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Individuação
e subjetivação
Os conceitos junguianos de inconsciente coletivo e arquétipo mostram o
caráter universal das imagens e dinâmicas do inconsciente, que representam
modos de estruturação da subjetividade no processo de individuação
processo de individuação
no cérebro. Basta observar bebês recém-nascidos para encontrarmos
(tendência psíquica a certos traços de personalidade que não podem ser reduzidos apenas à
realizar potencialidades
inatas) se descortinam genética ou ao ambiente familiar. É comum crianças entre 3 e 5 anos fala-
nos contos de fadas, rem de si mesmas ou de sua origem não biológica com grande convicção.
nos mitos e nas mais
diversas produções Uma menina de 5 anos, ao visitar com a mãe a casa dos avós, pergunta:
do inconsciente “Mamãe, onde eu estava quando você dormia nesse quarto?”.
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A convicção de haver uma existência cultural, certamente a tudo transcende.
anterior à vida consciente, embora não seja A alegria é a nossa bússola no caminho da
uma prova científica de existência pré ou pós- individuação, uma convicção forte e espon-
morte, é uma convicção psicológica arque- tânea que emerge quando nossas escolhas
típica, isto é, comum a toda a humanidade. atuais estão alinhadas com nossa essência
Portanto, é um fato psicológico, assim como inata. Por isso se diz que o horizonte do pro-
a sensação da existência de um ser transcen- cesso de individuação são as inúmeras elabo-
dente, um deus. Com isso, Jung introduziu a rações simbólicas que aproximam o indivíduo
possibilidade de estudar a religião como mani- da pessoa que realmente é. Essa singularidade
festação psicológica, distinguindo a psicologia diferencia um ser de qualquer outro e o torna
do estudo das religiões e da teologia. Aqui não insubstituível, pois a tarefa que cada um deve
se disputa a existência de “Deus”, mas pode- cumprir de acordo com seus talentos não
se afirmar que a idéia de uma representação pode ser reproduzida por nenhuma outra
divina e onipotente está presente na psique, pessoa, tampouco pode ser reprimida.
sendo, portanto, comum a toda a humanida- Sistemas educativos e políticos rígidos,
de. Apenas a aparência, forma e características que tentam adequar o indivíduo a fins
dinâmicas da imagem divina são singulares lucrativos ou ao bem do Estado, produzem
para cada cultura e era. Mas a essência é a distorções de subjetivação e graves neuro-
mesma. Ao observar o comportamento de ses. Depressões e suicídios de jovens são
povos primitivos, Jung concluiu que com- freqüentes em sistemas totalitaristas ou alie-
portamento religioso é tão elementar quanto nantes, que obrigam a servidão a uma causa
PRESENTE PARA IEMANJÁ, a sexualidade, e não necessariamente resulta ou colocar-se a serviço de uma idealização
na praia do Rio Vermelho, em de uma projeção de aspectos reprimidos da em detrimento do desenvolvimento de sua
Salvador. Os arquétipos mudam a vida erótica. Povos livres na sua expressão singularidade. Dessa forma, a psicologia
forma de se apresentar, mas seu sexual cultivavam seus deuses, mantinham junguiana apenas recentemente entrou na
dinamismo continua o mesmo suas crenças e seus rituais tradicionais. A Rússia, pois foi execrada na antiga União
ao longo dos tempos e nas vida religiosa decorrente da repressão sexual, Soviética, onde a educação estava a serviço
diferentes culturas. No Brasil, a observou Jung, era resultante de uma cultura do Estado, e não do bem-estar individual.
imagem arquetípica da Grande moralista e proibitiva (como na Viena do sécu- O mesmo acontece com a criatividade.
Mãe ressurge, por exemplo, na lo XIX, em que viveu Freud), a qual limitava Indivíduos criativos são mais livres em sua
figura dessa rainha do mar, que a livre expressão e produzia certas psicopa- auto-expressão em todos os campos. Sua
protege os filhos a todo custo tologias. Em sociedades menos repressoras, ligação com o inconsciente, com o material
a vida sexual e a religiosa não ainda desconhecido pela consciência cole-
se opunham e eram integradas tiva, traz à tona novas perspectivas e novas
culturalmente por meio de ritos soluções técnicas e instrumentais para pro-
e imagens de fertilidade. Essa blemas antes insolúveis.
afirmação, que em grande medi- Exemplos notáveis são encontrados na lite-
da foi um dos pomos da discór- ratura e na biografia de pessoas célebres que,
dia entre a célebre ruptura de mesmo desprovidas de qualquer possibilida-
Freud com Jung, tem sido objeto de educativa ou de recursos materiais, desen-
de inúmeros estudos científicos, volveram grandes talentos. James Hillman dá
especialmente no campo da psi- como exemplo um grande pianista de jazz
coneurologia contemporânea. americano (possivelmente Van Cliburn Jr.)
