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Manual Sentidos 12

“Velhice, adolescência e infância”, Salvador Dali


Álvaro de Campos

Sim, sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,

Sim, sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,


Espécie de acessório ou sobresselente próprio,
Arredores irregulares da minha emoção sincera,
Sou eu aqui em mim, sou eu.

Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.


Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.

E ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconsequente,


Como de um sonho formado sobre realidades mistas,
De me ter deixado, a mim, num banco de carro elétrico,
Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima.
E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,
Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda,
De haver melhor em mim do que eu.

Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa,


Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores,
De haver falhado tudo como tropeçar no capacho,
De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas,
De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida.

Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica,


Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar,
De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo —
A impressão de pão com manteiga e brinquedos,
De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina,
De uma boa vontade para com a vida encostada de testa à janela,
Num ver chover com som lá fora
E não as lágrimas mortas de custar a engolir.
Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado,
O emissário sem carta nem credenciais,
O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,
A quem tinem as campainhas da cabeça
Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.

Sou eu mesmo, a charada sincopada


Que ninguém da roda decifra nos serões de província.

Sou eu mesmo, que remédio!..


❖ As três fases da vida
❖ Metamorfoses da figura feminina
(físicas e psicológicas)
❖ O diálogo entre realidade,
memória e imaginação
❖ A complexidade da natureza
humana
1. Estabeleça pontos de contacto
temáticos com o conto «George»,
atendendo em particular à segunda
estrofe do poema.
Leitura do poema
de Pessoa e
associação com o
conto «George»
“George”

❖Intriga focalizada cinematograficamente, valorizando pormenores.


❖Regresso de uma artista de renome à vila onde nasceu, depois de 27
anos de ausência.
❖Diálogo de mulheres que se cruzam
▪ Confronto com a juventude: Gi e George (recordação do passado)
▪ Confronto com a velhice: George e Georgina (projeção do futuro)
❖Partida de George no comboio que a levará para longe da vila onde
nasceu.
As três idades da vida

A ❖Gi
protagonista ❖George
❖Georgina
ESTRUTURA TRIPARTIDA:

Memória Realidade Imaginação

Gi George Georgina

Passado/juventude Presente/idade adulta Futuro/velhice

AS TRÊS IDADES DA VIDA


(METAMORFOSES DA FIGURA FEMININA – FÍSICAS E PSICOLÓGICAS)
❖Afastamento progressivo da infância e
aproximação da velhice:
▪ A infância está presente, no primeiro
encontro (Gi e George)
▪ George e Gi movem-se lentamente,
As como a simbolizar a impossibilidade de
George de ressuscitar o passado e de se
personagens despedir dele.
e o tempo ▪ O segundo encontro (George e
Georgina) é marcado pela velocidade do
comboio e pela sua marcha sem retorno,
simbolizando a morte definitiva do
passado e a aceleração da marcha do
tempo em direção à velhice.
Gi
(Passado/juventude)

❖ O seu retrato é construído (por


George) com o recurso à memória.
❖ É uma “rapariguinha frágil”.

❖ Tem 18 anos.

❖ Tem um “lindo sorriso branco”.


❖ Revela propensão para o desenho.

❖ Mora numa vila portuguesa.


❖ Tem namorado e a mãe está a
preparar-lhe o enxoval.
Gi
(Passado/juventude)

❖ Através do diálogo entre Gi e George percebe-se que a jovem


tenciona abandonar a terra natal (refere que o namorado não tem
outra ambição senão a de ficar e construir uma casa).

❖ Tem a função de recordar a George quem foi no passado.


George
(Presente/idade adulta)

❖ Mora em Amesterdão.

❖ É uma pintora famosa.

❖ Visitou a terra natal para se desfazer da casa paterna (que recebeu em herança
após a morte dos pais), o que significa o corte com o passado.

❖ Durante a fase adulta, sofre diversas transformações.


George
(Presente/idade adulta)

❖ É inconstante no amor e de ❖ Nada possui do passado, com


personalidade complexa: muda exceção de uma fotografia sua
constantemente a cor dos cabelos, quando jovem.
não possui nada de seu, mora em
casas alugadas, desfaz-se dos livros.

