
palavra "discriminação" e nem o seu significado. quanto a mulheres. numa relação intercalada ou conco-
Um dia chegou o progresso. E com ele as estradas. mitante de maior ou menor duração.
e os trabalhadores das estradas. gente desconhecida de Pode-se dizer que a orientação afetivo-sexual é
todos os cantos do Brasil. Algumas moças do lugar "dupla". e o objeto do amor e do desejo é variável, ao
escolheram esses homens para se casar. Mas Maria, ao longo da vida.
longo de toda a sua vida, ora viveu com um ~ome~. ora A idéia de que uma mulher bissexual na verdade
viveu com uma mulher. Hoje. em 1994. Mana esta com "apenas não sabe o que quer" é absolutamente precon-
quase 50 anos, tem dez filhos. e continua se relacionan- ceituosa e falsa. A mulher bissexual tranqüila sabe o
do amorosamente ora com homens e ora com mulheres. que quer. Ela simplesmente deseja e ama homens e
O que você acabou de ler não é uma história fi~ticia. mulheres. com a mesma intensidade ou com intensi-
O vilarejo. hoje ponto turístico da Bahia. proposlta?a- dades diferentes.
mente não foi identificado a fim de preservar e respeitar Existe uma importante diferença de comporta-
as pessoas envolvidas. mento entre as mulheres bissexuais e os homens
bissexuais. Os homens bíssexuaís, por serem HO-
MENS. são criados para separarem amor e sexo. o que
não acontece com as mulheres.
Maria é uma mulher bissexual. O relacionamento afetivo de uma mulher bissexual
As mulheres bissexuais são MULHERES. Elas nas- traz uma ligação mais estreita entre o sentimento amo-
ceram fêmeas. biologicamente normais. reconhecem e roso e o desejo sexual. Quando estão vinculadas a um
aceitam o seu órgão sexual feminino, comportam-se e homem, elas. em geral. o amam. E sentem o mesmo
SENTEM-SE como mulheres. Algumas. eventualmente. quando a relação é com uma outra mulher.
podem ter alguma aparência "masculina·~. ~as, como As mulheres bissexuais, assim como os homens com
vimos nos capítulos anteriores. essa aparencia em ter- essa orientação. podem ser bissexuais propriamente
mos dos papéis de gênero nada tem a ver com a sua ditas. ou seja. elas desejarão homens e mulheres numa
orientação afetivo-sexual. mesma proporção. Outra possibilidade é que sejam
Os comportamentos considerados masculinos e fe- predominantemente heterossexuais. pois desejam mais
mininos. denominados papéis de gênero. são muito os homens do que as mulheres, mas também sentem
mutáveis e basicamente determinados pela cultura e atração por alguém do mesmo sexo.
pela sociedade. No Brasil não existem estudos sobre o
Algumas mulheres bis sexuais poderão ainda ser
comportamento social das mulheres ~issexuais e ,tam-
basicamente homossexuais. Isso acontece quando o seu
pouco um detalhamento sobre como sao os seus VInCU-
afeto. o seu amor e o seu desejo caminham em direção
los afetivos e sexuais. Mas podemos afirmar que as
mulheres bissexuais são basicamente femininas e se a outra mulher. embora possam amar e se relacionar
comportam. no seu dia-a-dia. dessa maneira. com os homens.

114 115
Márcia e Lúcia passaram a "namorar", para que
Uma mulher, que preferimos chamar de Zilda, mora pu~essem se conhecer melhor. Após algum tempo, con-
em Curitiba, é pedagoga e tem 40 anos. Nunca se casou, clU1:am que ~ra o momento de passarem a viver juntas
embora tenha um filho adolescente. Ao longo de toda a e cnar, tambemjuntas, os filhos do casamento de Lúcia.
sua vida, em períodos de maior ou menor duração, Zilda Após algum tempo da separação, João Carlos, o pai,
amou e se relacionou mais com homens e também com passou a aceitar normalmente a nova condição de sua
mulheres. Hoje, quando estamos escrevendo este livro, ex-mulher. Ele também refez sua vida, apaixonou-se por
ela está "solteira", leva uma vida tranqüila e é muito outra mulher, casou-se e teve outros filhos.
respeitada por seu trabalho na Educação. A maturidade dessas pessoas permitiu que elas
A socióloga Aurora, de 32 anos, é funcionária do passassem a conviver normalmente entre si. Visitam-se
governo do Estado de São Paulo. Casada com Carlos, sempre que possível, mantêm uma relação amistosa,
teve com ele um filho que hoje está com 8 anos. Depois conversam sobre a educação das crianças. As relações
de alguns anos de casamento e após o nascimento do de João Carlos com os filhos é de muito afeto e ele, em
filho os dois se separaram. Depois da separação, Aurora momento algum, colocou restrições a que as crianças
conheceu outros homens e teve outros namorados. No permanecessem com a mãe.
entanto, a figura feminina a atrai e, em alguns períodos
da vida, assumiu para si mesma o relacionamento amo- As duas crianças, travessas como quaisquer ou-
roso e sexual com outras mulheres. tras crianças, também convivem bem nessa situação
pouco comum. Nenhum dos dois apresenta "traumas"
Um garoto de 10 anos e uma menina de 12 são os
filhos de Lúcia. Hoje com 43 anos, economista respeita- ou "neuroses" porque sua mãe ama uma mulher.
da em seu meio, Lúcia nasceu numa família equilibrada, O relacionamento entre essas duas mulheres é
onde é muito querida. Após uma adolescência feliz e, de estável e já dura anos. No entanto, no futuro, por
certa forma, privilegiada, Lúcia se apaixonou por João qualquer razão, elas poderão se separar e voltar a se
Carlos, seu colega de faculdade, e desse casamento relacionar amorosamente com homens. Elas são mulhe-
nasceram as duas crianças. res btssexuass.
O casal tinha uma amiga comum, Márcia, igual- Outros homens, mesmo humildes e sem instrução,
mente economista. A amizade não era o que se pode intuitivamente também podem compreender que suas
chamar de "íntima", mas os três se encontravam sempre companheiras necessitem, eventualmente, relacionar-
que possível. Nessa época, Márcia era solteira e já tinha se com outras mulheres. Para contornar a situação para
se relacionado com alguns namorados. o seu meio social, fazem "vista grossa", "ínterpretram"
Quando o filho mais novo do casal tinha 2 anos, essa vontade apenas como uma forma de amizade. Com
Lúcia passou a sentir por Márcia um afeto especial, que isso, estão aceitando, à sua maneira, essa forma de viver,
aos poucos foi ganhando os contornos de uma grande cujas causas não conhecem. Casamentos respeitosos,
atração. Márcia correspondeu com a mesma intensidade cheios de amor e de carinho entre um homem e uma
e as duas se apaixonaram. O sentimento amoroso foi tão mulher pode sobreviver e durar, mesmo com a partici-
forte que não deixou outra saída a não ser o fim do pação de "alguém mais".
casamento de Lúcia.

116
117
A própria sociedade, a partir do movimento feminis-
Para a grande maioria das mulheres bissexuais, a ta, passou a questionar os padrões dos papéis masculino
maternidade é um fato importante. A maternidade e feminino. Um exemplo dessa mudança de padrões é o
para as mulheres é muito diferente da paternidade fato de que uma excelente jogadora de basquete. em
para os homens. As mulheres, em nossa sociedade. função do pesado treinamento que recebe, passe a agir
são preparadas para procriar. Esse sentimento, esse socialmente de modo masculino ou "masculinizado".
desejo ou essa "obrigatoriedade" são tão acentuados Isso é apenas a exteriorização de um papel de
nas mulheres que alguns autores chegam a falar em gênero, um corportamento social, que nada tem a ver
"instinto materno". com a orientação afetivo-sexual da atleta. Hoje isso já é
Discordamos dessa visão, porque esse papel está visto com naturalidade, em parte devido ao status da
sobrecarregado de conceitos e preconceitos de origem profissão exercida, no caso o esporte.
puramente social ou cultural. Na verdade, a materni- Pode-se afirmar que um comportamento humano
dade é uma escolha ou uma "obrigação" imposta pela diferente do da maioria só passa a ser aceito pela
sociedade. A aparente "naturalidade" do papel de mãe sociedade quando ele acontece, é visível, mas já não
certamente vem de séculos de imposição social, de tal chama a atenção.
modo que acabou se cristalizando na cabeça de todas Com isso, não estamos dizendo que as mulheres
as pessoas. bissexuais ou lésbicas, quando em seus papéis de gêne-
Para as mulheres bissexuais a questão da mater- ro, estão sendo mais aceitas. Na verdade, a "aceitação"
nidade é relevante, o que nem sempre acontece no caso vai somente até o momento em que se toma visível a sua
das mulheres lésbicas. As primeiras se relacionam forma de amar. A partir daí, surgem as discriminações,
com homens, às vezes por longos períodos. Desse vin- porque "aceitação pela metade" não existe.
culo podem nascer filhos, que mais à frente terão de O preconceito e a discriminação são mais "imedia-
conviver com a nova parceira ou parceiro de sua mãe. tos" quando se trata de um homem ou uma mulher
Como somente a mulher pode gerar uma criança e travestis, ou transexuais, como veremos nos próximos
como a cultura leva as mulheres a cuidar da educação capítulos. A maneira de se comportar, de se vestir, de
de seus filhos, a mulher bissexual provavelmente tam- falar e de agir revelam imediatamente a sua diferencia-
bém deverá "assumir" esse papel. ção quanto aos papéis de gênero.
As pessoas que não conseguem lidar bem com a
própria sexualidade poderão ter dificuldade em lidar com
a sexualidade do outro. Não é fácil chegar ao equilibrio
As mulheres bissexuais, assim como as lésbicas, são nesse setor tão fundamental da vida, porque a sociedade
muito menos visíveis aos olhos da sociedade. Isso acon- está carregada de tabus, preconceitos e idéias falsas. Por
tece porque elas não têm conflito na sua identidade de isso, o relacionamento afetivo e sexual, algo tão inerente à
gênero, ou seja, SENTEM que são mulheres, e seu vida quanto respirar, passa por tantos problemas.
comportamento social é feminino. Todos os seus papéis, Quando nos referimos á sexualidade, não estamos
como professora, inquilina, dona de casa, e tantos ou- limitando o assunto apenas ao ato de amar e de fazer
tros, têm o colorido da feminilidade. amor. Na verdade, a incompreensão passa também pelas

118 119
relações de gênero. ou seja. pela forma como vivemos no A mulherexclusívamente bissexual, no entanto, ao
dia-a-dia. em permanente interação. longo de sua vida, alternadamente se vincula amorosa
Costumamos dizer que homens e mulheres não se e sexualmente com homens e mulheres, com igual
entendem no trabalho. em casa. nos passeios. na política plenitude. Nos dois casos, pode haver predominãncia
ou na tomada de decisões. É a aparente "guerra dos sexos". ou integralidade, situações estas que estão relaciona-
Infelizmente. grande parte dos seres humanos. homens ou das com o tempo de duração de um vínculo ou com a
mulheres. não consegue alcançar a tão desejada harmonia sua intensidade.
em suas relações de gênero. Assim, uma mulher predominantemente lésbica
As mulheres bissexuais, ao contrário das mulheres pode vir a desejar e a amar um homem. Mas será um
lésbicas. no Brasil, não se associam, não se agrupam. relacionamento eventual, de curta duração, ou de menor
Praticamente ainda não se conhecem e quase não têm a intensidade comparado ao amor dirigido a uma parceira.
possibilidade de conversar umas com as outras dentro As mulheres bissexuais mais visíveis em nossa
de um grupo. sociedade estão no meio artístico. Algumas cantoras
A sociedade brasileira é diferente. por exemplo, da famosas são bissexuais, não escondem ou pelo menos
insinuam essa orientação e nada têm de "masculinas".
sociedade americana, que tem gIl}pos organizados para
Algumas são muito atraentes e desejadas pelo público
todo e qualquer tipo de pessoa. Nos Estados Unidos, masculino e as poucas que, no palco, preferem uma
organizam-se para se defender, fazer valer seus direitos apresentação mais "agressiva" continuam femininas
ou se relacionar, os diabéticos, as lésbicas. os homosse- no seu papel de gênero. Continuam se comportando
xuais que são pais, os filhos de homossexuais, os defi- como MULHERES.
cientes fisicos e até mesmo os aficionados de determi-
nados hobbies.
t=UTU~() VlsíVI:L

As mulheres bissexuais e lésbicas são um pouco


"menos" discriminadas pela sociedade porque são em
Quando falamos de mulheres bíssexums, não as geral "invisíveis". O movimento lésbico-feminista inter-
estamos confundindo com as lésbicas que um dia foram nacional está lutando para que essas mulheres se tor-
casadas e até tiveram filhos. É muito provável, porém, nem visíveis para a sociedade e assim possam ser aceitas
que as mulheres lésbicas, na época em que se casaram, em sua integridade social e afetivo-sexual.
ainda não tivessem claro para si mesmas a sua verda- O atual presidente dos EUA, Bill Clinton, deu um
deira orientação afetivo-sexual. passo importante nesse sentido ao manter no primeiro
Há uma diferença importante nessas duas formas escalão de seu governo uma mulher assumidamente
de viver a sexualidade. A mulher exclusivamente lésbica, lésbica. Clinton quis demonstrar com isso que o impor-
a partir do momento em que toma consciência de sua tante para a sociedade é a competência, e não o que as
verdadeira orientação, passa a desejar e a se relacionar pessoas fazem entre quatro paredes. Isso é apenas da
com intensidade apenas com outras mulheres. Os pou- conta delas e de mais ninguém.
cos e raros encontros íntimos com homens só vêm
reforçar a regra.

120 121
() I)Ir:íCIL CMtI~ti() I)() M-=I()

••Jovem, alto, musculoso, bem-dotado. Só atendo


executivos. Fone.....
É bem possível que você já tenha visto um anúncio
como esse nas páginas de classificados dos grandes
jornais. São comuns, não causam espanto e de certa
forma já nos acostumamos com eles. Mas quem são os
"executivos"?
Ora, são homens homossexuais, você poderá ima-
ginar. Eles estão em busca de um "garoto de progra-
ma". Em alguns casos, é provável que sim. Mas uma
grande parte de homens que procura esses rapazes é
composta de homens bissexuais, muitos dos quais
casados e com filhos.
Isso é certo ou errado? Nem uma coisa, nem outra,
pois a sexualidade é uma experiência que precisa e deve
ser vivida em sua plenitude. E, sendo uma necessidade
humana, para ser saudável, não deve estar sujeita a
juízos de valor dos educadores e profissionais de saúde.
A compreensão ou o preconceito dependem da forma e
do estágio em que se encontra a sociedade.

123
No início dos anos 80, havia em São Paulo uma
mulher doente para cada grupo de 40 homens. Em 1994,
O aparecimento da Aids no início dos anos 80 foi
visto por muitos como um "castigo de Deus" para punir a proporção chegou a uma mulher contaminada para
os homossexuais. Pouco tempo depois, esses homens cada 4 homens. Desde 1989, mais de 30% das notifica-
ções dos casos de Aids estão relacionadas com o uso de
passaram a ser perseguidos e discriminados por disse-
drogas injetáveis, principalmente nas grandes cidades.
minar a "peste gay", constituindo, ao lado dos drogados.
os chamados "grupos de risco". Hoje já se sabe que não O fato de um homem contaminar sua companheira
existem grupos de risco, mas comportamentos de risco. com o vírus não significa, necessariamente, que ele seja
bissexual ou que tenha tido um relacionamento, ainda
Lamentavelmente a doença se alastrou e ainda hoje que casual, com outro homem. Ele pode ter sido infec-
não se pode falar em cura. Uma situação nova, no tado durante uma relação sexual com outra mulher. Ou,
entanto, apareceu. A Aids passou a contaminar não ainda, a Aids pode tê-lo atingido numa transfusão de
apenas os homens homossexuais mas também os hete- sangue realizada numa operação anos antes, da qual ele
rossexuais e as mulheres, que não faziam parte do então mal se lembra.
"grupo de risco". A nossa sociedade nunca viu com bons olhos e nem
A falta de informação e o preconceito falaram mais compreendeu os homens bissexuais. Até hoje eles são
alto e mais rápido. As mulheres estariam sendo conta- identificados com termos pejorativos e de péssimo gosto,
minadas porque seus maridos levavam "vida dupla" e "cortam dos dois lados", ou então vistos como homosse-
"saíam" também com homens. A bissexualidade, ou xuais "não-assumidos".
melhor dizendo, a "provável" bissexualidade masculina Quando o caminho não é o da agressão e da incom-
veio à tona. preensão, a sociedade classifica os homens bissexuais
Essa nova realidade criou mais um estigma. Os ora como pessoas de caráter indefinido, ora como gente
transmissores da Aids não seriam apenas os homens que leva a vida "na sacanagem". E muitos homens
homossexuais, mas também e principalmente os bisse- bissexuais ainda se consideram "mais machos" do que
xuais. No que diz respeito aos homens homossexuais, os outros, no sentido heterossexual da expressão, simples-
isso não é verdade, porque eles passaram a redobrar os mente porque fazem amor com homens e com mulheres.
cuidados e a maioria evita a promiscuidade. Mas os No entanto, como temos dito, uma coisa é o com-
homens bissexuais não foram e nem são os responsáveis portamento amoroso, que chamamos de papel afetivo-
pelo crescimento da doença. A responsabilidade pela sexual, e outra, bem diferente, é o que vai dentro de cada
propagação da Aids é de todo ser humano que pratica um, no seu íntimo. É o seu desejo e a sua vontade. é a
sexo sem o conhecimento de como pode ser uma relação sua ORIENTAÇÃO AFETIVO-SEXUAL.
sexual segura.
Uma reportagem publicada pelo jornal Folha de S.
Paulo, no dia 30 de junho de 1994, confirma esse fato.
Segundo levantamento feito pela Secretaria de Saúde do O homem bissexuai também nasce biologicamente
Estado, o crescimento da Aids entre os heterossexuais macho e perfeito, não apresenta disfunções orgânicas
em São Paulo está se dando mais pelo uso de drogas relacionadas á sexualidade, e cresce comportando-se de
injetáveis do que pela prática bissexual. forma masculina. ELE SE SENTE HOMEM.

