Você está na página 1de 3

Mário de Carvalho

(1944 – …)

FAMÍLIAS DESAVINDAS
Com uma vasta obra premiada como romancista, contista e dramaturgo, Mário de Carvalho,
licenciado em Direito, viveu exilado em França e na Suécia, após ter sido preso pela PIDE devido a atividade
política contra o regime salazarista. Regressado a Portugal após o 25 de Abril de 1974, continuou a
desenvolver atividade política e a exercer advocacia. Foi ainda professor em várias instituições de ensino
superior, nomeadamente na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
A sua obra associa, frequentemente, o humor à crítica do quotidiano, usando a ironia e a paródia de
situações. Este conto integra-se na obra Contos Vagabundos, coletânea de narrativas que mostram os
momentos ora luminosos, ora escuros da vida quotidiana, marcados então pela ironia, desconcertantes e
insólitos.

1. História pessoal e história social: as duas famílias


Neste conto cruzam-se as histórias de duas famílias: a do médico João Pedro Bekett e a do
semaforeiro Ramon.
Os elementos da família Bekett parecem sentir-se socialmente superiores, manifestando essa
ascendência de diferentes formas ao longo de 3 gerações: pela arrogância do dr. João Pedro, que não
admitia a interferência do semaforeiro na sua vida (“Amim, ninguém me diz quando devo atravessar uma rua.
Sou um cidadão livre e desimpedido”); pela crueldade do inseguro Dr. Pedro (“passava grande parte do
tempo à janela, a encandear Ximenez com um espelho colorido”); pela grosseria do Dr. Paulo, que tratava
Asdrúbal insultuosa e preconceituosamente, incitando até os doentes a insultarem-no também (“rosnava
«Sus, galego»”, “pedia aos clientes… «Arrenego de ti, galego!»).
Os semaforeiros eram empenhados e dedicados à sua profissão, cumprindo-a com zelo (“mas ramon
era esforçado, cheio de boa vontade”, “Durante anos e anos o bom do Ramon pedalou e comutou”, “não é
pelo ordenado que aquela família dá ao pedal. É pelo amor à profissão. Altas horas da madrugada…
sugerindo que o carreto bastasse.”)
Embora socialmente distintas, é curioso notar que ambas as famílias têm origem estrangeira: Ramon
era galego e o Dr. Bekett tem um apelido inglês (desde o início do séc. XIX, era frequente, na cidade do
Porto, a presença de galegos e de britânicos, uns fugindo à pobreza e em procura de trabalho, os outros por
motivos de negócio de família, frequentemente ligados aos vinhos).

2. Valor simbólico dos marcos históricos referidos


Ao longo do conto, o tempo é marcado por referências a acontecimentos históricos, políticos e sociais
que ajudam a conferir verosimilhança à intriga, assim como marcam a oposição entre a superficialidade das
razões que estão na origem deste conflito entre famílias e a gravidade desses acontecimentos históricos e a
sua importância para a humanidade – este contraste evidencia a mesquinhez, a tacanhez e o ridículo deste
tipo de rixas entre as pessoas e serve as intenções críticas do conto quanto aos comportamentos humanos.
As referências “No dobrar do século XIX”, “Durante a Primeira Guerra”, “Por alturas da Segunda
Grande Guerra”, “pouco depois da revolução de abril” ajudam a localizar cronologicamente a história e
mostram a progressão temporal que acompanha o conflito.

3. A dimensão irónica do conto


A dimensão irónica e, assim, crítica é visível em vários momentos:
- o narrador descreve o semáforo como muito moderno, mas é movido a pedal;
- são considerados “os únicos semáforos do mundo movidos a pedal, sobreviventes a outros que ainda
funcionavam na Guatemala, no início dos anos setenta”;
- o processo de seleção do semaforeiro – Ramon, familiar do proprietário de um bom restaurante… –
insinuam-se as práticas de “luvas” e influências;
- o projeto de instalação do “insólito dispositivo” aceite por um autarca do Porto a troco de umas “garrafas de
Bordéus” – insinua-se a prática de corrupção;
- a crítica ao provincianismo do autarca do Porto, que aceita um aparelho já recusado por Paris e por Lisboa;
- o relegar do projeto como sendo experimental para a infrequentada rua Fernão Penteado – evitando-se
assim os embaraços que suscitaria tal aparelho na Ponte;
- o hábito do facilitismo e manipulação de interesses instituído na população: “Os transeuntes e motoristas do
Porto apreciam estes semáforos manuais … e o Paco, se estiver bem-disposto, comuta, facilita”;
- o modo como os diferentes médicos exercem, de forma caricata, a profissão, tornando ridícula e sem
sentido a sua atitude perante os seus «inimigos».

4. A importância dos episódios e da peripécia final


A peripécia final é surpreendente, já que o narrador constrói uma série de episódios que retratam o
conflito entre as duas famílias e que parece insanável.
Podem enumerar-se os seguintes momentos, que culminam com a aproximação entre o Dr. Paulo e
Paco:
 instalação do “insólito dispositivo” numa rua “banal” do Porto;
 descrição e origem do semáforo;
 referência ao primeiro semaforeiro e seus descendentes, que parecem herdar o emprego;
 apresentação do médico, “o doutor João Pedro Bekett, pai de filhos e médico singular”;
 o motivo do conflito entre as duas famílias;
 a relação conflituosa prolongada através dos descendentes do doutor João Pedro e de Ramon;
 o acidente de Paco e a sua hospitalização;
 a ajuda do doutor Paulo e a reconciliação familiar – no fim do conto é evidente uma mensagem de
solidariedade.

5. Linguagem, estilo e estrutura


Linguagem
Esta adequa-se a cada personagem e a cada situação com o objetivo de conferir verosimilhança à
narrativa, na qual não faltam o humor e a ironia, que ajudam a conferir a dimensão crítica sempre presente.
Recursos expressivos:
- enumeração – “um cruzamento alto, de esquinas de azulejo, janelas de guilhotina, telhados de ardósia em
escama”;
- ironia – “Os semáforos estiveram ensejados para a Ponte … na interseção com a travessa de João Roiz
Castelo Branco”;
- adjetivação expressiva – “rua, banal e comprida”, “infrequentada rua”;
- discurso direto – ocorrências que correspondem quase sempre às falas dos médicos e ajudam na sua
caracterização.

Estrutura
- 3 primeiros parágrafos: Introdução – localização da ação no espaço; apresentação do “insólito dispositivo”,
sua localização, origem e funcionamento;
- do 4º parágrafo até ao penúltimo: Desenvolvimento – personagens e seu antagonismo, conflito e seu
prolongamento ao longo das várias gerações;
- último parágrafo: Conclusão – fim do conflito.

Brevidade narrativa:
Unidade de ação Conflito entre a família do Dr. João Pedro Bekett e a família
do semaforeiro Ramon, originado por um motivo fútil
Concentração no tempo Referência a determinadas etapas históricas que
contextualizam a ação e marcam a progressão temporal –
desde “No dobrar do século XIX” até “Há dias”
Concentração no espaço Uma vulgar rua do Porto – “Por uma dessas alongadas ruas
do Porto, …”
Número limitado de personagens A família de Ramon e a família do Dr. João Pedro Bekett

Síntese a partir de:


Elsa Freitas e Isabel Ferreira, Português 12º, Areal Editores

Você também pode gostar