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Saúde, Ética & Justiça. 2006;11(1/2):36-44.

A Psicanálise no encontro com


outras práticas institucionais

Practical application of psychoanalysis


in institutional practices
Mara Caffé1

Caffé M. A Psicanálise no encontro com outras práticas institucionais. Saúde, Ética & Justiça. 2006;11(1/2):36-44.

RESUMO: Neste artigo, busca-se pensar a Psicanálise fora do contexto habitual da clínica, nas ocasiões em que é
chamada a colaborar com as práticas do Direito. Constitui-se, aí, um terreno institucional híbrido, em que a função da
escuta analítica se articula à função normativa jurídica. Tal situação implica a tomada do dispositivo psicanalítico em
novas condições, sendo necessário redefinir os conceitos de transferência e sintoma com os quais se opera.

DESCRITORES: Psicanálise/tendências. Psicanálise/legislação & jurisprudência.

G
ostaria de pensar a prática da medicina e o direito. Essa massa difusa de trabalhos
psicanálise fora do contexto habitual não tem merecido sempre o mesmo tratamento
da clínica. Por razões de teórico-metodológico rigoroso que os trabalhos
sobrevivência institucional (dentre elas, as razões realizados no âmbito mais estrito da clínica. Afinal, é
de mercado) e em função das possibilidades abertas a partir deste âmbito que costumamos refletir sobre
pelo seu próprio objeto – o inconsciente - a a psicanálise, dada a relação intrínseca que a
psicanálise tem se oferecido e tem sido chamada a produção teórica guarda com a prática clínica.
colaborar em espaços sociais diversos e de Porém, talvez não seja apenas em função da
diferentes maneiras. Podemos considerar aqui, por tradição e da natureza de nossa disciplina que este
exemplo, os casos em que ela se transfere para as resultado se coloque. Ocorre que fora do campo
escolas, os hospitais, as instâncias jurídicas, originário da clínica, estamos sempre em terreno
dialogando, assim, com outras áreas do institucional híbrido, disputando/colaborando com
conhecimento humano, como a educação, a outras práticas discursivas dominantes. Fazer teoria,

1
Psicanalista, doutora pelo Instituto de Psicologia da USP, membro e professora no Departamento de Psicanálise do
Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo, SP
Endereço para correspondência: e-mail - maracaffe@uol.com.br

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desenvolver metapsicologia nestas e para estas da qual a transição de uma para a outra é efetuada.
situações requer, de modo bastante preciso, A nova condição assumiu todas as características
considerar nossos interlocutores, compreender da doença, mas representa uma doença artificial, que
criticamente seus dispositivos metodológicos é, em todos os pontos, acessível à nossa
próprios, compor e decompor com estas práticas a interpretação” (p.169-170).
re-escrita de conceitos que nos são caros, como, De acordo com Freud4, a análise decorre de
por exemplo, os de transferência e sintoma. E as um certo manejo da transferência pelo analista, cujo
complicações começam aqui. O caso é que estas resultado é a construção de um novo conjunto de
operações requerem da psicanálise tanto firmeza em sintomas referido à situação presente do
relação à especificidade do seu método, quanto atendimento. Tal manejo consiste, basicamente, na
capacidade de se deixar modificar, alterar e mesmo colocação da regra fundamental da associação livre
distorcer. E para isto não basta boa vontade. É ao analisando e sua contrapartida, a atenção
necessário desenvolvermos recursos conceituais flutuante, ao analista. Os demais procedimentos
que, atendendo à singularidade do nosso campo, clínicos descritos por Freud justificam-se na medida
possam permitir um grau de porosidade maior, tendo em que possibilitam a vigência da regra fundamental.
em vista a interlocução mais ampla junto de outras É o caso, por exemplo, da posição de abstinência
práticas que nos são estranhas. do analista, que, na medida do possível, não deve
Vamos pensar esta questão a partir do atender as demandas inconscientes recalcadas do
conceito de sintoma, peça-chave de nossa jornada. analisando, expressas na transferência, prestando-
O sintoma com que trabalha o psicanalista no lhes, contudo, continência e reconhecimento através
contexto do consultório, dos hospitais ou das escolas das interpretações. Segundo Freud4, a privação de
pode ser definido pelos mesmos elementos teóricos certas satisfações libidinais sintomáticas é um fator
e metodológicos? Ou a sua compreensão requer, em importante na análise, dando ensejo a um movimento
cada caso, a mobilização de recursos de outros regressivo que culmina na neurose de transferência.
campos institucionais? Como pensar as condições Mas este caminho se constrói apenas na medida em
de pesquisa e abordagem do sintoma nestes diversos que a comunicação entre os sujeitos fique remetida
contextos, ou seja, como pensar a transferência em à regra da associação livre, que permite a produção
modelos tão distintos da clínica convencional? Trata- discursiva no acento dos processos psíquicos
se, aqui, da comparação de atividades psicanalíticas primários, conforme os nexos dos deslocamentos e
bastante diferentes. Para realizá-la, seria das condensações. Estas são as vias privilegiadas
interessante nos acercarmos dos conceitos de acesso às representações inconscientes.
originários de sintoma e transferência. Comecemos, Constrange-se, assim, a ação organizada dos
então, por considerar a situação estabelecida na processos psíquicos secundários, que se mostram
clínica das neuroses, conforme os parâmetros da sempre mais recobridores das problemáticas
experiência freudiana, deixando de lado as inconscientes. Ainda é preciso dizer que o analista
particularidades colocadas no tratamento de outras trabalha retornando o saber produzido nestas
psicopatologias, como os quadros fronteiriços, as condições ao próprio sujeito, relançando o discurso
perversões e as psicoses. Serei breve e abordarei em análise, sob transferência, o que promove as
apenas um aspecto da questão, qual seja, o sintoma condições de um saber subjetivado, implicado com
numa de suas expressões particulares no âmbito da as próprias questões e desejos que o movem. Tal
análise – a neurose de transferência. seria o efeito da cura, conforme as afirmações de
Em Recordar, repetir e elaborar, Freud (1914)4 Freud.
apresenta o processo de análise da seguinte Vemos, portanto, que a operação analítica
maneira: “Toda vida, o instrumento principal para requer a transformação necessária dos conflitos
reprimir a compulsão do paciente e transformá-la subjacentes à neurose infantil do sujeito em conflitos
num motivo para recordar reside no manejo da passíveis de serem abordados no contexto da
transferência... Contanto que o paciente apresente análise. Buscar as condições de interpretabilidade
complacência bastante para respeitar as condições do sintoma é instituir uma nova experiência
necessárias da análise, alcançamos normalmente sintomática nos moldes da neurose de transferência.
sucesso em fornecer a todos os sintomas da moléstia Podemos concluir que o sintoma do qual se queixa
um novo significado transferencial, e em substituir o analisando não se oferece à interpretação analítica
sua neurose comum por uma ‘neurose de de modo direto. É preciso operações mediadoras que
transferência’, da qual pode ser curado pelo trabalho tornem possível o acesso analítico à neurose infantil
terapêutico. A transferência cria, assim, uma região do sujeito. Freud fala do espaço da análise como
intermediária entre a doença e a vida real, através um espaço intermediário entre a vida e a doença. O

