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Análise Psicológica (2007), 3 (XXV): 331-342

Masculino e feminino: Alguns aspectos


da perspectiva psicanalítica

JOSÉ DE ABREU AFONSO (*)

O MASCULINO E O FEMININO NA TEORIA masculinos e femininos. Esta ideia, introduzida


CLÁSSICA DO DESENVOLVIMENTO por Freud sob influência de Wilhelm Fliess
PSICOSSEXUAL (Laplanche & Pontalis, 1967), defende-se a partir
de fundamentos biológicos – anatómicos e embrio-
Freud sublinhou a variedade de significados dos lógicos – ou dos processos de identificação e das
conceitos masculino e feminino. No sentido bio- posições edipianas. Procedendo do fenómeno uni-
lógico referem-se aos caracteres sexuais primários versal da bissexualidade, Freud falava do conflito
e secundários, que por si só não explicam o com- inerente a este facto, resumindo: «O sexo (...) que
portamento psicossexual. domina na pessoa, teria recalcado no inconsciente
No nível sociológico, masculino e feminino, mas- a representação psíquica, do sexo vencido» (op.
culinidade e feminilidade não são apenas dados da cit., pp. 88-89) – a inveja do pénis nas mulheres,
natureza, mas sim um trabalho da cultura sobre a atitude feminina nos homens.
esses dados, ou seja, são entidades reais, simbólicas Por outro lado, este conceito implicava uma
e imaginárias. apreensão clara da masculinidade/feminilidade,
No nível psicossexual, estão imbricados os dois que para Freud teria um significado diferente –
níveis anteriores, particularmente o social. Não mas muitas vezes misturado – aos níveis bioló-
são tanto os papéis funcionais, os desempenhos gico, sociológico e psicológico.
sociais a avaliar a masculinidade/feminilidade, Em “A Feminilidade” (1933), considera que
mas sim os fantasmas subjacentes, reveláveis pelo ser homem e masculino são as qualidades naturais
processo analítico. que todos os humanos valorizam. Pelo contrário,
A concepção da bissexualidade constitucional ser mulher e feminina, seria vivido como desva-
implicaria que em todo o ser humano houvesse lorizador. Havendo uma bissexualidade inata, como
uma síntese, desejavelmente harmoniosa, de traços refere em Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexua-
lidade (1905), pode haver um desenvolvimento
normal ou patológico.
Apesar de reconhecer a sua importância, Freud
não toma uma posição definitiva em relação à
(*) Instituto Superior de Psicologia Aplicada, Lisboa. questão da bissexualidade. As reservas teriam a
Membro da Sociedade de Psicanálise. ver com a sua origem biológica, base da determi-

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nação do conflito, que não ajudava a explicar QUESTÕES RECENTES NA DISCUSSÃO
porque é que em indivíduos dos dois sexos, existem PSICANALÍTICA DO MASCULINO E DO
pulsões masculinas e femininas, podendo ambas FEMININO
ser recalcadas, independentemente do sexo bio-
lógico.
Nesta perspectiva, apesar da ameaça da castração, A Identidade de Género Nuclear e a Proto-fe-
o rapaz nasce melhor ‘equipado’ que a rapariga, minilidade
que não correndo o risco de ser castrada, o foi pela
sua condição, desde o início da vida. Se o género é facilmente definível, a identi-
Sendo a mãe o primeiro objecto de amor, o dade do género liga-se a um comportamento psico-
rapaz nasce heterossexual. Com genitais visíveis, logicamente motivado. Quer isto dizer que sexo
uma identidade de género nuclear inequívoca, e género podem não ser coincidentes. Stoller
estaria mais livre de conflitos. Mas, a ansiedade (1964, 1968, 1979), um dos autores que revisita-
de castração suscitada pelo receio do pai rival, ram e questionaram as teorias clássicas, cria a
ou pela observação das mulheres, sem pénis, pode expressão identidade do género. Aqui diferencia-se
bloquear um percurso sem sobressaltos em a masculinidade e feminilidade que existem em
direcção à heterossexualidade. A deslocação do todos os indivíduos, da qualidade de ser homem
desejo pela mãe e a tomada do pai como modelo ou mulher, biologicamente. A identidade do género
de identificação são as estratégias que ajudam o corresponde a um comportamento de génese psi-
rapaz a chegar à fase genital masculino e hete- cológica que apesar de se poder associar à quali-
rossexual. dade biológica da pessoa, pode apresentar tendência
A feminilidade por seu turno só é assumida inversa ou mesmo inversão, nos casos dos homens
após um percurso de luta. A ausência de um ou das mulheres que vivem de modo oposto ao
pénis faz a menina sentir inveja, que de acordo do seu sexo. Fala de uma massa de convicções
com a forma como é manejada determinará a sua que, para além do seu fundamento biológico, se
identidade. Em excesso, pode levar ao desenvol- formam a partir das atitudes parentais, mais ou
vimento de qualidades masculinas para o substi- menos semelhantes às da sociedade, e filtradas
tuir, ou à obtenção de um através da fantasia. pela personalidade do indivíduo.
Pode sentir-se inferiorizada, ficando passiva e Stoller sublinha a crença de Freud de que ser
masoquista ou confundindo o seu clítoris com um homem e masculino é superior à qualidade de ser
pénis defeituoso, não deslocando o erotismo para a mulher e feminina e contrapõe a esta linha de
vagina. Se tudo correr bem, no entanto, ela vol- pensamento, a teoria do género nuclear. Como
tar-se-á para o pai e terá o desejo de ter um bebé, anota em 1977, Freud deixa um primeiro estádio
orientando-se heterossexualmente. Precisa ainda da sexualidade feminina sem explicação: do início
de perdoar a pai por a obrigar a adiar o bebé, e da vida até à descoberta da ausência de um pénis.
identificar-se com a mãe. Torna-se finalmente Ora, se o primeiro estádio for diferente daquilo
feminina. que Freud descreve, isto é, se uma mulher se sentir
As diferenças anatómicas seriam motivo de firme e legitimamente mulher, então é necessário
conflito entre rapazes e raparigas, por revelarem rever aquela perspectiva da psicologia feminina.
reciprocamente as ameaças ligadas ao processo Tal como outros autores (Horney, 1924; Jones,
de desenvolvimento psicossexual. Assim, numa 1927; Zilborg, 1944) que refere, Stoller procurou
perspectiva clássica do desenvolvimento, mascu- perceber esta lacuna deixada por Freud. Fala de
lino e feminino são só percebidos após as posições um núcleo de identidade do género, referindo-se
activo/passivo e fálico/castrado, que seriam a base à percepção que temos do nosso sexo, de mascu-
da construção da identidade sexual. Esta ideia foi linidade ou de feminilidade. É algo que cabe num
alvo de profundas revisões como veremos a seguir. conceito mais abrangente de identidade do género,
o qual representa a mistura de feminilidade e mas-
culinidade inerente a todas as pessoas. A identidade
do género é uma convicção do indivíduo sobre o
seu ‘self’ e sobre o seu papel.
O núcleo de identidade do género é o primeiro

