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Monique David-Ménard

Bissexualidade: deve-se dizer bissexualidade


ou contingência na sexuação?*
Monique David-Ménard
Tradução: Leda Beirão
Revisão da tradução: Carlos Antônio Andrade Mello

Resumo
Considerações em torno do termo bissexualidade despertam uma série de questões. Pode a psi-
canálise utilizar esse termo que, para Fliess, se referia a uma determinação fixa e universal do
masculino e do feminino, da qual, os “períodos sexuais” de homens e mulheres eram apenas uma
manifestação entre outras? Por que conservar o termo bissexualidade atribuída de psíquica? Não
basta considerar a destinação diversa dos componentes homossexuais do desejo naqueles sujeitos
cuja escolha de objeto seja heterossexual e em outros, cuja escolha seja homossexual? Como a
experiência da transferência faz surgir certa plasticidade dessas escolhas, uma contingência de
fatores de bifurcação apesar das determinações significantes da sexuação?

Palavras-chave
Bissexualidade, Contingência, Masculino, Feminino, Édipo, Rochedo da castração.

Minha intervenção quer sublinhar algu- I Wilhelm Fliess e o determinismo


mas questões em torno do termo “bisse- do sexual na natureza
xualidade”. Pode-se usar na psicanálise A bissexualidade remete em princípio à
esse termo que, conforme Fliess se refere história da psicanálise: o que é que Wi-
a uma determinação universal e fixa lhelm Fliess entendia exatamente por esse
do masculino e do feminino, nos quais termo bissexualidade?
os “períodos sexuais” dos homens e das Ele pensava ter estabelecido em bio-
mulheres seriam uma manifestação entre logia duas coisas: em primeiro lugar, a for-
outras? Por que manter o termo bisse- mação de um novo organismo vegetal ou
xualidade mesmo quando qualificado de animal parece muitas vezes se desenvolver
psíquico? Não bastaria falar do destino de modo partenogenético, quer dizer, sem
diverso dos componentes homossexuais relação à oposição dos cromossomos mas-
do desejo naqueles cuja escolha do objeto culinos e femininos dentro das células. O
é heterossexual e naqueles para os quais raciocínio de Fliess é de um embriologis-
a escolha é homossexual? Como a expe- ta: mesmo quando a reprodução vegetal
riência da transferência faz aparecer certa ou animal parece se produzir de modo
plasticidade dessas escolhas, uma contin- assexuado e mesmo quando no indivíduo
gência dos fatores de bifurcação apesar das adulto não conseguimos observar os cro-
determinações significantes da sexuação? mossomos sexuais opostos, experiências

*
Título original: Faut-il dire bisexualité ou contingence dans la sexuation?

Reverso • Belo Horizonte • ano 36 • n. 67 • p. 61 – 70 • Jun. 2014 61


Bissexualidade: deve-se dizer bissexualidade ou contingência na sexuação?