O processo de individua- que, por falta de recursos financeiros para
ção, tal como concebido por comprar o próprio instrumento, utilizava o
Jung, é resultante da interação desenho de um teclado sobre uma folha de
do indivíduo com o coletivo. papel para exercitar a leitura musical. Durante
No plano individual, à medida muito tempo em sua infância, esse desenho
que a criança se desenvolve, foi o único teclado em que ensaiou e treinou
certas aptidões e características suas capacidades, até o dia em que se trans-
© Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr
MITO DO HERÓI. Tarzan, o rei da arquetípica. No processo evolutivo, observa- aparentemente intransponíveis. Sua função
selva, representa a força do jovem mos também os movimentos ecológicos como libertadora ajuda a humanidade a confiar no
que desafia valores predominantes. uma maior consciência da Mãe Natureza, aspecto transcendente e transitório da condi-
Abaixo, pôster do filme de 1932, antes menosprezada e vilipendiada. ção humana. Os símbolos presentes nessas
dirigido por W. S. Van Dyke A passagem do arquétipo da Grande histórias são também elementos facilitadores
Mãe para o do Pai Espiritual é ilustrada na na integração dos conteúdos inconscientes.
história dos Três Porquinhos e o Lobo Mau.
Aqui vemos a necessidade de fortalecimento a união dos opostos
do ego para enfrentar as adversidades do Jung usou o conceito de símbolo de acordo
crescimento, deixando a casa da mãe para com sua etimologia: sym = juntar, unir; bal-
construir um mundo independente. Ao depa- lein = em direção a uma meta, um objetivo.
rarem com o Lobo Mau, o aspecto negativo Nesse sentido, symballein significava, na anti-
da figura paterna, os porquinhos percebem ga Grécia, o ato de unir duas metades de uma
que uma casa feita às pressas, com material mesma moeda que fora partida na separação
frágil, é facilmente derrubada pelo sopro de duas pessoas. Quando uma delas desejava
da violência. A experiência vai ensinar que enviar uma mensagem importante à outra, o
somente uma casa solidamente construída mensageiro trazia consigo uma das metades
(ego forte e em contato com a realidade) da moeda. Desse modo, o destinatário da
pode lhes oferecer um abrigo suficientemen- mensagem poderia verificar sua autenticidade
te seguro, no qual poderão sobreviver longe ao constatar a perfeita união das duas meta-
da proteção materna. des (uma conhecida, outra incógnita).
O arquétipo subjacente a essas histórias é A palavra “símbolo” passou a ser empre-
o Mito do Herói, talvez o mais presente no gada para designar a união de opostos – algo
mundo literário e cinematográfico de todos conhecido, consciente, com algo desconhe-
os tempos. De Tarzan, o rei da selva, a Neo, cido, inconsciente. Como aquilo que é des-
o herói de Matrix, a imagem arquetípica do conhecido tem um valor afetivo, o símbolo
Divulgação
jovem que é levado a desafiar os valores pre- sempre desperta uma emoção. É esse o seu
dominantes da cultura nos ensina a incorporar aspecto numinoso: ele aponta para uma cone-
habilidades inovadoras e a vencer obstáculos xão entre aspectos conscientes e inconscien-
tes de um mesmo fenômeno. Por mais que súbito Kekulé entendeu que a estrutura era A DIVINA FORMA HUMANA.
saibamos o significado racional das cores e um anel, dando assim um grande passo no A ilustração alquímica de D. A.
da forma de uma bandeira brasileira, é quase progresso da química. Freher (1764) mostra o caminho
impossível não nos emocionarmos quando a Em outros momentos, o símbolo é o do conhecimento, do coração à
vemos tremulando em um evento de impor- elemento que traz nova luz a uma situação cabeça, onde, depois de passar
tância internacional, por exemplo. aparentemente sem saída. Um jovem exe- pelos “sete espíritos de Deus”,
Assim, o símbolo sempre contém um cutivo bem-sucedido de 42 anos, solteiro e de que é feito o homem,
aspecto irracional e tem um enorme poder de muito assediado pelas mulheres, achava-se desperta o conhecimento puro
mobilização. Ele pode provocar grandes trans- bastante deprimido e desmotivado, pois,
formações de caráter estruturante, mas tam- segundo sua opinião, “já havia alcançado
bém conflitos étnicos e religiosos. Podemos o topo de tudo que desejava, nada mais
perceber o símbolo em formas concretas, restando a fazer”. Um sonho lhe esclareceu
como bandeiras, slogans e hinos, ou em bem sua situação, revelando o perigo em
eventos como a queda do Muro de Berlim, a que se encontrava. Sonhou que estava em
derrubada da estátua de Stalin ou de Saddam uma nave espacial brilhante e prateada, que
Hussein. O símbolo representa a conexão de repente despencou, caindo em um charco
com a energia arquetípica necessária para a na periferia da cidade. Imediatamente, men-
consecução de feitos que alteram o estado das digos sujos e maltrapilhos invadiram a nave e
coisas e podem trazer novas soluções para roubaram tudo que é precioso. Percebemos
conflitos aparentemente insolúveis. dessa forma que o sonhador estava vivendo
Grandes invenções tiveram o símbolo com uma atitude de superioridade, inflada,
como mediador do processo de conheci- dissociada de seus aspectos mais simples e
mento, como conta a história da descoberta humildes, correndo o risco de tudo perder.
do anel de benzol. Friedrich Kekulé, químico Esses aspectos menosprezados ou reprimi-
alemão do século XIX, que tentava, com dos pela atitude consciente podem surgir nos
pouco sucesso, descobrir a estrutura química sonhos sob a forma de figuras degeneradas,
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