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que se cura, portanto, é a neurose artificialmente abordar diretamente pela interpretação jurídica. É
construída no campo transferencial, a partir de necessária a mediação de procedimentos
procedimentos específicos que são forjados na institucionais bastante específicos que confrontam
transmissão da psicanálise, nas instituições o discurso conflitivo das “partes” às normas jurídicas,
encarregadas da formação do analista, no âmbito que são prescrições do dever-ser da conduta
das análises pessoais e dos institutos de formação. humana, esquemas do tipo lícito/ilícito, certo/errado,
Vale dizer que, no decorrer de sua obra, que são aplicados pelo juiz. Aqui, podemos fazer um
principalmente a partir dos textos relativos à segunda paralelo com a situação da clínica psicanalítica: a
tópica e à segunda teoria das pulsões, Freud neurose de transferência está para a cura como o
formulou novas idéias acerca do processo analítico, conflito jurídico está para a decisão judicial. Trata-
considerando, por exemplo, as questões colocadas se, em cada caso, de conflitos artificialmente
pela compulsão à repetição, abrindo o campo da construídos e intermediários entre os problemas
análise para experiências da ordem do inicialmente trazidos e as soluções buscadas nestas
irrepresentável. O conceito de transferência se instituições.
alarga, vista agora como repetição do recalcado e O equivalente ao que chamamos de cura no
também acontecimento inusitado forjado por ambos âmbito da clínica seria, no caso do direito, a eficácia
os agentes da análise. Em seu texto Construções da decisão jurídica na solução de conflitos
em análise, Freud (1937)5 dá o testemunho das intersubjetivos. Segundo os juristas, o que garante
grandes mudanças que estas idéias promoveram no eficácia à decisão jurídica é o fato dela proceder de
dispositivo da interpretação do analista. uma instância de autoridade social altamente
Tais considerações estão longe de esgotar a institucionalizada e, portanto, reconhecida por todos.
complexidade do que se passa numa análise, porém Este reconhecimento também é garantido por forças
nos oferecem um recorte mínimo para o seguimento políticas e policiais que têm um poder concreto de
da conversa. sanção. Deste modo, o direito é definido pelos juristas
Vamos deixar, por ora, os domínios de nossa como uma instituição social coativa, sancionadora e
área e observar outros modos de produção normativa da conduta humana, tendo por finalidade
institucional. Veremos que operações análogas estão decidir os conflitos sociais com o menor grau de
presentes no engenho de outras práticas sociais. perturbação possível. Miguel Reale Jr. (1972), jurista
Parece bastante comum a existência de dispositivos brasileiro, compara o direito com a moral, por
institucionais que, em certa medida, constroem a exemplo, vista como conjunto de valores de uma
realidade que pretendem abordar. Tomarei como determinada comunidade, afirmando que a moral
exemplo a prática do direito, cuja pesquisa me seria também uma instância normativa da conduta
ocupou durante alguns anos. Depois discutiremos humana. Porém, segundo este autor, a diferença
sobre as condições do trabalho que se pode essencial entre eles reside no fato de que o comando
desenvolver entre estas duas áreas, a psicanálise e do direito é de natureza objetiva, ou seja, caracteriza-
o direito, o objeto do psicanalista nestas condições se pelo fato de ordenar e, ao mesmo tempo, garantir
e as noções de sintoma e de transferência com as o poder de exigir que se cumpra.
quais ele pode trabalhar. Espero que esta reflexão Vamos ao traçado de alguns procedimentos
estabeleça alguns elementos para pensar a da função normativa jurídica, de acordo com Tércio
psicanálise em conjugação com outras diversas Sampaio Ferraz Jr.2,3, jurista que sustenta uma visão
práticas sociais, como a educação, a medicina, etc. pragmática do direito. Na abertura de um processo
Neste sentido, pretendo esboçar idéias que, judicial, as chamadas “partes” devem, antes de mais
guardadas as especificidades, possam ser nada, constituírem seus representantes jurídicos, os
generalizadas para outras situações. advogados, que são profissionais especializados no
O dispositivo institucional do direito é a função manejo da linguagem jurídica, linguagem técnica
normativa jurídica. Vamos surpreendê-la nas dotada de grande formalidade e dramaticidade. Deste
condições concretas do seu exercício, no campo dos modo, no âmbito do processo, as partes não falam
processos judiciais. De modo geral, a função diretamente sobre seus conflitos, exceto nas
normativa jurídica transforma os conflitos que audiências, ocasiões em que se apresentam
chegam à instância judicial em conflitos jurídicos. O pessoalmente ao juiz. Os advogados, então, no
processo de construção do conflito jurídico coincide exercício de suas funções, tomam o discurso de seus
com o processo de elaboração da sentença judicial clientes e elaboram estratégias de defesa e/ou
que lhe põe fim, a decisão do juiz. Os chamados acusação, o que produz um grau de modificação ao
litigantes, quando chegam ao fórum, apresentam que foi trazido inicialmente. Em alguma medida,
questões que, também neste caso, não se deixam podemos pensar que o mesmo ocorre numa análise,

