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16/01/2023 08:58 SciELO - Brasil - Meu paciente não pára de repetir... isso é mau?

é mau?: a concernência da repetição Meu paciente não pára de re…

Brasil

 Sumário
Psicologia: Ciência e Profissão 
Resumo Texto (PT)

Artigos • Psicol. cienc. prof. 21 (3) • Set 2001 •


https://doi.org/10.1590/S1414-98932001000300007  

COPIAR
Meu paciente não pára de repetir... isso é mau?: a
concernência da repetição
Roberto Henrique Amorim de Medeiros

Resumos
Durante a história do pensamento psicanalítico a repetição foi abordada através de vários
enfoques. A forma impactante e constrangedora como o conceito apareceu na teoria freudiana,
fez dela um dos pontos mais intrigantes dentre os conceitos psicanalíticos. Na prática clínica,
da mesma forma, quando percebemos que um paciente está repetindo, a primeira impressão
que se tem é de que isso estaria sendo prejudicial ao tratamento, um verdadeiro entrave e, com
freqüência, lamenta-se essa situação. O presente texto procura resgatar o caráter ambíguo do
conceito de repetição e ressaltar um possível aspecto produtivo no caminho da cura, o qual foi
denominado de concernência. Propõe, ainda, que escutar a repetição tendo em mente a
possibilidade desse caráter produtivo é o que pode permitir que o paciente crie algo de novo
para si, interrompendo os processos repetitivos indesejáveis ao seu tratamento, embora tenha
de abdicar temporariamente ao prazer.

Repetição; Concernência; Psicanálise; Tratamento

During the history of psychoanalytic thought, repetition was approached through several points
of view. The concept has appeared in Freud’s theory in a trembling and constraining way
making repetition one most intriguing among the psychoanalytic concepts. In the clinic practice,
when one perceives that a patient is repeating, the first impression one has it is that repetition is
being harmful to the treatment. Frequently this situation is regretted. The present paper tries to
redeem the ambiguous character of the concept of repetition. It also emphasizes a possible
productive aspect in the way of cure, which was named concerning. It also proposes that
listening to repetition, focusing the possibility of this productive character, is what can let the
patient being able to create something new to him/herself, interrupting the undesirable repetitive
processes to his/her treatment, although the patient has to resign pleasure temporarily.

Repetition; Concerning; Psychoanalysis; Treatment

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Brasil
ARTIGOS

Meu paciente não pára de repetir... isso éCiência


Psicologia: mau? e A Profissão
concernência
 da repetição

Roberto Henrique Amorim de Medeiros *

Endereço para correspondência

RESUMO

Durante a história do pensamento psicanalítico a repetição foi abordada através de vários


enfoques. A forma impactante e constrangedora como o conceito apareceu na teoria freudiana,
fez dela um dos pontos mais intrigantes dentre os conceitos psicanalíticos. Na prática clínica,
da mesma forma, quando percebemos que um paciente está repetindo, a primeira impressão
que se tem é de que isso estaria sendo prejudicial ao tratamento, um verdadeiro entrave e, com
freqüência, lamenta-se essa situação. O presente texto procura resgatar o caráter ambíguo do
conceito de repetição e ressaltar um possível aspecto produtivo no caminho da cura, o qual foi
denominado de concernência. Propõe, ainda, que escutar a repetição tendo em mente a
possibilidade desse caráter produtivo é o que pode permitir que o paciente crie algo de novo
para si, interrompendo os processos repetitivos indesejáveis ao seu tratamento, embora tenha
de abdicar temporariamente ao prazer.

Palavras-chave: Repetição, Concernência, Psicanálise, Tratamento.

ABSTRACT

During the history of psychoanalytic thought, repetition was approached through several points
of view. The concept has appeared in Freud’s theory in a trembling and constraining way
making repetition one most intriguing among the psychoanalytic concepts. In the clinic practice,
when one perceives that a patient is repeating, the first impression one has it is that repetition is
being harmful to the treatment. Frequently this situation is regretted. The present paper tries to
redeem the ambiguous character of the concept of repetition. It also emphasizes a possible
productive aspect in the way of cure, which was named concerning. It also proposes that
listening to repetition, focusing the possibility of this productive character, is what can let the
patient being able to create something new to him/herself, interrupting the undesirable repetitive
processes to his/her treatment, although the patient has to resign pleasure temporarily.