124 125
Na idade adulta. quando a sua orientação afetivo-
sexual se definir como bissexual. ele passará a desejar
Um advogado. a quem preferimos chamar de Júlio.
homens e mulheres. Isso é um sentimento. um desejo.
nos procurou porque estava sentindo problemas no seu
uma necessidade. algo interno que está além do controle ambiente de trabalho. um grande escritório de advocacia
da própria pessoa. na maioria das vezes. do centro de São Paulo. Disse que estava um tanto
Esse sentimento. como tantos outros que temos ao irritadiço porque tinha perdido uma causa e que. apesar
longo da vida. poderá se exteriorizar ou não. Poderá ser dos 15 anos de profissão. ainda não conseguia lidar
revelado ou não. Nesse caso trata-se de uma questão de muito bem com uma derrota. coisa habitual nas carrei-
decisão. ou da resolução de um conflito interno. ras profissionais.
Cabe lembrar que muitos desses conflitos. como no O problema. segundo ele. vinha do fato de a compe-
caso dos homens homossexuais. das mulheres lésbicas tição entre os colegas ser acirrada e. para agravar. a sua
e das mulheres bíssexuais, têm sua raiz mais no precon- situação financeira. no momento. não era tão boa. Isso
ceito social do que propriamente na forma de viver a o deixava tenso e com insônia.
sexualidade. Ao longo do processo de terapia. Júlio foi falando de
Ao contrário do que possa parecer. os consultórios sua vida. Nasceu em uma família de classe média.
dos psicoterapeutas não vivem cheios de pessoas com a recebeu boa educação. cursou a melhor escola de Direito.
"sexualidade diferente". Após 25 anos de experiência Aos 24 anos. Júlio casou-se com Lígia. a quem
como psicoterapeuta. posso afirmar que cerca de 70% amava muito e. dois anos depois. nasceu seu filho. Com
das pessoas que me procuram para tratamento são o passar do tempo. o relacionamento foi se desgastando
heterossexuais. e o amor. dez anos depois. acabou. Veio a separação. o
Outra idéia equivocada é imaginar que as minorias divórcio e uma nova "vida de solteiro".
sexuais só procuram o psicoterapeuta para tratar de sua Um domingo. ao sair do clube. por conta de um
sexualidade. Isso não é verdade. Alguns que procuram. problema qualquer no carro. Júlio conheceu Antonio
tanto quanto os heterossexuais. querem se resolver sexual Carlos. Uma conversa de amigos. o mesmo time de
e afetivamente. Mas há outros. também como os heteros- futebol, os problemas de sempre. inflação. política.
sexuais. que estão com problemas no trabalho. no relacio- Júlio vive com Antonio Carlos há quatro anos. E o
namento com as pessoas ou com seus parceiros. seu sentimento pelo companheiro tem a mesma inten-
O que ás vezes acontece é que os psicoterapeutas sidade daquele que tinha por Lígia. Júlio é um homem
passam a considerar a sexualidade e suas variadas bissexual. está tranqüilo com isso. e não veio ao nosso
formas de ser como a fonte causadora de todos os outros consultório para discutir sexualidade. O problema dele
conflitos. Alguns clientes revelam que percebiam um era a derrota de uma causa no escritório de advocacia.
certo preconceito perpassando as palavras de seu antigo E. claro. como tantos de nós. queria aprender a lidar
psicoterapeuta. melhor com a frustração da derrota.
Minoria humana é minoria demográfica. Diferentes. Homens como Júlio eram pouco visíveis para a
sociedade até bem pouco tempo atrás. Estamos nos
todos nós somos uns dos outros.
referindo ao homem basicamente bissexual; ou seja.

126 127
aquele que ama e faz amor com um homem e com uma família a partir de um vínculo amoroso, mas continua-
mulher, durante períodos mais ou menos longos. rem fazendo apenas sexo com outros homens.
A bissexualidade assume outras formas. Muitos, Casos como o de Júlio, que relatamos há pouco, não
senão a maioria. casam-se, constituem família e têm constituem a regra. A tendência da maioria é manter um
filhos. Amar nem sempre significa a concretização de um casamento heterossexual. Um homem bissexual casado
relacionamento fisico só com a pessoa amada. Um ho- pode amar sua esposa, mas sentir a necessidade de um
mem pode amar muito uma mulher, casar-se com ela e, relacionamento sexual esporádico ou constante com
anos depois, passar a se relacionar com um homem, sem outros homens.
que isso destrua o seu casamento. Essa mesma situação A maioria das correntes psicoterápicas defende que
triangular pode acontecer num casamento heterosse- todos os seres humanos seriam, na sua origem, bisse-
xual onde o homem tem uma amante. xuais. Entretanto, grande parte dessas teorias coloca a
bissexualidade como algo que deveria ser vivenciado na
adolescência para que os seres se definissem como
heterossexuais.
A sociedade tem muita dificuldade em aceitar o No Brasil não há estudos ou estatisticas a respeito
homem bissexual. Grande parte das pessoas ainda não do número de homens bissexuais. Esse comportamento
está preparada para aceitar que alguns homens são apenas agora começa a se tomar visível, na medida em
que homens casados adquiriram a Aids pela via do
bissexuais e que entre a heterossexualidade e a homos-
relacionamento sexual com outros homens.
sexualidade pode haver uma continuidade.
Essa situação tem levado alguns homens doentes a
Os sentimentos e os desejos humanos não são revelar para a família o seu comportamento bissexual,
estanques. Por essa razão preferimos utilizar o termo que no entanto se mantém oculto para a sociedade.
"basicamente" quando nos referimos á orientação afeti- Algumas famílias escondem a doença, não comentam. e
vo-sexual. Uma pessoa poderá caminhar ao longo de sua preferem dizer que esse homem morreu de cãncer, leu-
vida, qualquer que seja a sua orientação básica, da cemia ou qualquer outro mal.
heterossexualidade para a homossexualidade, passan-
do pela bissexualidade. Isso pode ocorrer em períodos
longos ou curtos e até em situações circunstanciais.
Esse trajeto que vai e volta pode se dar tanto em A maioria dos homens bissexuais não é visível so-
relação aos sentimentos afetivos, muitas vezes não re- cialmente, pois esse lado eles não revelam, guardam
velados, quanto ao relacionamento sexual. Isso não quer para si, e são capazes de "transformar" a necessidade de
dizer que essa pessoa mudou ou pode ter mudado a sua relacionamento com outro homem numa "grande ami-
zade" aos olhos dos outros.
orientação afetivo-sexual básica.
Para os homens a dicotomia entre amor e sexo é O sofrimento interno dos homens bissexuais é gran-
maior do que para as mulheres. Isso se deve, como já de e talvez maior até do que o sofrimento dos homens
vimos, ao nosso modelo de educação familiar. Assim. é homossexuais. Eles acreditam que isso é doentio e que
deveriam eliminar o seu desejo por homens.
comum homens bissexuais se casarem e constituírem

128 129
o que esse homem pode fazer, se a conclusão sobre psicoterapia e, durante o tratamento, se descobrem
a sua bissexualidade for correta, é aprender a viver de bissexuais .
modo mais equilibrado com aquilo que ele sente. A Após a descoberta, superam seus conflitos e pas-
tentativa de reprimir um dos lados de sua sexualidade sam a conviver com uma mulher até quando durar o
pode ser infrutífera e lhe trazer maior sofrimento ainda. ~mor ou for possível. Um exemplo claro dessa situação
Evidentemente não se está aqui fazendo uma apologia e a atual sociedade do Japão, onde a homossexualidade
de que os homens casados devem fazer sexo com outros é reprimida ao máximo 1•
homens. Cada um pode descobrir o seu caminho e que Naquele país, o sucesso na carreira e no trabalho
canal vai usar para viver esse sentimento. depende, e muito, da estabilidade familiar que a pessoa
O sofrimento interno poderá ser amenizado na me- apresenta. Ser casado e ter um filho conta muito para
dida em que esse homem encontrar a solução, que é alcançar postos importantes. Mas, como em todo o
peculiar para cada uma das pessoas. Através de uma mundo, os homossexuais existem no Japão. Entretanto,
psicoterapia ou do amadurecimento propiciado pela pró- eles estão completamente ocultos na bissexualidade,
pria vida, muitos homens bissexuais poderão encontrar verdadeira ou aparente. Muitos homens basicamente
o equilíbrio para os seus desejos. homossexuais japoneses se casam e constituem família
porque a sociedade assim o exige.
Muitos homens sequer têm noção da sua bíssexua-
lidade. Em nossa experiência clínica ouvimos muitos
relatos de homens homossexuais que preferem para o
O mundo é um permanente jogo de opostos. Noite relacionamento sexual os homens casados. Isso aconte-
e dia, preto e branco. feio e bonito. Entre esses pólos ce em todas as classes sociais e as razões são as mais
existe uma grande área intermediária que a maioria das variadas. De acordo com o relato desses homossexuais,
pessoas não consegue compreender ou perceber. A bis- os homens casados seriam menos promíscuos, não
sexualidade é uma dessas áreas. haveria o risco de envolvimento amoroso e essa relação
Hoje, graças aos modernos meios de comunicação, as ficaria oculta.
sociedades ocidentais já aceitam em certo grau a homos-
sexualidade mas têm dificuldade em compreender um
comportamento bissexual, por sua natureza "aparente-
mente" dúbia. O termo está propositalmente entre aspas O crescimento da Aids levou obrigatoriamente a
porque, para os homens bissexuais bem resolvidos em Medicina a se defrontar com a questão da sexualidade.
termos de sua orientação, não há dúvida alguma. No Brasil, e também em outros paises, isso está aconte-
Mas muitos homens vivem na incerteza, conside- cendo sem que muitos médicos tenham recebido o devi-
ram-se basicamente heterossexuais ou basicamente ho- do preparo.
mossexuais. Alguns chegam a afirmar ter absoluta Um caso clínico, do qual tomamos conhecimento
certeza de que são homossexuais e que não compreen- recentemente, mostra de maneira dramática essa situa-
dem o porquê de uma atração repentina por determina-
1. Conforme o livro-reportagem Favela High-Tech, do jornalista
da mulher. Quando têm condições, procuram a Marcos Lacerda.

130 131
ção. Um jovem casado, de classe média, procurou aten- da, foi dizendo: "Peguei o Jorge, seu marido, sem roupa,
dimento médico em São Paulo. Seu estado de saúde não de agarra com o Nezinho lá na oficina".
era bom, estava com pneumonia. O médico que o aten-
Maria Rosa ajeitou a bolsa, abriu o portão e respon-
deu, apressadamente, considerou a pneumonia como sen-
deu: "Eu sei, e a senhora agora já sabe. O Jorge precisa
do uma das doenças oportunistas decorrentes da Aids.
de uma coisa que eu não posso dar para ele. Ele me
Sem que o rapaz soubesse, solicitou um teste Elisa contou antes de casar. Mas eu gosto dele do mesmo jeito
para detectar o vírus HN. Tão logo recebeu o resultado, e ele também me ama".
o médico comunicou a ele e a sua esposa. O resultado
A mãe entrou e ainda ouviu a filha falar calmamen-
fora soropositivo. Ele estava com o vírus da Aids e
te: "Não me sinto ameaçada por isso. E a gente é feliz".
iniciara a doença.
O rapaz não aceitou o diagnóstico e negou que
poderia ter-se contaminado. Tinha se casado há pouco
tempo, não tinham qualquer tipo de relacionamento
extraconjugal, e muito menos bissexual. Não conhecia
drogas nem tinha passado por nenhuma transfusão de
sangue.
A partir desse momento, o casal passou a viver um
terrível drama. Surgiram dúvidas sobre o que ele estava
afirmando. Talvez mentisse, talvez a mulher já estivesse
contaminada.
Passados alguns dias, diante da constante negativa
do jovem e da insistência de sua esposa, foi realizado
outro exame, esse mais sofisticado e mais caro. O teste
de Western-Blot, obrigatório para um resultado soropo-
sitivo do teste Elisa. Conclusão: o resultado do primeiro
teste era falso-positivo. Ele não estava com o vírus da
Aids. Tudo o que esse jovem tinha, desde o início, era
apenas pneumonia.

Maria Rosa chegou um pouco mais tarde do traba-


lho em sua casa simples num bairro de periferia de São
Paulo. Da esquina avistou sua mãe no portão e estra-
nhou. Teria acontecido alguma coisa com as crianças?
Antes que perguntasse qualquer coisa, a mãe, mu-
lher simples, e naquele momento um tanto transtorna-

132
133
7

()s caminhos da vida têm longos trechos de areia


movediça. O verde muitas vezes parece azul e não é fácil
distinguir o alaranjado do amarelo-escuro. A condição
humana tem fronteiras muito tênues entre o "ser" e o
"estar", e nem mesmo a alma sabe com clareza o que vai
dentro de si.
Quando uma criança está para nascer, os pais
escolhem um enxoval azul para o menino ou rosa para
a menina. Talvez a opção mais sensata fosse simples-
mente pela cor branca.

''Travesti - substantivo masculino. Disfarce de tra-


jes, mascaramento, pessoa vestida insolitamente, como
homens trajados de mulher e vice-versa. Do francês
travesti." A definição é do Grande Dicionário Etimológico
da Língua Portuguesa, edição de 1974, de Francisco da
Silveira Bueno, professor da Universidade de São Paulo.
A mesma obra define o termo "insólito" como algo que é

135
"raro, excepcional, não costumado". Essa palavra vem No entanto, ele sabe que biologicamente é um homem e
do latim insoiiius. não deseja eliminar o seu órgão sexual masculino. Al-
A realidade nem sempre concorda com os dicioná- guns travestis, no entanto, relacionam-se, ainda que
rios. Os travestis masculinos, embora representem ape- ocasionalmente, com mulheres e são bissexuais, outros
nas uma pequena parcela da população, não são raros, até heterossexuais.
muito pelo contrário. Numa cidade grande como São O fato de essas pessoas sentirem-se ao mesmo
Paulo, eles estão no teatro, na televisão e nas ruas, tempo homem e mulher leva alguns travestis a se trans-
dividindo o espaço e, algumas vezes, os clientes com as formarem em caricaturas de mulher. Seus gestos podem
prostitutas. ser exageradamente amaneirados, carregam na maquia-
Recentemente quase surgiu uma querela diplomá- gem, tomam hormônios ou aplicam silicone para ter
tica entre o governo brasileiro e o italiano devido ao seios fartos e grandes nádegas.
grande número de travestis que daqui seguiam para o Esse "desenho feminino" que está em sua cabeça
Exterior com o objetivo de melhorar de vida. pouco tem a ver com as mulheres. Se olharmos com
Os travestis podem ser vistos nos shows das casas atenção perceberemos que dentro daquele ser mora
noturnas, das mais simples às mais sofisticadas. Na também um homem. Esses travestis preferem como
televisão, costumam se apresentar em populares progra- parceiros os homens heterossexuais, ou pelo menos que
mas de calouros, levados ao ar aos domingos, quando se digam heterossexuais.
toda a família, incluindo as crianças, está reunida diante
do aparelho de 'IV.
Mas quem são eles? Ou elas?
Travesti é um termo leigo que ficou consagrado no Pouca gente conhece Astolfo.
Brasil para designar os homens que nascem machos, Ele nasceu um bebê macho normal e teve uma
são educados como meninos, mas têm uma identidade ínfáncía comum a tantos outros garotos. Passou pela
.de gênero diversa da maioria. São pessoas que ao lado adolescência sem jamais ter rejeitado seu pênis e bolsa
da identidade de gênero masculina, desenvolvida atra- escrotal e, adulto, tomou-se um excelente maquiador.
vés do reconhecimento de seu corpo biológico e da A partir de um determinado momento de sua vida,
educação, SENTEM-SE também femininos. algo emergiu de dentro de si, pedindo que ele transfor-
A identidade de gênero, como já vimos anteriormen- masse os caracteres sexuais secundários de seu corpo
te, é a base para a construção da maneira de ser. masculino. Conseguiu deixar sua barba mais rala, arre-
Trata-se de algo interno, uma sensação de pertencer ao dondou as formas do corpo e submeteu-se a um trata-
gênero masculino ou feminino. As pessoas bissexuais mento para ter seios.
sentem-se homens ou mulheres, caso sejam do sexo Quem conhece Astolfo? Hoje quase ninguém.
masculino ou feminino, e são atraídas ora por um sexo, E Rogéría. o travesti brasileiro mais famoso e res-
ora por outro. peitado?
Com os travestis isso não acontece. Eles sentem-se, São a mesma pessoa. Inteligente, bem-humorada,
ao mesmo tempo, homens e mulheres. O travesti mas- Rogéría é um sucesso no teatro e na televisão, onde
culino deseja, regra geral, um homem para se relacionar. aparece ora como entrevistada, ora como entrevistadora.