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a desenvolver-se e é a base a partir da qual se criam homossexual. A questão é que para aquele autor
e desenvolvem as relações sociais. Resulta de a feminilidade não é patológica por definição,
uma ‘força biológica’, da atribuição do sexo no colocando, pelo contrário, as mulheres, na posição
nascimento, da influência parental, de fenómenos vantajosa de se identificarem desde o início com
bio-psíquicos do tipo da aprendizagem, do desen- alguém do seu sexo. Apesar do potencial homos-
volvimento de um ego corporal: as sensações sexual, o seu percurso parece oferecer menos
físicas que definem as dimensões físicas e psí- riscos. Para o rapaz a questão será preferir ter, e
quicas do sexo do indivíduo. não ser uma mulher. Deste ponto em diante, irão
No seu estádio mais inicial de desenvolvimento, absorver da cultura o refinamento da masculini-
a masculinidade e feminilidade é o sentido do sexo dade e feminilidade cujos fundamentos estão cons-
da pessoa, da qualidade de ser homem ou ser mulher. truídos e determinam todo o desenvolvimento pos-
Primeiro passo na identidade do género, a partir terior. Efeitos de aprendizagens e modificações
do qual a masculinidade e feminilidade se desen- resultantes de conflitos e frustrações, com a inter-
volvem, a identidade de género nuclear é a con- venção de outros que não os pais, modelam os
vicção de que a designação do sexo do sujeito foi comportamentos masculino e feminino. Os con-
correcta, anatómica e psicologicamente. Por volta flitos pré-edipianos e edipianos são parte deste
dos três anos de idade está tão firmemente desen- quadro.
volvida que é praticamente impossível alterá-la. Assim, deixamos de ver a feminilidade como
Ela não radica, para Stoller, num papel ou nas resultado de um homem fracassado e a mascu-
relações objectais. Resulta de factores biológicos, linidade como um estado natural que deve ser pre-
da designação inequívoca do sexo no nascimento, servado. Aqui, pelo contrário, trata-se de uma
da influência das atitudes dos pais, e em parti- conquista. Desafiando a posição freudiana da supe-
cular da mãe sobre o sexo do bebé, e da inter- rioridade biológica e psicológica dos homens, as
pretação que ele faz destas atitudes. Resulta ainda mulheres e a feminilidade teriam aqui um papel
de fenómenos bio-psíquicos precoces ligados ao principal. A primeira identidade do género é a fusão
manejamento do bebé, formas de aprendizagem com a mãe. Trata-se de uma forma de identificação
que se pensa modificarem permanentemente o pré-verbal que desenvolve a feminilidade na rapariga,
seu cérebro e o seu comportamento (v.g. na trans- mas se pode tornar um obstáculo para o rapaz,
sexualidade). Finalmente, do desenvolvimento de que tem de o ultrapassar para crescer como pessoa
um ego corporal, as sensações genitais que quali- separada e masculina. É a identidade do género
tativa e quantitativamente ajudam a definir dimensões masculino que corre mais riscos, e não a feminina.
psicológicas que confirmam o sexo atribuído pelos Os estudos da identidade do género em diversas
pais. Estes factores só se observam quando o desen- culturas dão interessantes pistas que vão ao en-
volvimento da identidade do género não é normal, contro desta proposta (Badinter, 1992; Stoller, 1993;
já que, habitualmente, todos contribuem para a sua Almeida, 1995).
formação. Continuando com uma perspectiva revisionista,
Stoller retoma o processo de desenvolvimento prossigamos com novos contributos à teoria clássica,
e, admitindo embora que o primeiro amor do rapaz dados por autores contemporâneos.
é heterossexual, salienta um estádio – precedendo
a relação objectal – em que o rapaz está fundido Desenvolvimento Feminino: novas abordagens
com a mãe. Há portanto uma proto-feminilidade
em ambos os sexos. Tipicamente em qualquer Dujovne (1991) faz uma resenha sobre as teorias
cultura o homem teme a ternura e a intimidade, o psicanalíticas, clássicas e revisionistas, acerca do
que parece estar ligado a um receio e, simulta- desenvolvimento feminino precoce. Como vimos,
neamente, anseio de voltar à fusão e à simbiose. na teoria clássica, o género é determinado biolo-
Nas mulheres muito masculinas terá havido uma gicamente. A rapariga e o rapaz seguem o mesmo
situação oposta à dos homens muito femininos: a processo de desenvolvimento até aos três anos. Só
interrupção abrupta do estádio de simbiose com na puberdade as raparigas tomariam consciência
a mãe. De qualquer modo, Stoller (1993) concorda da sua vagina. Um novo desenvolvimento do género
com a teoria de Freud, a partir daqui: o primeiro começaria na fase fálica tardia.
amor do menino é heterossexual e o da menina Retomemos então o desenvolvimento feminino:

