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Resumo
Considerações em torno do termo bissexualidade despertam uma série de questões. Pode a psi-
canálise utilizar esse termo que, para Fliess, se referia a uma determinação fixa e universal do
masculino e do feminino, da qual, os “períodos sexuais” de homens e mulheres eram apenas uma
manifestação entre outras? Por que conservar o termo bissexualidade atribuída de psíquica? Não
basta considerar a destinação diversa dos componentes homossexuais do desejo naqueles sujeitos
cuja escolha de objeto seja heterossexual e em outros, cuja escolha seja homossexual? Como a
experiência da transferência faz surgir certa plasticidade dessas escolhas, uma contingência de
fatores de bifurcação apesar das determinações significantes da sexuação?
Palavras-chave
Bissexualidade, Contingência, Masculino, Feminino, Édipo, Rochedo da castração.
*
Título original: Faut-il dire bisexualité ou contingence dans la sexuation?
Por que não dizer que há uma expe- É mais surpreendente ler no texto
riência homossexual mesmo junto aos de Freud dois movimentos contrários:
heterossexuais que a superaram? Por que quando ele fala da recusa do feminino,
a tradição psicanalítica não se atém à a sexualidade humana não se deixa ins-
formulação final de Freud: a dissimetria crever dentro de uma lei biológica. Mas
que faz também relação entre o feminino em seguida, como se ele quisesse reunir
e o masculino consiste na abordagem por Ferenczi e Fliess, ele faz da recusa do
cada sexo da “recusa do feminino”? feminino uma verdade biológica. Ele não
Quando a questão ressurgiu, depois chega a dissociar duas ideias, no entanto,
das cartas a Fliess, na Análise terminável diferentes: de um lado, o recalcamento
e análise interminável (1937), o termo inconsciente tem uma relação maior com
“bissexualidade” é evocado por Freud a questão da diferença dos sexos pensada
cada vez que ele pensa nas relações que como “recusa do feminino” e, de outro
teve com seus amigos muito próximos e lado, esse feminino recalcado seria uma
que terminaram mal: Fliess em princípio, lei da natureza viva. Ele confunde Ferenczi
Ferenczi em seguida. e Fliess. E os tradutores que o seguiram o
Da relação com Ferenczi, reteremos fazem ainda mais, traduzindo por “roche-
o que Freud disse em 1937, justamente do de castração” aquilo em torno do qual
quando colocou o que devia a esses dois circulam tanto o inconsciente quanto a
homens. Ele reconhece todo o interesse diferença dos sexos. Vejamos o texto.
do trabalho de Ferenczi sobre a posição Trata-se da célebre frase sobre o
do analista em um tratamento e sobre “rochedo da castração”, que é tão ligada
os inconvenientes da intelectualização a todas as esquivas psíquicas (obrigada,
defensiva na contratransferência. Mas Ferenczi) quanto ao fato biológico de que
não reconhecia o que havia de verdade existem dois sexos e que esse fato é um
nas críticas que lhe dirigia Ferenczi: não enigma (obrigada, Fliess). O rochedo da
suportar que ele, Ferenczi, o tenha colo- castração será tanto a defesa pelos fantas-
cado em outro papel que não fosse de um mas contra a diferença dos sexos e o que
pai protetor em relação a um filho. ela implica de incompletude no sexual,
A questão que faz avançar a análise quanto a relação desse protesto psíquico
é então: no momento em que o analista ao fato biológico da dualidade dos sexos.
é colocado no lugar de figuras sedutoras, Freud faria do biológico o fundamento do
que colocam em perigo aquelas nas quais fantasmático nomeando rochedo biológico
ele gosta de se reconhecer, como poderia a relação necessária entre o fantasma e
ele aceitar sua implicação na transferência a diferença biológica? Não exatamente.
que mobiliza os elementos recalcados e Freud não fala do rochedo biológico
não encerrar seu paciente em uma análise nesse texto, mas de “gewachsenen Fels”,
sem fim? Essa questão se deixa reduzir difi- ou seja, de “promontório rochoso”. A
cilmente à de uma bissexualidade inscrita diferença dos sexos é essa rocha que
de maneira semelhante na natureza e na avança sem que possamos evitar. Não
sexualidade humana. Trata-se não de res- é o fundamento orgânico ao qual seria
taurar a verdade universal de oposição dos conveniente reconduzir todas as dificul-
sexos, mas de reconhecer na transferência dades psicológicas, é aquilo com o qual o
o impacto da “recusa do feminino” e de psicológico tem necessariamente de lidar.