136 137
Durante o Carnaval, Rogéría é personagem obrigatória clubes noturnos. O corpo não mudou, os seios são
do famoso baile Gala Gay, que reúne no Rio de Janeiro apenas um enchimento de espuma dentro do sutiã, mas
travestis, transexuais, homossexuais e heterossexuais a bela voz aguda e o charme com que caminham de salto
de todo o mundo. alto pelo palco revelam seu outro lado. São artistas de
Rogéría nunca escondeu que tem Astolfo dentro de talento, se consideram apenas "transformístas", e não
si e rejeita qualquer hipótese de operação para retirada travestis. Em Juiz de Fora, Minas Gerais, realiza-se anual-
do seu pênis e testículos. Ela, com seu jeito despachado mente o concurso de "Míss Brasil Gay", do qual só podem
e popular, desperta muito mais simpatia do que "curio- participar travestis cujos corpos não foram modificados.
sidade" entre as pessoas. Esses homens são chamados de "transformístas".
É possível, mas somente eles podem ter a certeza
do que vai pelo seu coração. E quanto a nós, só sabere-
mos quando revelarem como se sentem em nível de
identidade de gênero.
Cientificamente falando, o melhor termo para defi-
nir um travesti, homem ou mulher, seria "hermafrodita Ao afirmarmos que essas pessoas se sentem inteiras
mental". Essas pessoas nascem com um corpo normal quando se comportam dessa maneira, estamos queren-
do sexo masculino ou feminino mas sentem necessidade do dizer que um travesti que se sente homem e mulher
de assumir um comportamento de gênero oposto ao seu ao mesmo tempo, e não exterioriza essa condição, é um
sexo biológico. Em outros casos, procuram combinar os ser pela metade.
dois tipos de comportamento, masculino e feminino, num A m~or parte de nossas relações é de gênero, e não
único, o que resulta num ser aparentemente andrógíno, sexuais. E o nosso dia-a-dia, trabalho, escola, lazer. E
Cabe lembrar que a aparência andrógína não impli- nessas relações se faz necessário, sempre, um compor-
ca necessariamente um comportamento de travesti. Al- tamento masculino ou feminino, independentemente do
gumas pessoas, por seus traços fisionõmicos, modo de corpo biológico. Não é possível viver em sociedade com
se vestir, corte de cabelo ou uso de determinados enfeites um comportamento neutro.
dificultam a sua identificação imediata como homem ou Um outro grupo de travestis necessita transfor-
como mulher. Alguns famosos ídolos da juventude têm mar os seus caracteres sexuais secundários. Eles
essa aparência indefinida. conservam a sua genitália interna e externa mas mo-
Aqueles travestis, cujo desejo interno em relação ao dificam a voz, eliminam os pêlos, arredondam o corpo,
seu gênero não é muito forte, de um modo geral não desenvolvem seios e aumentam as nádegas, procuran-
modificam o seu corpo. Numa parte do dia comportam- do aproximar-se do que seria um padrão feminino.
se de maneira masculina e numa outra parte apresen-
tam um comportamento feminino. O uso dos cosméticos,
as unhas bem tratadas, o cabelo ou uma peruca são
suficientes para que eles possam se sentir inteiros. Os travestis sempre existiram, assim como todas as
Não são poucos os casos de homens, funcionários outras formas de viver a sexualidade. No Brasil, e tam-
responsáveis, de temo e gravata durante o dia, que nas bém em outros países, eles passaram a se tomar vísiveis,
noites de sábado transformam-se numa bela cantora de como fenõmeno social, apenas recentemente.

138 139
Por falta de conhecimento, a sociedade tem muita não. Entretanto, na adolescência, com a explosão dos
dificuldade em distinguir um travesti masculino de um hormônios, quando suas características masculinas fi-
transexua1. Para a sociedade, todos os homens que se cam totalmente definidas, é que a maioria dos travestis
vestem ou se comportam como mulher são travestis. Isso sente a necessidade de acrescentar um comportamento
não é verdade. As maiores diferenças estão no mundo diferente daquele que ele vinha tendo até então.
interior dessas pessoas. Nesse momento surge o grande conflito consigo
O travesti masculino não rejeita o seu órgão sexual mesmo e com a família. Pouquíssimos pais aceitam ter
e, na verdade, o utiliza durante o relacionamento íntimo. um filho que foi criado como homem e que, "de repente",
Apenas em seu corpo falta "algo" feminino. A sua iden- começa a ter um comportamento masculino e feminino
tidade de gênero, no entanto, é bígenéríca, ou seja, eles ao mesmo tempo. A maioria desses rapazes não encontra
se sentem homens e mulheres ao mesmo tempo. outra solução a não ser abandonar a casa, passando a
Essa dupla identidade de gênero acaba se refletin- buscar um espaço social onde possam ser eles mesmos.
do, com maior ou menor intensidade, em todos os papéis Nas grandes cidades, esse espaço é garantido pelo
que a pessoa vier a desempenhar em sua vida. Por isso, anonimato. Eles então se agrupam a pessoas que estão
até intuitivamente, é possível distinguir um travesti de na mesma situação para poder viver ou, pelo menos,
uma mulher, o que já não ocorre com os transexuais. sobreviver. Esses travestis, ainda na adolescência, antes
São comuns as histórias contadas em rodas de de iniciar a mudança de seu corpo ou do papel de gênero,
amigos de homens que conheceram uma bela mulher, se descobertos são considerados como homossexuais,
se encantaram, e só descobriram que estavam com um uma vez que a maioria se relaciona amorosamente com
travesti na cama do motel. Se o caso for verdadeiro e se pessoas do mesmo sexo.
se passou exatamente dessa forma, é possível que esse Como já vimos anteriormente, há um equívoco nes-
homem tenha conhecido não um travesti e sim um sa identificação. Os travestis não são homens homosse-
transexual ainda não operado. xuais. Estes, internamente, sentem-se SEMPRE
Os transexuais masculinos, ao contrário dos homens. Não há duplicidade na sua identidade de gêne-
travestis, rejeitam a sua genítálía, querem se livrar ro. Apenas, coincidentemente, nos dois casos, os rela-
dela e ter, no lugar, uma vulva e uma vagina. Em cionamentos afetivos acontecem entre pessoas do
alguns depoimentos, os transexuais afirmam que mesmo sexo biológico, embora nem sempre.
SEMPRE se sentiram mulheres num corpo de homem Na medida em que a sociedade não abre espaço
e alguns, antes da operação para a mudança de sexo, para pessoas de comportamento ambíguo, isso vai se
chegam a confessar que sentiam nojo de seu órgão refletir em todas as situações de vida e principalmente
sexual masculino. no trabalho. Homens homossexuais e lésbicas são pes-
O problema, no Brasil, é que a operação para a soas discriminadas, mas podem e exercem suas profis-
mudança de sexo é proibida. Assim, muitos transexuais sões, as mais variadas. Para os travestis isso não
acabam se considerando travestis e dessa forma são acontece, na maioria dos casos.
vistos pela sociedade. Para a sociedade, essas pessoas são "muito estra-
Os travestis, muitas vezes, foram meninos com nhas". As dificuldades tornam-se enormes, e é a sobre-
características femininas desde criança e, outras vezes vivência que está em jogo. Restam, para os travestis,
poucas e raras opções. Com esforço conseguem se colo-
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car em ambientes tipicamente femininos, como salões
É na sua casa que os doentes encontram refúgio,
de beleza ou ateliês de costura.
mesmo que estejam em estado terminal. O carinho de
Alguns, com mais sorte, empregam-se em hospitais
Brenda é o mesmo ou até maior. Quando a morte,
como enfermeiros, ou em outras instituições, mas, nesse
caso, exige-se que eles se comportem de acordo com o inevitável, põe fim ao sofrimento de uma "companheira",
seu sexo biológico, ou seja, de forma masculina. Outros, é ela quem toma todas as providências para que haja um
talentosos, ingressam no meio artístico, e para muitos funeral digno, que acompanha, invariavelmente, sozinha.
sobra apenas o caminho da prostituição.

Os travestis não se relacionam amorosa ou sexual-


Como tantos, veio do nordeste para São Paulo, há mente entre si e nem com homossexuais. Eles preferem,
muitos anos, um rapaz chamado Caetano, hoje conhe- em sua grande maioria, homens heterossexuais. O tra-
cido como Brenda Lee. Essa pessoa conseguiu, com vesti Jane de Castro, uma produtora de shows de trans-
algum esforço, abrir uma pensão destinada exclusiva- formistas no Rio de Janeiro, vive maritalmente há 25
mente a travestis. Com a propagação da Aids, no início anos com um homem que se considera heterossexual.
da década de 80, Brenda Lee decidiu, corajosamente,
Essas pessoas de dupla identidade de gênero são as
transformar a sua pensão numa casa para atendimento
de travestis aidéticos, menos estudadas pela Medicina atualmente. Não se
sabe por que são dessa forma, não se entende por ÇJue
Essa pensão, onde moram alguns travestis, pouco
difere do ambiente de uma família "convencional", se sentem e se comportam dessa maneira. Na realidade.
Brenda tem verdadeiro carinho pelas "meninas" e as deveriam ser estudadas. porque muitos travestis dese-
trata quase como filhas. "Algumas" são mais dóceis, jam mudar o seu cor,po.
outras mais rebeldes, mas todas muito amadas e Para conseguir isso, eles precisam da ajuda da
respeitadas, estejam ou não na prostituição. O Palácio Medicina e necessitariam contar com uma equipe mul-
das Princesas, nome de sua pensão, é uma casa alegre, tidisciplinar composta, no mínimo, por endocrinolo~s­
com astral elevado. ta. psiquiatra, psicólo~o e cirur~ião plástico. Esse
Um morador resumiu com uma frase, num depoí- atendimento deveria ter um respaldo cientifico muito
mento para um documentário suíço", o que sentia por bom para se saber Q,Uando e como um homem pode
Brenda: "Aqui, se a gente traz dinheiro da rua, come. Se acrescentar caracteres sexuais secundários femininos
não traz, come do mesmo jeito", Brenda tomou-se muito ao seu corpo masculino,
respeitada por seu trabalho na prevenção contra a Aids
e passou a receber recursos públicos do setor de Saúde Como um serviço de saúde com essas característi-
para manter de pé a sua iniciativa. cas inexiste no Brasil, os travestis, para fazer cumprir
sua necessidade de transformação, buscam meios clan-
1. Documentárto suiço Dou!eur d' anwur, idealizado e realizado por destinos e perigosos. Eles se automedicam, fazem a
Mathías Kâlían e Plerre Alain Meíer, Uma produção da Amidou Paterson . aplicação de silicone para dar formas femininas ~
Fílrn, Généve e Jurg Müller Film, São Paulo, maio de 1987.
corpo, e isso costuma trazer grandes problemas, com
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riscos para a saúde e para a sua própria vida. Apenas
os travestis que dispõem de recursos têm condicões de
Há uma expressão preconceituosa e de mau
recorrer a um atendimento médico particular.
gosto. muito comum em rodas de homens. Quando
Na medida em que a Medicina e a sociedade não
eles vêem passar uma mulher muito bonita, exube-
aceitam essas pessoas e se comporta como se elas não
rante nas nádegas e nos seios, afirmam, se sentindo
existissem, os travestis se valem de todos os meios para
garantir os seus direitos como seres humanos. Alguns atraídos: "Não é possível. Que máquina! Só pode ser
se tornam violentos e agressivos para se defender, e as um travesti".
páginas policiais dos jornais estão cheias de casos dessa Os travestis que se sentem esteticamente bonitos e
natureza. Na verdade, estão devolvendo à sociedade toda atraentes encontram espaço aberto na prostituição. Eles
a carga de violência que recebem ao longo de suas vidas. só se prostituem porque existe clientela para eles. Mui-
Outros se valem do humor para abrir um espaço tos homens desejam se relacionar sexualmente com
travestis, sabendo de sua condição. Quando precisam
para si. São as Drag-Queens, hoje muito populares. As
revelar o "caso". muitas vezes dissimulam, dizem que se
Drag-Queens são "mulheres" propositalmente caricatas
enganaram, mas, como era tarde demais...
e, diga-se de passagem, personagens dos carnavais
Que homens são esses?
brasileiros de há algumas décadas. Vale dizer que mui-
tas Drag-Queens são homens heterossexuais. Outro Pelo relato dos travestis, sabemos que durante a
caminho é a arte, principalmente a música. relação alguns clientes pedem para ser penetrados, no
Quando fazem isso de forma adequada, são absor- que às vezes são atendidos ou não. Seriam homens
vidos, até certo ponto, pela sociedade. É o caso, por homossexuais que não têm coragem de procurar um
exemplo, da artista Laura de Vison, um travesti caricato outro homem? Acreditamos que não.
que atua com muito talento em casas noturnas. Esses "clientes" seriam então bissexuais? É uma
Durante o dia, Laura transforma-se. num respeita- pergunta sem resposta. Ou seriam homens que têm algo
do professor de História em um tradicional colégio do diferente dentro de si, que os leva a se relacionar com
Rio de Janeiro. O comportamento de Laura não é uma seres que tenham fundidos no mesmo corpo o homem e
imitação de mulher à noite ou a de um professor homem a mulher?
durante o dia. Laura vive, verdadeiramente. os dois Esses homens têm um papel complementar ao pa-
lados, em sua plenitude. pel afetivo-sexual dos travestis. Entretanto, isso não foi
Quando a sociedade não compreende e rejeita de- estudado e nem mesmo é conhecido. A verdade é que em
terminados grupos de pessoas, podem ocorrer duas todas as grandes cidades brasileiras existem pontos de
situações, igualmente desumanas. Essas pessoas são prostituição de travestis.
marginalizadas e abandonadas à própria sorte ou man- Esses pontos de prostituição, onde trabalham os
tidas em guetos. Essa discriminação atinge, em maior travestis mais sofisticados, mais educados e que têm um
ou menor grau, os homossexuais, os travestis, as pros-
corpo muito atraente, estão localizados em bairros de
titutas, os loucos, os deficientes físicos e tantos outros
classe média ou alta das grandes cidades. Na penumbra
seres humanos "diferentes".
da noite, é comum ver parar diante dos travestis carros

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do ano e até importados, o que indica que são procura- Por que tanta violência contra pessoas que não são
dos por pessoas de bom poder aquisitivo, e que sabem consideradas cidadãos e nem têm seus direitos huma-
quem estão buscando. nos preservados? Alguns desses homens, criminosos,
Muitos travestis brasileiros partem para o Exterior aparentemente, querem matar algo dentro de si mes-
para trabalhar na prostituição ou no meio artístico. Hoje mos. Algo que "escondem" de si mesmos e que não
já disputam esse mercado de trabalho em países como compreendem.
Portugal, França e Itália. Quase todos desejam retornar É necessário deixar claro que um homem que se
um dia ao Brasil em melhores condições para aqui poder
veste de mulher não é necessariamente um travesti.
viver uma vida normal.
Podemos, no máximo, dizer que se trata de um
Da mesma forma como ocorre com os homosse-
homem travestido. A questão está na forma de viver
xuais, as seitas brasileiras de origem africana, como a
a sexualidade.
umbanda e o candomblé, aceitam sem discriminação os
Existem numerosos casos de homens heterosse-
travestis. Muitos ingressam nessas seitas e chegam até
xuais que, durante a relação sexual com sua compa-
a pais-de-santos respeitáveis, o ponto mais elevado nes-
nheira, vestem as suas roupas, especialmente as
sas religiões.
peças mais íntimas. Isso lhes dá mais prazer, esti-
Na medida em que esses travestis atingem um
mula a fantasia e dá mais colorido à relação. Isso é o
status religioso, passam a ser aceitos por nossa socie-
que a Medicina denomina de travestismo e considera
dade. Eles são procurados como pontos de apoio ou
patológico.
como conselheiros que podem ajudar a resolver as
Se uma situação como essa for vivida com natura-
mazelas da alma. Vale a regra: quando em um papel
lidade pelo casal, não há problemas. O homem não é,
social se é muito importante, um outro papel diferente
por ter usado num momento de maior prazer a lingerie
passa a ser aceito pela sociedade.
preta de sua mulher, um travesti, e menos um homos-
Da mesma maneira como são procurados, são tam-
sexual.
bém agredidos, violentados e assassinados. As rondas
E o que dizer então do Carnaval? Em Recife,
policiais noturnas, também nos bairros mais pobres,
blocos com centenas de homens vestidos de mulher
caçam essas pessoas como cães vadios destinados à inci-
saem às ruas, sendo muito aplaudidos pela população.
neração. Enxotados de um lado para o outro da cidade, as
Esses blocos adotam, de propósito, nomes provocati-
páginas policiais trazem, freqüentemente, noticias de tra-
vos, como "As virgens de Olinda", ou de acordo com o
vestis assassinados a sangue-frio, por homens que pas-
bairro de origem.
sam de carro, atiram muitas vezes e vão embora.
Alguns excelentes atores de cinema ou de teatro,
As investigações sobre essas mortes invariavelmen-
heterossexuais, especializam-se em representar papéis
te vão para o arquivo, com o carimbo "crime de autoria
femininos. Quem poderá dizer que Dustin Hofmann, ao
desconhecida". Nisso, essas investigações não diferem
viver Tootsíe, no cinema, virou traoestü O tradicional
muito das dos crimes políticos. A impunidade impera
teatro Nó japonês não admite mulheres em seu elenco,
segundo a conveniência social.
e isso acontece há séculos.

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Estúdio. Silêncio. Gravando.
Take para os colares coloridos de contas graúdas.
Corta para o sorriso. abre plano geral.

Vestiu uma camisa listrada


e saiu por aí
Em vez de tomar chá com torrada
ele bebeu parati
s
Levava um canivete no cinto
e um pandeiro na mão
E sorria quando o povo dizia:
Sossega leão! Sossega leão!