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pelos três anos a menina toma consciência das dade primária (Stoller, 1977) inata, a que atrás
diferenças sexuais, que a preocupam, indo orga- nos referimos, e a de uma linha desenvolvimen-
nizar a sua feminilidade a partir de áreas con- tal feminina.
flituais como o complexo de castração, a inveja Se é verdade que na teoria clássica, conflitos e
do pénis, o complexo de Édipo e a mudança da traumas são os grandes organizadores psicoló-
mãe para o pai, consequência do desapontamento gicos, foi-se verificando que as meninas se sentiam
por não possuir um órgão com o dele. Isto fá-la bem dentro do seu género. Os revisionistas vieram
rejeitar a mãe, sentida como genitalmente inferior, salientar a importância dos aspectos desenvolvi-
virando-se para o pai à procura do pénis. Entre- mentais não conflituais, na aquisição da femi-
tanto renuncia à masturbação clitoriana. Como o nilidade, considerando que, muitas vezes, a visão
seu pai não lhe dará o que pretende, este desejo é freudiana tem uma óptica psicopatológica, necessa-
substituído pela ambição de ter um bebé. A rapa- riamente não universal, como muitas vezes é pre-
riga vai de uma fase fálica activa para uma edi- tendido. A teoria freudiana do desenvolvimento
piana passiva. Os maiores organizadores da femi- da feminilidade e da masculinidade baseia-se na
nilidade seriam a inveja do pénis e a relação com aprendizagem resultante de frustração, conflito e
o pai. Após o quinto ano, a rapariga começa a trauma, sua ultrapassagem ou elaboração. Esta nova
mudar o erotismo do clítoris para a vagina e só perspectiva, abarca uma aprendizagem livre de
na puberdade há um sentido completo da femi- conflitos. Aqui está incluído o desenvolvimento
nilidade. A mulher, o feminino, seria na teoria da feminilidade, em que a aprendizagem pode
clássica, passiva, narcisista, masoquista, com um ser egossintónica, baseada em componentes nas
superego mais frágil que o do homem. quais a rapariga se identifica com a mãe. Não se
As articulações macho-masculino-activo-agres- nega, no entanto, um segundo tipo de feminili-
sivo-dominador e fêmea-feminina-passiva-maso- dade resultante do conflito e da inveja edipiana,
quista-submissa têm merecido críticas (Shaffer, e que produz uma feminilidade rica e complexa.
1977). Esta formulação, com a estrutura feminina Actualmente, o estudo do desenvolvimento femi-
inferior, baseada na inveja do pénis, passividade nino está também atento aos factores que normal-
e masoquismo, foi tomada por Blum (1977), que mente o determinam tais como as variáveis cogni-
considerou a questão do masoquismo. Para ele, tivas e relacionais, as características dos pais, a
o masoquismo é o resíduo de um conflito infantil aprendizagem, identificação, a representação corporal
não resolvido e não, algo essencialmente feminino e outros dados da realidade.
(apesar da mulher estar mais predisposta a ele) Ao contrário do que Freud pensava, há uma
ou essencial do carácter feminino maduro. A femi- experiência e uma imagem corporal feminina
nilidade não é a resignação masoquista à inferio- desde muito cedo, bem como sensações corporais
ridade imaginada, nem a compensação para a falta e consciência das estruturas anatómicas genitais.
da castração. Esta consciência, adquirida por sensações vagi-
As perspectivas actuais da psicologia feminina nais, auto-estimulação ou erotismo clitoriano, é
enfatizam a identidade sexual e de género, imagem um dos grandes organizadores da feminilidade. É
corporal e auto-representação, resposta sexual e uma consciência muito precoce, entre os dezasseis
maternidade empática. e os vinte e quatro meses, quando a identidade
Muito do que se reviu na teoria freudiana clássica corporal fica bem estabelecida. A masturbação é
sobre a sexualidade feminina precoce foi baseado uma actividade muito prematura, e não é aban-
na observação directa e crianças (Kleeman, 1977). donada na fase fálica ou no período de latência,
Algumas revisões da teoria freudiana, nas últimas dando aos órgãos genitais um papel central na
décadas, ao invés de partirem de inferências do feminilidade em desenvolvimento. A teoria de
processo analítico, basearam-se em observações, Freud que na latência as raparigas abandonariam
na prática clínica, ou em descobertas de outras a masturbação clitoriana e desenvolveriam a inveja
disciplinas, como a embriologia que nos mostrou do pénis para se tornarem mulheres maduras, foi
que um embrião é feminino desde as seis semanas posta em causa a partir da observação directa e
de gestação. da experiência clínica com crianças e mulheres
Assim, à ideia de uma masculinidade primária, adultas (Clower, 1977). Também a clássica visão
vem, como já vimos, opor-se a de uma feminili- do clítoris como um pénis incompleto foi aban-