❖ Possui ânsia de liberdade desde ❖ Vive reconfortada com o seu


jovem. êxito como pintora e com as
repercussões financeiras que este
lhe traz.
O espaço
❖Vila parada do interior Regresso ao passado
▪ Casa da infância
▪ Ponto de confluência de lugares e de tempos

❖Locais de passagem Visão de futuro


▪ Viagem de comboio
▪ As várias casas alugadas
▪ Amesterdão
▪ Estados Unidos
1. Trace o perfil de George nas duas fases
Análise global da primeira parte do conto.
do conto 2. Sintetize as metamorfoses que a figura
feminina sofre ao longo dessas partes
«George» em termos físicos, psicológicos e
socioeconómicos..
1. Trace o perfil de George nas três fases da vida.

Gi tem 18 anos. Fisicamente, Gi tem olhos grandes e


semicerrados, boca fina, cabelos escuros e lisos, pescoço alto.
Veste um vestido claro e amplo. A nível psicológico, revela
ânsia de liberdade e de descoberta do mundo. Gosta de
desenhar. Do ponto de vista moral, Gi recusa a vida imposta
pela sociedade, ou seja, uma vida confinada ao casamento e à
aldeia. A sua família é um pouco rude, desvaloriza arte, a
cultura, o saber. Têm poucos recursos financeiros.
1. Trace o perfil de George nas três fases da vida.

George tem 45 anos. Apresenta-se igualmente vestida


com um vestido claro e amplo. É uma mulher solitária, vive
isolada dos outros, por decisão própria. Encontra-se em
constante processo de fuga. É instável do ponto de vista
afetivo/amoroso, mudando de companheiro/amor tal como
muda de casa ou de tom de cabelo. George vive em constante
luta com o seu passado e com o futuro (desajustamento
existencial). Caracteriza-se pelo desapego material, de objetos
que lhe trazem recordações.
Profissionalmente, é uma mulher bem sucedida, uma
pintora de renome europeu, com estilo próprio. É sofisticada,
rica, materialista. Sobrevaloriza o dinheiro.
2. Sintetize as metamorfoses que a figura feminina sofre ao longo
da vida em termos físicos, psicológicos e socioeconómicos.

A nível físico, George passa da juventude ao amadurecimento, no


momento presente, e projeta a sua velhice (envelhecimento) no futuro.
Psicologicamente, a ilusão e a inexperiência de vida que caracterizam
a juventude dão lugar ao conhecimento e à experiência. Nesta fase de
amadurecimento, George desvaloriza as relações afetivas, torna-se
materialista e expressa um cansaço relativamente à vida. Mais velha, toma
consciência da finitude e desvaloriza os bens materiais, reconhecendo, por
fim, a importância das relações afetivas.
Do ponto de vista socioeconómico, Gi era pobre e, em adulta, singra
no meio artístico. O seu sucesso profissional acompanha a prosperidade
financeira. Na velhice, esta prosperidade e o sucesso profissional deixam
de ter relevo, perante a consciência do envelhecimento e da finitude
(brevidade da vida).
Amedeo Modigliani

“Alice” “Portrait de Jeanne Hébuterne” “Retrato de uma mulher polonesa”


Gustav Klimt, As Três Idades da Mulher, 1905,
Galeria Nacional de Arte Moderna, Roma.
Georgina
(Futuro/velhice)

❖ O seu retrato é construído (por George) com


recurso à imaginação; perspetivação do futuro da
figura feminina.

❖ Trata-se de uma velha, imperfeitamente


maquilhada com vários tons de rosa, cabelos cor de
acaju.

❖ Usa uma carteira cara (italiana).

❖ Tem a função de deixar antever a George o que será o seu futuro, um tempo
marcado pela solidão e pela degradação física, o que impedirá a protagonista de
pintar.
❖Focaliza, na terceira pessoa, os
acontecimentos, conhece o passado e o
mundo interior das personagens;
❖Mistura a sua voz com os pensamentos da

O personagem principal e com as suas falhas


de memória;
❖Apresenta uma visão crítica e desprovida
narrador de autopiedade que a protagonista tem de
si própria;
❖Reproduz as “falas” de Gi e de Georgina em
itálico.
Linguagem, estilo e estrutura
❖Discurso sucinto marcado pela clareza das ideias e
dos conceitos essenciais.
❖Narrativa fotográfica que capta a fragmentação do
tempo, do espaço e das personagens.
❖Tom contido mas irónico, perante a complexidade
da natureza humana e suas fragilidades.
❖Relevância das sensações.
❖Recursos expressivos recorrentes: comparação,
elipse, repetição, interrogação retórica, metáfora…
1. Trace o perfil de George nas três fases da vida.