Corta. OK. Os olhos de Carmen Miranda têm um Lza Minelli termina a última música do seu show
briiho diferente. É a sua oportunidade. seu sonho e agradece. emocionada. os aplausos da platéia seleta
realizado. de um clube de elite. Os olhos negros brilham. realçando
Corta. Desempregado. carioca. brasileiro. Eric a beleza do seu rosto. ela ajeita com charme o vestido e
Barreto. Ator transformista convidado pelo cine- vai para o camarim. Diante do espelho. retirando a
ma americano para viver a nossa Pequena Notável maquíagem, algo dentro de si mostra o rosto verdadeiro,
num filme. de Ricardo, um travesti.
Foi demitido do banco onde trabalhava assim que A presença de um homem com belas formas femi-
voltou dos Estados Unidos. Lá sua estrela brilhara tanto ninas tornou-se comum no Carnaval e na 1V. Essas
por tão pouco tempo. pessoas já fazem parte de nossa "paisagem". principal-
mente nas grandes metrópoles. As batidas policiais são
constantes e numa delas foi preso Bínho, depois de uma
confusão na saída de um baile.
Negro. alto. forte e casado. Binho não tinha passa-
gem pela polícia. mas foi indiciado por crime de falsidade
ideológica. No bolso. o único documento trazia o nome
de Maria Quitéria. Bínho, para espanto dos agentes de
plantão. era mulher. uma travesti.
Raramente temos noticia de casos como o de Binho.
As mulheres travestis existem em pequeno número. e
estão totalmente camufladas, de forma tal que passam

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andar, no falar e o gesticular, é o de um homem. Seu
despercebidas. Essas mulheres não têm nenhuma dis-
objeto de desejo e de amor geralmente é uma mulher
função orgânica, nasceram fêmeas normais, e, de um
bastante feminina, que se sinta heterossexual.
modo geral, devem ter sido criadas dentro de uIU padrão
de gênero feminino. Como a sociedade não tem um espaço aberto para
a~ mulheres travestis, elas acabam passando desperce-
É no periodo da meninice, por volta dos 8 anos,
bidas pelos meios de comunicação, a não ser que se
quando a sua identidade de gênero está se cristalizando, envolvam em casos de contravenção penal. Em situa-
que esse modo de sentir começa a ganhar forma, poden- ções como essa, o tratamento que essas pessoas rece-
do se explicitar ou não. bem é muito cruel.
A maioria das crianças, nessa etapa da vida, já sabe O número reduzido de mulheres travestis faz com
que é macho ou fêmea e SENTE-SE pertencendo ao que tenhamos poucas informações sobre como vivem e
gênero masculino ou feminino. Entretanto, algumas como se sentem essas pessoas. No Brasil, nem a Medi-
começam a ter a sensação de que são as duas coisas ao cina e nem a Psicologia vêm desenvolvendo estudos a
mesmo tempo. Ora se percebem como meninas, ora respeito do assunto. Se comparadas com a quantidade
como meninos. Novamente voltamos a afirmar que a de travestis masculinos, elas praticamente não existem,
Ciência ainda não dispõe de elementos para explicar o que não é verdade. Estão apenas "escondidas" no meio
essa condição humana, e tudo permanece no terreno das da população e não despertam o interesse da televisão
hipóteses. ou do meio artístico. Salvo quando são apresentadas
como "curiosidade".
O descaso da Ciência não se limita apenas à Medi-
cina e á Psicologia, mas avança também pela Sociologia
As mulheres travestis comportam-se, na maioria e pela Antropologia. A falta de conhecimento e de inte-
das vezes, como homens e chegam até mesmo a se casar. resse retira dessas pessoas a possibilidade de assegurar
Mas não rejeitam a sua condição biológica de mulheres uma identidade social e, em conseqüência, o respeito.
e nem pensam em mudar de sexo. Os órgãos sexuais são O comportamento das mulheres travestis nunca é
normais e fazem parte de sua vida amorosa e de seus totalmente "masculino". Essas mulheres, que se sentem
relacionamentos. com dupla identidade de gênero, guardam dentro de si
Essa forma de viver a sexualidade, entretanto, leva traços femininos. É possível perceber, diante desse "apa-
rente" homem, alguma coisa de mulher.
as mulheres travestis a sentir necessidade de acrescen-
tar caracteres sexuais secundários masculinos ao seu Essa forma de sexualidade difere da que é vivida
corpo. Entre eles estão o desenvolvimento da rnuscula- pelas mulheres bissexuais. Estas SENTEM-SE o tempo
~ura e, mais raramente, com o uso de hormôníos, pêlos
todo MULHERES, mas são atraídas por pessoas de
e barba. Uma característica tipicamente masculina, o ambos os sexos. Quanto ás mulheres travestis, essas
trazem dentro de si a sensação de que, embora mulhe-
tom de voz grave, pode ser obtido com um treinamento
res, são QUASE HOMENS. A expressão está em desta-
e pela imitação.
que porque, pelo que se sabe, as mulheres travestis
Os brincos e o batom são abandonados. A roupa procuram agir como homens, mas não rejeitam o seu
justa feminina cede lugar a trajes mais largos, que sexo feminino, como acontece com as mulheres transe-
escondem o corpo, e todo o seu comportamento, no xuais, o que veremos mais adiante.
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É necessário também não confundir as mulheres custo e o quanto antes do hospital. Os médicos não
travestis com as lésbicas "masculinizadas". No caso deixam. Há providências de praxe a serem tomadas.
dessas lésbicas é possível identificar nelas uma mulher O desespero da mulher aumenta, ela se toma vio-
com trejeitos masculinos, mas ainda assim claramente lenta e não há outra saída a não ser chamar a polícia
uma mulher. A mulher lésbica masculinizada não quer para contê-la. A chegada de um policial coincide com o
ser homem, mas apenas se parecer com um homem ou momento de espanto dos enfermeiros que preparavam o
sentir como é ser homem socialmente. corpo. O velho Agripino, na verdade, era uma mulher.
As travestis femininas vão além. Elas querem se Imediatamente dona Idalina é detida como "cúmpli-
fazer passar por homens no dia-a-dia e até nas suas ce" por crime de falsidade ideológica cometido pelo
relações amorosas. Isso não é fácil de conseguir, uma marido, que tinha todos os documentos com o nome de
vez que não se SENTEM totalmente homens. Interna- homem. Na delegacia, diante do escrivão, a humilde
mente, são mulher e homem ao mesmo tempo. mulher de mais de 60 anos afirma, singelamente, que
Há uma fronteira muito tênue entre a mulher em 30 anos de vida em comum jamais viu seu marido
lésbica bastante masculinizada e a travesti feminina, nu. Os policiais não acreditam. Certamente ela estaria
pois ambas se assemelham no seu exterior e nos seus mentindo.
relacionamentos amorosos e sexuais. A diferença está Ou não.
na forma como cada uma delas se sente. E isso só elas
podem saber.

Não temos conhecimento de como as mulheres tra-


vestis se comportam no relacionamento sexual. Prova-
Interior do Ceará, 1993. velmente podem ter tido relacionamentos com homens,
numa idade em que não estavam totalmente definidas,
Agripino de Oliveira, de 84 anos, é internado às
ou até mesmo um casamento. Entretanto, a partir de
pressas no modesto hospital da cidade com uma úlcera
um determinado momento, não aceitam mais relacio-
perfurada. Dona Idalina, sua segunda mulher de papel
nar-se com um ser masculino e buscam uma mulher
passado, acompanha o marido, como sempre fez nos para um vínculo.
trinta anos de casados. O agricultor, pobre, rapidamente
A Psicologia não dispõe também de estudos sobre
vai piorando. Nos últimos meses o pequeno sítio ficou
como são as mulheres que se relacionam com uma
quase abandonado na mão de dois rapazes, um de 13 e mulher travesti. Ao que parece, essas mulheres seriam
outro de 15 anos, seus filhos adotivos. Outros dois, bem muito femininas, estariam dentro de um padrão que
mais velhos e também adotivos, moram em São Paulo e nada deixa a desejar à sociedade e têm claro dentro de
há anos não visitavam o pai. si a consciência de pertencer ao gênero feminino. Não
De um dia para o outro, uma infecção adquirida no há nada que confirme que essas mulheres têm uma
hospital e o coração sem forças dão o descanso final ao orientação afetiva voltada para a homossexualidade.
velho e curtido homem da roça. Dona Idalina entra em Elas não são lésbicas porque estão amando um "ho-
desespero. Ela quer retirar o marido morto a qualquer mem", ainda que "ele" seja mulher.

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A sociedade é desumana com as mulheres tra- Entre os convidados e amigos estava Norma, uma em-
vestis, principalmente se elas pertencerem ás cama- presária bem-sucedida, também do ramo de confecções.
das mais pobres da população. Com elas a lei é O pai apresentou as duas, e a conversa, inicialmen-
implacável, e o preconceito sem limites. Essas mu- te sobre tecidos, acabou se dirigindo para a educação
lheres, por serem "diferentes" da maioria, são mar- infantil, os problemas de nossas escolas, a pouca valo-
ginalizadas ao extremo quando seu verdadeiro corpo rização do professor. A festa terminou, mas Cristiana
de fêmea é revelado. não conseguiu apagar da mente a boa impressão que
Norma lhe havia causado.
No dia seguinte, a empresária telefonou. Gostaria
de conversar novamente com Cristiana. As duas se
Uma bela mulher, de 25 anos, muito feminina e encontraram e, semanas depois, estavam apaixonadas.
charmosa, nos procurou para fazer psicoterapia. For- Norma estava com 38 anos, era filha única e
mada em Pedagogia, essa mulher, que preferimos herdara os negócios da família com a morte dos pais,
identificar apenas como Cristiana, se dizia um tanto num acidente aéreo. Ela.já gerenciava a empresa, mas,
insegura porque havia recebido uma boa proposta a partir de então, passou a dirigir a firma com "mão
para mudar de emprego. de ferro".
Tranqüila, Cristiana disse não ter grandes proble- Desde a juventude Norma trajava-se com roupas
mas no seu relacionamento social e amoroso, mas se masculinas, vestia temo, usava gravata e sapatos de
confessava insegura e frágil. Isso a estava preocupando, homem. Usava o cabelo curto, mas não disfarçava os
e ela desejava, se possível, melhorar esses aspectos de traços femininos de seu rosto, que nunca conheceu um
sua vida. batom. Mas ela não negou para ninguém a sua condição
Aos poucos, após as primeiras sessões de psico- biológica, nascera fêmea e tornou-se masculina. Apenas
terapia, Cristiana foi contando a sua história. Teve escondia, sob o terno, os seios, comprimidos por uma
excelente educação, a família era de classe média, o faixa bem apertada. Norma jamais usou um sutiã.
que lhe permitiu concluir os estudos universitários Respeitada pelos funcionários, pelos clientes e pela
sem precisar trabalhar. O pai, um comerciante de família, o comportamento "diferente" de Norma passava
tecidos, queria que ela cursasse Administração ou quase despercebido entre aqueles que conviviam com ela
Contabilidade, mas o gosto em trabalhar com crianças no trabalho ou na sociedade.
a levou para a Pedagogia. O carinho, os mesmos gostos, o amor levaram Crís-
Cristiana, na época do tratamento, tinha um namo- tiana a morar na casa de Norma. As duas se considera-
rado e pretendia se casar logo. A única irmã, mais velha, vam um casal heterossexual "normal". Norma passava
já era casada e havia se mudado para o Canadá. Deixar o dia dirigindo a empresa, e Cristiana, depois de voltar
os pais sozinhos também a incomodava. da faculdade, cuidava da casa, administrava as empre-
Quando completou 21 anos, seu pai fez questão de gadas, ia ás compras. Para Cristiana, Norma era, em
dar uma grande festa. Não havia nenhum motivo especial quase todos os momentos, o seu "marido".
para isso, mas os negócios da família fmalmente estavam Pelo relato de Cristiana, apenas num momento ela
indo muito bem. E portanto a data merecia comemoração. se dava conta de que estava vivendo com uma mulher.

154 155
Nos primeiros instantes de amor, Cristiana sentia falta enfermeira roupas femininas para usar durante o
em seu "companheiro" de um pênis. Como em qualquer período do internamento? E em que enfermaria deve
relacionamento, elas foram felizes, brigaram, fizeram ficar uma mulher travesti? Entre os homens ou entre
planos, viajaram com a família. Até que, três anos as mulheres?
depois, o vínculo se rompeu. Os serviços de saúde, por razões de respeito huma-
Cristiana sofreu e provavelmente Norma também. no, deveriam prever e se preparar para uma situação
Mas a dor passou. Depois disso, Cristiana nunca mais como essa. Não importa se essas pessoas fazem parte de
voltou a se relacionar amorosamente com mulheres. uma minoria ou se são raras. São pessoas, e nada
Perguntamos se esse relacionamento com Norma havia justifica o sofrimento de um ser humano, principalmen-
deixado alguma marca desagradável e profunda. Ela diz te se ele pode ser evitado.
que não, que apenas não sente atração ou interesse por A Medicina e a lei privilegiam o corpo biológico, no
mulheres. Reconhece apenas que na época era um tanto que diz respeito à sexualidade. O lado psicológico, que
imatura. Desejava um homem que a protegesse mas, ao são a identidade genital, a de gênero e a orientação
mesmo tempo, não a ameaçasse. Por isso, completa afetivo-sexual ficam para um segundo ou terceiro
sorrindo, se "casou" com "um marido fêmea". planos. Cada um tem de se "adequar" ao corpo bioló-
gico, de macho ou de fêmea. Nasceu com um corpo
biológico normal, a pessoa que se ajuste, que se adap-
te, "que se vire".
É pouco comum as mulheres travestis procurarem
ajuda psicológica, quer seja porque elas são em número
reduzido ou porque os profissionais de saúde mental no
Brasil não estão preparados para lidar com essa situa- Aparentemente, a situação de miséria extrema de
ção. Não existem também serviços públicos que aten- nosso país está fazendo com que os mecanismos de
dam essas pessoas. As poucas informações a que temos controle social se afrouxem, de tal forma que está vindo
acesso vêm de suas parceiras eventuais, como no caso à tona, com mais intensidade, a verdadeira identidade
apresentado. de gênero de homens e mulheres. Essas pessoas já
Nas camadas mais desfavorecidas da população o perderam tudo e nada mais resta para elas a não ser o
atendimento médico às mulheres travestis é, como para seu próprio corpo e sua mente.
os demais, extremamente precário e nesse caso até A discriminação, a violentação, a crueldade social
desrespeitoso. Uma mulher que se traje e se comporte estão muito perto de acabar com esses dois últimos
como homem, ao ser internada num hospital público, traços dos seres humanos. Não sabemos o que sobrará
recebe, de início, roupas femininas, "adequadas" ao seu depois disso.
corpo biológico.
A Medicina não tem qualquer preocupação com o
"corpo psicológico" dessas pessoas. Qual não seria o
constrangimento e o sofrimento de um homem heteros-
sexual que, nas mesmas condições, recebesse de uma

156 157
Vrocure se imaginar na seguinte situação: você é
verdadeiramente uma mulher. Comporta-se como mu-
lher, sente-se uma mulher, emociona-se facilmente, é
meiga e muito feminina. Enfim, você é uma mulher.
Agora se imagine se despindo, lentamente, diante
de um espelho. Observe carinhosamente cada detalhe
de seu belo corpo. E veja, em sua parte mais íntima, um
pênis e uma bolsa escrotal.
Esse não é um exercício de imaginação fácil de fazer
e talvez seja mesmo impossível para uma mulher.
É assim que se sente, mais ou menos, um homem
transexual. Na fase final de sua transformação, o corpo já
adquiriu todas as formas femininas. No entanto, algo está
sobrando, enquanto outra parte, mais importante para ele,
não existe. Aquele pênis não é "seu". No lugar deveria estar
uma vulva e uma vagina. É como se tivessem colado ao
seu corpo um órgão, vivo, de outra pessoa.
Ao longo de quase toda uma vida, desde a infância,
os transexuais se sentem como uma pessoa que nasceu
com o corpo "trocado". SÃO "almas" femininas aprisio-
nadas em corpos masculinos.

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mudança de sexo. Após a cirurgia, quando eles já se
transformaram em uma mulher por inteiro, o prazer
Temos grande dificuldade para compreender essa sexual com um homem não será genital como para as
forma de existência, país, em quase todos nós, "a alma" outras mulheres. O prazer existe, porque de certa forma
está adequada ao nosso corpo biológico. Sequer conse- foram aproveitadas partes de seu sexo original, mas o
guimos nos colocar no papel dessas pessoas em termos orgasmo será mais corporal e psíquico.
de suas sensações internas. Os transexuais masculinos podem ser divididos em
A Medicina e tampouco a Psicologia até hoje não dois grupos: os primários e os secundários. Considera-
encontraram respostas para essa condição humana. Os mos transexuais masculinos primários aqueles que,
transexuais masculinos não apresentam qualquer anor- desde meninos, sentem com grande intensidade que
malidade biológica. Nascem bebês machos mas desen- pertencem ao gênero feminino.
volvem, desde cedo, uma identidade de gênero feminina. Por volta dos 2 anos e meio, a identidade de gênero,
Não são homens que desejam se tornar mulheres. Eles, ou seja, a noção interna de pertencer ao gênero mascu-
psicologicamente, SÃO MULHERES. lino ou feminino, começa a se definir. Para a grande
Eles têm perfeita consciência de que nasceram ma- maioria das pessoas, essa identidade vai na mesma
chos, de que têm um corpo e uma genitália masculina, direção de seu corpo biológico, e a criança, nessa fase,
mas não conseguem aceitar a sua estrutura sexual já SE SENTE menino ou menina.
biológica. Em função disso, surge um imenso conflito Isso não acontece com os transexuais masculinos
entre a identidade de gênero dessa pessoa, o que ela primários. Nesse caso, na fase infantil, a sua identidade
sente internamente, e o seu corpo fisico. Para eles os toma um rumo oposto ao de seu corpo biológico. Ele,
órgãos sexuais de nascimento estão a mais no seu corpo, então, com pouco mais de 2 anos, já SE SENTE uma
e eles sentem que aquela parte não lhes pertence. menina. Essa sensação vai acompanhá-lo ao longo da
Para os transexuais, o conflito básico está na inver- vida, em todas as fases pelas quais ele passar. A sensa-
são completa entre a sua identidade de gênero e o seu ção de SER mulher estará presente na infáncia, na
corpo biológico. Esse drama é tão intenso que eles
adolescência, na vida adulta e na velhice.
chegam a ter vergonha de seus genitais.
Os papéis de gênero que ele vai desenvolver, o seu
Quando conseguem ter relações sexuais antes de
comportamento diante de todas as situações da vida,
sua transformação corporal através de cirurgia, portan-
to ainda dispondo de pênis e bolsa escrotal, freqüente- apesar da educação e de todas as dificuldades que vier
mente excluem a genitália no momento do ato amoroso. a enfrentar, serão sempre femininos. Em qualquer mo-
Eles escondem seus órgãos sexuais, em geral não tocam mento da vida, ao nos depararmos com essa pessoa,
e nem permitem ser tocados nessa região. sentiremos estar diante de uma menina, de uma adoles-
Os transexuais masculinos não buscam o prazer em cente, de uma mulher ou de uma senhora idosa.
seus órgãos sexuais, ao contrário do que ocorre com os Os transexuais masculinos não apresentam, em
outros homens, como os travestis, homossexuais, os geral, qualquer disfunção hormonal, sendo, portanto,
bissexuais e os heterossexuais. do ponto de vista biológico machos. Alguns iniciam nos
Dessa forma, o caminho desejado para eliminar esse primeiros anos da juventude o tratamento para mudar
conflito passa a ser a realização de uma cirurgia para o corpo, e outros, muito mais tarde.