de cruzamento mostram que houve, en- reflexão próxima à de Weismann sobre a


tretanto, dentro dos gérmens as diferenças eternidade daquilo que se transmite pela
dos sexos masculino e feminino, que nós reprodução sexuada. Ao contrário, a vida
não pudemos reconhecer nas células indi- do indivíduo é limitada no tempo e resulta
viduais adultas. E em seguida generaliza: na morte, que é para todos os indivíduos
da mesma origem, programada como por
Mas a reprodução assexuada seria, um relógio.
mesmo assim, verdadeiramente asse-
xuada? Não intervêm aí substâncias Todos os brotos de rosas formam uma
masculinas e femininas? Sim, senhores, só e única roseira. Todos os álamos uma
toda muda de rosa, de vinha ou de ba- só individualidade, eles são fechados
tata possui órgãos sexuais masculinos dentro de uma mesma floração e têm
e femininos, ou seja, pistilos e estames uma morte comum [...] Algo como a
[...] Se alguém puder ainda duvidar da totalidade das células de nosso corpo
presença dentro do ser vivo de duas que compõem órgãos tão diferentes
substâncias opostas, então, graças a como coração, fígado, cérebro e que elas
outro exemplo bastante eloquente, regeneram sem parar são encadeadas
eu gostaria de provar mais uma vez entre si, indissoluvelmente, dentro de
essa verdade (FLIESS, 1973, p. 271) um mesmo período vital. Quando tiver
sido gasta a quantia de substância vital
O outro exemplo é do cogumelo Us- atribuída no princípio, a vida para como
tilago violácea, que parece se desenvolver um relógio (FLIESS, 1973, p. 272).
de masculino em masculino – seus esporos
podem ser levados à maturação somente É a sexuação ligada à morte dos indiví-
nas anteras masculinas de outra planta. duos que assegura a variedade das formas
Mas quando não encontra uma planta na evolução. Mas para Fliess o raciocínio
masculina a sua disposição, evolucionista é sobretudo regressivo:
mostrar que há sempre o feminino e o
[...] ele desperta em uma planta femi- masculino.
nina a aparição de anteras masculinas. Enfim, o universalismo de Fliess o
Ele é capaz de induzir o que nenhum fazia crer que estava a observar os “perío-
experimentador seria capaz de fazer e dos”: os períodos sexuais de 23 dias (e não
que a própria natureza espontanea- de 28 dias como nos ciclos das mulheres),
mente recusa. Mas a planta feminina que ele crê desvendar nos homens dentro
deve, entretanto, ser dotada de uma da “neurose nasal reflexa”. Ele faz dela a
substância masculina que não teria manifestação no cotidiano dessa lei deter-
nunca sido posta em evidência no minista que liga os indivíduos sexuados à
cogumelo (FLIESS, 1973, p. 271). vida e à morte programadas. Os períodos
sexuais são determinados como ‘o período’
Notaremos que Fliess não tem o vo- da vida que leva à morte e manifestam a
cabulário dos embriologistas contemporâ- mesma oposição dos sexos. A bissexualida-
neos. Ele não fala da expressão dos genes de para Fliess é um determinismo suposta-
contidos dentro dos cromossomos. Mas mente inscrito na evolução e na sexuação
seu raciocínio é da mesma ordem. dos viventes: vegetais, animais e humanos.
Em segundo lugar, a passagem da
aparência da reprodução assexuada à II Fliess e Ferenczi na herança freudiana
bissexualidade só está assegurada no ra- Como a psicanálise pode se afastar dessa
ciocínio de Fliess por outra cláusula: uma imersão na bissexualidade, que é no fundo
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o contrário da “diferença dos sexos”, quer para a necessidade desta descoberta


