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Homossexualidade tem algo a ver com você?

Paulo de Moraes Mendonça Ribeiro,


Médico e Psicanalista da SBPRP1,
pmmr@terra.com.br

- Essa coisa de veado é doença! Uma pessoa normal não tem como se interessar
por outra do mesmo sexo! É uma vergonha! É um pecado! É um crime! Assim
esbravejava um paciente em início de análise. Depois, lembrando o filme “Máfia no
Divã”, ameaçou de morte seu analista, caso se tornasse um homossexual. - Como
não tenho esse poder, aceito te analisar, deita aí no divã! Respondeu-lhe o analista,
iniciando uma relação que acabaria por revelar que o pavor do paciente não tinha
nada a ver com sexo, mas com afeto (o medo era de amar).
Rotular, nas palavras de Nelson Rodrigues, “o amor que não ousa dizer seu
nome” de pecado, doença ou coisa parecida, é uma forma de afastar emoções
poderosas para bem longe da pessoa, de tal modo que ela acredite não ter nada a ver
com isso. Será que não tem mesmo? A própria criação de rótulos preconceituosos,
sob um olhar psicanalítico, revela relação com a questão. Quem desdenha quer
comprar, diz o ditado popular.
A palavra “preconceito” já diz tudo: trata-se de pré–conceito, ou seja, alguma
experiência que ainda não se tornou um conceito, é ‘pré’, é prematura, ainda não foi
pensada e conhecida pela pessoa, que talvez por medo de se conhecer melhor, tente
manter a experiência emocional afastada através de propaganda de idéias enganosas
(preconceituosas) para si mesma e para os outros. Quem não deve não teme, diz
outro ditado popular.

O belo filme de Ang Lee, “O Segredo de Brokeback Mountain”, traz a narrativa


de uma cena contundente: Ennis, o personagem principal, teria presenciado em sua
infância seu pai arrastar a cavalo um homem amarrado pelos seus genitais até sua
amputação e morte, este homem era homossexual. Será que o fato do pai de Ennis ter
tamanho ódio pelos homossexuais e o filho ter se tornado um é mera coincidência?
Caetano Veloso, certa vez disse que “Narciso acha feio tudo aquilo que não é
espelho”, mas podemos pensar que se o narcisista acha feio o que não é espelho, ou
seja, o que é diferente dele, deve achar absolutamente horroroso, e até querer matar,
aquilo que de certa forma espelha algo dele mesmo que ele não quer, ou não pode,
enxergar. Alguém que está em paz com a própria sexualidade, que é capaz de vivê-la
na sua plenitude, não tem porque odiar tanto os vizinhos...
Aos olhos da Psicanálise, esses incomodados que rotulam homossexualidade
como ‘coisa ruim’, estão tendo vislumbres de algo de sua personalidade que não
toleram. Não me compreendam mal, isso não quer dizer que são ‘homossexuais
enrustidos’, ou coisa do tipo, só quer dizer que a pessoa está em contato com áreas
da personalidade que ela não conhece, e que muitas vezes nem tem muita relação
com questões de identidade sexual, como no caso do paciente citado, cujo medo era
de sentir emoções, especialmente emoções por um outro homem; no caso, o próprio
pai, que durante sua infância fora sentido como sendo um homem distante, frio e

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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto.
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inacessível. Sentir amor por um outro homem foi equacionado por ele como
‘veadagem’, daí o seu pavor de se envolver afetivamente com o seu analista.
Podemos conjeturar que Ennis, o personagem do filme, nunca recebeu colo,
abraços ou beijos do seu pai, que talvez achasse isso ‘coisa de mariquinha’... Só que
toda criança nasce esperando contato afetivo de ambos os pais, e se eles não
correspondem a essa expectativa, fica um buraco aberto, uma vacância a espera de
ser preenchida. Daí a confundir afeto (amor) com sensualidade (sexo) não é um
passo tão grande para algumas pessoas, e a pessoa pode, inconscientemente, passar a
procurar amor onde tende a encontrar apenas sexo, iludindo-se momentaneamente de
que encontrou amor.