Keywords: Repetition, Concerning, Psychoanalysis, Treatment.

Se forem analisados os mais variados aspectos que fazem parte, que permeiam e que
influenciam de alguma maneira a vida de uma pessoa, sem esforço observar-se-á que a
maioria deles recorre com grande freqüência. Muitos se dão por um contexto social, por uma
questão física; alguns são ocasionados pela busca consciente da própria pessoa e ainda outros
podem causar surpresa e estranhamento.

Foi a partir de aspectos do tipo desses últimos que o desenvolvimento teórico psicanalítico
também não escapou da sensação de surpresa e incompletude que eventos como esses
produzem.

Como se sabe, Freud teve de se haver com uma grande lacuna em sua teoria quando observou
um fenômeno psíquico que dificilmente poderia ser adaptado ao Princípio do Prazer que, até
então, segundo ele, deveria reger a mente humana. A Repetição (Wiederholung), como foi

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chamada, fazia com que as pessoas reeditassem em suas vidas situações das mais variadas
ordens que haviam representado, no passado, coisas supostamente desagradáveis.
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O exemplo mais representativo dessa incongruência é o do sonho dos neuróticos de guerra,
analisados por Freud (1920/1976). O caráter de representante do desejo que possui o sonho
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(Freud, 1900/1987) não deveria permitir que um conteúdo traumático viesse aparecer e insistir
na vida mental. No entanto, isso ocorria com tal intensidade que lhe foi dado o caráter de uma
compulsão (Wiederholungszwang).

Uma primeira saída para o problema foi pensar segundo o modelo do recalque. Os
representantes pulsionais recalcados no inconsciente procuram constantemente sua satisfação
mediante uma pressão em direção ao consciente e, muitas vezes, conseguem tal intento de
maneira indireta ou substitutiva, através de seus derivados já não tão comprometidos com o
representante original (Freud, 1920/1976). Esse processo que gera a satisfação e prazer a esse
representante é tomado como desprazeroso pelo ego. A conclusão que se afigura é que se
encontram aí duas ordens de razão: a do ego consciente e a do recalcado inconsciente,
responsável pela compulsão à repetição – a repetição é a do fracasso do recalcamento –,
sendo que ambas, e cada qual a seu tempo, agem de acordo com o postulado do prazer.

Entretanto, isso não foi suficiente. Freud (1920/1976) observou que experiências que jamais
podiam ser tomadas como agradáveis em nenhuma época da vida da pessoa, pois não traziam
satisfação nem mesmo para moções pulsionais recalcadas há longo tempo, também eram
alvos do processo repetitivo. Exemplos disso são as explorações sexuais infantis fadadas ao
fracasso, devido à realidade de sua condição desenvolvimental, ou os laços de afeição da
criança com o genitor do sexo oposto que sucumbe perante a frustração de suas expectativas
de satisfação. Tudo isso, freqüentemente é revivido na transferência durante o tratamento
analítico, em que as formas mais engenhosas são empregadas pelos pacientes na reedição
daquele passado: sentem-se desprezados pelo analista, tentam interromper o tratamento etc.

Frente a isso é que Freud (1920/1976) desenvolve uma linha de pensamento que vai resultar
numa outra lógica do funcionamento psíquico com a admissão da pulsão de morte, a qual
também pode constituir uma força contrária ao tratamento. Afirma também que eles são
determinados por influências infantis primitivas através da observação de que esses fenômenos
de transferência dos neuróticos são igualmente encontrados na vida daquelas pessoas
normais, a qual parece estar ligada a uma espécie de destino perturbador.

Durante a história do pensamento psicanalítico a repetição foi abordada através de vários


enfoques. A questão é que, a forma como ela apareceu na teoria freudiana, impactante e
constrangedora, fazendo o seu mestre qualificá-la como demoníaca um número significativo de
vezes em obras como Além do Princípio do Prazer e O Estranho, fez dela um ponto ao qual
passaram a convergir importantes conceitos psicanalíticos que se tornaram permeados pelo
efeito da repetição. Não é sem motivo que Lacan a encare como a novidade freudiana.