dizer, uma dissimetria tomando a forma por certas declarações suas. A menos
de um mal-entendido constituinte, mal- que tu me proponhas uma formulação
-entendido que podemos chamar, como neste sentido (FREUD, 2006 p. 583).
Lacan, “não relação sexual” na condição
de precisar que esse mal-entendido é o que Por que Freud não substituiu simples-
tece os encontros (Seminário mais ainda) e mente o termo, que incomoda, pela ques-
cria um atraso dentro do trabalho das pul- tão da homossexualidade ou das homosse-
sões de morte (Além do princípio do prazer)? xualidades? Há uma experiência (Erlebnis)
Minha hipótese é que a dualidade homossexual mesmo junto aqueles que já
dos sexos só é denominada por Fliess a “ultrapassaram”. O importante é então
uma “oposição” porque precisamente compreender a diferença dos processos
ela faz dos indivíduos elementos de uma que resultam em uma escolha do objeto
totalidade na reprodução: “Se você en- homo ou hétero. Mas dizer isso, a que nos
xerta uma muda de rosa, por exemplo, exorta a clínica, é diferente do que dizia
a Marechal Niel em uma roseira brava, Fliess que queria estabelecer sempre na
brotarão esplêndidos Niels. Sempre, se natureza os dois sexos mesmo quando essa
olharmos de perto, a parte evolui para dualidade não era observada. Essa dualida-
o todo”. Ora, uma dualidade só se torna de que ele chama oposição não era nunca
logicamente uma oposição, sabemos isso pensada como uma relação. Ainda menos
desde a lógica de Hegel, se trazemos essa como uma relação paradoxal na sexuali-
dualidade ou essa diferença a um todo, a dade humana, que faz corte justamente
um fundamento que lhes será comum. Esse aí com uma dualidade apenas natural. De
problema só foi elucidado tardiamente na resto, sobre o que ele deve a Fliess, Freud
psicanálise. Freud continua a se referir à foi finalmente claro em Bate-se numa
diferença e à relação entre feminino e criança (1919) e sem nomear Fliess que ele
masculino como “oposição”. Em biologia a chama “um colega que eu tinha então por
dualidade dos sexos remete aos traços dos amigo” ele liga o inconsciente, o sexual e
gérmens do outro sexo na formação de um a diferença dos sexos.
adulto, onde domina um sexo genital. É
curioso que o próprio termo bissexualidade O sexo, sendo mais forte quanto à sua
continue a figurar nos textos freudianos, formação, predominando na pessoa, re-
sendo que, mesmo antes do processo de calcou no inconsciente a representação
plágio tentado por Fliess, ele lhe escreveu anímica do sexo subordinado. O nú-
em 23 de julho de 1904: cleo do inconsciente, o recalcado, é em
cada ser humano, portanto, o elemento
Eu termino neste momento Três do sexo oposto presente nele (FREUD,
ensaios sobre a teoria da sexualidade Obras completas, v. XV, p. 143).2
onde eu evito ao máximo o tema da
bissexualidade. Há dois lugares onde
eu não pude evitar: explicando a in- 2. Como esta tradução em francês não é elegante, aqui
versão, quando eu vou até onde me vai o texto alemão: Das stärker ausgebildete, in der Person
permite a literatura (Krafft-Ebing e vorherrschende Geschlecht habe die seelische Vertretung
des unterlegenen Geschlechtes ins Unbewusste verdrängt.
seus predecessores – Kiernan, Cheva- Der Kern des Unbewussten, das Verdrängte, sei also bei
lier, etc.); depois, quando se trata de jedem Menschen das in ihm vorhandene Geschlechtliche
mencionar a tendência homossexual (G.W., v. XII, p. 222). “O sexo que encontrou sua forma
mais desenvolvida, e que domina uma pessoa, recusou
dos neuróticos. Lá eu penso colocar no inconsciente a representação no âmago do sexo
uma nota dizendo que eu atentei subordinado.”

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Bissexualidade: deve-se dizer bissexualidade ou contingência na sexuação?