Mais sutilmente, esse tipo de confusão também pode ocorrer com características
da personalidade do indivíduo que poderíamos chamar de femininas ou masculinas.
Masculinidade e feminilidade são funções da personalidade humana, portanto não
tem gênero. São áreas da personalidade que tem características que, por analogia
com a anatomia (ou ações) do homem ou da mulher, convencionou-se chamar de
mais masculinas ou mais femininas, dependendo de suas características mais
proeminentes. Por convenção, se diz ser mais masculino atitudes penetrantes que
incluam ações físicas, força muscular, bravura, etc; enquanto se consideram atitudes
mais femininas o cuidar do outro com consideração, sensibilidade, paciência,
carinho, etc. Essas são meras convenções, pois é perfeitamente possível para um
homem ser sensível para perceber sofrimento em outra pessoa e cuidar dela
amorosamente, ou pegar uma criança no colo e amamentar-lhe sentindo muito prazer
ao fazer isso, sem deixar de ser homem; uma mulher pode ser perfeitamente capaz de
ser uma pessoa decidida, profissional potente, capaz de comandar equipes
complexas, demitir pessoas, e ganhar muito bem por tudo isso, sem deixar de ser
feminina. As pessoas ainda confundem essas coisas e acabam por se privar de viver
experiências que lhe seriam enriquecedoras.

Os críticos da Psicanálise vivem reclamando que esta só fala de sexo. Triste


engano, Freud falava era de “psico-sexualidade”, que é a sexualidade a nível mental,
independente do gênero sexual anatômico de cada pessoa. A sexualidade do ser
humano começa se desenvolver dentro do útero de nossas mães, através dos desejos
e expectativas que os nossos pais têm de quem nós iremos ser; mas desde que
nascemos podemos ir caminhando numa direção mais heterossexual ou mais
homossexual, dependendo de uma série de fatores, entre eles, as experiências
precoces com as pessoas mais importantes das nossas vidas nesse período: os nossos
pais.
O pai é o primeiro namorado de toda menininha, assim como a mãe é a primeira
namorada de todo menininho, e a qualidade deste “namoro prototípico” deixará
inscrições vida afora. Mas a gente não ama só o genitor do sexo oposto (Complexo
da Édipo), amamos também o genitor do mesmo sexo, e isso é saúde! Então, se
olharmos com bastante atenção, vamos ver que na realidade existe uma certa
continuidade entre os pólos homossexual e heterossexual da experiência humana
(bissexualidade). A música “O Super-Homem” do Gilberto Gil canta um estado de
harmonia entre masculinidade e feminilidade dentro do mesmo ser-humano, o que,

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ao invés de tornar o homem feminino ou a mulher masculina, pode tornar cada
gênero mais forte ainda.

Um dia
Vivi a ilusão de que ser homem bastaria
Que o mundo masculino tudo me daria
Do que eu quisesse ter

Que nada
Minha porção mulher, que até então se resguardara
É a porção melhor que trago em mim agora
É que me faz viver

Quem dera
Pudesse todo homem compreender, oh, mãe, quem dera
Ser o verão o apogeu da primavera
E só por ela ser

Quem sabe
O super-homem venha nos restituir a glória
Mudando como um deus o curso da história
Por causa da mulher.

No filme “Super-Homem”, após a morte inevitável de sua amada, ele reverte o


curso da história girando o planeta ao contrário para fazer o tempo voltar e salvar a
sua mulher amada. Gilberto Gil usa essa metáfora para ilustrar o casamento de sua
masculinidade com sua feminilidade: ele se iludiu de que ser homem bastaria, mas
assim ficou resguardado (reprimido) sua porção mulher. Quando criou coragem
suficiente para trazer a tona (des-reprimir) seus aspectos femininos, descobriu a
riqueza disso, abandonando a ilusão de ser super-homem para ser apenas homem, ou
seja, humano, que é o que na realidade podemos ser. Para se des-reprimir conteúdos
mentais (por exemplo fantasias infantis) que nos assustam, é necessário coragem,
que é uma característica considerada mais masculina do que feminina. Esse é um
bom exemplo de como a liberdade de oscilarmos mentalmente entre os pólos de
nossa psico-sexualidade pode ser uma experiência enriquecedora para quem puder
ousá-la.

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