Portanto, no campo da repetição, o próprio Freud (1920/1976) incluiu, além dos fenômenos
transferenciais, o brincar infantil – no qual as crianças repetem situações traumáticas de uma
maneira ativa – e atribuiu-lhe a noção de ordem em O Mal Estar na Civilização (Freud,
1930/1974) que impõe limites e dá um sentido a um conjunto de elementos e chegou ao fato de
que a repetição não tem relação com a reprodução. Essas são algumas entre muitas outras
tentativas de cercar a questão feitas por Freud e por seus sucessores, dentre eles, Lacan.

Lacan vai igualmente abordar o tema de muitas maneiras e em muitos momentos. Em um deles
a questão do acaso é desenvolvida. O acaso parece ser o que mais confere o caráter
desconcertante que os eventos repetidos possuem. Normalmente atribuímos a ele os fatos que
nos pegam de surpresa ou que parecem escapar à lógica de nossa constituição psíquica.

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Lacan irá tratar do conceito de causa. Só há causa daquilo que manca (Lacan, 1988b), diz ele,
relacionando essa idéia à pulsação temporal do inconsciente; mais especificamente a hiância. A
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causa não é confundida aqui com uma simples sucessividade aparente, pois Lacan se refere,
na verdade, a algo da rede de significantes que não anda e onde se cria a hiância. É nesse
ponto que se entra em contato com o real eCiência
Psicologia: é aí que
e se pode falar de causa, pois esse é o lugar
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em que aparece o desejo e subverte o sujeito.

É a causa que fará as vezes de articulador entre o inconsciente e a repetição, que pode ser
entendida nesse contexto como um encontro falho com o real. Encontro não previsível, um
atropelamento do sujeito pelo significante que confere ao evento uma atmosfera
desconcertante. Por exemplo, como nos casos em que se pergunta: por que isso acontece
comigo? Falta-lhe o símbolo.

Partindo-se da causa, chega-se à Tiquê (deusa grega do destino), referida por Lacan (1985)
como tendo um efeito de um acaso que atua como causa. O próprio Freud, no texto Dinâmica
da Transferência (1912/1969), menciona duas séries de causações que vão se condicionando
mutuamente na vida dos sujeitos: Daimon e Tiquê, o constitucional e o acidental,
respectivamente.

Com essa linha de raciocínio, Lacan vai aproximar o acaso desconcertante, até aqui associado
à repetição, da noção de trauma que, por sua vez, também golpeia o equilíbrio do sujeito. No
trauma, é uma segunda cena que dá eficácia a uma primeira, conferindo-lhe o caráter
traumático 1 . É um significante S2 que retroage sobre um S1 (S1 ¬ S2) e nisso podemos
entrever também algo de uma repetição.

Lacan, então, vai tratar o problema, dizendo que a repetição deve ser pensada como uma
insistência da cadeia significante. O significante seria o único suporte possível do que é, para o
sujeito, a experiência de repetição. Admitamos, pois, essa assertiva para ver o que se pode
concluir com ela.

Isso que Lacan diz, refere-se ao postulado de que o que se trata é de uma repetição do
fracasso, ou seja, do fracasso do recalque. O significante que nos abate com requinte
avassalador é aquele que, de alguma forma demonstrou mais força – ou perspicácia – do que
o recalque. Aliás, isso pode nos conduzir a pensar a questão em termos de sintoma, do retorno
do recalcado e entraríamos no campo da linguagem. Como assevera Freud, o sintoma tem algo
a dizer. Guardemos, por ora, essa idéia.

Continuando sob a lógica da insistência do significante, observa-se que, como já havia sido
assinalado, por efeito do recalque, o que vem a ser repetido é sempre distinto, diferenciado, o
que deixa transparecer que algo se perde no processo.

Isso vai nos remeter à constante busca ao objeto primordial do desejo, igualmente perdido na
época da divisão do sujeito. Portanto, poderíamos introduzir o pensamento de que a repetição
viria representar o fracasso da tentativa de reencontrar aquele objeto perdido. O que emerge
disso aparenta ser uma espécie de apego do sujeito a certos significantes (Lacan, 1988a) que
tendem a utilizar sempre um mesmo caminho para se insurgirem na rede simbólica. Existe algo,
pois, que se apresenta na vida psíquica do sujeito com uma magnitude considerável e que não
permite simplesmente não ser notado ou ter seu efeito neutralizado. Parece se tratar de algo
que concerne ao sujeito.