Por que não dizer que há uma expe- É mais surpreendente ler no texto
riência homossexual mesmo junto aos de Freud dois movimentos contrários:
heterossexuais que a superaram? Por que quando ele fala da recusa do feminino,
a tradição psicanalítica não se atém à a sexualidade humana não se deixa ins-
formulação final de Freud: a dissimetria crever dentro de uma lei biológica. Mas
que faz também relação entre o feminino em seguida, como se ele quisesse reunir
e o masculino consiste na abordagem por Ferenczi e Fliess, ele faz da recusa do
cada sexo da “recusa do feminino”? feminino uma verdade biológica. Ele não
Quando a questão ressurgiu, depois chega a dissociar duas ideias, no entanto,
das cartas a Fliess, na Análise terminável diferentes: de um lado, o recalcamento
e análise interminável (1937), o termo inconsciente tem uma relação maior com
“bissexualidade” é evocado por Freud a questão da diferença dos sexos pensada
cada vez que ele pensa nas relações que como “recusa do feminino” e, de outro
teve com seus amigos muito próximos e lado, esse feminino recalcado seria uma
que terminaram mal: Fliess em princípio, lei da natureza viva. Ele confunde Ferenczi
Ferenczi em seguida. e Fliess. E os tradutores que o seguiram o
Da relação com Ferenczi, reteremos fazem ainda mais, traduzindo por “roche-
o que Freud disse em 1937, justamente do de castração” aquilo em torno do qual
quando colocou o que devia a esses dois circulam tanto o inconsciente quanto a
homens. Ele reconhece todo o interesse diferença dos sexos. Vejamos o texto.
do trabalho de Ferenczi sobre a posição Trata-se da célebre frase sobre o
do analista em um tratamento e sobre “rochedo da castração”, que é tão ligada
os inconvenientes da intelectualização a todas as esquivas psíquicas (obrigada,
defensiva na contratransferência. Mas Ferenczi) quanto ao fato biológico de que
não reconhecia o que havia de verdade existem dois sexos e que esse fato é um
nas críticas que lhe dirigia Ferenczi: não enigma (obrigada, Fliess). O rochedo da
suportar que ele, Ferenczi, o tenha colo- castração será tanto a defesa pelos fantas-
cado em outro papel que não fosse de um mas contra a diferença dos sexos e o que
pai protetor em relação a um filho. ela implica de incompletude no sexual,
A questão que faz avançar a análise quanto a relação desse protesto psíquico
é então: no momento em que o analista ao fato biológico da dualidade dos sexos.
é colocado no lugar de figuras sedutoras, Freud faria do biológico o fundamento do
que colocam em perigo aquelas nas quais fantasmático nomeando rochedo biológico
ele gosta de se reconhecer, como poderia a relação necessária entre o fantasma e
ele aceitar sua implicação na transferência a diferença biológica? Não exatamente.
que mobiliza os elementos recalcados e Freud não fala do rochedo biológico
não encerrar seu paciente em uma análise nesse texto, mas de “gewachsenen Fels”,
sem fim? Essa questão se deixa reduzir difi- ou seja, de “promontório rochoso”. A
cilmente à de uma bissexualidade inscrita diferença dos sexos é essa rocha que
de maneira semelhante na natureza e na avança sem que possamos evitar. Não
sexualidade humana. Trata-se não de res- é o fundamento orgânico ao qual seria
taurar a verdade universal de oposição dos conveniente reconduzir todas as dificul-
sexos, mas de reconhecer na transferência dades psicológicas, é aquilo com o qual o
o impacto da “recusa do feminino” e de psicológico tem necessariamente de lidar.
compreender como os seres humanos se- Não é uma origem, é uma barreira que
xuados dão forma a essa recusa conforme exige voltas. Esse rochedo que avança é o
os estilos diferentes que fazem com que os que as defesas contornam, que a análise
chamemos mulher ou homem. esclarece e contra a qual ela se bate. Por
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que então Freud se volta ao biológico, ou pessoas cuja escolha do objeto mudou no
