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MAUD MANNONI

aprimeira
entrevista
em psicanálise
MANNONI, Maud. O que é então a entrevista com o psicanalista? In: MANNONI, MAUD. A primeira entrevista em psicanálise.
Rio de Janeiro: Campus, 1980, p. 91 - 95.

20* Ediçáo

CAMPUS
oQUE ÉENTAOA CAPÍTULO 4
ENTREVISTA COM O PSICANALISTA?

A Vulgarização das noções psicanalíticas corre o risco de dar uma imagem fal
Ca da entrevista com 0 psicanalista, se acreditarmos que essa entrevista possa redu
zir -se a um relacionamento dual em que o paciente se limita a projetar sobre oana-9
lista tudo o que ele carrega consigo sem saber o seu inconsciente. Nessa concep
câo, o papel do analista reduzir-se-ia a constatar o caráter imaginário- quase irreal,
dessas projeções - e a informar disso o paciente. Em suma, a análise limitar-se-ia a
uma redução do imaginário em nome da realidade.
Uma análise, porém, não se desenrola dessa maneira. Estamos em presença de
um disCurso quer se trate do discurso dos pais ou daquele do filho - que se pode
qualificar "de alienado'", no sentido etimológico do vocábulo - em vez de menti
ele não é o discurso do su
roso, como somos ten tados a dizer por imagem - porque
sairíamos desse discurso alienado se a ex
jeito, mas dos outros, ou da opinião. Não
psicológica do sujeito, de
periência analitica não fosse mais do que uma objetivação -que nem mesmo é de
um sujeito que continuaria a
apresentar uma máscara social
interprete o sentido dela.
le paraque o outro, o analista, Ihe freudianas, enfatizou tanto o discurso do
para voltarmos às fontes
Se Lacan, ,é
que a elaboração dos estágios do desenvolvimento instintivo'
Sujeito, mais do seu discurso e é pela sua
porqueo sujeito de certaforma incorpora a sua história ao
pensamento numa dialética. "E decifrando essa pala
seu
palavra que ele constitui o reencontrou alíngua inicial dos símbolos que
vive
Vra diz-nos Lacan "que Freud (hieróglifos da histeria, brasões da loucu
homeme da civilização
no sofrimento do
utiliza muitas
ra)". apreender, porque o homem
sempre é fácil de
FSSa palavra nem afogá-la.
mascará-la ou para Eu quis apontar
vezes a linguagem para examinarmos o que éuma Psicanálise.
para uma vulgarização
CSte nao é olugar conhecidas de um público habituado a
virtude do nosso
Posiçoes essenciais, mal Psicanálise. Quantos meses perdidos em
anplista e errônea da vulgari
em torno dessa
ítico-médico-pedagógica desenvolveu-se
psicanal
Toda uma literatura
1

zação errõnea da Psicanálise.


