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4.

Pedro

Terapias breves versus efeitos terapêuticos rápidos

Lucia D'Angelo

As terapias breves
Partamos para nosso exame de algumas conside-
rações gerais sobre as quais se apóia a prática terapêutica das
terapias breves. O esquema de referência - a teoria da técnica
- que define esse tipo de prática terapêutica, parece ter-se
sustentado, em seu cerne, sem muitas transformações, ao
longo de·mais de trinta anos! Se algumas modificações se pro-
duziram, as transformações se devem mais às técnicas de
abordagem terapêutica que à teoria, e menos ainda à clínica.
Nessas práticas, o conceito de foco é um eixo central. Com fre-
qüência, esse eixo está deternúnado pelo motivo da consulta:
sintomas, situações de crise, descompensações que alarmam o
paciente. Intimamente ligado ao motivo da consulta e subja-
cente ao mesmo, localiza-se certo cot!flito nuclear exacerbado.
Assim, em cada um desses focos, o eixo está determinado pelo
motivo da consulta e o conflito nuclear subjacente que se
insere em uma situação específica. O conceito de situação, para

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FIORINI, Héctor J. Teoria e técnica de psicoterapias. Trad. Carlos Sussekind.
Rio de Janeiro: F. Alves, 1982.

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Conv ersa çao c l!n i ca com J acques-A l ai n Mll l er em Barc e l on~

o qual convergem as perspectivas existenciais do paciente,


pode fornecer, segundo os autores que seguem essa corrente
terapêutica, um modelo adequado, capaz de produzir wna
aproximação da abordagem terapêutica.
D essa forma, na sessão, o terapeuta deve deduzir o
foco a partir do desenvolvimento inicial que traz o paciente. Ao
longo do processo terapêutico, o foco pode ir modificando-se.
Mas, na psicoterapia breve, é provável que todo o processo
gire em torno de uma siJuação focal, e o avanço do processo
consista somente nos subsídios ao modelo estrutural que se
vai construindo da situação. O terapeuta deve exercer um
papel ativo, isto é, tem que fazer uso de todo recurso facilita-
dor do processo de investigação e compreensão da problemática
do paciente. Seus reCIIrsos técnicos são múltiplos; mencionemos
alguns deles. O terapeuta oferece evidências, não ambíguas, de .
que compreende o P.aciente. Evidencia também seu acolhi-
mento caloroso, ou seja, em seus gestos e tons de voz de-
monstra que a pessoa de que está tratando não lhe é indife-
rente. D eve ser epontâneo, pa.ra criar um clima de liberdade,
criatividade e permissividade. Deve tomar a iniciativa para
desempenhar um papel ativo, a fun de esrimuJar a tarefa te-
rapêutica. D eve assumir um papel docente que demarque a tare-
fa definida pedagogicamente da relação de trabalho terapêutico.
Deve motivar e esclarecer os objetivos terapêuticos etc.
D efinitivamente, para os autores, a estratégia terapêutica
implícita da demanda é a de rcpelir-dijenflctimdo para deixar de
repetir. O terapeuta deve responder à necessidade de adequar-
se à dialética dessa estratégia que requer o vítrCII!o lmrpê11tico e
que consiste na flexibilidade técnica do terapeuta. Mais ainda,
requer a inclt~são sektiva de tra;os pessoais do terapeuta, porq ue é
parte da técnica.
Nesse contexto, e mais além das diferentes correntes
de opinião que se somam no fundamental a essa concepção
das psicoterapias breves, cabe perguntar-se quais são as dife-

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Efe itos terapêu t i cos rélp l dos em pslc an dlise