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donada por muitos psicanalistas, apoiados pelos complexo de castração poderia não ter origem no
estudos da sexologia clínica, e argumentando que facto de o clítoris ser um órgão menor ou inferior,
aquele forma uma unidade com a vagina na expe- se comparado com o pénis. O não reconhecimento
riência corporal feminina (Dujovne, 1991). A teoria pelo meio daquilo que a rapariga tem – vulva e
da transferência clítoris-vagina, não encontrou clítoris – pode, isso sim, contribuir para a sua
evidência anatómica nem fisiológica. Aliás, a dis- dificuldade em se tomar uma mulher adulta sexual-
tinção entre os dois orgasmos não existe, e parece mente completa.
ser psicológica a preferência de muitas mulheres Nalgumas meninas, uma maior identificação
pelo orgasmo vaginal (que pode, inclusivamente, com a mãe é a forma de lidar com o problema.
ser menos intenso que o clitoriano (Moore, 1977)). Se as relações com os pais são boas, se não nascem
A ansiedade da menina acerca de ser fêmea e irmãos homens neste período, se não há problemas
se tornar feminina é semelhante à do menino acerca prévios com a auto-estima e a imagem corporal,
de ser macho e se tornar masculino. Quer num quer a inveja do pénis pode ser um fenómeno conflitual
noutro, encontramos o desejo e o medo da união secundário, eventualmente reflectindo uma identi-
simbiótica com a mãe. ficação negativa com a mãe. São vários os signi-
A questão da identidade não se coloca apenas ficados da inveja do pénis: este pode simbolizar
na fase fálica: a separação-individuação, a auto- o poder, a liberdade e a segurança, ou, o seio, o
nomia, a capacidade de estabelecer uma relação bebé, o cordão umbilical. Assim teríamos o sintoma
heterossexual adulta é um processo longo que tem como representante de ansiedades em relação aos
início com a relação precoce mãe-bebé, e talvez genitais, ou exprimindo medo da feminilidade, ou
nunca chegue ao fim. É outro dos aspectos desva- um desejo de triunfar sobre a mãe, ou ainda uma
lorizado na teoria clássica: o papel da mãe pré-edi- defesa contra a inveja em relação a ela, ou uma
piana. Os revisionistas vieram defender que esta é forma de separação. Pode estar relacionada com
mais importante que o pai edipiano para o desen- o desejo de satisfazer a preferência do pai ou com
volvimento do género. Por exemplo, no período o desejo de possuir algo que diminua a sua depen-
da separação-individuação, ela desempenha um dência dos homens. A grande diferença para os
papel fulcral na diferenciação e manutenção de um revisionistas é que a inveja do pénis não é algo
sentido do “self”. Trata-se de uma fase de consi- incontornável. Quando aparece, trata-se de um
deráveis conquistas do “self”, e dos seus objectos, sintoma, e pode ser tratado como qualquer outro
de maturação de processos ligados à linguagem, sintoma.
ao teste da realidade. Uma fase em que o desen- Grossman e Stewert (1977) pegaram também
volvimento cognitivo vai a par de aspectos libi- no tema da inveja do pénis e consideraram duas
dinais e do desenvolvimento do género, ligados à fases neste fenómeno: primeiro mais cedo, sob a
fase genital precoce. A identidade do género, a forma de um traumatismo narcisista, que em con-
consolidação da identificação com a mãe também dições ideais contribui para o desenvolvimento
se faz neste período. psicossexual ou, caso contrário, sem perturbação
O tema da inveja do pénis, que na teoria freudiana de base narcisista, será um dos muitos traumas nar-
é um dos grandes organizadores da feminilidade, císicos. Numa segunda fase, a inveja do pénis repre-
não foi posto em causa por muitos autores contem- senta um esforço regressivo para resolver conflitos
porâneos. Questionada foi, a sua importância e edipianos.
significado. Por outro lado, falou-se de uma inveja O complexo de castração feminino, é visto
sexual em ambos os sexos. Lane (1986) considera hoje por muitos autores, mais como uma metáfora
a possibilidade de os rapazes possuírem uma inveja de dano corporal, cuja importância e significado
da vulva semelhante é inveja do pénis da rapariga. varia de menina para menina. Como resposta à
Ela seria parte da sua evolução normal, na desco- consciência das diferenças corporais algumas reagem
berta das diferenças anatómicas. Haveria assim com surpresa, outras com ansiedade. Numa menina
um complexo geral centrado na inveja do órgão que se sentiu valorizada pelo pai, que teve uma
genital do sexo oposto. boa e securizante relação com a mãe, o natural é
A falta de designação para os órgãos sexuais que se sinta confortável com a sua feminilidade,
externos da rapariga pode contribuir decisivamente pelo que a descoberta das diferenças sexuais pode
para a inveja do pénis (Lerner, 1977). Assim, o não constituir um trauma. Talvez faça mais sentido,

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para perceber a psicologia feminina, reflectir sobre assumiu que a sua compreensão do Édipo femi-
os pensamentos ligados à gravidez, ao parto, a nino era incompleta. No rapaz o complexo seria
relação sexual, do que centrarmo-nos na ansiedade consequência da biologia, enquanto na rapariga
de castração. estariam em jogo aspectos de prejuízo narcísico,
Além disto, nem sempre a entrada no Édipo se resultantes do complexo de castração. Esta visão
faz por esta via. Assim deverá haver outra força, de predisposição biológica e de género, não é
que não só a castração, que leve a menina ao pacífica, como vimos em Grossman e Stewert
complexo de Édipo. Para Grossman e Stewert, (1977).
esta força é uma disposição biológica e consti- O desejo de ter um bebé na primeira fase
tucional para a heterossexualidade. Liga-se aqui genital pode não derivar do desejo de ter um pénis,
a diferença da libido (pré-programada para o acon- conforme sugerem Parens e colaboradores (1977),
tecimento), a modificação biológica da libido não a partir da observação de alguns meninas normais.
diferenciada em libido heterossexual (de libido Nalguns casos, aquele desejo é o primeiro padrão
pré-genital a libido proto-genital). Este processo a aparecer. A ambivalência e a rivalidade com a
seria facilitado ou inibido pela experiência pós-natal. mãe podem não resultar do complexo de castração,
Estes autores discordam da formulação de Freud, mas surgir concomitantemente com ele.
que pensa que o complexo de Édipo no rapaz está Esta nova perspectiva sobre o desejo de ter um
pré-programado para emergir na altura adequada, bebé, difere da que o via como um pénis substi-
e que na rapariga é despoletado pela experiência tuto. O desejo de ter um bebé é muitas vezes anterior
de comparação fálica. Não crêem que o caminho ao desejo de ter um pénis. A sua observação a partir
para a heterossexualidade seja a reacção a um do primeiro ano de vida, quer em rapazes quer
trauma. Haverá, quer nos rapazes quer nas rapa- em raparigas, foi interpretado como um processo
rigas, uma “heterossexualidade primária”, cons- de identificação e a expressão de um ego maternal
titucionalmente pré-programada. Não seria, do ideal. Depois, pode ser a manifestação natural da
seu ponto de vista, provável, que a preservação fase genital, exprimindo a identificação com a
da espécie fosse assegurada por uma experiência mãe como mulher, e a relação heterossexual com o
cognitiva, afectiva ou dinâmica. pai como homem.
A ser verdade que a mudança da rapariga para Mais tarde, quando ocorre, a gravidez repete e
a heterossexualidade fosse motivada pelas suas organiza todas as fantasias arcaicas da gravidez
pulsões masculinas frustradas e pela inveja do da criança. Não é um estado pré-genital ou fálico,
pénis, sem que o seu superego se tornasse autó- parecendo mais uma nova fase interno-genital no
nomo, com um sistema de valores internalizado desenvolvimento feminino (Kestenberg, 1977).
(tal como ocorre para os rapazes), ao tornar-se A centralidade do materno como edificador da
mulher ela estaria adaptada a uma sociedade pater- feminilidade é um tema que também tem sido
nalista, com o casamento como meta. Esta não é discutido. Muitas vezes no paradigma psicanalí-
a sociedade herdeira da segunda guerra mundial, tico clássico, os conceitos de feminino e materno
onde viver por sua conta deixou de ser excepção aparecem assimilados, ou formulados de forma
para as mulheres (Ticho, 1977). Há dados sociais que os torna reciprocamente dependentes. Ali,
que questionam aquela visão da resolução edipiana desejo de gravidez e maternidade são sinónimos
feminina. – o que tem sido negado pela praxis clínica –,
A importância do período edipiano na forma- pertencendo ambos ao próprio processo de aqui-
ção da identidade sexual e no estabelecimento se sição da feminilidade (Leal, 1997). Gravidez e
uma relação heterossexual é consensualmente maternidade não são a mesma coisa, tal como não
aceite. Classicamente, o desejo de ser mãe é per- o são o desejo de estar grávida e o de ter um filho.
cursor do desejo de ser mãe do filho do pai. Assim, A evolução histórica do conceito de maternidade
no período edipiano a menina acrescentaria a orien- ajuda a clarificar esta ideia. Materno e paterno são
tação heterossexual à sua identidade feminina. apenas categorias dentro das categorias maiores
O que se pode questionar, é se a criança ator- de masculino e feminino.
mentada pelo incesto e parricídio, descrita por Outro aspecto pouco explorado pela teoria clássica
Freud, existe em quaisquer circunstância, ou se é o dos pais edipianos, que idealmente aceita-
limita às situações patológicas. Freud, também riam a sua criança sem se deixarem levar pelas