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em proporções e condições que variam, pois o estratégicas. Os casos atendidos realizam a cena
analista toma o discurso do analisando e o conforma transferencial genérica conforme suas
aos termos da teoria que dispõe para ouvi-lo. singularidades, tornando cada experiência uma
Dando seqüência aos procedimentos jurídicos, experiência única e, ao mesmo tempo, reconhecida
observamos que as partes são obrigadas a se como portadora do selo da referida instituição. Vamos
levarem em conta no plano da comunicação objetiva. rever alguns aspectos da posição do psicanalista e
Um processo judicial muitas vezes se inicia pelo fato do juiz no plano da transferência genérica.
da comunicação entre os sujeitos estar, por suposto No limite do possível, o analista se abstém de
ou de fato, interrompida. A regra que se quer garantir, colocar suas demandas e opiniões, de emitir
então, no trânsito jurídico é a chamada regra da julgamentos sobre o que traz o analisando,
exigibilidade da comunicação, ainda que a implicando-o na lida com seus próprios desejos e
interlocução entre as partes seja vista como conflitos inconscientes. Na posição de uma espécie
discussão-contra. A discussão-contra se caracteriza de presença vazia, o analista estabelece um vínculo
pelo fato de que o objeto da conversa é sempre curioso com o seu parceiro, pautado na crise de
dilemático, conflitivo, posto na condição de um certos parâmetros de objetividade e racionalidade,
impasse. O direito deve garantir condições para que o que potencializa a ação dos processos psíquicos
esta discussão-contra não se interrompa, e que primários, abrindo o campo para o reconhecimento
transcorra mediante regras claras, num contexto de e o trabalho com os desejos inconscientes. Para
comunicação racional e objetiva. Pois bem. Para isto, tanto, o analista se coloca na posição de retornar o
é necessário que a decisão sobre o dilema das partes saber ao próprio sujeito, o que produz as condições
seja formulada por um terceiro, o juiz. Deste modo, de um saber subjetivado, que leva em conta as
as partes se eximem de formular a decisão sobre condições singulares de sua origem. Uma expressão
seus conflitos, sendo esta uma exigência mesma da disto é a construção da temporalidade do a posteriori,
prática jurídica. Desresponsabilizadas da tomada de que reflete as condições de um tempo fortemente
decisão e deslocadas de falarem diretamente sobre marcado pelas referências subjetivas em questão.
suas questões, delegando este papel aos respectivos Em estudo anterior1, cheguei a dizer que a neurose
advogados, as partes submetem-se, assim, aos de transferência é, num certo sentido, a
benefícios da instituição em foco. materialização deste tempo subjetivado, trazido para
No processo judicial, o discurso das partes um primeiro plano das relações entre os sujeitos,
deve conformar-se a um grau máximo de em lugar do tempo cronológico e racional que marca
objetividade, o que se garante, por exemplo, na dominantemente as relações sociais corriqueiras.
exigência de prova jurídica aos fatos que são Na cena transferencial genérica
alegados. A prova constitui um modo de produção correspondente às práticas jurídicas, o juiz toma a
da verdade, e se realiza conforme meios específicos seu cargo a responsabilidade de interpretar e julgar
e controlados. O juiz decide os meios e as condições os conflitos trazidos pelos litigantes, assumindo o
para a obtenção de prova, bem como os prazos para lugar de saber, ao invés de relançá-lo ao sujeito. Além
isto. O que não resiste ao dever de prova é disso, o juiz comparece com um código racional pré-
descartado do processo, de modo que nem tudo pode estabelecido, as normas jurídicas, situando o
ser conflito no âmbito judicial. Eis um poderoso discurso das partes conforme as referências
dispositivo de “varredura” ou transformação dos socialmente determinadas do certo/errado, lícito/
aspectos mais subjetivos presentes no discurso das ilícito. Deste modo, a comunicação entre as partes é
partes. pautada na crise de certos parâmetros de
Ainda falta dizer que o juiz assume subjetividade, o que se vê, por exemplo, na
deliberadamente, e de acordo com a demanda e o instauração da temporalidade burocrática dos
consentimento das partes, o lugar de saber e decisão estabelecimentos de prazo, condição oposta àquela
sobre os conflitos em pauta, diferentemente do conduzida pela regra da associação livre. Esta
psicanalista, cuja posição consiste em retornar o situação visa fabricar as condições de um saber
saber ao próprio sujeito. De qualquer modo, em objetivado, capaz de regular as relações entre os
ambos os casos, na psicanálise e no direito, temos sujeitos a partir de referências acordadas
uma máquina discursiva imensa operando na amplamente pelo conjunto social.
produção de determinados conflitos como modo de Uma vez esboçadas, de modo geral, algumas
resolver... conflitos! condições da prática psicanalítica e jurídica em seus
Para conseguir seus resultados, cada prática contextos originários, pensemos, agora, o particular
institucional arma uma cena transferencial genérica, encontro que estabelecem no quadro de atividades
onde as posições do psicanalista e do juiz são conjuntas. Podemos considerar, por exemplo, as