renças em relação à psicanálise, definida de entrada, nesse


amplo espectro como uma psicoterapia a mais, e não como uma
terapia qtte não é COIIIO as outras, segundo Lacan. A diferença é,
nada mais nada menos, que os conceitos de tran.iferrncia e inter-
prelação. Obviamente, o ato analítico nem se menciona. Mas, sj-
gamos o desenvolvimento desses autores. Foram os que pro-
porcionaram múltiplos ensinamentos ~ Lacan para uma reno-
vação clínica e ética da psicanálise, segundo a qual nos dei-
xamos orientar em nossa prática.
A sil11ação terapêutica analítica específica tem como
componente essencial, para os autores, a afllbigiiidade letnporal e
espacia4 diferentemente da psicoterapia breve. Quer dizer, o
longo prazo da duração do tratamento - e não a brevidade
do mesmo. O emprego do cüvã - não o jre?tfe a frente. O
manejo dos silêncios - e não a implicação dialogante do tera-
peuta. Por outro lado, o analista tende a mover-se com certa
margem de indeft..nição pessoal - e não com a implicação
pessoal do terapeuta. Todos esses são aspectos contemplados
no marco preliminar do tratamento, isto é, no chamado
mquadre. Porque o instrumento terapêutico específico e essen-
cia~ no marco da psican álise, e não compartilhado com a te-
rapia breve, é a particularidade estratégica da interpretação da
trmuferência. Interpretação da transferência, que é atribuida à
técnica, que tende a criar uma relação terapêutica complemen-
tar complexa, capaz de mobilizar uma intensa ambivalência no
paciente. Para os autores, a compreensão da transferência, no
aqui e agora, cumpre uma função diagnóstica e prognóstica,
insubstituivel, além de ser o indicador para entender a história
pessoal do paciente. Essa distinção alerta os praticantes contra
a extrapolação de modelos etiopatogênicos explitntitJO.r - as
terapias breves - a modelos terapêuticos operativos - a psi-
canálise. Essa extrapolação é assinalada como fator freqüente
no campo das psicoterapias e da utilização incoerente dos
cüversos reC~~rsos técnicos. As5Í?1, na psicanálise, a análise da

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Co nver s açao c l1oi c a com Ja cque s - Alain Mill er em Barcelona

transferência constitui o eixo da estratégia terapêutica, en-


quanto nas terapias breves é somente um recurso tático den-
tto de outra estratégia que justamente não consiste em pro-
duzir mudanças, por intermédio da regressão e da elaboração
do vinatlo transferencial Dessa fo rma, o recurso da transferên-
cia, nas terapias breves, deve conservar seu caráter de recurso
técnico-tático, destinado a ser progressivamente restringido,
na medida em que a evolução do paciente, no sentido da ate-
nuação dos sintomas, permita a utilização das outras inter-
venções terapêuticas. Então, qual é a diferença entte as psi-
coterapias breves e as múltiplas intervenções terapêuticas e os
efeitos terapêuticos rápidos que em nossa orientação da práti-
ca tentamos formalizar?

Os efeitos terapêuticos rápidos


Dados os limites que este trabalho nos impõe, longe
de pretender explicitar e dar respostas às concepções da cura
de outtos autores antes mencionados, os quais, segundo
Lacan, contribuíram para o estrago produzido por esses desvios
da prática freudiana no movimento analitico. Quero trazer um
exemplo clinico que se baseia no marco estrito da psicanálise
lacaniana aplicada à terapêutica. Sublinhar em que reside a
diferença entre uma terapia breve, que promove a modificação
ou, eventualmente, o desaparecimento do sintoma, do que é
um ifeito terapêutico rápido que reduz o gozo, implicado no sin-
toma do sujeito, e relança wn novo ciclo na direção do trata-
mento.
Partamos de uma declaração de princípios da psi-
canálise: não existe para Lacan uma teoria da técnica. A trans-
ferência não é um recurso técnico, mas o que funda propria-
mente não só a direção do tratamento, mas a psicanálise
mesma. Não cedamos ante a tentação de aplicar a concepção
sobre as terapias breves, apesar das ressonâncias que, como
veremos, podemos encontrar no caso que vamos examinar.

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Efe ito s terapéut1 cos r~pidos em p s 1ca n ~11 s e