seja, a Fliess? “Die Ablehnung der Weibli- curso de suas existências. Geralmente eles
chkeit kann ja nichts anderes sein al seine suscitam dos próximos uma interrogação
biologische Tatsache, ein Stück jenes grossen divertida, mais ou menos bem intencio-
Rätsels der Geschlechtigkeit” (A recusa do nada: será que ele vai realmente ficar
feminino não pode, portanto, ser outra com uma mulher? Não será simplesmente
coisa que um dado biológico, uma parte para ter um bebê? O que se prepara como
deste grande enigma da sexuação). experiência futura, quando sua verdadeira
Se nos referimos ao artigo Bate-se numa inclinação ressurgir? Em oposição a essa
criança (ein Kind wird geschlagen), a bisse- desconfiança, que indica quanto essa ex-
xualidade é precisamente a presença recal- periência nos outros nos questiona, a psi-
cada do outro sexo em si. Tal proposição canálise contemporânea coloca como uma
deve à biologia a ideia da predominância evidência que todos os sujeitos desejantes
de múltiplos fatores determinantes, ou seja, estariam relacionados com a bissexualida-
de um sexo dominante. Mas essa frase não de. Não importa qual, claro, mas frequen-
tem o mesmo sentido em biologia e em psi- temente acrescentamos “bissexualidade
canálise, como faz crer a “bissexualidade”. psíquica” para torná-la menos inquietante.
O fato biológico do qual Fliess parte é mais Não se sabe ainda a que se opõe “psíquica”.
complexo ainda do que ele dizia, o que é Nesse caso, trata-se de dizer que não é
confirmado por todas as pesquisas recentes: uma bissexualidade orgânica? Ou que não
sexo genético, gonádico, hormonal, psíqui- é uma bissexualidade atuada? Que ela diz
co, social. Ele não pode tampouco ignorar respeito a representações, elementos de
a importância do biológico, que tem suas identificação com os genitores dos dois
leis próprias. O ponto sobre o qual Freud sexos na crise edipiana que, quando tiver
e Fliess pareciam concordar era a coinci- passado, tudo se acalmará: depois de hesi-
dência entre a ideia de dominância final tar a estar no erotismo ativo – mulher de
na ontogênese de um sexo sobre outro e o sua mãe – a filha se decidirá, por um lado,
recalcamento. Mas desde 1919, Freud ex- a se identificar com alguns traços do pai
plicitava que a ideia da predominância não e, por outro lado, a esperar de um homem
tinha o mesmo sentido em biologia – onde que tenha os traços de seu pai – um filho
ele se refere à organização final e diferen- que o pai não lhe deu.
ciada dos órgãos genitais – e em psicanálise! Na clínica, esse esquema ideal é rara-
Em psicanálise não há organização mente encontrado: antes, temos a tratar,
final simples da diferença dos sexos, por exemplo, determinada mulher para a
que faria naturalmente predominar um qual a negação dos componentes recal-
sexo sobre outro para cada um. Aí está a cados da sua sexualidade desaparece, não
questão, aquela que aponta bem Ferenczi com seu marido, poderoso em todos os
no momento em que acusa Freud de não sentidos do termo, mas com um homem
aceitar que ele, Ferenczi, tenha feito uma encontrado durante a análise e que ela diz
transferência diferente da de filho à figura ser muito mais “feminino”.
do pai. Recusando tomá-lo para análise, Eu evoquei longamente o tratamento
Freud rejeitou sua própria feminilidade à de Laurence Desproges no livro Elogio dos
qual correspondia a demanda de Ferenczi. acasos na vida sexual sem ter usado o termo
“bissexualidade”. Ou ainda um menino de
III Deve-se manter o termo uns oito anos, fascinado pela elegância e
“bissexualidade psíquica”? pela doçura do pai, que o havia escolhido
Todos nós conhecemos entre nossos ami- como filho predileto, e temente do poder
gos, nossos conhecidos e nossos pacientes, da mãe, foi atingido como por um raio na
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sua história, quando o pai foi destruído pela dessa dimensão do desejo que não passa