Tomando como instrumento de análise a dinâmica do recalcamento, há inicialmente um


recalque originário, composto por representantes da pulsão constituídos, prova-velmente, por
elementos de caráter imaginário e provenientes de uma base filogenética. É nesse complexo de

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representações que atuará o recalque propriamente dito, do qual o representante ideativo


original tentará escapar constantemente produzindo derivados e novas conexões.
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Tendo em mente todas as teorizações aqui apresentadas, é possível admitir um vínculo dessas
formações originais com o processo de repetição. Freud (1920/1976; p.33) já afirmava que a
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compulsão à repetição deve ser atribuída ao recalcado inconsciente.

Entretanto, considerando que além do recalque originário ter-se-ía também os produtos de suas
novas conexões no inconsciente, seria bem provável que a repetição possuísse mais de um
aspecto na sua constituição.

A característica ambígua do fenômeno da repetição é admitida em muitos momentos na


literatura psicanalítica. Pode-se encontrar, por exemplo, a repetição sendo mostrada como uma
imagem do recalcado e, simultaneamente, como a defesa contra o mesmo em Atos Obsessivos
e Práticas Religiosas (Freud, 1907/1976) ou como uma nova tentativa para obtenção de êxito e,
ao mesmo tempo, como um retorno a uma posição confortável após o fracasso (Lacan, 1985,
p.88). Porém, o que se quer colocar, em relação a essa peculiaridade da repetição, implica algo
um pouco diferente. Quando, na clínica, dizemos que um paciente está repetindo, a primeira
impressão que temos do fato é de que isso estaria sendo prejudicial ao tratamento, um
verdadeiro entrave e assim seguimos lamentando a situação. Acredito ser raro o caso em que
ocorra algo de positivo a ser dito sobre a situação proposta.

No entanto, o que repete pode representar algo de importante da estruturação psíquica de um


paciente. Algo que insiste e, se insiste, deve constituir-se de elementos importantes, para tal
dispêndio de energia.

Ao considerarmos a repetição de uma forma negativa como a que comentamos, deixamos de


lado uma possibilidade de escuta valiosa de um fenômeno que parece ter algo a dizer. Mas
parece que nem tudo que há na repetição tem esse valor. Retomemos a idéia do caráter
ambíguo.

Para isso, evocaremos o conceito de Facilitação de Freud, contido no Projeto, de 1895. Esse
conceito, tido como o primórdio das formulações que resultaram na teoria sobre a repetição
(Kaufmann, 1996), traz uma questão econômica, levando à afirmação de que tudo na vida
mental tende a percorrer sempre um caminho já trilhado anteriormente, evitando, assim, os
caminhos novos que impõem uma resistência maior.

Pensamos que esse é o modelo do que ocorre com a maior quantidade de eventos que se
caracterizam como repetição. Os significantes que conseguem uma ruptura com a grande
represa do recalque acabam escolhendo as mesmas vias para seguir adiante, criando o que se
pode chamar de hábito.

Entretanto, enquanto não ocorrer uma superação, isto é, uma elaboração simbólica destes
significantes que, como vimos atropelam o sujeito, a repetição emerge, podendo traduzir-se
num sintoma. As vias com as quais o sujeito habituou-se a funcionar devem ser transcendidas,
pois elas estão destinadas ao fracasso do ponto de vista produtivo da vida mental do paciente,
que parece andar em círculos.

Notemos que o processo descrito por Freud como facilitação respeita a lógica do Princípio do
Prazer. Portanto, o que estamos descrevendo a partir dele é aquele processo inerente à
repetição no qual há um apego do sujeito ao significante, o que invoca um prazer da repetição.

Nesse momento, podemos derivar que por trás de todo o processo haja, na verdade, uma
necessidade da repetição. Isso traz a idéia de que algo ali está procurando uma resolução,
embora, como percebemos com freqüência, pareça não ter forças para tal coisa. Com isso,

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aparece novamente a ambigüidade da Wiederholung.

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A partir dessa ambigüidade pela qual subsistiria no mesmo processo a faceta da repetição, que
simplesmente restitui uma posição anterior, e a que se dá com vistas a uma elaboração,
podemos entrever uma primeira justificativa para se ressaltar o aspecto positivo do
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aparecimento desse fenômeno na clínica.