Isolaremos dois momentos clínicos- entre os qua.is ocorreu


uma interrupção de um ano - e nos qua.is se produzem dois
efeitos terapêuticos rápidos, isto é, em um breve período, e
que, no entanto, não respondem à mesma estrutura.
Pedro, um jovem de uns 30 anos, me consulta ·a
primeira vez porque está muito angustiado. Deve resolver, em
um tempo breve, um problema que é muito difidl para ele.
Trata-se de um verdadeiro problema, dado que é alguém que
niio costuma ter um desejo decidido com relação a nenhum de
seus assuntos. Salvo no que diz respeito a seu trabalho, que
tem relação com uma atividade artística escolhida desde a
infância e na qual se formou para ser na atualidade alguém
com muito êxito. O problema que apresenta é mais ou menos
clássico no marco de uma neurose obsessiva. Tem que esco-
lher entre duas mulheres: a que supõe que ama e não deseja, e
a que deseja, e não sabe se ama. A mulher que ama é a que
colocaria ordem em sua vida, mas ameaça seriamente a comodi-
dade solitária e desordenada que alcança com o mais de gozo
que lhe outorga sua atividade artística, e o m or tifica. A que
deseja, de outro modo, o i11spira e o vivifica, mas o desorgani-
za, demasiadamente, porque o confronta com os avatar.es do
desejo, e o desestabiliza igualmente no gozo de seu sintoma.
No curso de várias entrevistas, que se estendem em
torno de quatro meses, desenvolvem-se as c.oordenadas de sua
fantasia. As intervenções do analista apontam a legitimar e
recompor a escancarada dimensão fantasmática de seus sin-
toma·s... pelo lado da ~~~~a. Se não há clínica sem ética é
porque se trata justamente da transferência, e a dimensão fan-
tasística do sintoma inclui a transferência ao analista. Tanto o
sintoma de sua atividade artística como o sintoma das mu-
lheres - desejo decidido vemJI indecisão do desejo -
nutrem-se da mesma estrutura da fantasia e lhe confirmam~
duplicidade de sua posição. O desejo decidido e um sintoma
que quer preservar, e a indecisão do desejo ante a escolha de

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Conver saçao cl !nica com Jacques- Al ai n Mil l er em Barcelona

uma das mulheres. É assim que, com uma precisão quase


cirúrgica, o sujeito separa os dois sintomas e consente em
tomar partido pelo sinioiiià das mulheres: Consente em veri-
ficar a posição que ocupa a mulher. na fantasia do casal e em
correr o d sco de sua cscollia. A mulher que ama e não deseja
se erige na figura que encarna o desejo mortificado do pai,
verdadeira figura do super:eu, que permite nomeá-la como um
verdadeiro Nome-do-Pai, como nos indica Lacan. A recom-
posição da atualiza~ão da fantasia que mostrara uma centelha
do real faz ceder à angústia. Elege, assim, a mulher que vivifi-
ca o desejo e interrompe o tratamento por suas viagens de tra-
balho. Convido-o a que retome a análise quando retornar de
sua viagem, que duraria alguns meses. O certo é que não
retornou até um ano depois. O primeiro efeito terapêutico
que conseguiu, nesse primeiro encontro, foi o alívio de sua
angústia e o embarcar na vida seguindo o caminho do desejo.
A interdependência dos sintomas com a fantasia nos
revela que é suficiente tocar o osso da fantasia para que o sin-
toma da indecisão com as mulheres perca o benefício que lhe
outorgava. Ao mesmo tempo, o sintoma. que decididamente
tentava preservar ficou intacto. Ou, melhor dizendo, o trata-
mento havia tocado como convinha, com um grande tato, a
modalidade particular de seu gozo, seu sintoma fundamental,
profissional.
Ao cabo de um ano, consulta-me novamente, dessa
vez, mais angustiado que na anterior. Agora, sua queixa, deses-
perada e temerosa, era por .um sintoma diagnosticado pela
medicina. Tal sintoma comprometia muito seriamente seu
corpo em uma parte que era fundamental para desenvolver
sua atividade artística. O diagnóstico médico era que padecia
de uma distonia focal O tratamento que lhe estava indicado era
abandonar, ao menos por um ano, suas atividades. O médico
não deixou de inclui-lo, com certeza, nos múltiplos disposi-
tivos disponíveis para a medicalização dos "usuários" de um

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f.f e rto s t e rapéiJticos ráprao s em psi canalise