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suas próprias tendências sedutoras ou competi- E quanto aos homens? Também se poderá falar
tivas. de uma nova psicologia masculina?
O pai edipiano foi visto por Freud, mais como
uma fantasia da menina, que como algo real. Mas Desenvolvimento Masculino: reformulação e
um comportamento sedutor real faz com que se ampliação
mantenham os desejos edipianos. Não são fora
do comum, pais com sentimentos eróticos repri- A preocupação com a reformulação do falocen-
midos, em relação às suas filhas. Não é ainda trismo da psicanálise e a consequente centração
indiferente o facto de o pai ser emocionalmente nas questões femininas parecem ter deixado os
ausente, não participante ou possessivo. Caracte- homens fora do discurso psicanalítico durante bas-
rísticas paternas como as enumeradas dificultam tante tempo. Afinal eles já tinham tudo: um pénis,
a resolução das tarefas edipianas. Por outro lado, liberdade para o usar, e a possibilidade de, fazendo
a ausência paternal, é particularmente prejudicial dele uso, se unirem ao útero materno, acto negado
nesta fase. às mulheres (Ross, 1986).
A importância do pai pré-edipiano também A visão de Freud da sexualidade masculina
tem sido sublinhada pela psicanálise mais contem- centra-se também no reconhecimento das dife-
porânea. Ele facilita, por exemplo, a saída da fase renças anatómicas, decisivo na fase fálico-edipiana,
de simbiose, e o processo de separação-indivi- caracterizando-se pelo desejo da posse exclusiva
duação. Ajuda a filha na construção da sua femi- da mãe, com a derrota do pai. À ameaça de cas-
nilidade, contribui para um narcisismo saudável tração pelo poderoso rival, o menino responderia
nela, oferece um modelo de relação confiável com a renúncia ao incesto e a identificação com
com um homem, facilitando a posterior criação o pai internalizando-o como a instância psíquica
de relações heterossexuais. do superego. São centrais no processo a ansiedade
As, aquisições que decorrem da relação pre- de castração e a relação com o pai.
coce com a mãe e o pai foram alvo do interesse Esta simplificação do modelo freudiano, não
de vários autores, alguns dos quais já abordados faz justiça à sua riqueza e complexidade, em que
neste artigo. Marques (1996) salienta: por um lado tanto factores constitucionais como as primeiras
autores que se centram sobre as relações com o relações objectais são decisivos (Fogel, 1987).
objecto de amor primário materno e a sua impor- No entanto, não deixam de se notar manifestas
tância no estabelecimento da identidade sexuada. limitações na visão freudiana, claramente depen-
Aqui, contam-se Stoller, que como já vimos aban- dentes tanto de aspectos culturais, como da falta
dona o conceito de bissexualidade e propõe o primado de dados de observadores infantis, teóricos das
do feminino, e Balint (1968), estabelecendo o amor relações de objecto e do ‘self’, que acrescentaram
primário, que sendo materno é também a relação muito do conhecimento psicanalítico sobre a sexua-
mais primitiva. Por outro lado, há autores que se lidade. Tal como aconteceu com a psicologia femi-
centram no percurso das relações objectais dos nina, com esses novos dados procurou-se ampliar a
sujeitos conducentes à realização e identificação, psicologia masculina. Não surpreendentemente,
impondo-se aqui o paterno. Nesta linha temos Klein a mulher ganha aí um lugar central.
(1932), com a noção de casal parental combinado, Como anota Ross (1986), no início da vida é a
clarificando a formação de um superego que leva mãe e não o pai, que consola e gratifica o bebé e
à escolha de uma posição definitiva heterossexual, que, além disso, representa o universo. Quando a
e Winnicott (1971) que introduz a noção de ele- mãe se define como ser “na periferia” do ‘self’ é
mentos masculinos e femininos em estado puro. ela que apazigua as pulsões e desvia os estímulos
De referir também Rosolato (1969) que formula do ambiente – é a “mãe-objecto” e a “mãe-am-
a identificação e as suas relações ao materno e biental” (Witmicott, 1963). Nesta relação de cuidado,
paterno exigindo uma combinação modulada: dois nutrição e omnipotência, o rapaz (ou a rapariga)
pais, dois sexos, pulsões de vida e de morte, de vão, primeiro distingui-la e depois identificar-se
amor e de ódio. com ela. Logo que a presença do pai distinto da
Os inúmeros contributos teóricos – alguns dos mãe, é sentida, torna-se um pré-objecto no mundo
quais aqui referidos – permitem-nos no caso das do bebé, para o qual ele se vira, buscando algo
mulheres, falar de uma nova psicologia feminina. cada vez mais específico – um princípio paterno,

