Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
- Essa coisa de veado é doença! Uma pessoa normal não tem como se interessar
por outra do mesmo sexo! É uma vergonha! É um pecado! É um crime! Assim
esbravejava um paciente em início de análise. Depois, lembrando o filme “Máfia no
Divã”, ameaçou de morte seu analista, caso se tornasse um homossexual. - Como
não tenho esse poder, aceito te analisar, deita aí no divã! Respondeu-lhe o analista,
iniciando uma relação que acabaria por revelar que o pavor do paciente não tinha
nada a ver com sexo, mas com afeto (o medo era de amar).
Rotular, nas palavras de Nelson Rodrigues, “o amor que não ousa dizer seu
nome” de pecado, doença ou coisa parecida, é uma forma de afastar emoções
poderosas para bem longe da pessoa, de tal modo que ela acredite não ter nada a ver
com isso. Será que não tem mesmo? A própria criação de rótulos preconceituosos,
sob um olhar psicanalítico, revela relação com a questão. Quem desdenha quer
comprar, diz o ditado popular.
A palavra “preconceito” já diz tudo: trata-se de pré–conceito, ou seja, alguma
experiência que ainda não se tornou um conceito, é ‘pré’, é prematura, ainda não foi
pensada e conhecida pela pessoa, que talvez por medo de se conhecer melhor, tente
manter a experiência emocional afastada através de propaganda de idéias enganosas
(preconceituosas) para si mesma e para os outros. Quem não deve não teme, diz
outro ditado popular.
1
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto.
1
inacessível. Sentir amor por um outro homem foi equacionado por ele como
‘veadagem’, daí o seu pavor de se envolver afetivamente com o seu analista.
Podemos conjeturar que Ennis, o personagem do filme, nunca recebeu colo,
abraços ou beijos do seu pai, que talvez achasse isso ‘coisa de mariquinha’... Só que
toda criança nasce esperando contato afetivo de ambos os pais, e se eles não
correspondem a essa expectativa, fica um buraco aberto, uma vacância a espera de
ser preenchida. Daí a confundir afeto (amor) com sensualidade (sexo) não é um
passo tão grande para algumas pessoas, e a pessoa pode, inconscientemente, passar a
procurar amor onde tende a encontrar apenas sexo, iludindo-se momentaneamente de
que encontrou amor.
Mais sutilmente, esse tipo de confusão também pode ocorrer com características
da personalidade do indivíduo que poderíamos chamar de femininas ou masculinas.
Masculinidade e feminilidade são funções da personalidade humana, portanto não
tem gênero. São áreas da personalidade que tem características que, por analogia
com a anatomia (ou ações) do homem ou da mulher, convencionou-se chamar de
mais masculinas ou mais femininas, dependendo de suas características mais
proeminentes. Por convenção, se diz ser mais masculino atitudes penetrantes que
incluam ações físicas, força muscular, bravura, etc; enquanto se consideram atitudes
mais femininas o cuidar do outro com consideração, sensibilidade, paciência,
carinho, etc. Essas são meras convenções, pois é perfeitamente possível para um
homem ser sensível para perceber sofrimento em outra pessoa e cuidar dela
amorosamente, ou pegar uma criança no colo e amamentar-lhe sentindo muito prazer
ao fazer isso, sem deixar de ser homem; uma mulher pode ser perfeitamente capaz de
ser uma pessoa decidida, profissional potente, capaz de comandar equipes
complexas, demitir pessoas, e ganhar muito bem por tudo isso, sem deixar de ser
feminina. As pessoas ainda confundem essas coisas e acabam por se privar de viver
experiências que lhe seriam enriquecedoras.
2
ao invés de tornar o homem feminino ou a mulher masculina, pode tornar cada
gênero mais forte ainda.
Um dia
Vivi a ilusão de que ser homem bastaria
Que o mundo masculino tudo me daria
Do que eu quisesse ter
Que nada
Minha porção mulher, que até então se resguardara
É a porção melhor que trago em mim agora
É que me faz viver
Quem dera
Pudesse todo homem compreender, oh, mãe, quem dera
Ser o verão o apogeu da primavera
E só por ela ser
Quem sabe
O super-homem venha nos restituir a glória
Mudando como um deus o curso da história
Por causa da mulher.