compreender como os seres humanos se- Não é uma origem, é uma barreira que
xuados dão forma a essa recusa conforme exige voltas. Esse rochedo que avança é o
os estilos diferentes que fazem com que os que as defesas contornam, que a análise
chamemos mulher ou homem. esclarece e contra a qual ela se bate. Por
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que então Freud se volta ao biológico, ou pessoas cuja escolha do objeto mudou no
seja, a Fliess? “Die Ablehnung der Weibli- curso de suas existências. Geralmente eles
chkeit kann ja nichts anderes sein al seine suscitam dos próximos uma interrogação
biologische Tatsache, ein Stück jenes grossen divertida, mais ou menos bem intencio-
Rätsels der Geschlechtigkeit” (A recusa do nada: será que ele vai realmente ficar
feminino não pode, portanto, ser outra com uma mulher? Não será simplesmente
coisa que um dado biológico, uma parte para ter um bebê? O que se prepara como
deste grande enigma da sexuação). experiência futura, quando sua verdadeira
Se nos referimos ao artigo Bate-se numa inclinação ressurgir? Em oposição a essa
criança (ein Kind wird geschlagen), a bisse- desconfiança, que indica quanto essa ex-
xualidade é precisamente a presença recal- periência nos outros nos questiona, a psi-
cada do outro sexo em si. Tal proposição canálise contemporânea coloca como uma
deve à biologia a ideia da predominância evidência que todos os sujeitos desejantes
de múltiplos fatores determinantes, ou seja, estariam relacionados com a bissexualida-
de um sexo dominante. Mas essa frase não de. Não importa qual, claro, mas frequen-
tem o mesmo sentido em biologia e em psi- temente acrescentamos “bissexualidade
canálise, como faz crer a “bissexualidade”. psíquica” para torná-la menos inquietante.
O fato biológico do qual Fliess parte é mais Não se sabe ainda a que se opõe “psíquica”.
complexo ainda do que ele dizia, o que é Nesse caso, trata-se de dizer que não é
confirmado por todas as pesquisas recentes: uma bissexualidade orgânica? Ou que não
sexo genético, gonádico, hormonal, psíqui- é uma bissexualidade atuada? Que ela diz
co, social. Ele não pode tampouco ignorar respeito a representações, elementos de
a importância do biológico, que tem suas identificação com os genitores dos dois
leis próprias. O ponto sobre o qual Freud sexos na crise edipiana que, quando tiver
e Fliess pareciam concordar era a coinci- passado, tudo se acalmará: depois de hesi-
dência entre a ideia de dominância final tar a estar no erotismo ativo – mulher de
na ontogênese de um sexo sobre outro e o sua mãe – a filha se decidirá, por um lado,
recalcamento. Mas desde 1919, Freud ex- a se identificar com alguns traços do pai
plicitava que a ideia da predominância não e, por outro lado, a esperar de um homem
tinha o mesmo sentido em biologia – onde que tenha os traços de seu pai – um filho
ele se refere à organização final e diferen- que o pai não lhe deu.
ciada dos órgãos genitais – e em psicanálise! Na clínica, esse esquema ideal é rara-
Em psicanálise não há organização mente encontrado: antes, temos a tratar,
final simples da diferença dos sexos, por exemplo, determinada mulher para a
que faria naturalmente predominar um qual a negação dos componentes recal-
sexo sobre outro para cada um. Aí está a cados da sua sexualidade desaparece, não
questão, aquela que aponta bem Ferenczi com seu marido, poderoso em todos os
no momento em que acusa Freud de não sentidos do termo, mas com um homem
aceitar que ele, Ferenczi, tenha feito uma encontrado durante a análise e que ela diz
transferência diferente da de filho à figura ser muito mais “feminino”.