337
masculino, que alimente o crescimento psicoló- para lidar com as tarefas da vida adulta: a con-
gico. jugalidade e a paternidade.
Na segunda metade do segundo ano, as crianças Mas, se tudo correr bem, os meninos vão escla-
constatam as diferenças sexuais, consolidando-se recer e consciencializar a identificação paterna: o
a identidade nuclear de género no ano seguinte. seu aspecto e papel na cena primitiva e na identi-
Esta revelação afectiva e cognitiva ocorre quando, ficação. O pénis do pai de mero veículo introdutor
por um lado, o rapaz quer desembaraçar-se da passa a órgão criativo, fonte de vida, força e prazer.
mãe, e por outro, depende dela, admira-a e anseia As ambições maternas são integradas com os
por incorporar as suas qualidades. Tem orgulho aspectos fálicos masculinos, transformando-se
no seu pénis mas, paradoxalmente, ser o genitor numa aspiração à paternidade.
todo-poderoso implica ser castrado. Mais tarde, com a maturidade biológica, o
Durante o segundo e terceiro ano, estão assim rapaz regride na identidade ensaiando os passos
accionados grandes conflitos de identidade do da heterossexualidade. Recrudescem as identifi-
género, que buscam apaziguamento junto do pai cações maternas, obrigando-o a refazer o caminho
que – se for suficientemente bom (coexistindo da masculinidade. A luta contra o sentimentalismo,
com imagens adequadas da mãe a respeito dele, tão comum nos homens, pode ser vista como uma
da criança e de si própria) – consolidam a identi- resistência à regressão e como fuga da realidade
dade nuclear do género e permitem o avanço para interna – o devaneio, sentir-se como um bebé, a
a fase fálica entre os dois e os três anos. O urinar identificação com a mãe, a puerilidade da latência.
de pé, a erecção peniana são importantes organi- Este recontro é bem visível nas apresentações
zadores deste processo. As mulheres não consti- “avidamente obsessivas”, “geladamente narcísicas”,
“desastrosamente depressivas”, “brutalmente fálicas”
tuem aqui, objecto de desejo: a primeira fase fálica
ou “psicopaticamente superficiais” (Shaffer, 1986),
é essencialmente narcisico-fálica, centrando-se
que não podem ser apreciadas independentemente
na exibição de virilidade e sua ampliação pelo
da constelação familiar em que se desenvolveram.
reflexo que os outros – ambos os progenitores –
Como salienta Ross (1986), tipicamente as
dão.
primeiras experiências sexuais masculinas não
A mãe que espelha vai sendo cada vez mais
reflectem um ser sensual, mas sim o sexo, e a
alvo da curiosidade e do interesse do rapaz, le-
agressividade do desejo (conquista fálica e controlo
vando-o a entrar na fase edipiana que acarreta sádico-anal), abrigando do acesso à excitação
conflitualidade, nomeadamente a rivalidade com libidinal e permanência nela, e assim, resguar-
o pai. Fugindo dos danos que deseja inflingir e da dando de uma perda do ‘self’ na presença da mulher.
retaliação, o rapaz irá fazer fantasias de rendição Só no fim da adolescência, depois de atingir um
e submissão passiva ao pai. Daqui ser omnipre- sentido de integridade, o homem será capaz de
sente, nos meninos de quatro anos, o desejo de tolerar uma sexualidade plena. Senhor de si, poderá
ser a mulher do pai. deixar-se cair, apaixonar-se, considerar uma vida
Ross (1986), chama a atenção para as defesas amante e geradora, redescobrindo a feminilidade
narcísicas fálicas que podem surgir como abrigo e a paternidade na sua sexualidade.
contra uma identidade ambissexual. Alguns factores A ansiedade de castração é um medo mascu-
podem contribuir para uma fixação defensiva lino omnipresente, seja qual for a sua centralidade.
narcísico-fálica, todos eles relacionados com a Outros medos revistos por Cooper (1986) são: a
indisponibilidade precoce do pai, como objecto perda da mãe, a perda do seu amor, a perda do
libidinal para internalização e identificação. O pénis, a perda do amor do superego (Freud, 1926).
pai pode ser ausente física ou emocionalmente, Podemos considerar ainda o medo da perda do
subentendo-se a uma mãe poderosa que invade o que se ama (Starke, 1973), o medo paranóide da
filho e a sua identidade (sexual ou outra). Pode destrutividade hostil da mãe e o medo da sua perda
ser sentido como ineficaz, obrigando o rapaz a (Klein, 1957), o medo de morrer de fome, de ser
‘encenar’ um princípio paterno exagerado. A mãe, envenenado, sufocado, partido, esmagado e castrado
por seu lado, pode temer ou depreciar os homens. (Berger, 1952), os medos da descoberta da exis-
A masculinidade assim atingida é apenas uma tência de outros (‘otherness’), da descoberta da
capa, frágil e artificialmente agressiva. É inútil diferença sexual e da mortalidade (McDougal, 1984),