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É possível que existam casos de transexuais que não É uma mulher, não há nada de masculino, pensa-
transformam o corpo, mas essa pessoa passará toda a vam as pessoas. Muitos homens não se conformavam,
vida se sentindo "estranha" dentro dele. mesmo sabendo da verdade, e mal podiam disfarçar a
Os transexuais primários, a partir do momento em atração pela modelo.
que sentem intimamente que têm uma identidade de Ela se sente uma mulher, sempre foi uma mulher,
gênero oposta a sua sexualidade fisica, passam a se embora tenha nascido com um corpo masculino. Não
comportar como mulheres. Esse tipo de transexual não dispomos de informações médicas precisas, mas, pela
encontra qualquer prazer erótico em vestir roupas femi- sua história de vida, é possível afirmar que seus órgãos
ninas. Ele apenas se sente mais "ela". Também não se genitais eram normais.
vêem como homossexuais porque sua atração é por Roberta nasceu numa família de classe média, seu
homens que se consideram heterossexuais. pai é um militar de patente e provavelmente teria pro-
Se observarmos uma relação de gênero, do dia-a- curado tratamento médico se o seu filho apresentasse
dia, entre um transexual masculino primário adulto, com então alguma anomalia anatômica nos órgãos sexuais.
seu corpo feminino já definido, e um homem, não tere- Roberta operou-se no Exterior, mantém relaciona-
mos dúvida de que estamos diante de um casal heteros- mentos amorosos com homens e continua sua carreira
sexual. É quase impossível diferenciar um transexual de modelo, povoando com fantasias a cabeça dos
masculino de uma mulher apenas pela aparência, pelos homens brasileiros, dos "machões" aos mais feminis-
gestos ou pelo comportamento social. tas. À época em que este livro foi escrito, as autorida-
des brasileiras ainda não tinham, por sua visão
tacanha e atrasada, autorizado a mudança dos docu-
mentos de Roberta.
Uma linda mulher, morena, desinibida, transbor- A nossa Justiça ainda a obriga a passar por cons-
dando sensualidade. Durante meses, já famosa como trangimentos. Aonde quer que vá, tem de apresentar
modelo fotográfico, foi capa, em meados da década de uma carteira de identidade com o nome de Roberto
80, das principais revistas brasileiras. E em pouco Gambini. A Justiça, em casos como esse, perdeu com-
tempo transformou-se num símbolo sexual por todo o pletamente a noção do que seja "falsidade ideológica".
país, povoando a imaginação e instigando o desejo de
milhares de homens.
Seu nome de batismo: Roberto.
O nome da sensual e desejada morena: Roberta Close. Existe um outro tipo de transexual masculino, que
Isso se deu porque Roberta tem papéis de gênero nós chamamos de secundário. Nesse caso, embora o
femininos muito desenvolvidos. Seu comportamento é menino tenha uma identidade de gênero feminina, como
o de uma mulher, nos gestos, no falar e na maneira de vimos, desde a primeira infância, seu comportamento
pensar. No início de sua carreira, muitas pessoas permanece masculino. Ele se SENTE uma menina, mas,
chegaram a duvidar de que ela tivesse nascido homem, em geral, por pressão da família, procura comportar-se
e acharam que aquilo que estavam dizendo na TV era de forma masculina ou, pelo menos, imitar o comporta-
pura mentira. mento dos meninos.

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Para algumas famílias, é insuportável a idéia de que Num espaço de tempo de 30 anos, nasceu bebê
um filho nascido homem possa se comportar como macho. cresceu como homem, namorou, formou-se e
menina. Muitos pais não podem, não conseguem ou nem casou-se. Mas havia algo estranho em seu íntimo. Bom
tentam compreender o que se passa no interior dos seus profissional em sua área, ele obteve um emprego impor-
filhos e não enxergam além da realidade aparente. Me- tante numa empresa multinacional. Seu lar era quase
nino se fazendo de menina é bandalheira, que se cura perfeito. sua mulher o amava e com ele se satisfazia.
com uma boa surra, dizem alguns. Ou é doença mental, Com o passar dos anos, no entanto, a sensação
dizem outros. estranha aumentou. Ele se deu conta então de que nem
Dona Jesuína, mãe da modelo Telma Líp, pensa tudo ia tão bem dentro de si, quanto ia fora.
diferente. Em vários depoimentos a jornais e a redes de Onde estava o prazer? Não estava mais na relação
televisão, ela fez questão de afirmar que estranhou um com sua mulher. A vida sexual era monótona, enfado-
pouco quando percebeu que seu filho. desde pequeno, nha, inutilmente cansativa e, apesar da ereção, não
não era como os outros. Telma, hoje com 30 anos, era chegava ao orgasmo. O mundo tinha perdido a graça.
então Ricardo Franco. O que fazer? Os meses iam passando. José Paulo
No início, confessa ela, sentiu muito medo de que conversou com a mulher, uma, duas, três, inumeráveis
as pessoas não entendessem seu filho, que o perseguis- vezes. Um dia. sem querer, ficou minutos diante do
sem. Mas o coração dessa mãe falou mais alto e bateu espelho de seu quarto. Estranho, aquela imagem de um
mais forte. O medo foi passando. Dona Jesuína se homem refletida no espelho não era a sua.
acostumou com a idéia e passou a ajudar e a lutar pela Inteligência e coragem. Ele tinha matado a charada.
"filha" até onde era possível. Passou a ler, a pesquisar e a refletir sobre toda a sua
"Hoje somos mãe e filha, duas amigas. Às vezes vida. Em muitos instantes, o desespero tomava conta de
brigamos, Telma é um pouco relaxada,.larga as rou.pas sua alma. Mas não podia fraquejar. tinha de ir em frente.
pelos cantos, mas eu a amo muito. E a minha fílha Um dia chegou o momento. Pediu à esposa que o
querida." ouvisse com calma e revelou a ela o que lhe parecia ser
Os transexuais secundários só vão explicitar a sua a sua verdadeira identidade, da qual até então nem
verdadeira identidade de gênero, que no caso é feminina, mesmo ele tinha pleno conhecimento. Sentia-se mulher.
muito mais tarde, em geral na idade adulta. A severa Ele seria um transexual?
educação dada pelos pais, os quais ao longo do tempo A mulher o ouviu imóvel e em silêncio. Não fez
procuraram "educá-lo" de acordo com o seu sexo bioló- questão de esconder uma lágrima que rolou pelo rosto. E
gico, criou nessa pessoa um simulacro de comportamen- estendeu-lhe a mão com amizade, afeto e compreensão.
to masculino, que vai ser mantido até o ponto em que Nas primeiras semanas, com grande timidez e apoio
não resistir mais à força de sua "natureza" interna. da esposa, passou a usar roupas femininas em casa.
Durante esse tempo, todas as suas sensações de Procurou tratamento psiquiátrico e foi exaustivamente
pertencer ao gênero feminino só vão se realizar na analisado por uma equipe muidisciplinar de bom nível.
imaginação, nos sonhos, ou na privacidade de quatro Essa equipe, após muitos exames, confirmou definitiva-
paredes, à qual ninguém tem acesso. mente aquilo que José Paulo já sabia e tinha revelado.
José Paulo, casado, engenheiro eletrónico. Era. de fato, um transexual.

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José Paulo e sua mulher se separaram sem brigas Entretanto, essas pessoas precisam, mais cedo ou
e sem mágoas. A nova situação não permitia mais o mais tarde, de uma cirurgia para adequar o corpo fisico
casamento. Tornaram-se amigos e, para ele, aquela ao psiquismo. Isso é muito mais que uma decisão, é uma
mulher, que fora sua, transformara-se na pessoa mais necessidade. Ao contrário dos travestis, que inclusive
importante de sua vida. Ela foi a única pessoa capaz de fazem uso de seus órgãos sexuais originais nos relacio-
compreendê-lo e suficientemente forte para ajudá-lo a namentos amorosos, os transexuais não aceitam a sua
se libertar de um drama sem tamanho. genitália de nascimento.
Na busca para transformar-se de um homem No Brasil, essas pessoas passam a viver uma luta
numa mulher, José Paulo abandonou o emprego e a insana quando desejam mudar o seu sexo. A Medicina
profissão, por imaginar que não seria mais aceito brasileira está proibida, por lei, de realizar esse tipo de
numa grande empresa com outra aparência física. cirurgia. Na verdade, os transexuais que desejam modi-
Ele não poderia simplesmente voltar ao local de tra- ficar o seu corpo deveriam ser estudados por uma equipe
balho como "engenheira". multidisciplinar.
Aos trinta anos de idade, a guinada precisava ser de São necessários exames genéticos para verificar a
360 graus. Agora, com o corpo já arredondado, seios, constituição de seus cromossomos, analisar o funcio-
longos cabelos loiros, existe apenas Marina. José Paulo e namento de suas glãndulas e órgãos, bem como a
os cálculos matemáticos da Engenharia desapareceram. dosagem dos hormônios. O psiquismo de um transe-
Se tudo correr bem, dentro de dois anos uma com- xual deve ser bem observado, e ele precisa receber um
petente psicóloga estará atendendo em seu consultório. suporte psicoterápico adequado para que possa ter
As consultas poderão ser marcadas com a Ora. Marina. certeza absoluta de que deseja mudar o seu sexo. Esse
processo é relativamene longo e pode levar anos. So-
VÁLUIl? ti: VÁLUIl?t=~t= mente depois disso o transexual estaria preparado
para a cirurgia, e a equipe profissional segura de que
Na medida em que os transexuais secundários exer- está fazendo o tratamento correto.
cem por muito tempo um comportamento masculino, em Alguns transexuais alteram apenas os caracteres
termos de seu papel de gênero, eles acabam não se sexuais secundários, como seios, forma do rosto e ná-
tomando tão femininos, num primeiro momento, quan-
degas, e se adaptam à vida com sua genitália masculina.
to os transexuais primários.
Mas a grande maioria luta pela mudança completa.
Com o passar dos anos eles poderão, aos poucos, ir
eliminando os traços de comportamento masculino, in- Um dos mais competentes cirurgiões plásticos de
cutidos pela família e pela sociedade, e por eles assumi- São Paulo, o Or. Roberto Farína", decidiu remar contra
dos ao tempo em que desempenharam o papel de a correnteza. Em 1975, ele realizou uma operação pio-
homem. Para conseguirem isso será necessário algum neira de mudança de sexo num homem chamado Valdir,
treinamento, como fazem os atores que desempenham que se transformou em Valdirene.
papéis femininos no teatro, no cinema ou na TV, em
1. Dr. Roberto Farína é médico, livre-docente de Cirurgia Plástica da
peças sérias. O transexual, mesmo o secundário, não Escola Paulista de Medicina, de São Paulo, e membro da Academia
deseja nunca ser uma caricatura de mulher. Nacional de Medicina.

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A operação foi muito bem-sucedida, do ponto de Todos os anos, inúmeras cirurgias para mudança
vista médico, e acabou com um drama vivido há anos de sexo são realizadas legalmente na Holanda, Ingla-
por essa pessoa. Graças ao excelente trabalho realizado, terra, Dinamarca, Noruega, Alemanha, Itália, Rússia
Dr. Roberto Farina recebeu... um processo na Justiçal e Suécia, país pioneiro nesse tipo de tratamento. Em
A acusação: mutilar um homem. alguns estados dos EUA, como Illinois, os transexuais
O polêmico processo se arrastou por 5 anos, geran- operados recebem nova certidão de nascimento.
do controvérsia e noticiário na imprensa. Alguns saíram Qual é o trajeto dos transexuais brasileiros que
em defesa do médico, mas outros, pelos meios de comu- desejam mudar o seu sexo? Inicialmente eles modificam
nicação, o atacaram sem descanso. Condenado, Dr. os seus caracteres sexuais secundários. Para isso se
Farina poderia ser impedido até de exercer a Medicina. valem do uso de hormônios, de uma cirurgia plástica de
A decisão final da Justiça foi pela absolvição. Ficou seios e a retirada, pela raiz, dos pêlos do corpo, por um
provado que o pênis de Valdir era um órgão inútil para processo chamado eletrólíse. E não podem passar disso.
o paciente e uma biópsia de seus testículos indicou Os que têm posses vão para o Exterior, onde são
esclerose completa e ausência de espermatozóides pelo operados. Os demais procuram, com grande dificuldade,
uso de hormônios. Para agravar, Valdir não tinha ereção, adaptar-se de alguma maneira. A dificuldade em conse-
e era, já nessa época, uma pessoa totalmente feminina. guir uma operação para mudança de sexo pode levá-los
Como se o Dr. Roberto Farina não soubesse de nada a conviver com travestis, com os quais se confundem,
disso quando realizou a operação. até certo ponto, na aparência.
A nossa Justiça, além de ser absolutamente cega, A primeira operação para mudança de sexo ocorreu
tem, digamos assim, um raciocínio um tanto lentol na década de 50, quando o ex-soldado americano, Geor-
Valdirene confirmou o sucesso da operação e la- ge Jorgensen submeteu-se a essa cirurgia para trans-
mentou apenas uma coisa. "Dr. Farina está de parabéns, formar-se numa mulher. Somente a partir daí a
conseguiu trocar uma parte do meu corpo que eu não Medicina, no Exterior, passou a estudar e a trabalhar
queria por outra que eu desejava". E completou: "Agora com essas pessoas.
vem a .parte mais dificil, talvez impossível. Como vou Existem várias técnicas cirúrgicas para o trata-
conseguir "trocar" minha carteira de identidade?" mento desses casos. Em uma delas, os testículos e o
O raciocínio um tanto lento de nossos legisladores, pênis do homem são removidos parcialmente. A pele
nesses casos, não tem paralelo. do pênis e da bolsa escrotal é preservada e utilizada,
juntamente com um enxerto retirado de outras partes
do corpo, para construir uma vagina, cientificamente
CÁMI~ti() SI~U()S() chamada de neovagína.
Essa neovagína é um canal, internamente revestido
Apesar de proibidas por lei, algumas poucas cirur-
gias para mudança de sexo continuam sendo feitas no com a pele aproveitada do pênis. Em alguns casos, a
Brasil, porém clandestinamente e, como é de se esperar, cabeça do pênis, ou glande, é implantada no final desse
sem as condições adequadas. Para aqueles que podem canal para garantir a sensibilidade e algum prazer geni-
dispor de pelo menos 20 mil dólares para um tratamen- tal durante a futura relação sexual com um homem. A
to, o único caminho a seguir é para o Exterior. pele da bolsa escrotal é reservada para a construção dos
grandes e pequenos lábios.
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Além da mudança nos órgãos genitais, também se
faz necessária uma correção plástica nos seios e é
retirado o "pomo-de-adão", proeminência que os homens A revista Mulher Atual, da Editora Azul, empresa
têm no pescoço. Após esse tratamento, estamos diante vinculada ao grupo Abril, um dos maiores complexos
de uma mulher "inteira". editoriais brasileiros, publicou em 1992 uma grande
Pouco depois de operada, Roberta Close posou nua reportagem sobre transexualidade. Nessa reportagem,
para a revista Playboy. Era uma mulher inteira, em nada uma mulher identificada apenas como Rosana conta
diferente das demais. Seu corpo fisico exterior finalmen- como se sentiu após a mudança de sexo. Reproduzimos
te estava adequado às suas sensações internas femini- um pequeno trecho da matéria:
nas. Usamos o termo "inteira", e não "completa", porque
Roberta não tem ovários, trompas ou útero e não poderá, "A operação durou oito horas e quando voltou
jamais, gerar uma criança. a si Rosana se sentia outra: - Não pude me olhar
Ela, no entanto, garantiu numa entrevista: "Claro no espelho, porque tinha um curativo. mas dias
que tenho orgasmo. Você acha que eu iria fazer uma depois. quando ele foi retirado. senti que meu corpo
havia mudado. Pode ser coisa da minha cabeça, mas
operação dessas para ficar insensível?"
acho que eleficou mais arredondado.
Roberta é uma mulher e, apesar disso, não tinha
Rosana é do tipo que os homens chamam de
conseguido mudar seus documentos, à época em que
violão: busto pequeno e quadris largos, embora sua
este livro foi escrito. Essa "impertinência" legal, na
cintura não seja muito fina. Tem umjeito natural,
verdade, é apenas uma máscara da sociedade para não sem afetação. e a voz, um pouco rouca, confere um
"oficializar" a existência de pessoas transexuais e por- charme sensual a suafigura de mulata do Sargen-
tanto continuar a rejeitá-las. telli. Casou-se. há oito meses. e esqueceu a Bahia.
A lei argumenta que uma mudança de documento o pai. a mãe e os irmãos. - Passei uma borracha em
poderia dar margem a enganos. Um homem correria o todo esse meu passado. Hoje sou outra pessoa e
"risco" de se casar com uma "mulher dessas" e depois minhafamília é o meu marido.
descobrir que ela não é completa, não tem útero e sua
vagina é "artificial". Ora! A reportagem é assinada pela jornalista Cláudia
Quando se vai fazer o registro civil de uma criança, Ferraz, com a colaboração das repórteres Thereza Mar-
a definição do sexo se faz pela genitália externa. Nenhum tins e Vera Gomes.
funcionário de cartório pede uma radiografia para saber
se a menina tem útero, trompas e ovários ou não. Um
bebê fêmea para ser registrado como do sexo feminino
precisa ser inteiro, mas não completo. E as meninas que Até quando os seres humanos continuarão se agre-
nascem sem útero ou com o órgão atrofiado? Não são dindo mutuamente? Para quê? Um dos livros mais
registradas? Aliás, escrivão algum de cartório despe uma conhecidos do mundo diz que do pó viemos e a ele
criança para saber se é menino ou menina. Na verdade, retornaremos. Então, para que tanta agressão e cruel-
a presença da criança nem é necessária. dade? Tanto preconceito e segregação? Que pânico é

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esse que transforma seres humanos em feras irracionais
acuadas?
Em uma entrevista à Rede Manchete de Televisão,
em 1985. o transexuaZ Joana. então bioquímica do
Inamps, na época uma mulher inteira e operada, afir-
mou com certa mágoa: "Sou uma mulher, mas não
consegui mudar meus documentos. Joana agora é o meu
nome, e muitas pessoas me aceitam assim".
E continuou: "Algumas, no entanto, me agridem
brutalmente, me chamando de Dr. Nilson Falcão. Elas l()
sabem como fazer sangrar, com crueldade. a minha
maior ferida, que ainda está aberta".