doença durante o período da idolatria. A mais pelo Édipo, mas que pode encontrar
sexualidade dele ficou congelada nessa ex- vias de transformação específicas às ex-
periência, esperando sempre reencontrar periências vividas: se uma mudança de
nas mulheres esse acordo perfeito que ele regime do desejo pelo genitor do mesmo
conhecera, antes que tudo desaparecesse sexo não se produz in situ, não vemos como
de repente. E como não encontra o que um outro tipo de desejo, aquele pelo pai,
quer, ele se torna violento, buscando forçar poderia transformá-lo.
o desejo do outro, não fazendo nenhuma Dessas duas posições eu tomarei
concessão com relação a seus desejos, alguns exemplos dentro dos trabalhos re-
mas não suportando a própria violência. centes de psicanalistas de língua francesa.
Entretanto, algumas relações sexuais que Jacqueline Schaeffer em Bissexuali-
ele teve com homens tampouco foram sa- dade e diferença dos sexos no tratamento
tisfatórias. Nesse sentido, a bissexualidade (2002) traz de volta a bissexualidade a
seria uma hesitação na escolha do objeto uma predominância abusiva dentro do
e na posição subjetiva (“amar como um pensamento psicanalítico do modelo fá-
homem”, “amar como uma mulher”), que lico, confundido desde o próprio Freud,
diz respeito a todo mundo, mas que alguns com a diferença dos sexos. Ora, afirma
resolvem melhor que outros. com ardor Jacqueline Schaeffer, existe um
Aí estamos, portanto, de volta à além da fase fálica e mesmo da genitali-
questão da normatividade da escuta psi- dade, que, isoladamente, merece o nome
canalítica e a experiência da diferença dos de experiência da diferença dos sexos: é o
sexos como experiência maior na história acesso à violência necessária do ato sexual
das nossas sexualidades. Mas nesse caso, diferenciado que será capaz de separar ho-
então, não se pode propriamente falar de mens e mulheres do maternal. A fase fálica
bissexualidade, seja psíquica, seja atuada. não alcança a diferença dos sexos, que é
Há uma hesitação entre homossexualida- uma experiência de separação. Podemos
de e heterossexualidade, que será viven- fazer essa justiça ao autor, pois quando
ciada de maneira diversa. Freud introduziu em 1923 a fase fálica, ele
Outros analistas insistem, ao contrá- deixa bem claro que é porque a diferença
rio, que a bissexualidade deve ser entendi- entre masculino e feminino é impensável
da não unicamente a partir do Édipo e do que “ter ou não ter” ocupa todo o espaço
reconhecimento mais ou menos assumido na evitação da diferenciação. Na ver-
da diferença dos sexos. Ela seria um com- dade, lendo bem o texto A organização
ponente pré-edipiano, que merece o nome genital infantil, o que foi dito antes não se
de sexualidade, desde que ampliemos o acomoda muito bem. Impensada na fase
conceito de pulsão sexual para um tipo fálica, a diferença dos sexos bem poderia
de relação na qual nem a polarização por permanecer impensável, pois, em seguida,
um objeto total diferenciado, nem por um o menino, que ele toma como exemplo, em
objeto pulsional substituível (quer dizer, do uma espécie de delírio defensivo insidioso,
qual podemos fazer o luto) não domine o imagina todas as espécies de soluções para
desejo em formação. não se sentir demasiadamente ameaçado
Bissexualidade remete, então, ao que no seu prazer pela ideia de que o prazer
Freud denomina um desejo indistinto e só terá sentido em relação a outras pes-
que Melanie Klein chama “pais combi- soas que não tenham pênis. As meninas
nados”. A diferença da perspectiva pre- fizeram certamente algo mau para terem
cedente é que a hesitação, aqui, pode dar sido castradas, mas seguramente minha
oportunidade para uma elaboração in situ mãe terá um etc.
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Até o fim do artigo, efetivamente, a O inconveniente dessa perspectiva é