2 La Psychanaly
se. Vol. I, PUF.
La Paroe et le Langago.
91
"medo da transferência". "Prometi a mim
mesmna'",
comigo isso não seria assim, não me deixarei envolver".disse-me uma estudante, "'que
"Espero", disse-me outro, "que a senhora seja
mãe, meu irmão e a mulher de minha vida'". sucessivamente meu pai, minha
E o paciente, na sua conduta e no seu
discurso, vai libertar em primeiro lugar
esse folclore psicanalítico. Ele precisará de
do tempo para compreen der que a sua ver
da de se
situa alhures, e nemn sempre é fácil para um analista poder
Ciente.
restituí-la ao pa
Se aborda essas noções, é porque a entrevista
efetuada numa primeira consul
ta, tanto com acriança como com os pais, traz a marca da minha escuta psican alíti
ca. E em função de certa escuta que uma mãe muito segura,
equilibrada, deixou es
capar certo dia, no fim de uma consulta, esta palavra-chave: "Essa criança mne des
gasta, não posso mais com ela, não agüento mais esse papel de mãe dona-de-casa, eu
gostaria de trabalhar".Essa palavra não é abandonada em momento algum. Ela apa
rece freqüentemente depois de uma verbalização do exame da criança feita por mim
aos pais. Odiálogo que então mantenho com eles éuma continuação da entrevista
inicial. Muitas vezes essa entrevista teria de ser inteiramente repetida, de tal forma o
primeiro discurso dos pais é, antes de mais nada, o discurso dos outros. O sofrimen
to deles somente pode ser expresso na medida em que podem assegurar-se de que
são ouvidos. Por que uma criança não seria ""desgastante"? Por que uma mãe não
estaria tão bem na fábrica ou no escritório quanto na cozinha? Essas perguntas só
podem ser feitas na medida em que o Outro não se torne educador ou juiz, na medi
da em que o Outro, enfim, aceite que brote uma verdade não necessariamente con
forme à sua.
"Eu não disse aninguém que esse filho não éde meu marido." Se essa miuiher
pôde fazer-me essaconfissão, essencial enquanto confissão dela própria, e não como
fato em si, perturbador para a criança, éporque ela sabia que eu não daria uma res
posta mutilante para o seu ser. Não que eu procure dirigir os pais, não é es_eo inte
resse deles nem oda criança. Mas tenho o cuidado de respeitar "confissões' que
têm um sentido, não porque pertençam a outro sujeito, mas porque reconstroem, a
partir daí, o sujeito de algum modo. O que para uma criança é perigoso é a mentira
da mãe a si própria. "Eu sabia que essa criança não era de meu marido, mas não
queria sabé-lo.'" Estar consciente disso e também assumi-io plenamente no seu des
tino de mãe e de esposa.E porque isso Ihe diz respeito que é prejudicial que ela pro
ceda como se isso não Ihe dissesse respeito. Acriança é sempre sensivel a essa espe
cie de mentira.E sensível, aliás, atudo o que nâo se diz.
"Muito jovem", diz-me uma criança de sete anos, a quem ninguem havia ainda
cantos.
falado do divórcio de seus pais, "eu era arrastado pelos ares, por todos os
Quando estava bem instalado, tinha de ir para outro lugar. Eu era arrastado, ah!...
minha mãe prometia vir, e não vinha. A princípio, eu a chamava, depois compreend
que isso não era muito n ormal."
Sua mãe estava drogada, seráque o pequeno não sabia disso? ia àescola, tal
"Mamãe estava sempre deitada, se fazia de doente. Eu nunca
três anos, faço por ela os tra
vez uns 15 dias por ano. Desde o tempo em que tinha
balhos da cozinha e da casa.