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atividades de perícia psicológica judicial em varas sobre a guarda da filha. De qualquer modo, seria
criminais, de família ou de menores; os pedidos do possível, a partir da perícia, concluir sobre a posição
juiz para que o psicanalista participe de audiências; desta criança no desejo parental? Penso que,
a solicitação judicial para que o psicanalista rigorosamente, esta pesquisa não é viável nas
acompanhe os primeiros re-encontros entre pais e condições transferenciais de uma perícia judicial, o
filhos depois de longo tempo de interrupção dos que não exclui o fato de que aí possa emergir uma
mesmos; os trabalhos psicanalíticos voltados para escuta analítica. O que pôde ser trabalhado no
a mediação de conflitos judiciais; etc. exemplo citado foi uma nova versão da cena
Estas situações implicam um campo de judiciária, construída na transferência com o perito
trabalho híbrido, em que jogam diferentes psicanalista, desobstruindo o caminho para que se
dispositivos, a escuta analítica e a função normativa instaurasse uma ação judicial com respeito à guarda
jurídica, colocados na condição de colaboração, mas da criança. Enfim, a escuta analítica no campo da
também, é fácil prever, na condição de disputa e perícia está confinada aos limites da cena jurídica, e
resistências mútuas. Afinal, muitos dos seus mantendo-se firme neste perímetro tem boas
procedimentos são opostos, sendo bastante provável condições de alçar vôo. O caso é que não podemos
que a aliança entre elas não se deixe realizar pretender a redução do conflito judicial a um conflito
harmonicamente. Pelo contrário, uma luta acirrada todo ele processável no campo da psicanálise. Cabe
se instala quanto à posse do objeto institucional e refrearmos as ambições psicanalíticas de colonizar
não há como resolvê-la na ilusão de se manterem as realidades conflitivas que se desenham fora do
os purismos de cada área. Ora, o que se passa é contexto originário da clínica.
que a sobreposição das duas cenas transferenciais O segundo ponto a considerar sobre este
genéricas cria, na realidade, uma terceira cena, que campo híbrido de trabalho é que a transferência
não se deixa mais reduzir aos elementos iniciais. Do constituída nestas condições é múltipla, composta
ponto de vista do psicanalista, é necessário de acordo com os procedimentos de várias práticas
considerar agora as novas posições e lugares que institucionais. Trabalhar nesta e com esta
lhe são arranjados na transferência, para pensar que superposição é lidar com uma profusão de vozes
escuta analítica pode ficar recuperada ou inventada dissonantes e contraditórias que atravessam o
nestas condições. campo transferencial. Tal condição implica levarmos
Pois bem. Nesta outra cena transferencial em conta nossos interlocutores e seus métodos de
genérica, observamos um psicanalista revestido de trabalho, e operar com eles, sem medo de que a
fortes traços superegóicos e normatizadores, que psicanálise se macule... pois ela se macula! A cena
emanam da instituição dominante em que ele está, transferencial genérica em nosso exemplo deve,
e que, portanto, não podem... e não devem ser portanto, ser construída com o jurista, o que requer,
elididos por qualquer estratégia. De todo modo, a muito concretamente, fazer conversar a psicanálise
situação discursiva não o permitiria. A providência e o direito, num plano que está longe de ser um plano
do nosso psicanalista deveria ser muito outra: colocar teórico e abstrato. Já vimos que estas duas
estes atributos superegóicos a serviço do trabalho. instituições, em particular, mobilizam procedimentos
E isto se faz considerando o seguinte. Primeiro, o bastante contraditórios entre si, de modo que
saber produzido neste contexto híbrido retorna representam, uma para a outra, os aspectos mais
imediatamente à cena judicial mesma, e não a um recusados no âmbito de suas ações. É neste sentido
possível lugar recôndito da subjetividade dos que é quase um contra-senso pedir ao psicanalista
litigantes, que estaria a salvo da experiência judicial. que coloque os atributos sancionadores do seu novo
Nada da transferência em questão nos autoriza a lugar transferencial a serviço do trabalho. É pedir ao
interpretar determinados fenômenos como se psicanalista que opere com o seu avesso, que
estivéssemos no consultório. Lembro-me, aqui, de pratique uma descentração máxima, sem deixar
um caso de perícia psicológica judicial cuja questão ainda de ser reconhecido como um psicanalista. O
era a disputa litigiosa pela guarda de uma criança. interessante é pensar que as descobertas desta
Nas entrevistas periciais, produziu-se o efeito de um viagem ao estrangeiro retornam à própria clínica,
forte apagamento da filha no discurso dos pais, ao trazendo-lhes novos parâmetros. Este é, entretanto,
passo que sobrevinham muitas representações assunto para outra hora.
acerca de outro processo judicial acionado por eles, Com o objetivo de ilustrar a cena transferencial
que tramitava na vara criminal e versava sobre a híbrida em que opera o psicanalista no contexto
acusação do pai de que a mãe traficava drogas. Algo judicial, gostaria de mencionar outro fragmento de
se passava entre os pais no âmbito judicial que perícia, cujos efeitos analíticos se mostraram
tornava muito difícil abrir espaço para a discussão surpreendentes, uma vez que possibilitaram uma