338
acrescidos da descoberta da diferença de gera- mais tarde. Com o passar dos anos, a dominância
ções – tamanho e poder – (Chasseguet-Sinírgel, física vai sendo substituída pela disponibilidade
1984), o medo de dissolução do senso do ‘self’ – total da mulher. Esta disponibilidade total, e o
aniquilação – (Kohut, 1984). interesse masculino por parceiras múltiplas, fazem
Embora não haja acordo em relação ao medo parte de um ideal de ego masculino largamente
básico ou sequência de medos, o significado par- partilhado, revelando a negação da realidade sexual
ticular do medo de castração no comportamento feminina e retratando exageradamente os desem-
masculino é consensual. Freud (1937) concluiu que penhos masculinos. No fundo espelha os medos
o medo básico é o medo da passividade perante sexuais dos homens: tamanho, perícia, potência,
outro homem, isto é, uma manifestação da ansie- rejeição. Ao contrário do que à primeira vista pode
dade de castração. Ora, por ser tão próxima da parecer, não se trata de uma fantasia agressiva
consciência, Shaffer (1986) julga que a ansiedade mas sim a revelação do desejo de controlo mas-
de castração deverá ser o menos assustador dos culino. Por outro lado, esta fantasia revela também
medos infantis, sendo ela a forma final de expressão o desejo por uma mãe pré-edipiana disponível
ou ocultação de perdas e medos anteriores. Por atenta e alimentadora.
outro lado, a ansiedade de castração pode não Person aponta ainda a presença da inveja materna
estar, pura e simplesmente, a substituir os medos e o desejo de identificação feminina presentes noutra
anteriores, mas antes a disfarçá-los ou constituir fantasia masculina vulgar entre homens heteros-
uma fuga a eles: abandonar uma parte narcisica- sexuais: o sexo lésbico. Ela pode esconder uma
mente prezada é preferível que abandonar o ‘self’ ansiedade relativa à potência sexual uma vez que
narcísico parte do trabalho erótico é retirada ao homem. Por
Como vimos, a revisão das teorias sexuais da outro lado, nesta fantasia geralmente só o homem e
psicanálise, em parte devido ao movimento femi- capaz de satisfazer, o que lhe dá um sentimento de
nista, mostrou muitos erros na avaliação da sexua- poder e controlo. O tema do incesto pode também
lidade feminina. Porém, criou-se o equívoco que a estar aqui presente pela identificação do homem
visão clássica da sexualidade masculina era per- com uma das figuras femininas.
feita. Alguns autores, que temos vindo a referir, Naquelas duas fantasias está presente a questão
vieram mostrar a incompletude daquelas teorias. da insuficiência. Ora, a primeira contrariedade ao
Uma das questões que mereceu a sua atenção foi narcisismo sexual do rapaz é a constatação da inca-
o enfoque sobre a resolução do complexo de Édipo pacidade para garantir o amor sexual da mãe. Não
positivo, da competição com o pai. Ao renunciar é só a ameaça da castração, mas a percepção de
ao desejo de união sexual com a mãe, escolhendo o não possuir a dotação necessária para competir
investimento narcísico no pénis, o rapaz fortalece o com o pai que faz com que o rapaz desinvista da
seu narcisismo, resolvendo o seu problema funda- mãe. Se este sentido de insuficiência não é ultra-
mental – a luta pelo poder e pela força por com- passado, então a inveja do pénis permanecerá durante
paração aos outros homens (Person, 1986). Ora, toda a adultícia.
para Person, não está em causa esta formulação Na perspectiva clássica, como resultado da
(centrada na luta pai-filho, ameaça de castração, diferença de géneros, a ansiedade de castração e
resolução por identificação paterna), mas o facto a inveja do pénis irão moldar a sexualidade, o
de ela minimizar os factores pré-fálicos. Também carácter e o sentido do ‘self’ dos homens e das
se deve dar a devida importância à relação mãe- mulheres. O rapaz não é poupado à inveja: a inveja
-filho, em que ela tomava o papel de prémio e não do tamanho do pénis do pai a inveja das mulheres,
de protagonista da história sexual do homem. da sua capacidade de nutrição como mães, a inveja
Aquela autora chama a atenção para estes factores do útero. De toda a maneira, esta inveja mascu-
pré-fálicos na ansiedade de castração, na vulne- lina das mulheres teria um papel relativamente
rabilidade narcísica do ‘self’ sexual e o impacto menor no desenvolvimento masculino, se compa-
da experiência adolescente, visíveis na comum rada com a inveja feminina dos homens. Este complexo
fantasia masculina da mulher omnidisponível. As de inveja genital consiste em elementos consci-
fantasias (não necessariamente sádicas) com rapa- entes de inveja pelas qualidade e prerrogativas
rigas submissas parecem ser banais em rapazes do sexo oposto, o desejo de possuir esse sexo que
desde antes da puberdade, e continuam a aparecer pode integrar uma imagem de corpo inconsciente,