UM VVI:ÇU ALTU UI:MAIS

Todos os seres humanos, homens ou mulheres,


estão sujeitos às mesmas situações ao longo da vida. Os
caminhos a serem percorridos durante a existência
podem ser idênticos ou semelhantes. E apenas se bifur-
cam, inexoravelmente, quando o corpo biológico é de um
bebê macho ou fêmea.
O número de transexuaisfemininas é menor que o
de transexuais masculinos, mas esses dados não devem
ser tomados com exatidão porque faltam levantamentos
a respeito do assunto. Só nos Estados Unidos, cerca de
40% das cirurgias para mudança de sexo atendem às
iransexuais femininas.
Outro ponto a ser considerado é que as mulheres
são criadas, de certa forma, mais "livres", sem a exage-
rada pressão familiar e da sociedade. Para a família, está
implícito que ela será heterossexual. Isso não acontece
com o homem. Desde o seu nascimento, a sociedade
procura "empurrá-lo" para a heterossexualidade.
Da mulher não se exige isso. Ela não é obrigada a
ser feminina, principalmente hoje, quando os controles
sociais estão perdendo sua força. Sua educação é repres-

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síva, no aspecto da sexualidade, mas não direcionada, Vá para o seu quarto, apague a luz, e fique de costas
como ocorre com os homens. para um grande espelho. Agora retire a camisa, a calça,
As transexuais femininas são muito pouco conheci- a cueca, fique nu. Vire-se lentamente. Olhe para a sua
das e quase não são estudadas. Seu trajeto, em relação imagem no espelho. Que corpo arredondado é esse? E
aos transexuais masculinos, é o mesmo. Aquelas consi- esses seios, para que servem? E essa "coisa" aí abaixo
deradas primárias SENTEM-SE, desde a Infância, como
do umbigo?
meninos, embora sejam meninas.
Simplesmente você não é você.
Essa sensação as acompanha na adolescência, ida-
de adulta e velhice. O comportamento masculino, para Sentimento semelhante têm as transexuaisfemininas.
elas, "vem de dentro", e não é uma imitação, pois a sua
identidade de gênero é masculina. Comportando-se e
sentindo-se como homem, sua atração afetiva e sexual
muitas vezes é por outras mulheres. No entanto, não são Como os transexuais masculinos, as femininas de-
lésbicas. Também nesse caso existem as transexuais sejam adequar o seu corpo biológico a sua identidade de
secundárias, que só revelam a sua verdadeira identidade gênero. Mas nem todas fazem ou podem fazer isso, por
de gênero masculina bem mais tarde, na idade adulta. inúmeras razões. Seja porque é comum que determina-
Nesse ponto há uma grande área cinzenta, dífícíl de das mulheres, mesmo as heterossexuais, não possuam
definir. Somente a própria pessoa poderá garantir o que caracteres sexuais secundários exuberantes, seja por-
vai verdadeiramente dentro de si. Como os transexuais que a própria operação de transformação é mais compli-
masculinos, as transexuais rejeitam o corpo fisico e
cada para as transexuais femininas, principalmente em
principalmente os órgãos sexuais. Elas se sentem ho-
mens com corpo de mulher, o que não acontece com as nosso país, e também porque não têm informação e nem
lésbicas e as travestis. dinheiro.
Para procurar entender, ainda que parcialmente, o É possível que transexuais femininas estejam em
sentimento das transexuais femininas, vamos repetir o nosso meio vivendo como "mulheres heterossexuais"
exercício do capítulo anterior, o que talvez agora seja conflituosas, solteironas, religiosas, travestis ou lésbi-
ainda mais dificil. . cas "mal-resolvidas". Aquelas que corajosamente par-
Você é um homem. Firme, às vezes até um pouco tem para a mudança de sexo encontram barreiras quase
agressivo, com grande disposição e vontade de competir, intransponíveis.
no trabalho e nos esportes. Conheceu um bela mulher, A cirurgia para transformar uma mulher num ho-
muito sensual, que o atraiu muito. Tanto que chegou a mem de certa forma deixa a desejar, e o resultado nem
sonhar que fazia amor com ela, acariciando e penetran- sempre é satisfatório. A grande dificuldade aqui está no
do seu corpo. fato de que não se trata de remover um órgão, abrir um
Você gosta de seu carro, entende um pouco de canal, mas sim de fechar um canal e implantar um
mecànica, vai aos estádios de futebol, discute política e "pênis artificial". Além disso, uma equipe de cirurgiões
adora conversar com os amigos. Às vezes você até conta precisa remover todos os órgãos femininos internos,
algumas vantagens. Vamos, seja sincero, confesse! To- como útero, ovário e trompas.
dos nós fazemos isso.
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Para construir a bolsa escrotal é utilizada a pele dos Também como no caso dos transexuais masculinos,
grandes lábios. e pequenas bolas de sílícone, os testícu- devem as transexuais passar por um completo acompa-
los. são colocados nessa bolsa. Para construir um pênis. nhamento médico e psicológico antes de chegar à cirur-
ou mais precisamente um neopênís, é utilizada a pele gia. Esse estudo detalhado deverá incorporar à equipe,
do abdômen. Essa pele vai revestir uma prótese em além de outros profissionais. um ginecologista e um
forma de haste flexível. No entanto, esse órgão não tem assistente social. A psicoterapia é fundamental para
sensibilidade erótíca. O clitóris pode ser preservado confirmar o diagnóstico e para que essa pessoa tenha
como forma de garantir algum prazer durante a relação uma noção exata das dificuldades que certamente terá
sexual. de enfrentar.
Além de toda essa dificuldade, o neopênis não tem Mariângela, agora Mârio, tirou documentos falsos
a ereção comum aos homens. As mulheres transexuais para poder viver socialmente. "Como eu iria, por exem-
operadas não obtêm o mesmo resultado estético e fun- plo, abrir uma conta bancária?" Casado com uma pro-
cional que conseguem os transexuais masculinos. Ainda fessora de ginástica aeróbica, Mário luta para conseguir
assim, costumam se confessar mentalmente felizes. O legalizar seus documentos.
prazer sexual não vem da região genital, mas de todo o
corpo e principalmente do psiquismo.
As transexuais femininas, assim como os masculi-
nos, quando se decidem pela operação, na realidade não Joana não existe e João também não. Os dois nomes
estão preocupadas exclusivamente com o prazer erótico são falsos e não se conhece a verdadeira identidade da
genital. O que elas buscam é retirar e implantar em seus pessoa que prefere se identificar como João Nery. Autor
corpos algo que sobra e algo que falta. O principal de um importante livro. Erro de Pessoa. Joana ou João,
conflito está entre o seu gênero biológico e sua identida- publicado pela Editora Record, infelizmente hoje esgota-
de de gênero. do, Nery conta sobre a sua vida e a sua transformação.
Elas querem completar, com a operação, o desenho O livro foi prefaciado pelo filólogo Antônio Houaiss,
do próprio corpo que têm na cabeça. O funcionamento um dos intelectuais mais importantes do Brasil, que
satisfatório ou pouco satisfatório do novo órgão é uma reconhece em Nery não só a coragem e a sinceridade
questão quase secundária. para abordar um tema tão delicado. mas também seu
Nem todas as transexuaisfemininas fazem a opera- talento como escritor.
ção completa, permanecendo com a sua genitália origi- Nery mora hoje em algum ponto do Rio de Janeiro.
nal. Em depoimento à revista Manchete. em 1990, a não se deixa fotografar nem filmar e raramente dá
transexual Maríângela F. D. contou como foi a sua entrevistas. Ele prefere ficar no anonimato de seu nome
cirurgia para mudança de sexo, realizada na Holanda. falso. Sua infância e sua adolescência foram como as de
Ela retirou os seios, por meio de uma mastectomia, tantos outros transexuais.
e os órgãos sexuais internos, útero, trompas e ovários. Na sua autobiografia, Nery usa para si o nome de
Porém, não fez implantação do pênis, conservando a Joana, no periodo que vai do nascimento ao momento
vulva e a vagina. "Eu não teria um real prazer sexual da operação, realizada clandestinamente no Rio de Ja-
com a prótese", disse ela. neiro em 1977.

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Acompanhe alguns trechos do livro, escolhidos pelo Num depoimento emocionado, em 1985, à Rede
jornal Folha de S. Paulo, que em março de 1994 conse- Manchete de Televisão, sem mostrar seu rosto, no mes-
guiu entrevistar João Nery, num excelente trabalho de mo programa que entrevistou o transexual Nilson Fal-
reportagem dos jornalistas Daniel Castro e Ricardo Bo- cão, hoje Joana, Nery falou de sua vida à repórter
nalume Neto. Solange Bastos.
Após a operação não lhe restou outra saída a não
Joana, aos seis anos.
ser abandonar tudo. Ele confessou que nunca conhecera
"Adorava brincadeiras de menino e era comba-
tido. Jogava bolas de gude na pracinha. Uma vez,
uma outra transexual e não tinha a quem contar seu
passeava com mamãe e alguém gritou: Maria ho- drama, de forma que pudesse ser entendido, não inte-
mem, Maria homem". lectualmente, mas vivencialmente.
Joana aos oito anos. Nery abandonou a família, os amigos, a pós-gradua-
"Não gostava de presentes de menina. Quando ção, os documentos e o próprio nome. Conseguiu
fiz oito anos, na hora de apagar as velinhas, como documentos falsos, os quais não revela, mas perdeu todo
em muitos outros aniversários, concentrei-me no
o seu currículo acadêmico, conquistado durante anos
mesmo pedido: quero ser um MENINO como os
outros!"
de estudo. Para sobreviver foi pintor de paredes, chofer
Joana aos quinze anos.
de táxi e até lavrador. Na época desse depoimento na 1V,
"Tento ser mulher. Ganhava estojos de som-
estava desempregado.
bras. batom, sapato alto, vestidos, o diabo!" Em 1994, localizado pela reportagem da Folha, era
Joana aos dezesseis anos. outro homem. Empresàrio do ramo de confecções, com
"Arrumaram um namorado para mim Estáva- 43 anos, casou-se três vezes, a penúltima oficialmente.
mos conversando num banco de praça. quando, Desse casamento teve um filho, a partir de uma insemi-
inesperadamente, ele parou de falar, ficou sério e nação artificial feita em sua mulher. "Sempre quis ser
engoliu a minha boca. Que sensação horrivel!"
pai. Minha mulher engravídou e eu acompanhei o pré-
Joana (?) aos 22 anos.
natal", conta Nery na reportagem. Aos 37 anos, assistiu
"Virei taxista. Andar vestido de homem na rua
fazia com que eu me sentisse muito bem O desagra-
ao parto da esposa, por cesariana, e foi o primeiro a pegar
dável era parecer um garotão imberbe, com voz de o bebê, um menino.
taquara rachada. " Tempos depois, esse casamento se desfez, e Nery já
João (?) aos 27 anos. estava constituindo nova família.
"Queria me submeter a uma operação, mas Conheci pessoalmente João Nery num seminário
cirurgias desse tipo não eramfeitas aqui. por serem em São Paulo, realizado para discutir homossexualidade
ilegais. Sentia-me perdido. Foi quando recebi um
feminina. Durante o intervalo, nos apresentamos e con-
telefonema de uma amiga psicóloga que se especia-
lizou em Sexologia na Bélgica... " versamos um pouco no corredor do centro de conven-
Na época em que se operou, Nery era psicóloga. ções. Apesar de toda a minha experiência como
fazia pós-graduação e dava aulas em cursos supe- psicoterapeuta, se ele não dissesse quem era, eu não
riores no Rio. Tinha 27 anos. imaginaria que aquele homem havia sido uma mulher.

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do zero, com documentos falsos. Isso exigiu, numa
verdadeira demonstração de absurdo, que ele cursasse
A sociedade tem, ao mesmo tempo que rejeita, um
o Supletivo Noturno, para poder "recuperar" parte de
verdadeiro fascínio por homens travestidos e transe-
sua escolaridade.
xuais que chegam ao ponto de mudar de sexo. São
Perguntado na 1V se todo seu esforço tinha valido
verdadeiros sucessos na mídia e no mundo artístico. a pena, ele respondeu com voz pausada e grave que sim.
Tornam-se belas modelos de altos cachês e nunca recu- Mas pagou um preço alto demais.
sam ser entrevistadas ou fotografadas. Nery se considera ateu e afirma que acredita no
Essa realidade deveria interessar aos sociólogos e homem. Para ele, era vital encontrar-se e reencontrar-se
aos antropólogos, pois a situação é completamente in- consigo mesmo. E, seguindo esse caminho, enfrenta-se
versa com as mulheres que se comportam como homens, qualquer sacrificio, mesmo aqueles que não conhecem
no caso das travestis, ou das que mudam o seu sexo, limites.
como as transexuais. Não se tem notícia de que qualquer E enquanto um homem desse quilate luta sozinho
uma dessas pessoas tenha conseguido elevar seu status contra tudo e contra todos, a sociedade liga o ar refrige-
ao assumir essa forma de sexualidade. rado, acomoda-se no sofá e pede ao copeiro um suco de
Na verdade, ocorre o contrário. Elas se ocultam, se laranja. Com açúcar.
escondem, como pudemos perceber pela vida de João
Nery, que não sabemos exatamente quem é nem onde
está, embora tenha se revelado excelente escritor.
É evidente que, numa sociedade machista como a
nossa, o preconceito e a discriminação têm graus dife-
rentes. A atrasada legislação brasileira, que não permite
uma óbvia e necessária correção de documentos, certa-
mente constrange Roberta Close. Mas ela é uma modelo
internacional, muito bela, e isso contorna as coisas.
Mas e o caso de Nery? Como abrir uma conta
bancária com uma carteira de identidade feminina?
Como obter habilitação para dirigir? Como fazer um
registro num hotel com a esposa?
O atraso e o primarismo de nossos legisladores e
governantes fez com que uma pessoa extremamente
inteligente e útil à sociedade, como João Nery, perdesse
tudo, até mesmo sua vida acadêmica.
De pós-graduando em Psicologia, voltou, oficial-
mente, à condição legal de analfabeto e teve que começar

180 181
11

() LIMIT-= I)() LIMIT-=

() homem existe na Terra há milhares de anos. Os


registros mais precisos sobre quem eram e como viviam
os seres humanos, porém, datam apenas dos anos 700
ou 800 a.C.; a partir das obras da civilização grega que
chegaram intactas até o nosso tempo.
A Antropologia e a Arqueologia têm recuado bem
mais. Entretanto, o que essas ciências nos trazem são
apenas indícios humanos, como ferramentas e utensí-
lios utilizados, que permitem supor as atividades das
civilizações antigas.
Essas civilizações antigas deixaram muitas inscri-
ções, em monumentos ou túmulos. Esse material ape-
nas em parte foi decifrado e nos casos em que isso
aconteceu o resultado foram textos religiosos, políticos
ou normas sobre direitos e deveres. O dia-a-dia domés-
tico, as preocupações, a forma de amar, os preconceitos,
tudo isso continua oculto no túnel do tempo.
Os seres vivos da natureza, que compõem o reino
vegetal e animal, e os próprios seres humanos, desde
sempre, podem nascer normais, de acordo com o padrão
geral de sua espécie, ou com defeitos. Isso pode ser