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continuidade bastante incomum do trabalho. O que de elaboração da problemática que foi se constituindo
se desenhou na transferência com o perito foi a em presença da perita psicanalista; além disso, a
repetição vigorosa de uma experiência na qual os condução do processo pelo juiz se deu de modo
pais da criança se achavam aprisionados, a de muito favorável, conforme pude constatar pelo relato
discutirem violentamente na presença de terceiros. dos pais acerca das suas atuações (do juiz) nas
Durante as sessões periciais, os pais relataram cenas audiências. A sensibilidade com que o juiz parecia
incontáveis de discussões mantidas na entrada do alternar posições mais normativas e mais reservadas
clube, da escola, diante da filha e de parentes, o que em relação ao movimento dos pais chamou minha
parecia justificar, em parte, a demanda por um atenção. Enfim, nos quatro encontros que tive com
processo judicial que se alongava por anos, sem os pais juntos, pudemos trabalhar o reconhecimento
possibilidade de acordo. Afinal, a situação litigiosa da série de repetições que não cessavam, na qual
judicial traz, ela mesma, a estrutura de uma discutiam diante de terceiros, sendo esta a estrutura
discussão assistida (nos dois sentidos da palavra). mesma das relações mantidas no âmbito do processo
O processo tratava da regulamentação de visitas do judicial. Os pais estabeleceram elementos para a
pai à filha, estando a menor sob a guarda da mãe. realização de um acordo quanto à questão das visitas
Uma vez encerrada a perícia e entregue o laudo, os à filha, encerrando o processo judicial sem que o
pais solicitaram ao juiz alguns encontros com a perita, juiz precisasse ditar, ele, a sentença do acordo.
onde pudessem comparecer juntos para refletirem Aqui é necessário esclarecer em quê a atuação
sobre os dados do trabalho. O juiz aceitou o pedido, do perito-psicanalista diferiu da atuação mais típica
suspendendo temporariamente a realização de uma do psicanalista na clínica. No caso citado, as
audiência já marcada, aguardando o resultado do questões que mantinham os pais nesta série de
novo trabalho. repetições não puderam se esclarecer no âmbito do
Esta solicitação dos pais me surpreendeu, trabalho pericial, pois não era esta a direção do
dado que, até então, ela não fora sequer aventada trabalho, direção impossível no plano da
no âmbito de nossas entrevistas. Os pais, inclusive, transferência híbrida em que nos encontrávamos,
a apresentaram diretamente e em primeiro lugar ao associados aos procedimentos da prática jurídica.
juiz. Além disso, tal pedido não figura como algo Se tal pesquisa fosse empreendida nos moldes do
corriqueiro nos processos judiciais. Muitas vezes o que observamos na clínica convencional,
perito é chamado a falar sobre o seu laudo depois incorreríamos num agravamento dos conflitos
de encerrado, respondendo às dúvidas ou críticas encenados judicialmente e, a rigor, não obteríamos
das partes, bem como do juiz, devendo fazê-lo por os resultados buscados. Muitas vezes ouvimos falar
escrito, nos autos do processo, ou pessoalmente, da atuação desastrosa de certos advogados que
em audiência. Entretanto, algo diferente se passava acirram a briga judicial em função de suas estratégias
neste caso. Os pais procuravam prolongar as de trabalho. Pois bem. Ocorre que, muitas vezes, e
conversas comigo, agora na condição de movidos pelas melhores intenções, os psicólogos ou
comparecem juntos. Como se sabe, na grande psicanalistas que trabalham na esfera judicial
maioria das vezes, os pais em litígio são recebidos produzem o mesmo resultado, quando pretendem
separadamente para as entrevistas periciais, tendo instaurar a cena clássica do consultório onde, de fato,
sido este o procedimento habitual cumprido até ali. ela não cabe. É neste sentido que mencionarei, a
Iniciamos, então, a segunda etapa do trabalho. seguir, o risco de perpetrarmos em maior grau uma
Logo na primeira entrevista, os pais tiveram uma violência que é inerente à prática clínica, incluindo
discussão ruidosa na sala de espera do meu aqui a prática clínica no âmbito judicial. Procurar as
consultório, na presença de pessoas estranhas a possibilidades e limites da escuta analítica no
eles, discussão que continuaram sem interrupção na encontro com a função normativa jurídica significa,
minha presença. O que me pareceu impressionante portanto, re-desenhar a transferência e a construção
neste caso foi a tenacidade com que se repetiam sintomática com a qual vamos lidar.
situações de briga frente a terceiros, a ponto dos É no âmbito da cena judicial que o perito-
pais recriarem tal situação no âmbito mesmo da psicanalista trabalha, ainda que a sua escuta seja
perícia! Porém, que esta cena se pudesse recriar operada, em parte, por referentes alheios à prática
no bojo das relações com a perita psicanalista já discursiva jurídica. No caso em questão, a cena
indicava um resultado analítico do trabalho, dado judicial reeditada com a perita-psicanalista, cuja
que pude perceber gradativamente. É preciso dizer recepção é distinta daquela oferecida pelos
que condições especiais cercaram o andamento operadores do direito, criou a possibilidade do
deste processo; os pais mostravam, apesar dos encerramento do processo, ou seja, a possibilidade
infindáveis ataques mútuos, bons recursos psíquicos dos pais realizarem eles próprios o acordo judicial,