Dois caminhos são possíveis quando do surgimento de uma repetição e apenas um deles, o
mais difícil, pode trazer algo de uma elaboração e, portanto, de produtivo. Dizemos que é o
mais difícil, embora pudesse ser dito o mais dolorido, pois, para trilhá-lo, é necessário que se
abdique do conforto da via antiga. Conforto que se paga caro, é bem verdade.

Escutar a repetição tendo em mente a possibilidade desse caráter produtivo é o que pode
permitir que o paciente crie algo de novo para si, como alternativa para dar conta de formações
ainda tão primárias. Nesse sentido é que podem ser interrompidos alguns dos processos
repetitivos, embora exista o agravante da dor trazida pela superação ao sujeito.

Usamos o termo dor porque é disso mesmo de que se trata, isto é, de uma suposta renúncia
àquilo que trazia um prazer. É nesse aspecto que gostaríamos de deter-nos um pouco mais
para chegar, neste ponto, a uma última conclusão.

Lembremos as duas ordens nas quais, segundo Freud (1920/1976), o prazer no aparelho
psíquico pode ser dissociado: no inconsciente e no consciente.

No caso em que articulamos como repetição improdutiva, embora haja um suposto sofrimento
consciente do sujeito, que se vê atropelado pelo significante, supõe-se que, para o outro
sistema, aquelas atividades recalcadas trazidas à superfície possibilitam a satisfação. Por outro
lado, no caso de um movimento terapêutico em que a repetição, escutada devidamente em seu
caráter de elaboração, fosse transcendida, surgiria necessariamente uma produção de
desprazer, dessa vez, no sistema inconsciente.

Não precisamos de muita perspicácia para notar que essa última situação guarda uma
semelhança com aquela que tanto mobilizou Freud e que o levou à necessidade de admitir a
chamada Pulsão de Morte, quando concluiu que a repetição pode utilizar material do passado
que não inclui possibilidade alguma de prazer.

É claro que essa semelhança não se dá de modo estrito, visto que o desprazer de que
tratamos, resultante do processo de elaboração, não estaria mais supostamente ligado aos
eventos repetitivos. Mas o que se afigura nessa aproximação é a possibilidade de existência de
uma concernência que se remete ao sujeito e que se apresenta nos dois casos. Referimo-nos a
algo de força maior que se impõe - e faz surgir aspectos desprazerosos em detrimento de toda
uma organização mental em relação ao princípio do prazer - exatamente por sua concernência
ao sujeito, fazendo com que a cadeia significante insista de maneira peculiar e ele tenha que
repetir; ou repita porque ainda não houve elaboração.

Essa maneira de pensar a questão parece razoável dentro dos desenvolvimentos de que se
tem notícia sobre o tema e que foram, na medida do possível, confrontados aqui. A admissão
de uma concernência ao sujeito, presente no fenômeno repetitivo, vai possibilitar outras
implicações e questionamentos a esses desenvolvimentos que se ligam ao tema repetição.

Podemos, por exemplo, presumir que o núcleo dessa força teria sua origem mais próxima ao
material do recalque originário; procurar observar como essa concernência influi nas questões
chamadas de destino ou, ainda, verificar se possui alguma influência na ordem daquelas
repetições em que o sujeito desempenha um papel supostamente passivo.

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De qualquer forma, sempre há por trás de uma repetição um envolvimento, tendo em vista que
o sujeito aferra-se a ela e só pode desligar-se mediante um processo doloroso. Para definir
Brasil
melhor, concernência seria a instância da repetição diferenciada de uma outra que tende a
reproduzir os mesmos caminhos, como na facilitação. A força concernente parece poder ser a
responsável pelo início da retirada do material
Psicologia: psíquico
Ciência desse processo improducente, embora
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confortável. Ela surge na mente com função instigante e instigadora para que um novo caminho
seja trilhado, mas mostra-se insuficiente por si só para levar à elaboração, cujo preço é a
renúncia, ainda que temporária, ao prazer.

Essas duas facetas por nós consideradas relacionam-se ao que Lacan (1985, p.88) chamou de
tendências restitutiva e repetitiva, como sendo os dois termos que se mesclam no âmbito da
repetição. Além da tendência simplesmente restitutiva a uma posição anterior mais confortável
que, nesse caso, estaria de acordo com o aspecto improdutivo da repetição, há a tendência de
continuar repetindo indefinidamente, pelo menos até que algo ocorra. Esse último termo é o
que se relaciona ao que queremos dizer em relação à concernência.