diferença dos sexos continua impensável, quando não compreendemos mais como
porque é para “acalmar o jogo” que o ado- uma análise pode permitir aceder a uma
lescente, cuja mãe está grávida, elabora escolha do objeto homossexual, que va-
inconscientemente a seguinte teoria: “se lidará um destino de pulsões de maneira
são as mulheres que fazem os bebês, então, tão satisfatória quanto a heterossexual.
eu fico com meu pênis”. Nesse pensa- A análise não poderia ser uma pedagogia
mento, percebemos que o maternal vem exaltada das relações heterossexuais.
en lieu et place do feminino impensável e Outro exemplo é o de Dominique
que a única determinação do masculino é Guyomard em L’effet-Mère (2010). Ela
o medo da castração. Freud não é Lacan, descreve clinicamente como a relação de
ele reconhece, pelo menos nesse texto, o uma filha com a mãe passa por uma crise
enigma da diferença dos sexos, justamen- que transforma a ligação passional, marca-
te porque todo o destino pulsional gira da menos pela indistinção do que por seu
em volta dessa questão sem resposta. O caráter insuportável, pela não distinção
enigma aqui não é biológico; ele mostra a entre amor e ódio em uma relação sem
insistência de uma questão que não tem que o pai simbólico seja agente da trans-
resposta em termos de essência do femi- formação. De maneira semelhante, em
nino nem do masculino. L’Hysterique entre Freud et Lacan e em Les
A “solução” da não relação sexual constructions de l’Universel, eu também ti-
e das fórmulas da sexuação, em Lacan, nha mostrado que as delícias e os impasses
consiste em esperar que os recursos de da relação das mulheres com o maternal
uma lógica atípica (aquela do todo e do criam transformações que colocam em
não-todo fálico) permitam dar uma fór- primeiro plano nos tratamentos como na
mula da diferença dos sexos, que toma o “vida” a questão da melancolia e não a
falo como único termo ao qual se referem “solução fálica”.
diferentemente o masculino e o feminino. Eu cito esses poucos exemplos pela se-
Em Freud, a diferença dos sexos guinte razão: a crítica da solução fálica foi
continua um enigma. As únicas respostas guiada em grande parte pelos movimentos
obtidas são defensivas, o que ele resume gays. Judith Butler afirmou em Gender
por “protesto viril” (expressão tomada de Trouble (1990) que a “melancolia do gê-
Adler) e por “medo da feminilidade”, que nero” está ligada à impossibilidade de um
é, de fato, menos o medo de se fundir com trabalho de luto concernindo os amores
o feminino em uma relação heterossexual incestuosos pelo genitor de mesmo sexo.
do que o medo de ser penetrado, quer Isso porque a homossexualidade primária
dizer, feminilizado pelo pai. não poderia ser reconhecida pelos sujeitos
Mas Jacqueline Schaeffer (2000) crê desejantes em uma sociedade heterocen-
poder dar uma solução positiva a essa trada. Se quisermos discutir de maneira
questão da diferença dos sexos: só a expe- útil com os teóricos do gênero, teremos
riência da relação sexual como violência que nos referir às múltiplas elaborações
afasta as defesas do Eu (moi) nos dois sexos das psicanalistas mulheres, feitas durante
que se diferenciam por isso. A astúcia des- os anos em que eles formularam as críticas
se pensamento é que, mesmo se ele recorre da psicanálise, pois foram as mulheres que
a uma experiência empírica (e exterior puseram em primeiro plano a questão da
ao tratamento), é o efeito inconsciente melancolia. Entretanto, não o fizeram da
dessa experiência que lhe dá seu valor e mesma maneira: a plasticidade, que espe-
seu poder separador de nossas ilusões de cifica desde Freud as pulsões como pulsões
completude bissexual. sexuais, não é a sociabilidade do gênero.
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Resta disso que, de um lado, as críticas gramática das pulsões assim como as subs-
concernentes ao falocentrismo e o estatu- tituições dos objetos das quais Freud fala?j
to tido como regressivo das homossexuali-
dades na psicanálise são frequentemente Bisexuality: should it be said
justificados e, de outro lado, que é decisivo bisexuality or contingency
mostrar quais são, para a experiência da in sexuation?
transferência, os destinos das pulsões que
transformam essa espécie de melancolia, Abstract
pelos quais o feminino pode se constituir. Considerations on the term “bisexuality” raise
Essa maneira eu propus chamar “a imagi- a number of questions. May psychoanalysis
nação do pior” (As construções do univer- use this term, which, for Fliess, referred to a fi-
sal) e sugeri que ela destaca mais o registro xed and universal determination of masculine
da sublimação que do recalcamento. and feminine, from which the “sexual periods”
of men and women were only one mani-
Conclusão festation among others? Why conserve the
Dizemos frequentemente que no incons- term bisexuality with a psychic attribution?
ciente é a bissexualidade que reina, como Wouldn’t it be enough to consider the diverse
são testemunhos todos os mitos de todas destination of the homosexual components of
as culturas e que a psicanálise oscila entre desire in those subjects whose object choice
reconhecer o desdobramento dos mitos in- is heterosexual, and in others, whose choice
dividuais da bissexualidade do qual vivem is homosexual? How does the experience of
todos(as) os(as) neuróticos(as) e esperar transference makes appear a certain plasticity
que a transferência, os colocando em dia, of such choices, a contingency of factors of
permita que façam o luto. bifurcation in spite of the significant deter-
Eu espero ter demonstrado antes que minations of sexuation?
o conceito de bissexualidade não é estável,
nem indispensável. A bissexualidade está Keywords
generalizada como vivência na história da Bisexuality, Contingency, Masculine, Femi-
sexualidade e leva à pluralidade necessária nine, Oedipus, Rock of castration.
de nossas experiências infantis. Eu me per-
gunto então se esses paradoxos em relação
à bissexualidade não podem ser levados de
novo, conceitualmente, ao contraste entre
o fato de que escolhas sexuais e a posição
subjetiva representem a determinação de
nosso destino sexuado, quando, ao mes-
mo tempo, a ideia de uma bifurcação nas
nossas escolhas recorre à contingência,
decisiva mas não determinada de ante-
mão, dessas mesmas escolhas. Daí meu
título: Deve-se falar de bissexualidade ou
de contingência na determinação de nossos
destinos pulsionais? O próprio termo “desti-
nos pulsionais” (Triebschicksale) como dizia
Freud, traz em si esse paradoxo: O que é
mais determinado do que um destino? E,
no entanto, como pensar que o tempo se
introduz nas transformações que permite a
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Referências
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FREUD, S. Gesammelte Werke, Band XII, p. 222.


