Uma criança é espancada - uma contribuição ao estudo da
origem das perversões sexuais (1919)
Neste trabalho Freud busca conhecer a origem da
perversão sexual na qual a pessoa se masturba enquanto fantasia com a cena de uma criança sendo espancada. Uma das pacientes que inspirou Freud a escrever este trabalho, ela própria sofrendo desta perversão, foi a filha de Freud, Anna Freud, de quem ele próprio tratou por muitos anos. Na análise, só muito raramente o paciente se encoraja a confessar tal fantasia, e quando o faz experimenta intensos sentimentos de vergonha e culpa. Inicialmente, tal fantasia acompanhada da masturbação é buscada voluntariamente, tornando-se mais tarde uma obsessão, que ele é forçado a satisfazer contra a própria vontade. Inicia-se muito cedo na criança acometida por ela, antes do quinto ou sexto ano. Se calhar da pessoa presenciar na escola crianças sendo espancadas pelo professor ou ler algo do tipo em livros, tal fantasia será redespertada nela, aos quais ela erroneamente atribuirá sua origem. Embora a fantasia já existisse antes disso. A hipótese traumática, de que tais pessoas teriam apanhado muito quando criança, não se mostrou correta em nenhuma destas análises. Investigando mais detalhes da cena (quem espancava a criança, era sempre a mesma criança a ser espancada ou não e qual o sexo da criança espancada) a nada se chegou, exceto a resposta indeterminada: “estão espancando uma criança” ou “estão lhe batendo no traseiro nu”, a tal ponto nem se conseguir diferenciar se se trata de uma fantasia sádica ou masoquista. A saber, se na cena, a pessoa se identificava com o agressor ou com a criança agredida.
Explicações sobre a fantasia de espancamento
Trata-se de um traço primário de perversão que, na pessoa
em questão, tornou-se prematuramente independente e autônomo em relação ao seu desenvolvimento sexual geral. Possivelmente por fator congênito fixado na pessoa por alguma experiência sexual precoce, quase nunca de intensidade traumática. Por exemplo, um paciente fixou-se na infância em sua tormentosa atração por nádegas de homens depois de presenciar na rua onde morava, aos sete anos, a cena de um menino mais velho baixando a calça de seu irmão para roçar-lhe o pênis. Tais inclinações perversas, sádicas, masoquistas ou fetichistas fixadas na infância, raramente seguirão no desenvolvimento sem alguma transformação, que pode ser a repressão, a formação de reação ou a sublimação. Exemplo, o traço perverso sádico autonomizado, se reprimido, converter-se-á numa tendência à neurose obsessiva.
Desenvolvimento da fantasia de espancamento na criança
Como Freud investigou tal fantasia mais nas pacientes
mulheres (4) que nos homens (2), centrou sua análise nelas. A primeira fase da fantasia, que surge por volta do quarto ano da menininha, centra-se na cena em que seu pai está batendo numa criança. Quase sempre uma criança que ela odeia. Na segunda fase, a cena avança e agora a menina fantasia que é ela própria que está sendo espancada pelo pai, situação da qual extrai enorme prazer. Já na terceira fase, a fantasia nuclear se disfarça como pode, ligando-se a cenas de escola, etc, a criança aparecendo nela como um mero espectador. Trata-se, portanto, na cena um do desejo da menina de que seu pai demonstre sua preferência por ela, espancando a criança (irmão ou irmã) rival. E na cena dois, de um desejo masoquista da menina dirigido ao seu pai. Freud interpreta que tais meninas desejarão ser espancadas pelo pai porque isso aliviará seu sentimento de culpa e também porque nelas o sadismo é constitutivamente muito forte, o que as fará só conseguirem sustentar o erotismo num nível mais rebaixado. Assim, o “meu pai me ama” só poderá ser vivido por elas da forma masoquista “meu pai me bate”. Assim, apanhar do pai satisfaz:
Não apenas a necessidade de castigo pela relação
genital proibida, mas também é o substituto regressivo dessa relação, o que explica a necessidade de se escoar o prazer no ato masturbatório.
O fato de que na cena de espancamento final das meninas a
criança espancada quase sempre seja um menino explica-se pelo fato de que toda vez que a menininha não conseguir sustentar seu amor genital pelo pai, fazendo regredir sua libido para etapas anteriores, repudiará também o seu papel feminino, identificar-se-á com os homens e colocará em cena seu “complexo de masculinidade”, a partir do qual quererá ser apenas menino. Daí os meninos espancados da cena serem ela própria. Isso ocorre não por rivalidade entre os sexos, mas porque a regressão da libido aos estádios mais primários da sexualidade exacerbam nela o sadismo e o instinto de domínio, masculizando a pessoa.