183
facilmente verificado entre os vegetais. Algumas plantas direito, o fígado do lado esquerdo, o baço do lado direito
dão belas flores, outras, da mesma espécie são mirradas. e o apêndice do lado esquerdo e assim por diante.
Quem nunca viu uma banana popularmente chamada Como esse, as pessoas podem nascer comum sem-
incõe ou filipe, que consiste em duas frutas gêmeas, uma número de outros defeitos, prejudiciais ou não a sua
grudada na outra? Entre os animais acontece a mesma saúde fisica e mental. São os daltônicos, que confundem
coisa. Quem cria gado sabe que quase todos os bezerros as cores, os lábio-Ieporinos, as pessoas com dedos a
nascem normais mas alguns têm algum defeito de nas- mais ou a menos, com falta de determinados dentes e
cença. Nenhuma espécie animal está a salvo desse "erro" tantas outras anomalias congênitas.
da natureza. Alguns pintinhos saem do ovo com defeito
nas asas, com dedo a mais, cegos.
Considerar isso uma falha da natureza é uma ques-
tão de ponto de vista, de concepção. É imaginar que os Você se lembra do primeiro capítulo deste livro?
fenõmenos naturais são uma perfeita equação matemá- Naquele ponto, ficou claro que durante a vida intra-
tica, e que sempre se comportam da mesma maneira. É uterina todos nós passamos por quatro encruzilhadas
como se um plano preestabelecido tivesse que dar sem- decisivas. Como você se recorda, a base de todos os
pre o mesmo resultado. caracteres de nosso corpo fisico estão contidos nos 23
Essa questão fica para os filósofos, mas a Ciência pares de cromossomos.
já conhece em profundidade que tudo no universo é Muitos dos defeitos congênitos anteriormente citados
composto por átomos, moléculas e um permanente jogo estão direta ou indiretamente vinculados a problemas nos
de forças variadas e de intensidade variável. Se há uma cromossomos. E um desses defeitos, que nos interessa
lógica por trás de tudo isso, certamente ela não pode ser diretamente, está relacionado com o par de cromossomos
simplificada a uma soma de 1 + 1 sempre igual a 2. responsável pela nossa configuração sexual.
Os seres humanos não estão fora dessa regra geral. No ato da fecundação, apenas para relembrar, o
Todas as pessoas, com exceção de um pequeno grupo, óvulo da mulher carrega um único cromossomo x en-
nascem com seus corpos biológicos normais. Mas alguns quanto o espermatozóide do homem pode trazer um
não estão livres de nascer com defeitos, que podem ser cromossomo x ou y. A combinação desses dois cromos-
herdados dos pais ou não. somos vai definir o sexo do futuro ser humano. Se o par
Esses defeitos podem ser internos e comprometer o formado for xx, nascerá uma menina. Se, por outro lado,
funcionamento dos órgãos que compõem o corpo huma- o par for xy, nascerá um menino.
no, ou não alterar absolutamente em nada a vida da No entanto, como os demais cromossomos, esses
pessoa. Um coração com um defeito numa válvula pode podem não ser perfeitos, ou se combinar de maneira
perturbar a circulação sangüínea. Isso se constitui num anormal. Essa possibilidade existe e, se ocorrer, poderá
problema. No entanto, uma pessoa pode nascer com o nascer um ser humano com o seu órgão genital dúbio,
coração do lado direito do peito e passar a vida toda sem em que os dois sexos, macho e fêmea, estão fundidos.
se dar conta disso.
Nascer com uma anormalidade nos órgãos sexuais
Uma situação rara, mas que pode acontecer, é uma
internos e principalmente nos externos é uma questão
pessoa nascer com todos os órgãos de seu corpo em
muito séria. Pelo menos para nós onde tudo o que se
posição invertida. O coração, nesse caso, fica do lado

184 185
refere a sexo é problemático. Talvez isso não seja um Qual a razão desse tipo de defeito? Como já vimos.
problema para os índios. Eles lidam com a genitália de esse problema surge durante a vida intra-uterina. Cro-
outra forma. não precisam de quatro paredes para fazer mossomos defeituosos. envio de mensagens genéticas
amor e. afinal, vivem nus. incorretas para a formação de ovários ou testículos.
Para nós, a genitália desnuda é proibida. Isso é tão desequilíbrio na dosagem de hormônios sexuais podem
forte. que o Gênesis, da Bíblia. descreve com detalhes a ser a causa de defeitos congênitos nos órgãos sexuais
vergonha que sentiram Adão e Eva no Paraíso. quando internos ou externos.
se perceberam nus. E. pelo que se sabe. não só eram A má-formação do órgão sexual externo de uma
companheiros mas foram formados do mesmo corpo! criança é percebida quase sempre. por leigos ou por
Andamos vestidos e apenas em raros momentos e médicos. No entanto. se o defeito afetou apenas os
em determinados lugares podemos aparecer sem a órgãos internos. as conseqüências só vão se tornar
maior parte de nossas roupas. Mesmo nas praias mais visíveis na adolescência. através dos caracteres se-
liberais. o máximo que podemos observar é uma mulher xuais secundários.
praticando top-less.
A Medicina registra uma variedade muito grande
No carnaval, outro momento "liberado". a genitália
de anomalias relacionadas ao sexo biológico. Essas
feminina desnuda é muito bem camuflada com enfeites
alterações poderão ocorrer em qualquer uma daque-
e pintura. Quanto aos homens. nem pensar. Seus pênis
las quatro encruzilhadas. Uma perturbação durante
não podem ser mostrados. São imediatamente enqua-
drados no Código Penal por atentado violento ao pudor. a segunda encruzilhada. quando estão sendo forma-
Não vamos falar dos campos de nudismo porque são das as gônadas (ovários e testículos). pode determi-
lugares isolados para uns poucos privilegiados. nar para a futura pessoa uma genitália interna ou
Genitália não quer dizer somente sexo. A genitália externa ambígua.
é uma parte do corpo que determina o sexo biológico. O fato de uma criança nascer com uma genitália
mas é onde está a uretra por onde escoa a urina e o canal defeituosa não quer dizer que ela é hermafrodita. Os
de entrada. nas mulheres. para o pênis. e de saida para tipos de defeitos são tão variados em sua forma e
a menstruação e o parto. Finalmente. é a principal fonte extensão que seria necessário fazer uma abordagem
de prazer no momento de se fazer amor. específica. Somente um profissional de reconhecida
competência poderá diagnosticar o problema corre-
tamente.
UI:SVI() ~Á I:~Cl?UZIIiÁUÁ
Entre os defeitos congênitos mais comuns estão a
Os estudos sobre sexualidade são relativamente ausência de bolsa escrotal e pênis reduzido em meninos.
recentes e até bem pouco tempo a Medicina não tinha canal de uretra fora de lugar. meninas com útero atro-
condições de resolver o problema de uma criança que fiado e clitóris anormal. meninos com orífícío abaixo da
porventura tivesse nascido com a sua genitália defeituo- região do pênis. ausência de testículos. e tantos outros.
sa. As cirurgias para correção do aparelho genital só Essas crianças que apresentam tais anomalias são con-
começaram a ser desenvolvidas na década de 60. sideradas intersexos.

186 187
o hermafrodita. não é uma junção perfeita de dois
seres completos. Ao contrário do que se pensa, essas pes-
O Monte Olimpo, na mitologia da antiga Grécia, era
soas não possuem os dois sexos normais ao mesmo tempo
habitado por deuses como Zeus, Palas Atena, Apolo,
e, é evidente, não tem qualquer cabimento, nem mesmo
Afrodite e tantos outros. Entre eles vivia Hermes, a
na teoria, a idéia de que poderiam se auto-fecundar.
divindidade com asas nos pés, mensageiro dos deuses e
patrono da música. A bela Afrodite, deusa do amor, Seu pênis é de tamanho pequeno, nunca como o de
deixou apaixonados deuses e mortais, dentre os quais um homem adulto, têm uma bolsa escrotal pela metade
não escapou nem mesmo o esperto Hermes. e uma vulva e uma vagina rudimentares. Os traços de
seu rosto são femininos, não há sinal de barba e os seios
Da união de Hermes com Afrodite nasceu um filho,
são os de uma mulher. A pele é sedosa mas os ombros
chamado Hermafrodita, da fusão dos nomes de seus
são um pouco mais largos que os quadris.
pais, que provavelmente resolveram se auto-homena-
gear. Contam os cronistas gregos que esse menino foi Apesar de possuir um pênis reduzido, o hermafrodi-
criado pelas ninfas e levou uma vida selvagem, crescen- ta ejacula. Durante a ejaculação o líquido seminal rara-
mente contém espermatozóides. Num determinado
do na floresta.
período de cada mês, a vagina expele algumas gotas de
Um dia, jovem e bonito, com 15 anos, mergulhou
sangue, constituindo-se numa precária menstruação.
na água de uma fonte cuidada pela ninfa Sálmacis, que
imediatamente apaixonou-se por ele. Infelizmente, Her- Internamente o hermafrodita tem conjuntamente
mafrodita não levou a ninfa muito a sério e a repeliu. A ovário e testículo, ambos mal-formados e com funciona-
ninfa, inconformada, abraçou-o muito fortemente e cla- mento comprometido. É evidente que estamos falando
mou aos deuses que nunca mais a deixassem separar-se de um hermafrodita adulto, não tratado e nem operado.
do amado. Como Hermafrodita tinha recebido ordens de
seus pais para não se meter em encrencas, o Olimpo I[)-=~TI[)Á[)~ J)~l![)I[)Á
atendeu. Os dois corpos se fundiram num só e Herma-
frodita tornou-se homem e mulher no mesmo ser. E como fica a identidade genital de um hermafrodita?
Algumas versões dizem que era ele o apaixonado, Como já vimos anteriomente, identidade genital é a
mas isso não muda muito o resultado da história. O consciência que se tem da existência, em seu corpo, de
termo hermafrodita, por causa desse mito, passou a um órgão genital masculino ou feminino. Os homens,
designar os seres que nascem com os dois sexos bioló- sejam hetero, homo ou bissexuais SABEM que têm pênis
gicos fundidos numa só pessoa. A idade do rapaz, na e bolsa escrotal. As mulheres, todas, que têm vulva,
lenda, é muito significativa, 15 anos, justamente o pe- vagina e clitóris. Os transexuais também sabem, mas
ríodo da adolescência, em que os hormônios estão "ex- não aceitam.
plodindo" e no qual a sexualidade se revela. No hermafrodita, a sua identidade genital se forma
Extremamente raros, seriam no máximo 500 em não a partir da observação, manipulação e consciência
todo o mundo, o hermafrodita verdadeiro é o décimo de seus órgãos sexuais, mas sim pela maneira como
primeiro sexo deste livro. Também nesse caso, as varia- foi criado. Caso a parte mais evidente de seu sexo seja
ções são muitas, e por isso decidimos escolher um tipo- masculina, provavelmente seus pais o criarão como
padrão, apenas para facilitar a compreensão do assunto. menino.

188 189
Essa forma de educação o levará a se sentir como As pesquisas e os estudos que temos realizado ao
pertencendo ao gênero masculino, embora muito dife- longos dos últimos dez anos anos confirmam a teoria
rente dos demais rapazes. Já afirmamos diversas vezes sobre a identidade de gênero, como indicam todos os
que a construção da identidade de gênero ainda não é trabalhos cientificos consultados nas áreas da Medicina
totalmente conhecida e depende também da educação. e da Psicologia.
Isso vale para todos os sexos, incluindo o hennafrodita. Assim, podemos afirmar que a decisão sobre o
Dependendo de como for criado, ele se sentirá ho- encaminhamento do papel de gênero, ou seja, o compor-
mem ou se sentirá mulher. Uma revista erótica brasilei- tamento social, e sobre a identidade de gênero, que é a
ra, a Internacional, publica de tempos em tempos, as nossa identidade interna, a sensação que temos sobre
fotos do hennafrodita de Boston. Não há texto e nem quem somos quanto á sexualidade, no caso dos henna-
maiores explicações, mas pela pose sensual pode-se froditas deve ser feita até os 2 anos de idade.
inferir que esse hennajrodita, com toda a sua nudez, No caso de uma criança que nasça com os órgãos
sente-se uma mulher, apenas um pouco diferente. sexuais alterados, seja um hennafrodita verdadeiro ou
No que diz respeito ao seu papel de gênero, ou seja, outros casos de intersexo, o melhor é que não se faça o
o seu comportamento no dia-a-dia, o hennafrodita pode seu registro civil até que se decida a qual gênero ela vai
ser absolutamente normal, tanto agindo como homem pertencer.
ou como mulher, dependendo de como foi criado. Esse Por que isso? Porque ela deve passar por exames
papel é social, pode ser aprendido pela observação e pelo complexos e demorados, até que se decida o seu sexo
treinamento, até se tornar espontâneo. biológico. Esses exames precisam ser feitos por profis-
Como o hennafrodita possui os dois sexos, seria sionais especializados.
normal imaginar que sua orientação afetiva fosse bísse- Um erro de registro, feito apressadamente, pode
xual. Ele deveria procurar homens e mulheres para se representar um grande transtorno para essa pessoa
completar afetiva e sexualmente, mas nem sempre. que não teve qualquer culpa de ter nascido com um
Desse ponto de vista, digamos que um hennafrodita defeito sexual. Esse período de tempo também é im-
tenha sido criado e educado como menino. A sua orien- portante, na medida em que até os 2 anos de idade a
tação afetivo-sexual poderá levá-lo a ser predominante- criança está nos primeiros passos da formação de sua
mente heteressexual, homossexual ou bissexual. identidade de gênero.
Estamos falando de uma pessoa escolhida como No limite, caso a família não possa ou não consiga
padrão. Na verdade, o comportamento e a maneira de se amparo legal para adiar o registro civil, o nome escolhido
sentir é muito variável entre essas pessoas, ainda que deverá ser unisex, como é tão comum entre nós. Como
representem uma parcela ínfima da população mundial. exemplos desses nomes, que tanto são dados a homens
quanto a mulheres estão Darci, Jaci, Juraci e outros.
Outra orientação, nesse caso, é a colocação de
nomes que possam passar do masculino para o feminino
Que providências devem ser tomadas para que e vice-versa, sem problemas para a pessoa, como de
essas pessoas cheguem á idade adulta de forma a mais Cláudio, para Cláudia, Silvia para Silvio. Essa observa-
equilibrada possível? ção é importante porque a Justiça brasileira, em casos

190 191
absolutamente comprovados pela Medicina de pessoas seus pais, que precisam ter auxílio médico, psicológico
intersexos devidamente tratadas, autoriza a mudança e social para enfrentar o problema. Somente após esse
de documentos, diferentemente do que faz com os estudo é que se poderá concluir sobre o verdadeiro sexo
transexuais. ou o sexo predominante da criança e tomar as devidas
Não se pode esquecer, no entanto, que esse trata- providências médicas. Num tratamento como esse, a
mento leva tempo e que o processo legal outro tanto. De margem de erro médico deve ser zero.
tal forma que os novos documentos poderão sair quando Como nos casos dos transexuais, a cirurgia plástica
essa criança estiver já na primeira infância ou, em casos para a correção do órgão sexual para ser fêmea ou
de tratamento tardio, na adolescência. E como se adap- menina é menos complicada, mas também é possível
tará ao nome se, descoberto masculino, foi registrado para ser macho ou menino. Somente após isso é que a
como Cintia? criança deveria ser registrada.
As crianças com defeitos congênitos nos seus ór- A postura dos pais é muito importante. Após o
gãos sexuais devem ser levadas para tratamento, prio- tratamento especializado que descrevemos, a criança
ritariamente, aos hospitais de bom nível vinculados a poderá crescer normalmente, desde que a família não
escolas de Medicina. Nesses locais estão disponíveis transforme a situação causada por um defeito congênito
médicos especialistas, permanentemente reciclados em numa história sem fim. A naturalidade e a espontanei-
cursos ou seminários. dade são o melhor caminho.
No caso das crianças normais, não há decisão a Seria bom que as pessoas não encarassem os seus
tomar sobre sua vida, pois seu desenvolvimento é natu- órgãos sexuais como "coisa do outro mundo", como
ral. Para os hennaJroditas e os intersexos, a direção de peças que devem ser sacralizadas ou condenadas. A
vida tem de ser tomada pelos pais e por profissionais de genitália, como vimos, não serve só para fazer amor. Tal
extrema competência. como a boca que, utilizada para alimentar, beija com
Essa é uma decisão muito séria, que não deve ser prazer.
apressada e da qual deve participar, além da família, Se uma criança que nasce com seis dedos se opera
obrigatoriamente, uma equipe de profissionais. Não e cresce normal, por que não uma criança com defeitos
existe a possibilidade de um ser humano crescer men- corrigidos nos seus órgãos sexuais internos e externos?
talmente saudável com uma identidade hermafrodita O que estamos afirmando, no que diz respeito aos
ou dúbia. Independentemente de sua situação sexual, hermafroditas, é tão verdadeiro que alguns deles, depois
ele precisa viver como um ser masculino ou como um de competente tratamento e operados, se tomaram mu-
ser feminino. lheres adultas completas, engravidaram e pariram uma
O pediatra que vai atender essa criança precisa ter criança! Onde está o problema?
profundos conhecimentos de endocrinologia. Devem par- Voltamos a insistir que a correção desse problema
ticipar do tratamento um urologista, um ginecologista, um deve ser feita precocemente, antes dos 2 anos. Após
cirurgião plástico, um especialista em genética, um psicó- esse período, a criança, de uma forma ou de outra, já
logo ou um psiquiatra e também um assistente social. adquiriu uma identidade de gênero e qualquer cirurgia
Essa equipe multidisciplinar terá de estudar em futura, que seja contrária a essa identidade, feita por
profundidade toda a conformação física, genética e psi- médicos desavisados, poderá trazer grandes proble-
cológica da criança, bem como fazer uma avaliação de mas para essa pessoa.
192 193
Como se vê, a questão mais séria não estã em nascer ALtM ()() UMITI: ()() UMITI:
com um defeito congênito nos órgãos sexuais, mas na
Chegamos ao limite do limite.
forma como o caso é tratado e na ineficiência dos siste-
Na verdade, um falso limite, como se os hermafrodi-
mas de saúde, principamente no Brasil. Não necessaria- tas fossem verdadeiras monstruosidades da natureza,
mente, mas nós médicos também somos muito motivo de curiosidade nos circos de lona ou eletrônicos,
mal-informados sobre sexualidade. Estamos na mesma como a 1V.
sociedade. Você se lembra da banana gêmea que mencionamos
Quando um hospital recebe uma criança com mais no inícío desse capítulo? Por causa de seu defeito ela
de 3 anos, e ainda com a genitália ambígua, talvez fosse deixou de ser uma banana?
mais prudente esperar chegar a adolescência para ver o Chegamos ao limite do limite porque a "alma" de
caminho que sua identidade sexual vai tomar, dentro de grande parte dos seres humanos, ainda muito primitiva,
si mesma. Um erro médico, num caso como esse, não não consegue sequer atravessar a pequena parede de
tem conserto, é irreversível. seu próprio corpo.
Como estamos vendo, não se trata apenas de Acompanhamos, em julho de 1994, pela 1V e via
adaptar o corpo. É preciso levar em conta o que se satélite, o bombardeio sofrido pelo planeta Júpiter por
pedaços de um cometa desgarrado. E nossas pequenas
passa dentro do ser humano, a sensação que ele tem
naves já estão viajando pelo cosmos, para longe do
de si mesmo. sistema solar.
O pequeno número de hermafroditas verdadeiros No entanto, ao despir o seu uniforme tecnológico, e
adultos, existentes no mundo, são pessoas que não até mesmo com ele, o homem ainda se estranha ao ver
puderam, ou a família não permitiu, se operar. De sua imagem refletida no espelho, real ou da própria
qualquer forma, internamente, sentem-se homens ou mente.
sentem-se mulheres. É possível SER hermafrodita, mas Poucos tiveram a coragem de fazer a mais fantástica
não SENTIR-SE hermafrodita, a partir de sua configura- e necessária das viagens.
ção sexual. Não rumo ás estrelas. Mas para dentro de si mesmos.
Daí o risco de um tratamento inadequado. Imagine
um hermafrodita criança, que já se sente internamente
como homem, mas não tem consciência para externar
essa sensação. Possui um pequeno pênis e uma vagina
rudimentar.
Seus pais o encaminham para tratamento e, como
é mais fácil transformar um homem em mulher, a equipe
médica desavisada decide transformá-lo numa menina.
Na adolescência, salta de dentro da agora menina "um
rapaz", mas com corpo de mulher. Ele sentirá então que
o que fizeram com ele foi uma "castração".