Tradução da autora. Oeuvres complètes, tome
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Tradução francesa sob a direção de J. Laplanche.
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FREUD, S. Lettres à Wilhelm Fliess, n. 285, 23 jul.


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SCHAEFFER, J. In: Bisexualité, Subjectivité,


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Recebido em: 01/10/2013


Aprovado em: 20/10/2013

Endereço para correspondência


29, Place du Marché St. Honoré
75001 Paris
E-mail: <mdm01paris@aol.com>

Sobre a autora
Monique David-Ménard
Psicanalista, com formação conjunta em filosofia
e psicanálise. Doutora em psicopatologia clínica
e psicanálise, sob a orientação de Pierre Fédida
(1978), Universidade de Paris 7. Doutora em
filosofia, sob a orientação de Jean-Marie Beys-
sade (1990), Universidade de Paris 4/Sorbonne-
nouvelle. Membro da Escola Freudiana de Paris
(1979-1980), do Centro de Formação e Pesquisa
Psicanalítica (1982-1994) e da Sociedade de Psi-
canálise Freudiana desde 1994. Títulos e funções
atuais: psicanalista, membro associado da Socie-
dade de Psicanálise Freudiana; professora emérita
de cadeiras superiores; orientadora de pesquisa da
Universidade Paris-Diderot, Escola de Pós-Gra-
duação. Membro da Rede Internacional de Mulheres
Filósofas, da UNESCO. <winmail.dat>.

Reverso • Belo Horizonte • ano 36 • n. 67 • p. 61 – 70 • Jun. 2014 69


Bissexualidade: deve-se dizer bissexualidade ou contingência na sexuação?

70 Reverso • Belo Horizonte • ano 36 • n. 67 • p. 61 – 70 • Jun. 2014

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