do pai. Recusando tomá-lo para análise, Eu evoquei longamente o tratamento
Freud rejeitou sua própria feminilidade à de Laurence Desproges no livro Elogio dos
qual correspondia a demanda de Ferenczi. acasos na vida sexual sem ter usado o termo
“bissexualidade”. Ou ainda um menino de
III Deve-se manter o termo uns oito anos, fascinado pela elegância e
“bissexualidade psíquica”? pela doçura do pai, que o havia escolhido
Todos nós conhecemos entre nossos ami- como filho predileto, e temente do poder
gos, nossos conhecidos e nossos pacientes, da mãe, foi atingido como por um raio na
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Bissexualidade: deve-se dizer bissexualidade ou contingência na sexuação?
sua história, quando o pai foi destruído pela dessa dimensão do desejo que não passa
doença durante o período da idolatria. A mais pelo Édipo, mas que pode encontrar
sexualidade dele ficou congelada nessa ex- vias de transformação específicas às ex-
periência, esperando sempre reencontrar periências vividas: se uma mudança de
nas mulheres esse acordo perfeito que ele regime do desejo pelo genitor do mesmo
conhecera, antes que tudo desaparecesse sexo não se produz in situ, não vemos como
de repente. E como não encontra o que um outro tipo de desejo, aquele pelo pai,
quer, ele se torna violento, buscando forçar poderia transformá-lo.
o desejo do outro, não fazendo nenhuma Dessas duas posições eu tomarei
concessão com relação a seus desejos, alguns exemplos dentro dos trabalhos re-
mas não suportando a própria violência. centes de psicanalistas de língua francesa.
Entretanto, algumas relações sexuais que Jacqueline Schaeffer em Bissexuali-
ele teve com homens tampouco foram sa- dade e diferença dos sexos no tratamento
tisfatórias. Nesse sentido, a bissexualidade (2002) traz de volta a bissexualidade a
seria uma hesitação na escolha do objeto uma predominância abusiva dentro do
e na posição subjetiva (“amar como um pensamento psicanalítico do modelo fá-
homem”, “amar como uma mulher”), que lico, confundido desde o próprio Freud,
diz respeito a todo mundo, mas que alguns com a diferença dos sexos. Ora, afirma
resolvem melhor que outros. com ardor Jacqueline Schaeffer, existe um
Aí estamos, portanto, de volta à além da fase fálica e mesmo da genitali-
questão da normatividade da escuta psi- dade, que, isoladamente, merece o nome
canalítica e a experiência da diferença dos de experiência da diferença dos sexos: é o
sexos como experiência maior na história acesso à violência necessária do ato sexual
das nossas sexualidades. Mas nesse caso, diferenciado que será capaz de separar ho-
então, não se pode propriamente falar de mens e mulheres do maternal. A fase fálica
bissexualidade, seja psíquica, seja atuada. não alcança a diferença dos sexos, que é
Há uma hesitação entre homossexualida- uma experiência de separação. Podemos
de e heterossexualidade, que será viven- fazer essa justiça ao autor, pois quando
ciada de maneira diversa. Freud introduziu em 1923 a fase fálica, ele
Outros analistas insistem, ao contrá- deixa bem claro que é porque a diferença
rio, que a bissexualidade deve ser entendi- entre masculino e feminino é impensável
da não unicamente a partir do Édipo e do que “ter ou não ter” ocupa todo o espaço
reconhecimento mais ou menos assumido na evitação da diferenciação. Na ver-
da diferença dos sexos. Ela seria um com- dade, lendo bem o texto A organização
ponente pré-edipiano, que merece o nome genital infantil, o que foi dito antes não se
de sexualidade, desde que ampliemos o acomoda muito bem. Impensada na fase
conceito de pulsão sexual para um tipo fálica, a diferença dos sexos bem poderia
de relação na qual nem a polarização por permanecer impensável, pois, em seguida,
um objeto total diferenciado, nem por um o menino, que ele toma como exemplo, em
objeto pulsional substituível (quer dizer, do uma espécie de delírio defensivo insidioso,
qual podemos fazer o luto) não domine o imagina todas as espécies de soluções para
desejo em formação. não se sentir demasiadamente ameaçado
Bissexualidade remete, então, ao que no seu prazer pela ideia de que o prazer
Freud denomina um desejo indistinto e só terá sentido em relação a outras pes-
que Melanie Klein chama “pais combi- soas que não tenham pênis. As meninas
nados”. A diferença da perspectiva pre- fizeram certamente algo mau para terem
cedente é que a hesitação, aqui, pode dar sido castradas, mas seguramente minha
oportunidade para uma elaboração in situ mãe terá um etc.