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Nem toda criança tem a
omória a lembrança do que a oportunidade
marcou.
de guardar de um modo tão
E de perder a claro na
pode nascer aneurose. lembrança dessas coisas que
Nas mães de crianças
psicóticas, a
hadora às vezes só é dada apóS algum confissão de uma situação familiar pertur
acidente
marido descrito como "gentil", "de admirável espetacular, como um suicídio. 0
natureza diferente. "Só agora éque- vejo comodedicação'", aparece depois, com uma
ele eraum tirano, batia-me, ofendia
me. dizia-me sem parar que euo enganava, eu não ousava mais sair, e o
menino nem
sequer ousava chorar mais, de tal modo ficava imobilizado diante dele, como uma
estátua de mármore."
Num filme recente, mandou-se cada um dos atores de um drama sentimental
representar a sua história, dando assim duas visões diferentes de um acontecimento
comum. Uma situação familiar é geralmente vivida por cada membro da família de
um modo que lhe é pessoal. Vivem juntos um do outro e efetivamente cada qual na
da sabe sobre o outro. Dividir os talheres, um teto, prazeres, uma cama, parece que
isso basta, jå que poucos seres procuram saber de que é verdadeiramente feito aque
le com quem dizem "viver'". Talvez esteja aí a verdadeira forma de pudor:o ser ínti
mo de cada indivíduo não é dado tão facilmente em partilha, a começar por si pró
psicanalista é mais reveladora nas dis
prio. Eis por que a primeira entrevista com o
conteúdo. Esse conteúdo e isso por
torções do discurso do que no seu próprio isso
vezes nos surpreende varia de sessão para sessão, de analista para analista, e
suficientemente, porque a verdade desse discurso
acontece, jamais o repetiremos através de certo
no-lo lembra Lacan) é no Outro que elase constitui,sempre
(como o contrário do que digo ao
digo coisas que são
engodo. "Écurioso, percebo que Ihe
Doutor.'"
Contrário, por quê? tinha
surpresa, e disse em primeiro lugar o que julgava que
- Por que fiquei refazer e de confessar a mim
mesma o que eu pre
tempo de me
de dizer, tive agora
para mim mesma. comuni
feria manter escondido aquelas que percebem com tanta nitidez que
No entanto, raras são
diferentes... ser que se
cam dois discursos acaba às vezes se esquecendo do
filho, amãe própria certo
Ao viver com o seu cuidado. Falta-lhe em relação a si
deve ser determinado estilo de
esconde atrás do objeto que permitiria às vezes
espantar-se com
cada
distanciamento que lhe dona-de-casa, ela sente-se tranqüila quando
universo
çomportamento. Como perfeita filhos desempenham certa função nesse
lugar; marido e tendo
objeto estáno seu evasão. Acontece que a criança, não
possibilidade de objeto que
fechado que excluí uma evas o. Submetida àmãe como
na doença essa a mãe nada pode
melhor escolha, procura Ihe dáa entender ao mesmo tempo que
criança
deve ser cuidado, a ter desejos exteriores
a ela.
ela, nada salvo
fazer por dessas mães:
Escutemos os depoimentos tem cura. Os médicos são acordes em
asmaque não ao mundo. Dizia aos
"Minha filha sofre de uma quando essa menina veio
subconsciente dela. Chorei proporcionar-lhe a imensidão
dizer: é o em mim para
nunca teria bastan te
meus botões que
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de coisa que eu desejava ihe dar. Ela reonarae orer, tur, elz me faza
ra a
mim que tinha tanto cuidado con ela Eu a oava perto e rranta
vigiála, e ela não dormía. Ah' quanntz lagrina derrarriadas pr elaE erta, es a
um dia ela se pos a tossir, a serntire oprirni da. Mee dia, ana eritrasrelz D
ram-me aue n-o era uma asma verdadeira, apenss um mal estar respir athr a Derarr
Ihe cortisona, não tínha o menor efeito. A nenina torna18 tIerte Aanr
omeu trabaiho para dedicar me inteirarmente a ela Derde então tudo foi i a t
Disseram-me um dia Éuma doente grave, está corm a respiraçio biogetaem tr
da a parte inferior do tór ax. "Sei que nunca vo ficar b08,minha fiita re dia
i5so me pÑe louca e eu me apresso ern consuitar outro doutor. Meu maridoeeu de
xamos de ter uma vida própria. E inevitável que fiquerno o ternpo todo preitand
a sua respiração.
Há realmente um médico que ficou urpreso o verificar que, de rmaneira ine
perada, quando a gente não estáde olho nela, a menina passaa respirar narnairrer
te Não acredito nisso. Temos de evitar as cóleras, as contrariedades, o iúme de ru
nha filha: "Você éminha marnãe", diz-me ela, "não quero dividir vocé com nin
guém". Tenho de ficar atenta, pois amenina não gosta que eu me ocupe do pai de
la. Ela, de resto, Ihe diz: "Para mamãe vocéterm palavras carinhosas, e para mu,
nada". Minha vida está estragada. Toda hora estou pensando nos seus brônquios,
quero aplicar eu mesma os supositórios, cercá la de cuidados, mas não hájeno. Por
outro lado, venho ve-la, mas vocé, como os outros, nada poderáfazer.