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dispensando, neste ponto, o arbítrio do juiz, o terceiro Estas questões saem do registro da
da cena jurídica. E tal foi possível também em razão impossibilidade se considerarmos que o sintoma com
da conduta bastante adequada do juiz, que “pôde” que trabalhamos, em qualquer situação, na clínica
se retirar da cena quando isto se fazia sustentável, ou fora dela, não é uma construção dada, que está
no interior mesmo do processo. Podemos ver, com lá antes do psicanalista chegar. É sempre a
este exemplo, que a atuação do juiz também se altera transferência, armada nas condições discursivas em
em presença deste parceiro que é o psicanalista. questão, e seu manejo que dão as coordenadas da
Também o juiz se achava numa rede transferencial construção sintomática. Em minha concepção, o que
híbrida em que a função normativa se deixava marcar define a psicanálise é a capacidade plástica de
por matizes diferentes daqueles da situação jurídica intervir na construção de sintomas que possam
originária. Brincando um pouco com as palavras, render sentido subjetivado. E isto se consegue
podemos dizer que, neste caso, os pais tanto melhor, nos campos institucionais híbridos,
compareceram juntos no lugar em que o psicanalista quanto mais dentro dos novos limites transferenciais
e o juiz trabalharam juntos, lugar simbólico se puder trabalhar! Fora desta condição, não apenas
construído no encontro efetivo de dois dispositivos diminuímos o alcance de nossa compreensão, o
institucionais distintos. campo de analisabilidade, como determinamos, em
Com estes fragmentos de perícia, busquei maior grau, uma violência que, afinal, é inerente a
ilustrar o que chamo de construção de uma nova cena qualquer prática institucional. Vimos quantas
transferencial genérica em que se movem o coerções se aplicam aos discursos conflitivos dos
psicanalista e o jurista, embora no curto espaço deste sujeitos para que constituam “neuroses de
artigo não tenha sido possível adentrar as vicissitudes transferência” ou “conflitos jurídicos”; tudo isto se
da escuta analítica aí instituída. Para tanto, remeto produz com violência e no exercício do poder
o leitor ao livro em que detalho o assunto1. instituído de cada prática social. Assim, a violência
Seguindo com as considerações sobre este é produtiva e constitutiva dos processos
novo campo de trabalho, levantarei um terceiro ponto, institucionais, porém é necessário que a
que decorre, na realidade, do que já foi dito: as processemos dentro de certos limites. Os
atividades psicanalíticas híbridas demandam um forte psicanalistas, em seu conjunto, precisam inventar
refrear da conduta interpretativa a que estamos – dispositivos que garantam uma vigilância constante
por que não dizer – constrangidos na clínica, mesmo com respeito à violência inerente de suas práticas.
quando não formulamos verbalmente nossas No âmbito desta reflexão, um recurso seria levar
interpretações aos analisandos. Ocorre que a própria sempre em conta o contexto institucional da
regra da associação livre posta a operar em boas transferência em que se trabalha. Mas o que isto quer
condições simbólicas (o nosso referencial aqui é dizer propriamente? Isto quer dizer: compor uma
sempre a clínica das neuroses, pelo menos em um noção de transferência considerando os efeitos do
de seus aspectos...) produz sentidos que remetem a encontro da escuta analítica com os outros dispositivos
outros sentidos, qual um processo onírico que teórico-metodológicos em pauta. A construção deste
decanta num sonho, por exemplo, cujo breve campo demanda uma concepção de transferência e
enunciado guarda uma infinidade de pensamentos de sintoma que não estão dadas à priori. É necessário
e relações. Pois bem. A posição transferencial do defini-las na conversa com o campo institucional com
psicanalista situado no âmbito judicial, na vigência o qual a psicanálise se alia, o que requer, podemos
da função normativa jurídica, implica um modo de dizer, um “anel de schazam”, capaz de mágicas
pensar bem diferente, que não depende inteiramente apenas quando se reúnem as suas metades. Enfim,
da escolha pessoal ou do estilo de cada psicanalista, esta construção não se resolve de modo individual,
mas emana da nova estrutura institucional a que ele deliberado, toda ela no campo da racionalidade. É
está filiado. Considerar de fato o nosso interlocutor necessariamente uma construção coletiva, plural,
do direito, e não apenas como pró-forma, significa, descentrada da exclusividade da lente do psicanalista.
num sentido muito profundo e até arcaico, pensar Deixar-se analisar no próprio dispositivo da
como ele... Poderemos nos acercar disto, sem termos escuta, eis a posição inevitável que isto requer.
a sensação eminente de que produzimos um Deixar o dispositivo da escuta analítica se vazar de
atestado de óbito à escuta analítica? Poderemos outros dispositivos... Deixar-se, enfim, revolucionar.
tolerar o informe ou o disforme no coração do Gostaria de finalizar com esta idéia,
dispositivo que nos confere identidade? E a partir estendendo-a um pouco mais. O desencastelamento
daí, qual seria o sintoma artificial constituído nestas da clínica convencional exige que a psicanálise se
cenas transferenciais híbridas? Como pensar o deixe penetrar por outras práticas, desfigurar-se, para
sintoma psicanalítico no fora da psicanálise? então re-fundar o que lhe é essencial. A psicanálise

