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Maria Judite de Carvalho

(1921-1998)
George

Escritora de ficção, tradutora e jornalista, pouco conhecida do grande público, M. J. Carvalho deixou
uma obra marcada pela reflexão sobre a solidão do ser humano. Recebeu vários prémios pela sua escrita
como romancista, contista, poeta, cronista e dramaturga.
Este conto coloca-nos perante uma personagem, George, que, no presente, “dialoga” com o passado
e com o futuro.

1. As três idades da vida


Através da memória, George fala com Gi, a jovem que foi aos 18 anos, e que “encontra” ao chegar à
sua terra natal, depois de uma ausência de mais de 20 anos. Gi tem o rosto «vago e sem contornos», «dois
olhos largos, semicerrados, uma boca fina, cabelos escuros, lisos, sobre um pescoço de Modigliani», tem
ânsia de saber, de se expandir, de ser livre, não aceitando o que a sociedade espera dela. Esta imagem que
recorda de si é a que corresponde à fotografia que a acompanha sempre e que recorrentemente pinta, como
em sucessivos autorretratos. Gi representa a juventude de George.
George é, no presente, uma mulher adulta, madura, de «quarenta e cinco anos», bem-sucedida
profissionalmente – pintora reconhecida internacionalmente –, mas uma mulher só e que não valoriza os
laços afetivos, nem com objetos, nem com pessoas.
Através da imaginação, “conversa” com Georgina, «uma senhora de idade», «uma mulher velha» de
«mãos enrugadas» e de «cabelos pintados de acaju», que se encontra sentada à sua frente no comboio, no
momento em que sai da terra natal. Georgina obriga George a tomar consciência do aproximar da velhice, a
fazer um balanço da vida, levando-a à constatação da solidão e do vazio existencial, à noção da inexorável
passagem do tempo, da efemeridade da vida, da inevitabilidade da morte. Georgina, com «quase 70 anos»,
representa a futura velhice de George.

2. O diálogo entre realidade, memória e imaginação


Os monólogos interiores da personagem com os seus alter-egos, Gi e Geogina, conduzem ao
balanço de vida de George, através da interpenetração dos diferentes tempos:
- o presente / a realidade (o caminhar de George ao longo da vila natal e a viagem de comboio para
Amsterdão), caracterizado pelo êxito profissional, as viagens, a abundância de dinheiro, novos amores, é
invadido por momentos de rememoração sobre a juventude – marcada pelo desejo de partir e fugir ao
estereótipo feminino provinciano, e pela imaginação sobre o futuro que leva a personagem à
consciencialização sobre a velhice e a solidão.

3. Metamorfoses da figura feminina


Esse diálogo é realizado através da mutação dos diferentes eus da personagem, um ser disperso,
fragmentado, em busca permanente, que sofre a transformação do tempo e a sua irreversibilidade:
- aos 18 anos, Gi era uma jovem de olhos grandes, cabelos escuros, cheia de sonhos, ansiando a
liberdade e a evasão da sua vila natal;
- aos 45, apesar de todo o sucesso profissional e financeiro e das relações amorosas, George
transporta já a solidão e a inquietação face ao vazio da sua existência;
- e é esta George que imagina e se projeta no futuro como Georgina, a velha senhora septuagenária,
com todas as marcas físicas da velhice. Nessa projeção, as rugas, as tremuras, o “ver pior” são sinónimo de
envelhecimento, que revelam a consciência da finitude da vida.
Por sua vez, o desapego e o esquecimento, a desvalorização dos haveres, são marcas da
inquietação interior da personagem George que, no presente, apesar de independente e bem-sucedida, teme
o futuro e as mudanças operadas pela passagem do tempo.

4. Reflexão sobre a complexidade da natureza humana


A obra de M. J. de Carvalho fala frequentemente da solidão, da incomunicabilidade, dos
desencontros, da frustração humana, da efemeridade da vida, da inexorabilidade do tempo que passa e
deixa marcas irreparáveis no ser humano, cada vez mais só e vazio.
A solidão percorre a personagem deste conto, uma solidão desencantada e marcada pela certeza de
que a vida é difícil e de que o ser humano está consciente disso. Essa solidão está denunciada logo pelo
facto de a protagonista viver sempre em casas alugadas e já mobiladas. Junta-se-lhe a melancolia, a tristeza,
a resignação. Esta personagem de natureza complexa, sempre em fuga e sempre em busca, faz o leitor
refletir sobre a complexidade da sua própria vida.

5. Linguagem, estilo e estrutura

Linguagem:
- simples, mas perturbadora, comedida, pouco ornamentada, depurada, reduz-se ao essencial,
criando um discurso conciso e rigoroso, mas sugestivo.
- neste conto, o discurso direto conjuga-se com o monólogo interior, denunciando o estado de alma
da personagem, a sua consciência, as suas reflexões.
- a metáfora (ex: “perdeu a bússola”), a comparação (ex: “Andam lentamente… como quem luta sem
forças contra o vento”) e a imagem (“A rapariguinha frágil, um vime, que ela tem levado a vida inteira a
pintar…”) são recorrentes.

Estrutura – 4 momentos:
- apresentação de George, que percorre uma “larga rua” de um lugar ao qual regressa “depois de
mais de vinte anos”;
- explicação das razões que motivaram o regresso de George, evidenciando como que um corte
definitivo com o passado (“Vim vender a casa”) e com a jovem que dali saíra;
- diálogo com “uma senhora de idade”, “Uma velha de cabelos pintados de acaju”, anunciando a
metamorfose da figura feminina e o avanço do tempo;
- reflexão de George sobre a velhice, no seu regresso a “casa”.

Brevidade narrativa:
Unidade de ação Regresso às origens e reflexão sobre a vida e a complexidade
da natureza humana
Concentração do tempo Referência ao dia da chegada à terra natal, ao espaço da
infância e da juventude, e ao dia da partida, já no comboio que
sai dessa terra
Concentração do espaço A longa rua que George percorre no dia da chegada à terra
natal e o comboio de partida, de regresso a Amsterdão
Número limitado de personagens George (Gi e Georgina)

Síntese a partir de:


Elsa Freitas e Isabel Ferreira, Português 12º, Areal Editores
Amedeo Modigliani

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