Parte V
Freud inicia o item chamando a atenção para o fato de que
o que o perverso satisfaz em suas práticas sexuais, seja na infância, seja na vida adulta, será sempre algum desejo incestuoso solidamente fixado nele na fase do complexo de édipo. Assim, um pervertido até pode tentar estabelecer uma vida sexual normal na puberdade, mas se o desejo incestuoso for forte demais em seu inconsciente, voltará às práticas perversas, mais cedo ou mais tarde. É deste modo, portanto, que a fantasia perversa de espancamento que vimos estudando até aqui deve ser entendida pelo psicanalista, a saber, que a pessoa, identificada à uma criança, esta satisfazendo através dela seu anseio erótico de ter sido espancada pelo pai, no qual ficou fixada. A regressão da situação de ser amado pelo pai à situação de ser espancado por ele ocorre, como já estudamos, primeiro, porque a pessoa não conseguiu sustentar sua sexualidade ao nível genital e, segundo, porque precisou satisfazer seu sentimento de culpa apanhando, por se sentir “suja e incestuosa”. Pessoas tomadas por este tipo de fantasia buscarão, de forma compulsiva, ser humilhadas, ofendidas e maltratadas por substitutos paternos (chefe, professor, delegado,etc.), para satisfazerem sua pulsão masoquista. Parte VI
Freud inicia o item chamando a atenção para o fato de que
os casos de homens estudados por ele não permitiu uma compreensão tão clara da perversão comparado com os casos femininos. Eram autênticos masoquistas, que só conseguiam gozar sentindo dor. Ou pessoas que se entregavam à fantasias masoquistas enquanto se masturbavam ou, ainda, homens que mantinham alguma atividade genital paralelamente à prática masoquista. Havia ainda os que, ao se entregarem às suas atividades pervertidas, eram assaltados por ideias obsessivas de intensidade insuportável. Diante disso, ele alerta os psicanalistas para que não prometam tão rapidamente a cura para a impotência sexual de um paciente homem, pois pode ser que esta seja sintoma de fantasias masoquistas muito inconscientes nele. Assim, um homem que nutre secretamente, por vezes desde a infância, o desejo sexual de ser espancado e maltratado por outro homem, vestido de mulher, nunca conseguirá ereção na relação sexual normal com uma mulher. O que ele descobriu sobre a fantasia masoquista de espancamento dos homens foi que, nela, eles buscavam ocupar uma posição feminina diante do pai, mesmo que o “espancador” viesse disfarçado de uma mulher que, em todo caso, mantinha uma atitude masculina e dominadora para com ele. Num quadro esquemático, compara-se o desenvolvimento da fantasia de espancamento de meninas e meninos da seguinte forma:
Meninas Meninos
Cena 1 “Estão batendo numa “Meu pai está batendo
criança que eu odeio” em mim” (Inconsciente) (Consciente)
Cena 2 “Meu pai está batendo “Minha mãe está
em mim” (Inconsciente) batendo em mim” (Consciente)
Cena 3 “Estão batendo em
meninos” (Consciente) A diferença fundamental entre eles nesta transformação do desejo incestuoso pelo pai é que o menino adota uma atitude feminina sem se tornar homossexual e a menina apaga completamente o aspecto erótico da fantasia erótica dirigida ao pai, tornando-se masculina e sádica (“Ela se transforma em homem, sem se tornar ativa à maneira masculina”). Finalizando, Freud demonstra que nem a teoria da bissexualidade de Adler (reprime-se a parte sexual “menos dominante” na pessoa), nem a teoria do protesto masculino de Adler (a parte masculina reprime a parte feminina), são válidas para explicar todas as situações nas quais a pessoa faz uso da repressão. Por exemplo, um menininho pode reprimir suas tendências masculinas ativas de possuir a mãe, por sentir que isso é asqueroso. Portanto, a repressão entrará em cena toda vez em que a pessoa se sentir ameaçada por algum aspecto primitivo, perigoso e indomável da sua natureza, individual ou ancestral, sendo que é destes aspectos recalcados que o nosso inconsciente é feito. Daí que um dos maiores alvos da repressão será a nossa sexualidade infantil e o desejo incestuoso que um dia experimentamos por nossos pais e irmãos.