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Caffé M. A Psicanálise no encontro com outras práticas institucionais.

precisa, literalmente, superar seus limites, transgredi- é justamente a capacidade coletiva da revolta. Numa
los. De tal modo que, fora da sua “casa-clínica”, o expressão de Kristeva6, a situação dramática do
psicanalista deve ser um sujeito capaz de revolta. sujeito ocidental contemporâneo é a de que ele não
Tomo a expressão de Julia Kristeva6, em seu livro se sente nem culpado, nem responsável, mas sim
Sentido e contra-senso da revolta. Vale a pena incapaz de revolta (p. 35).
conferir. Permitam-me alguns parágrafos mais. Prosseguindo, Kristeva6 vai tomar o termo
Kristeva 6 descreve a realidade ocidental revolta também no sentido de “retorno... acesso ao
moderna como uma ordem normalizadora e ao arcaico, a uma temporalidade fora-do-tempo...” (p.
mesmo tempo falsificável, ou pervertível, dentro da 36). Este retorno (re-volta) estaria brilhantemente
qual é cada vez mais difícil a experiência importante figurado no romance de Proust, Em busca do tempo
e criativa da revolta. O que se tem ameaçado é a perdido. Pois bem, ambas as acepções do termo
cultura-revolta, e a autora nos chama a pensar, como revolta – rebelião e retorno - poderiam ser
sujeitos coletivos, as respostas que podemos dar a encontradas no ato analítico, pois ele coloca em cena
isto, ou que a psicanálise pode dar a isso. Afinal, a a experiência da revolta articulada na trama edípica
cultura não é um dado, tem que ser re-fundada a e o retorno ao arcaico, às figuras do infantil.
cada vez, a cada geração. Pois bem, a autora Este passeio por Kristeva6 nos rende uma idéia
sublinha que no centro da fundação da cultura há interessante, a de que a castração, enquanto
um ato de revolta, conforme postula Freud no texto operação simbólica, possui o aspecto da interdição
Totem e tabu, de 1912. e também o aspecto da rebelião, ainda que não se
No mito que remonta à horda primitiva humana, trate aqui, diretamente, da rebelião primária que
a rebelião dos filhos contra o pai autoritário, admirado perpetrou o assassinato do pai primitivo. Esta seria
e temido, teria culminado no seu assassinato. Os da ordem de uma fantasia fundamental, de uma
irmãos, num êxtase de alegria, organizaram um ritual fantasia primária a ser recalcada na instituição do
canibalesco e consumiram seu corpo. Neste ato, psiquismo. A rebelião em jogo na operação da
identificaram-se com o pai adorado, incorporando castração seria uma rebelião secundária, tão
suas qualidades e estabelecendo, ao mesmo tempo, importante para a cultura humana quanto a
um sentimento de culpa pelo assassinato e o experiência reguladora da interdição. O que teríamos
concomitante arrependimento que sela o pacto social sob ameaça numa sociedade falsificável e
daí por diante. E... coisa curiosa, os rituais religiosos normalizadora é justamente este aspecto da
totêmicos teriam a função de lembrar o triunfo castração simbólica que é a capacidade de rebelião
conseguido sobre o pai, ao mesmo tempo em que garantida.
renovam a culpabilidade e o laço social. Kristeva6 Em outro livro denominado As novas doenças
enfatiza que o lucro da rebelião é a apropriação dos da alma, Kristeva7 apresenta um trabalho original com
atributos do pai. Isto justificaria o que Freud denomina o conceito de castração que segue o mesmo
como a necessidade de “mimar” a revolta. Alguns princípio. Diz a autora: “Contudo, se insistimos
procedimentos sociais, em especial os religiosos, demasiadamente apenas na negação e na rejeição
teriam o sentido “não de reproduzi-la tal qual, mas que subtendem a castração simbólica, corremos o