tal diagnóstico, cujos portadores, os "distônicos focais", são,


como o sujeito, artistas e desportistas. Uma verdadeira
máquina de morte que encarna para o sujeito o O utro da mor~
tificação e da destruição de todas as suas aspirações. O ana-
lista - advertido de que a clínica psicanalítica, que se apóia no
princípio freudiano, distingue a terapêutica médica da terapêu-
tica anaUtica - toma nota do significante distonia focal e inter-
vém para perguntar-lhe: "E por que agora, neste momento de
sua vida, você faz esse sintoma?"
O analisante se desconcerta com a pergunta, parecia
não compreender a gravidade de sua situação. Mas se esforça
para responder à pergunta. Consente em relatar a multiplici-
dade de elementos que convergiam na contingência e a opor-
tunidade dessa brutal desarrumação do _gozo de seu sintoma.
Sintoma que, n~ primeira consulta, queria preservar e do qual
não desejava "curar-se", no início. Vedfico, então, que se havia
separado da mulher do desejo, que a relação durou o que
durou nos melhores termos até que se tornou como as demais e
lhe colocou ante a pior das escolhas: ou sua atividade artística
ou ela. Além clisso, e de maneira muito inoportuna, o havia
confrontado com a possibilidade da paternidad~ para a qual
não estava ainda preparado. Frente à semelhante alternativa,
ficava visível qual havia sido sua escolha. Podemos deduzir
como se dedicou desenfreada e exclusivamente a cultivar suas
coisas, e a não se encarregar das demandas da mulher até
chegar ao momento atual. Estava finalmente a ponto de
alcançar a meta que esperara toda sua vida: a consecução de
sua obra artística. Nesse momento, precisamente nesse
momento, apareceu a dístonia focal que lhe impedia terminar os
detalhes de sua obra, e a intervenção do médico que pretendia
afastá-lo por um ano de tudo. A pergunta dirigida ao analista
não tardou: "Você acredita que devo abandonar minha ativi-
dade e afastar-me de tudo neste momento?". "De nenhuma
maneira - respondeu o analista. Você tem que se ocupar ati-

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Conversa çao c l 1n ica com Jacques- Al ai n Hil le r em Barcelona

vamente disso em análise". Depois de poucas sessões, o sin-


toma havia cedido e podemos falar, com razão, que se tratou
de um efeito terapêutico rápido e que lhe permitiu aceder ao
lugar que tanto desejava.
Todavia, esse efeito terapêutico, mais rápido, se é
possível dizer, que o anterior, não participa da mesma estrutu-
ra. Com feito, a aparência do sintoma - seu trabalho - que
parecia isolado de outro sintoma e que o analisante havia ten-
tado separar cirurgicai!Jenfe, na realidade, nos mostra que, nessa
ocasião, está implicada, sem a mediação de-uma mulher, uma
identificação fundamental do sujeito com seu Pai. Esse pai, ele
mesmo mortificado e temeroso, era um pai imaginariamente
morto para o sujeito. O sujeito levava sua marca desde seu
próprio nascimento. Esse pai temeu1 efetivamente, que seu
fJ..lho não estivesse vivo quando chegasse ao mundo. Nesse
sentido, esse novo efç.ito, sobre o sujeito, tem outra estrutura,
porque o efeito terapêutico é correlativo da interpretação, mas
toca a verdade do de~ejq, O que confirma, se o comparamos
com o efeito terapêutico, do início, que não é suficiente a
relação de transferência e a interpretação que tocou a fantasia ..
Porque, velada a tela imaginária que implicava a fantasia e,
para constituir o sintoma anaütico sobre o próprio desejo, o_
slfieita. se a.musitJa a si mesmo sobre o fundo de destruição do
Outro, que toma o lugar no desejo do sujeito2 • Dessa forma;
admitindo a crença do neurótico de que é o Outro quem quer
sua castração, agora sim, se produz a entrada efetiva em
análise que se orienta mais além dos. efeitos terapêuticos lat-
erais, alcançados nos primórdios do tratamento. Análíse que já
se prolonga por cinco anos, e cujo dispositivo -pelas razões
das viagens do sujeito - se interrompe a cada três ou quatro

COTIET, Serge. Lateralité de l'effet thérapeutique en psycha~~alyse.


2

I .4ftrt Mensuelle, Paris, E CF - ACF, p. 33.

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[feitos tera pêut icos rápidos em ps icaná lise

meses e é retornada quando o mesmo volta à cidade. Em cada


encontro, o sujeito consente com a construção laboriosa de
sua fan~sia. A modalidade particular desse tratamento analíti-
co permite, com razão, que apliquemos o termo "dclico".
Termo cunhado ontem por Jacques-Alaín Miller e que pre-
tendemos aplicar ao caso em próximas elucidações.
Terapia breve versus efeitos terapêuticos rápidos,
porque a transferência e a interpretação não são recursos
teóricos em nenhum caso, mas a condiç.ã.o. de possibilidade da
formali'?ajão do ;intoma, da focalizafão do sintoma na direção laca-
niana do tratamento analítico.

Tradução: Vanessa Nahas Riaviz


Revisão da traduç~ : Elizabete Siqueira

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