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Resta disso que, de um lado, as críticas gramática das pulsões assim como as subs-
concernentes ao falocentrismo e o estatu- tituições dos objetos das quais Freud fala?j
to tido como regressivo das homossexuali-
dades na psicanálise são frequentemente Bisexuality: should it be said
justificados e, de outro lado, que é decisivo bisexuality or contingency
mostrar quais são, para a experiência da in sexuation?
transferência, os destinos das pulsões que
transformam essa espécie de melancolia, Abstract
pelos quais o feminino pode se constituir. Considerations on the term “bisexuality” raise
Essa maneira eu propus chamar “a imagi- a number of questions. May psychoanalysis
nação do pior” (As construções do univer- use this term, which, for Fliess, referred to a fi-
sal) e sugeri que ela destaca mais o registro xed and universal determination of masculine
da sublimação que do recalcamento. and feminine, from which the “sexual periods”
of men and women were only one mani-
Conclusão festation among others? Why conserve the
Dizemos frequentemente que no incons- term bisexuality with a psychic attribution?
ciente é a bissexualidade que reina, como Wouldn’t it be enough to consider the diverse
são testemunhos todos os mitos de todas destination of the homosexual components of
as culturas e que a psicanálise oscila entre desire in those subjects whose object choice
reconhecer o desdobramento dos mitos in- is heterosexual, and in others, whose choice
dividuais da bissexualidade do qual vivem is homosexual? How does the experience of
todos(as) os(as) neuróticos(as) e esperar transference makes appear a certain plasticity
que a transferência, os colocando em dia, of such choices, a contingency of factors of
permita que façam o luto. bifurcation in spite of the significant deter-
Eu espero ter demonstrado antes que minations of sexuation?
o conceito de bissexualidade não é estável,
nem indispensável. A bissexualidade está Keywords
generalizada como vivência na história da Bisexuality, Contingency, Masculine, Femi-
sexualidade e leva à pluralidade necessária nine, Oedipus, Rock of castration.
de nossas experiências infantis. Eu me per-
gunto então se esses paradoxos em relação
à bissexualidade não podem ser levados de
novo, conceitualmente, ao contraste entre
o fato de que escolhas sexuais e a posição
subjetiva representem a determinação de
nosso destino sexuado, quando, ao mes-
mo tempo, a ideia de uma bifurcação nas
nossas escolhas recorre à contingência,
decisiva mas não determinada de ante-
mão, dessas mesmas escolhas. Daí meu
título: Deve-se falar de bissexualidade ou
de contingência na determinação de nossos
destinos pulsionais? O próprio termo “desti-
nos pulsionais” (Triebschicksale) como dizia
Freud, traz em si esse paradoxo: O que é
mais determinado do que um destino? E,
no entanto, como pensar que o tempo se
introduz nas transformações que permite a
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Monique David-Ménard
Referências
BUTLER, J. Gender Trouble, Feminism and Subver-
sion of Identity (1990). New York: Routledge, 1999.
Sobre a autora
Monique David-Ménard
Psicanalista, com formação conjunta em filosofia
e psicanálise. Doutora em psicopatologia clínica
e psicanálise, sob a orientação de Pierre Fédida
(1978), Universidade de Paris 7. Doutora em
filosofia, sob a orientação de Jean-Marie Beys-
sade (1990), Universidade de Paris 4/Sorbonne-
nouvelle. Membro da Escola Freudiana de Paris
(1979-1980), do Centro de Formação e Pesquisa
Psicanalítica (1982-1994) e da Sociedade de Psi-
canálise Freudiana desde 1994. Títulos e funções
atuais: psicanalista, membro associado da Socie-
dade de Psicanálise Freudiana; professora emérita
de cadeiras superiores; orientadora de pesquisa da
Universidade Paris-Diderot, Escola de Pós-Gra-
duação. Membro da Rede Internacional de Mulheres
Filósofas, da UNESCO. <winmail.dat>.