de representá-la em forma de uma comemoração alto risco de enraizá-la apenas no luto, prometendo
festiva ou sacrificial...” (p. 32). aos analistas e analisandos uma existência estóica...
Kristeva6 conclui: Freud é “... o primeiro a É de se perguntar se a castração simbólica, tributária
sublinhar esse ‘lucro da rebelião’ e a nos convidar a da negação e da rejeição, cheia de separação e
pensar nas situações em que ele ‘ameaça frustração, carregada de perdas oral, anal e peniana,
desaparecer’ – já que é então, e somente então, que não deve seu impacto benevolente e brutal ao fato
a obediência culpada cede diante da necessidade de ser, para além da negação, uma questão” (p. 98).
de renovar a rebelião... Quando não temos mais Assim, a castração seria possibilidade de operar
prazer nos laços, recomeçamos a revolta...” (p. 33). sucessivas questões a partir da realidade traumática
Segundo a autora, a inserção do sujeito no socius é do sexual. A castração simbólica é o que torna
ameaçada quando ele não pode mais retirar dali a possível fazer questão.
apropriação das qualidades do pai, ou seja, Praticar psicanálise junto de outras
identificar-se com os seus atributos, com o seu poder, instituições, colocar a escuta analítica no encontro
sentir-se incluído na ordem social. O desemprego, a com outros dispositivos metodológicos implica criar
exploração no trabalho, a injustiça social, enfim, as um campo de diferenças. Ocorre que não há, de
sucessivas frustrações acumuladas durante a vida início, diferença alguma entre psicanálise e direito.
são fatores de enfraquecimento do pacto social, e A diferença é ponto de chegada, é uma relação a
estariam especialmente intensificados em nossa ser forjada por cada instituição num ato de rebelião
sociedade atual, pois o que nela se põe em cheque e retorno ao que está na origem.

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Caffé M. A Psicanálise no encontro com outras práticas institucionais.

Caffé M. Practical application of psychoanalysis in institutional practices. Saúde, Ética & Justiça. 2006;11(1/2):36-44.

ABSTRACT: This article aims to explore psychoanalysis outside the usual context of the clinic, focusing on the occasions
it is called upon to collaborate with Family Law practice. As such, Law and Psychoanalysis constitute a hybrid institutional
realm where the agency of analytical listening is articulated with the agency legal precept. Under this circumstances,
the practice psychoanalysis is taken into new conditions and demands a redefinition of concepts such as transference
and symptoms from their traditional use.

KEY WORDS: Psychoanalysis/trends. Psychoanalysis/legislation & jurisprudence.

REFERÊNCIAS

1. Caffé M. Psicanálise e direito – a escuta analítica e a 5. Freud S (1937). Construções em análise. In: Obras
função normativa jurídica. São Paulo: Quartier Latin; completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira.
2003. Rio de Janeiro: Imago; 1996. v.23.
2. Ferraz Jr TS. Direito, retórica e comunicação. São Paulo: 6. Kristeva J. Sentido e contra-senso da revolta: poderes
Saraiva; 1973. e limites da psicanálise I. Rio de Janeiro: Ed. Rocco;
3. Ferraz Jr TS. Introdução ao estudo do direito: técnica, 2000.
decisão, dominação. São Paulo: Atlas; 1994.
7. Kristeva J. As novas doenças da alma. Rio de Janeiro:
4. Freud S (1914). Recordar, repetir e elaborar. In: Obras Ed. Rocco; 2002.
completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira.
Rio de Janeiro: Imago; 1996. v.12. 8. Reale M. Filosofia do direito. São Paulo: Saraiva; 1972.

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