-A esse discurso que, em alguns momentos, tem ressonáncias poéticas, o que
podemos acrescentar? Ele está marcado, sublinhado pela própria neurcse da mãe.
Antes mesmo de nascer, essa criança éa sede do fan tasma materno, essa recessidade
de amor imenso porventura também não evocaa angústia, o perigo do asfixiamento
mais completo? Essa criança está de tal forma incorporada àmãe que esta sabe que
ninguém poderá fazer nada. De fato, ela não deseja que seja de outra forma Carne
da sua carne, sofrimento do seu coração, mortificação íntima, é preciso que seu fi
Iho permaneça assim dentro dela. Transtornada pela idéia de que possa ser assim, a
Sre Robertin me diz: "E cedo dermais para que eu possa ihe dar essa criança, quero
recuperar o meu proprio domínio, depois virei sozinha. Não ihe falei das minhs
angústias, tinham desaparecido com a doença de minha filha, é tudo isso que está
arriscado a reaparecer, tenho medo. E horrível a idéia que me ocorre de repente, é
absurda, écomo se alguém me pedisse que escolhesse entre a minha morte e a de
minha filha. Que contra-senso, não émesmo? Quando a gente fica tanto tempo
Ssim em casa, acaba por desarrazoar, por perder todo o bom-senso."
Ora, se temos de perder alguma coisa no confronto com o analista, é certa
mentira, através desse abandono, o sujeito recebe de volta, como verdadeira dádiva.
o acesso àverdade.
Limitei-me àprimeira entrevista. Dixo portanto em suspenso a sequ ncia das
sessões, insistindo, porém, no seguinte: quando os pais fazem uma consultaem no
ne do seu filho, cabe ao analista apurar,para além desse objeto trazido, osentido
do seu sofrimen to ou da sua perturbação, na própria históoria de ambos os pais.
Empreender uma psicanálise da criança nem por isso obriga os pais a trazer à baila
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própria vida. E no
asua início, antes de a criança
convém pensar no lugar que a criança entrar na sua
ocupa no fantasma própria análise, que
é necessária ppara que os pais poSsam aceitar que,
em parental. A
precaução
ao seu
destino. Essa
autonomia, uma criança sadia seguida, ofilho fique entregue
meio de crises caracteriais, de
oposições arranca-a da necessidade por
A espantosas.
erianca neurotica, essa, paga esse desejo de
orgânico mais sério. Certas aTecçoes (epilepsia) evolução da sua pessoa até no
vadas pela ansiedade do meio social, encontram-se desse modo agra
médico. Mãe e filha têm então de ser comprometendo
o sucesso de um
escutadas no terreno psicanal ítico,tratamento
a evolução
de uma só é possi vel se pode ser aceita pela outra.
Essa criança", diz-me amãe, "devorou toda a nossa vida pessoal,ela
cai, não
podemos deixála sozinha. Ela não sabe utilizar as mãos. Contrai-se., Foi muito afe.
tada. Não podia escrever. De tanto ficarmos atrás dela, pusemo-nos os três afazê-la
progredir, até que conseguimos. Ela vive num mundo só dela. É uma responsabili
dade tê-la sob nossos cuidados. Deveriamos amarrá-la. Estousempre com a idéia fixa
de que Ihe vai acontecer um acidente, tenho medode que ela morra, fico assim o
tempo todo. Ela parece ánquilosada, com essa cabeça para a frente, sempre. E um
pesadelo, essa cabeça arrasta o corpo dela. Não posso ser amável. Vejo-me obrigada
a ser dura para acordá-la. Ela passa o tempo todo
caindo. Pensei em fazê-la vestir
Ihe dou não é fácil. Digo
um espartilho. Temos de fazer alguma coisa. A vida que
senhora: o que ela precisa éde um espartilho de ferro. Meu marido me
Ihe, minha
que estou ficando doente. E assim, oque éque a gente pode fazer? Quando
afirma 15 em 15 minutos acontece
gente pode fazer, de
ela cai, eu lhe bato. O que éque a ainda não
Depois de tanto tempo, é de fato surpreenden te que ele
Ine alguma coisa.
se tenha matado. " convulsivas, n¥o teve o menor problemna no
por crises
ESsa criança, estragada você a prender, veráque ela
cai."
guer admiti-lo: ""Se
internato. A mãe não deixa transparecer aqui asua própria angus
entrecortado da mãe acriança que esta ex
O discurso certeza sobre se é
quase assass ina. Ainda não se tem plena como que impelida a fazer cair o
é
o
ou se é a mäe que
posta a un impulso de queda,
corpo pelo pânico mais completo. com a sua
no seu atrav s do Outro,
filho, amável, gentil, habitado é um encontro,
seu sintoma. O
que
entrevista com o psicanalista criança a apresenta no
A
Quanto a essa mentira, a quanto tudo o que não é dito
própria mentira. real
faz mal a essa criança não é tan to a situação
ser traduzidos em palavras, quantas
dramas que não podem mas pelo qual a criança sempre
nesse não-dito, quantos equilíbrio aparente, permitir, através do reexame de
loucuras disfarçadas por um está para pertencer a
tragicamente. Oanalista ali um caminho que Ihe deve
tem de pagar por
criança enverede
uma situação, que a
título exclusivo.

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