339
e a desaprovação dos órgãos genitais do próprio, Este novo papel do pai remete para a reformu-
servindo para que soluções de compromisso sejam lação do processo de separação-individuação, num
encontradas para conflitos envolvendo a bissexua- contexto de triangularidade e relacionamentos
lidade (masculina e feminina), sem que a identi- precoces múltiplos, bem como levanta questões
dade do género, o papel do género ou a escolha em relação à necessidade de um objecto transac-
do objecto sexual seja rompida (Fogel, 1987). cional, quando existem muitos objectos disponíveis.
O temor original às mulheres não é a ameaça É também importante perceber a sequência da
de castração, mas sim o resultado da ameaça à situação edipiana, quando o pai é um prestador
sua auto-estima – o medo de ser rejeitado e hu- de cuidados primários, isto para os rapazes e para
milhado. A indisponibilidade das parceiras as raparigas. Neubauer (1987), sugere que, neste
sexuais na adolescência acorda a ferida narcísica cenário, o desenvolvimento não se dá de um mundo
original do rapaz. Presumindo que os outros são objectal diádico para um triádico, mas sim que a
melhores, os seus sentimentos de inferioridade escolha objectal é ampla e múltipla, ocorrendo
agudizam-se. A presença de erecções inoportunas laços objectais primários que conduzem ao passado
dão ao adolescente uma impressão de que o pénis edipiano dos pais. Assim ganhou destaque, na
não está sob seu controlo, não lhe pertence, em pesquisa do masculino, o pai pré-edipiano e a sua
simultâneo com o orgulho que, naturalmente, sente relação com o masculino: ser homem passa por
pelo poder do falo. Esta ambivalência e o sentido reencontrar esse aspecto.
de não controlar, podem ajudar a compreender o
medo da impotência e da ejaculação precoce.
A sexualidade activa, as fantasias eróticas, servem CONCLUSÃO
ao homem para se tranquilizar em relação às
dúvidas sexuais que tem sobre si próprio, sendo Em síntese, o que surgiu então, de mais rele-
o controlo do pénis conseguido pelo controlo do vante, na nova perspectiva psicanalítica do género?
objecto sexual, atribuindo a si e ao seu órgão, Na compreensão da mulher, podemos consi-
características que atribui ao pai. derar uma linha de desenvolvimento feminina,
Entretanto, o estudo dos aspectos desenvolvi- desde o início da vida da rapariga, abandonando
mentais pré-edipianos exigiu uma reavaliação a perspectiva biológica e ideologicamente mas-
de papéis dos progenitores, onde classicamente culina de Freud. Teremos de considerar uma série
só cabia a mãe. Todos os objectos que apareciam de aspectos não conflituais do desenvolvimento
na vida do bebé eram vistos como secundários a feminino, bem como eventuais conflitos ligados
ela. Assim, a ênfase nos estudos era colocada na à especificidade do corpo feminino. A psicologia
relação mãe-filho, contribuindo para a confirmação do ego e a teoria das relações objectais trouxeram
dessa relação como organização primária (Neubauer, novas e importantes perspectivas sobre a femi-
1987). O interesse crescente pelos pais e o seu papel nilidade. A isto não foi alheia a tendência crescente
advém de muitos factores, incluindo o aumento para atender aos factores da realidade, em vez de
do número de divórcios, o aumento do número centrar compreensão exclusivamente nos aspectos
de pais com a custódia dos filhos, a divisão dos intrapsíquicos.
cuidados devido à actividade profissional das A teoria feminina do desenvolvimento, diz-nos
mulheres. Além disso, hoje, são os homens que que a feminilidade existe desde o princípio, bem
reivindicam para si uma paternidade feita de pre- como existem vivências corporais intrinsecamente
sença, atenção, amor e cuidados quotidianos (Lamb, femininas que contribuem para a experiência e
1987, 1992). auto-representação da menina. Ela tem orgulho
Enquanto alguns autores salientam as dife- no seu género e pode ter identificações positivas
renças entre cuidados de um e outro progenitor, com a mãe, tendo também uma ligação precoce
outros sublinham as semelhanças das reacções ao pai que contribui para a sua feminilidade.
da criança à mãe e ao pai. Certo é que, ao con- Na compreensão do homem, por um lado as
quistar o seu novo papel, o pai ganhou acesso ao novas investigações mostraram a influência das
seu mundo pré-edipiano, permitindo-lhe o reconhe- mulheres, a relação dele com elas na infância e
cimento de defesas e repressões antes só reactivadas na adultícia, bem como revelaram a importância
na fase edipiana dos filhos. da feminilidade nele próprio – ser homem implica

340
um encontro com o feminino. Por outro lado, os Fogel, G. (1987). Ser Homem. In G. Fogel, E. Lane, &
estudos revelam a necessidade de um relaciona- R. Liebert (Eds.), Psicologia Masculina – novas
mento novo com a sexualidade infantil mais arcaica perspectivas psicanalíticas (pp. 11-28). Porto Alegre:
Artes Médicas, 1989.
– a pré-edipiana – e o narcisismo masculino, de Freud, S. (1905). Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexua-
um retorno a esse universo. Ser homem implica lidade. In Obras Completas – Edição Standard Bra-
um encontro com o masculino. Ganhou então des- sileira. Rio de Janeiro: Imago.
taque a relação do homem com os outros homens Freud, S. (1933). A Feminilidade. In Obras Completas
e com as necessidades e desejos relativos ao pai – Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago.
pré-edipiano. Grossman, W., & Stewert, W. (1977). Inveja do Pénis:
desejo infantil ou metáfora do desenvolvimento? In
Depois de ter aprendido coisas importantes a H. Blum (Ed.), Psicologia Feminina – uma visão
seu respeito, de alargar os seus horizontes sobre psicanalítica contemporânea (pp. 138-151). Porto
o feminino e o seu próprio lado feminino, ele tem Alegre: Artes Médicas, 1982.
de aventurar-se só, com esse “primitivo selvagem” Kestenberg, J. (1977). Regressão e Reintegração na Gra-
para poder realizar o seu poder e potencial criativo videz. In H. Blum (Ed.), Psicologia Feminina – uma
como homem. Quer isto dizer que apesar de todas visão psicanalítica contemporânea (pp. 152-177).
Porto Alegre: Artes Médicas, 1982.
as revisões da psicologia masculina e feminina,
Kleeman, J. (1977). Concepções de Freud sobre a Sexua-
não se pode dispensar inteiramente o falocentrismo, lidade Feminina Precoce à Luz da Observação Directa
ainda que ele possa ser redefinido e encontradas de Crianças. In H. Blum (Ed.), Psicologia Feminina
formas mais sadias para sua expressão (Fogel, – uma visão psicanalítica contemporânea (pp. 9-26).
1987). A confusão entre primitivo, primário e profundo Porto Alegre: Artes Médicas, 1982.
com o feminino, pode ter atrasado a descoberta Lamb, M. (1987). The Fathers Role. Cross-cultural Pers-
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de percursores arcaicos da masculinidade e a impor-
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redescobrir este masculino primitivo, terrível e Lane, F. (1987). O Complexo da Inveja Genital: o caso
assombroso, contrapartida da mãe primitiva. do homem com uma vulva fantasiada. In G. Fogel,
Senão, pode cair-se na ironia de derivar a psi- F. Lane, & R. Liebert (Eds.), Psicologia Masculina
cologia masculina da feminina, como no passado – novas perspectivas psicanalíticas (pp. 120-137).
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Key words: Sexual identity, psychoanalyse, mascu-
Classicamente, na teoria Psicanalítica, masculino e line, feminine.

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