Georgina tem quase 70 anos. Fisicamente, é velha


(George não gosta de eufemismos). Tem as mãos enrugadas,
os cabelos pintados de acaju e o rosto pintado com vários
tons de rosa, sem grande perfeição. Poder-se-á afirmar que
há uma necessidade de chamar a atenção sobre si. É rica,
como se pode confirmar pela mala italiana que usa.
Mais madura e experiente, está consciente da passagem
do tempo, da transitoriedade da vida e da efemeridade do
poder e do dinheiro numa sociedade excludente. Esta mulher
denota tristeza por não ter recordações do passado
3. Explicite de que forma o diálogo entre realidade, memória e
imaginação contribui para a estruturação do conto.

Efetivamente, o diálogo entre realidade, memória e


imaginação surge como elo estruturador da ação da narrativa.
A realidade apresenta-nos o cenário de regresso de
George à aldeia da sua juventude para vender a casa da
família, depois da morte dos pais. A deambulação pela rua
onde vivia, bem como a viagem de comboio, desencadeiam a
memória e motivam as recordações do passado. É neste
contexto que a personagem dialoga internamente com Gi.
O ato de recordar e relembrar o passado dá, por
conseguinte, origem à imaginação. Nesse momento, George
projeta a sua figura no futuro. É deste modo que se constrói
um diálogo interior do presente com o passado e o futuro.
4. Mostre de que forma neste conto se discorre sobre um caso
humano de solidão e de desajustamento existencial.

Trata-se de uma narrativa que tem como protagonista


uma figura feminina, marcada pela solidão, pela incapacidade
de criar raízes afetivas num quotidiano social e pelo
desajustamento existencial que daí decorre.
Na verdade, perpassa na narrativa um registo “amargo”,
melancólico, triste, em alguns casos “mordaz” (“De idade não,
George detesta eufemismos, mesmo só pensados, uma
mulher velha.”, ll. 135-136)
Estabelecer correspondências, de acordo com as diferentes
modalidades expressas nos enunciados.

Enunciado Modalidade
a) Maria Judite de Carvalho era também pintora. 1. Epistémica (valor de
certeza)
b) Os alunos devem ter lido o conto.
c) Estou certa de que o conto nos obriga a refletir 2. Deôntica (valor de
sobre a vida. permissão)
d) Lamento que tenhas perdido a leitura do conto.
e) Não há dúvida de que a fotografia reaviva a 3. Epistémica (valor de
probabilidade)
memória.
f) Podes vender os quadros. 4. Apreciativa
g) A leitura integral do conto é obrigatória.
h) Talvez George se tenha arrependido. 5. Deôntica (valor de
obrigação)
i) Apanha o comboio, George!
j) Adorei o conto!
Edvard Munch

“Cinzas”. 1894. National Gallery, Oslo.

“Separation”. 1896. Munch Museum.

“Madonna”. 1894-1895
Edvard Munch, A Mulher em Três Etapas, 1894
As relações interpessoais A introspeção e a avaliação do
(sociais e familiares). projeto e percurso de vida.

A complexidade da natureza
humana

A relativização do sucesso e do A fragmentação do eu, a passagem


fracasso. do tempo, a solidão e a morte.
A atualidade do conto

❖A condição feminina
▪ A situação profissional
▪ A independência económica
▪ O amor
❖Reflexão sobre a Morte e o Tempo (a passagem do tempo/da vida)
❖Mundividência invulgar e sensibilidade artística
▪ Reflexão sobre a complexidade da natureza humana
▪ Reflexão sobre a constante (re)definição da complexidade humana
❖Fusão da arte narrativa com diversas formas de arte
▪ Pintura
▪ Amedeo Modigliani (1884-1920), pintor italiano
▪ Edvard Munch (1863-1944), pintor norueguês
▪ Cinema
▪ Fotografia
Poesia
Trovadoresca

Farsa de Inês
Pereira
Poesia de
Cesário Verde Representação da
figura feminina
na Literatura
Portuguesa Lírica
camoniana
Os Maias

Frei Luís de Amor de


Sousa Perdição
Texto expositivo

Redação e apresentação oral sobre o papel da figura feminina na


literatura portuguesa ao longo dos tempos.

• Após a leitura do conto e a perceção da metamorfose da figura


feminina, ao longo dos séculos, considere a personagem
selecionada e elabore um texto expositivo com base nos seguintes
tópicos:

✓Identificação da figura feminina


✓Obra literária a que pertence
✓Caracterização da personagem feminina
✓Corrente literária onde se insere.

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