194 195
t=oram necessários mais de dez anos de estudos. a
observação constante da vida ao vivo e pelos meios de
comunicação. além de minha experiência como psicote-
raupeta, para agrupar os diversos modos de ser das
pessoas em relação a sua sexualidade. Nesses estudos.
levei em conta o corpo com o qual se nasce. as mudanças
psicológicas ao longo da vida e as condições sociais nas
quais estamos imersos.
Observei os avanços da Medicina em relação ao
funcionamento e as transformações que ela é capaz de
produzir no corpo humano e embasei a identidade se-
xual nas sensações internas que ocorrem em termos do
psiquismo, subdividindo-a em identidade genital. iden-
tidade de gênero e orientação afetivo-sexual. Avaliei as
manifestações dos papéis relativos ao gênero e do papel
afetivo-sexual das pessoas.
Minha conclusão é a de que existem "ll" sexos.
Propositalmente. não os rotulei como tipos ou catego-
rias. Se analisarmos a escala biológica. as escalas de
gênero e as escalas afetivo-sexuais. veremos que os seres
humanos não são estanques. estão em constante trans-
formação. num vai-e-vem permanente.

199
Os estudos de Alfred Kinseyl são pioneiros, mas Em termos de identidade e do papel de gênero são
sua abordagem cobre apenas a vertente do papel machos-fêmeas, masculinos e femininos. Porém, podem
sexual. Eu proponho uma leitura onde o aspecto dessa ser hetero, homo ou bissexuais quanto a sua orientação
parte da sexualidade e a relação afetivo-sexual entre afetivo-sexual. E assim por diante.
as pessoas não estejam obrigatoriamente vinculados. As escalas que desenvolvemos mostram que a rea-
Existem inúmeras possibilidades de combinação entre lidade, no que diz respeito à sexualidade, não é estan-
as necessidades psíquicas, biológicas e sociais do ser que, como aprendemos até hoje. Eu proponho
humano. As necessidades e as possibilidades das re- alargarmos os nossos horizontes para essas formas da
lações de gênero são diferentes daquelas que envolvem sexualidade, para que possamos ser uma sociedade
as relações afetivo-sexuais. mais saudável amanhã.
Diante disso, concluímos que "11" sexos são "depar- Somos uma sociedade em que a sexualidade ainda
tamentos" muito estanques e muito límitados para não está livre. A sexualidade está trancafiada.
abranger a grandiosidade da sexualidade humana. Só Apesar de ser o eixo principal de nossa personali-
como exemplo, posso afirmar, numa possibilidade de dade, que nos define na vida enquanto espécie, que é
combinação, conforme as escalas do final deste livro, que fonte de prazer e forma de reprodução, nós relegamos a
a maioria dos homens são homens machos, masculínos, sexualidade ao último plano.
heterossexuais. As mulheres são fêmeas, femininas e A Medicina não a estuda totalmente, e o mesmo
heterossexuais. ocorre com a Psicologia. Os demais ramos da Ciência
No entanto, uma gama de homens são afeminados, "pouco tempo têm para o assunto". Somos uma socie-
feminis, ou femininos, mas continuam sendo machos e dade em que a sexualidade não é exercida democratica-
heterossexuais. Ou podem também ser homo ou bisse- mente, não é livre; que não respeita os direitos e prin-
xuais. Encontramos outra gama de mulheres que são cipalmente as necessidades das pessoas.
fêmeas masculinizadas, masculinas, ou viris e que po- Somos, enfim, uma sociedade hipócrita.
dem ser heterossexuais. homo ou bissexuais. Uma sociedade que aplaude a cantora Madonna,
Da mesma forma, existem travestis, com o corpo considerada um ídolo de comportamento andrógíno, ao
masculino, que ainda não incorporaram neles próprios mesmo tempo homo, hetero, bíssexual, mas não aceita
características sexuais secundárias do corpo feminino. a vizinha que trouxe uma amiga para morar com ela.
Somos uma sociedade que reconhece as diferenças
1.Alfred Kinsey: Zoólogo norte-americano, coordenou as duas maio- entre o gênero masculino e feminino para tirar proveito
res e mais rigorosas pesquisas sobre sexualidade. Propôs a "Escala dessas diferenças. Com base nisso, pagamos à mulher
Kinsey", pela qual as pessoas podem variar de exclusivamente um salário menor, mesmo que ela seja competente.
heterossexuais (50%) a exclusivamente homossexuais (4%). Entre
esses dois extremos estão as pessoas predominantemente heteros- Somos uma sociedade que não respeita o direito que
sexuais, as btssexuaís e as predominantemente homossexuais. O a mulher tem ao seu corpo, e nem totalmente o seu
estudo mostrou que numa população de 18 mil pessoas estudadas, direito à saude. Não respeitamos o direito da mulher de
46% seriam bissexuais. Segundo Kinsey, as pessoas podem ir de escolher se dará ou não continuidade a um embrião, um
um ponto a outro da escala. de acordo com a sua fase da vida, seu
momento psicológico ou as circunstãncias do meio em que vivem. projeto de vida, que está dentro do seu corpo.
Suas pesquisas, das décadas de 40 e 50, são utilizadas até hoje
pelos estudiosos da sexualidade.

200 201
Mas aceitamos, complacentemente, milhares e mi- século passado, tendo sido necessário que se rebelas-
lhares de meninos e meninas vivendo nas ruas, ou em sem para não serem considerados "pacientes". É muito
instituições, pelos quais não nos responsabilizamos. estranho! Talvez não exista nenhum outro grupo que não
Muitas dessas crianças, provavelmente, são frutos de queira ser tratado pela Medicina como os homossexuais.
gravidez indesejada. Ou de pais que não tinham como Somos uma sociedade que psícologíza, excessiva-
criar seus filhos. mente, todos os atos humanos. Uma sociedade que
Somos uma sociedade cuja Medicina ainda não dá, importa teorias psicoterápicas elaboradas no Primeiro
totalmente, o direito ao homem de ter o seu pênis ereto Mundo para compreender a sexualidade da menina, do
avaliado, examinado e tratado. As doenças do pênis menino ou dos adultos que vivem nas ruas, nas favelas
ereto são patologias sérias e que "não existiam", até bem das grandes cidades, ou em lugares ermos da zona rural.
pouco tempo, para a Medicina. Seriam essas teorias aplicáveis a eles?
Somos uma sociedade em que os médicos, ao exa- A Psicologia e a Psiquiatria perderam de vista sua
minarem um ser que é macho e masculino ou fêmea e finalidade maior, que é a de atender o ser biopsicosso-
feminina, têm dificuldade de conversar com eles a res- cíal, prevenir os distúrbios psicológicos e tratar as pes-
peito de sua orientação afetivo-sexual, seja ela hetero, soas com esses problemas. Em vez disso, rotulam
homo ou bissexual. Nossas escolas de Medicina não previamente, ou seja, com pré-conceitos.
estudam a sexualidade na sua maior amplitude, pren- Somos uma sociedade que aplaude Rogéría, um
dendo-se apenas ao lado funcional ou fisiológico dos travesti famoso do País. Mas que não dá o direito aos
órgãos sexuais, desde que não erotizados. travestis e aos transexuais de tratarem de seu corpo ou
Essas escolas esquecem-se de que a sexualidade modificá-lo, de uma forma saudável. Sem escolha, eles
tem um aspecto psicológico e um aspecto social, que fazem essa transformação por meio de métodos leigos e
todos os médicos precisam tomar conhecimento. Conhe- precários. Somos uma sociedade que mata os travestis
cendo melhor sua própria sexualidade terão maior pos- ou os coloca dentro de um camburão de polícia como
sibilidade de atender ás pessoas como elas são. E não cães vadios.
como eles gostariam que fossem, do ponto de vista da Somos uma sociedade que assiste passivamente ao
sexualidade. assassinato de homossexuais, de adolescentes da peri-
Nós somos uma sociedade cuja Medicina encara feria e de meninos de rua. Seus assassinos ficam impu-
muitos fatos de ordem social ou cultural adversos ou nes como os criminosos de "colarinho branco" .
desconhecidos como patologias. Somos uma sociedade que transforma transexuais
Somos uma sociedade em que a Psiquiatria biológi- como a modelo Roberta Close num símbolo sexual femi-
ca e as correntes psicoterápicas, em vez de se aliarem, nino, mas não dá a ela documentos de mulher, mesmo
advogam para si a solução das mazelas da alma humana depois de ter seu corpo masculino corrigido pela Medi-
esquecendo-se de que o psiquismo se exterioriza através cina para o feminino.
do corpo, conseqüentemente pelo sistema nervoso cen- Somos uma sociedade em que as religiões cristãs
tral, passando pela Bioquímica. pregam o "amor ao próximo como a si mesmo", "esque-
Uma sociedade em que os homossexuais foram cendo" que "os diferentes", para amar, precisam se acei-
classificados como personalidades doentias no final do tar e ser aceitos.

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Somos uma sociedade que interpreta o que os polí-
ticos fazem entre quatro paredes como algo que pode Mas ~o~os também uma sociedade que tem um
son~o. utOPICO: N.essa utopia possível, a Educação, a
interferir diretamente na sua capacidade de administrar
M~dIcm~, o. Direito, a Sociologia, a Antropologia e a
uma cidade, um estado ou um país. Psícologta ajudarão as pessoas a serem livres.
Estamos á cata de saber como é o comportamento Neste trabalho tive a necessidade de agrupar as
afetivo-sexual desses homens. Se eles não forem ma- pessoas de acordo com seu modo de ser e de se compor-
chos, masculinos e heterossexuais, não serão capazes tar sexualmente. A denominação hetero, homo ou bis-
de gerir os bens públicos. Esquecemo-nos que está em sexual refere-se apenas à orientação afetivo-sexual
jogo sua capacidade político-administrativa (papel de d~ssas pessoas. O termo travesti está ligado ao papel de
gênero), e não seu papel sexual. ?enero,. enquanto transexual e intersexo são palavras
Somos uma sociedade que não concebe dois atores rmprecisas para designar essas formas de sexualidade.
ou duas atrizes representando atos de amor homosse- Assim, tive de chamar as pessoas pelos "nomes como
xual na novela das oito, mas que se compraz ou se são conhecidas", mas em nenhum momento minha
horroriza pelo inusitado de ver, ao vivo, uma adolescente intenção foi de rotular, classificar ou catalogá-las em
suicidar-se, saltando para a morte do alto de um edífícío. compartimentos estanques. É assim que este trabalho
Assistimos carnificinas nas cidades ou nos campos de deve ser visto. A classificação leva ao preconceito e à
batalha como se isso fosse mais saudável do que o amor estigmatização do ser humano.
entre dois homens ou duas mulheres. . Como você deve ter percebido ao longo dos onze
Somos uma sociedade em que um partido político capítulos que compõem a segunda parte deste livro, em
cada um deles dedica-se um espaço a cada um dos "11"
precisa reunir os seus adeptos gays e lésbicas num
sexos, ~orque foi a forma que escolhi para focar partes
comitê nacional, para que essas pessoas possam ter o da multlfacetada sexualidade do ser humano. Entretan-
direito à cidadania. to, apesar de ~osso esforço, fomos incapazes de apre-
Somos uma sociedade em que não existe a possibi- sentar, .tambem em cada um desses capítulos, a
lidade da espontaneidade, da criatividade, e do fator tele complexidade e a totalidade da vida sexual de cada um
para propiciar a relação entre as pessoas, a partir de um deles, e estabelecer limites claros entre eles, porque
encontro saudável para todos. esses limites não existem.
Essa impossibilidade, a meu ver, deve-se ao fato de
que o ser humano não cabe em "escaninhos", departa-
mentos ou categorias.
A sociedade não é uma abstração. Por isso insisti Somos ao mesmo tempo semelhantes e diferentes
no "somos uma sociedade". A sociedade sou eu, é você! de todos os demais, em nossa indivisibilidade. Somos,
Ela é composta por todos nós, do mesmo modo que está em cada momento, únicos e universais. Portanto, não é
dentro de todos nós. possível dizer que a espécie humana é formada de seres
Transformar uma sociedade é nos transformarmos. E com "apenas 11" sexos. Podemos ser l l , ou 111 ou 1.111
transformar, também, a sociedade que está dentro de nós. ou 1.111.111 sexos, ou mais. Tudo é muito pouco para
explicar o ser humano.
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205
VISÃO DA SEXUALIDADE HUMANA ATRAVÉS DAS
Espero que este trabalho. no qual muitas idéias apre- ESCALAS PROPOSTAS
sentadas podem e devem ser debatidas. sirva para as
I - ESCALA DO SEXO BIOLÓGICO (FENÓTIPO)
pessoas. incluindo aquelas com um modo de ser diferente
do da maioria. iniciarem a conquista da sua identidade INTERSEXOS FÊMEA
com caracteres com caracteres
sexual. Que elas conquistem o direito de. por meio de seus MACHO sexuais (hermafrodita) sexuais FÊMEA
secundórlos secundórlos
papéis de gênero. serem socialmente o que são inte- de FÊMEA de MACHO
riormente. Que tenham o direito à transformação do seu A B C D

corpo biológico. quando isso for necessàrio e pertinente.


11 - ESCALA DE IDENTIDADE DE GÊNERO (SENTIR-SE COMO)
E que. com suas sexualidades. conquistem uma
identidade social, e que se transformem em pessoas com HOMEM MULHER
HOMEM um pouco
mulher
um pouco MUutER
direito à CIDADANIA. homem

A C

11I - ESCALA DE PAPÉIS DE GÊNERO (PAPEL SOCIAL)

w.scuUNO FEMININO
MASCUUNO Afeminado E Mascullnlzado FEMININO
FEMININO
A C D

IV· ESCALA DE ORIENTAÇÃO AFETIVO-SEXUAL (DESEJO)

IHETEROSSEXUAL H=lJM.
I I
B1SSEXUAL
C
=:- D
HOMOSSEXUAL
A

V • ESCALA DE RELAÇÕES AFETIVO-SEXUAIS DE HOMENS


Como você pode ver nas tabelas da página ao lado. a
(PAPÉIS AFETIVO-SEXUAIS)
maioria dos HOMENS é macho (I AJ, sente-se homem
(II AJ, assume papéis de gênero masculino (III AJ, tem HOMEM
orientação afetivo-sexual heterossexual (N AJ e se HOMEM COM
HOMEM HOMEM HOMEM
relaciona em nível de afeto e/ou sexo com uma mulher COM COM COM COM
MULHER
(VAJ. MULHER E HOMEM TRAVESTI TRANSEXUAL
HOMEM MASCULINO MASCULINO
Da mesmaforma, a maioria das MULHERES éfêmea (I A C D
EJ, sente-se mulher (lI EJ, assume papéis de gênero
femininos (III EJ, tem orientação afetivo-sexual heteros- VI - ESCALA DE RELAÇÕES AFETIVO-SEXUAIS DE MULHERES
sexual (N AJ e se relaciona em nível de afeto e/ou sexo (PAPÉIS AFETIVO-SEXUAIS)
com um homem (VI AJ.
MULHER MULHER MULHER MULHER MULHER
COM
Do ponto de vista da sexualidade, embora maioria. os COM COM COM COM
HOMEM
seres não "são" ou "estão" só assim. Olhando a nossa HOMEM E MULHER TRAVESTI TRANSEXUAL
volta a multiplicidade do ser é iriftnita. MULHER FEMININO FEMININO
A c D

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