Um exemplo a título de ilustração seria útil para esboçarmos no nosso entendimento o que
estamos desenvolvendo acerca da concernência e do caráter dito improdutivo da repetição.

Imaginemos a situação hipotética na qual uma pessoa se encontra envolvida numa discussão
acalorada sobre um assunto que lhe diz respeito. A discussão se dá num grupo de psicólogos
ao qual pertence e se faz necessário tomar uma decisão sobre um assunto polêmico, por
exemplo, parar ou não todos os atendimentos de pacientes para aderir a uma greve em busca
de melhorias para a profissão. Digamos que a pessoa em questão tenha opinião favorável à
greve e posiciona-se firmemente no sentido de interromper os atendimentos, pois só assim o
movimento daria resultados, segundo sua maneira de pensar. A questão ética passa a ser
abordada freqüentemente durante as argumentações contra a greve e, ao final de algumas
horas, a maioria parece convencida ou conformada com a postura de não deixar os pacientes
sem atendimento e buscar formas alternativas de participar da greve. Vencida pela
argumentação nossa personagem acaba admitindo a posição que parecia ser de bom senso e
votando contra a greve. Tão logo sai da sala de reuniões, comenta com um dos colegas: mas
eu ainda acho que deveríamos ter parado!

Embora seja necessário guardar algumas reservas quanto ao exemplo, pelo fato de ele ocorrer,
em sua essência, no consciente, ilustrase com clareza o que quis colocar sobre os dois termos
da repetição. A recorrência das argumentações sobre a questão ética, que justificavam o
melhor motivo para não se tomar uma atitude precipitada, representaria um fenômeno na
dinâmica do grupo decorrente de uma insistência por parte de argumentos contrários,
provavelmente vindos de opiniões como a da personagem e que refletiam seu jeito de pensar.
Essa parte caracteriza a instância da repetição improdutiva: a maneira de pensar relaciona-se
com as vias que as nossas representações inconscientes se habituaram a percorrer e repetem
por ser mais econômico e, por isso, mais prazeroso. Porém, mesmo depois da mudança de
opinião, que poderia ser pensada como o momento em que o significante sai de seu ciclo
acomodado - e como é doloroso ter de admitir estarmos errados - ainda assim sobra algo de
elementar que insiste e faz a personagem mostrar que algo dentro dela ainda dizia que ela
tinha razão. Eis a concernência.

Através desse desenvolvimento dos termos da repetição, procuramos evidenciar o fato de esse
fenômeno psíquico estar conectado com algo de valioso para o próprio processo terapêutico,
podendo desvelar organizações importantes e não apenas representar um entrave, um
obstáculo. Porém, é preciso que se certifique uma coisa. Jamais chegaríamos a lugar algum,
partindo daquela idéia, se nos contentássemos em manter a repetição de nossos pacientes,
porque, afinal, ela estaria nos mostrando onde se encontra o problema. Nesse caso, apenas

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estaríamos assistindo, acomodadamente, o desfile de significantes igualmente acomodados


que, no máximo, estão se referindo a derivados de - sabe-se lá quantas - novas conexões
Brasil
deformadas de um representante ideacional fundamental.

Mas, se pudermos distinguir a carga genética que cada significante que insiste traz de seu
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representante de origem, cuja natureza não podemos afirmar (aqui poderíamos pensar em
recalcado originário ou em um representante ideacional pulsional), teríamos um novo elemento
que muito nos auxiliaria e que costumamos desprezar. O que estaríamos fazendo seria voltar o
olhar (e o ouvido de ouvir) para aquilo que parece se agarrar ao paciente, que lhe concerne
como o que não desiste enquanto ainda seja necessário um último passo.

É isso que talvez ajude a nos mover pelo mundo. É isso que nos mostra mais um indício de que
não se trata de buscar o objeto primordial do desejo como se tem a tendência de pensar, mas
sim, trata-se de buscar os próprios caminhos. É o que propõe a concernência na repetição.

Como dizíamos no início desse texto, encontramos por toda parte, a todo momento de nossas
vidas, exemplos e manifestações de algo que retorna. Nossa própria existência está na
dependência disso. A Natureza externa na qual estamos inseridos nos indica a necessidade de
que isso ocorra dessa forma e, quando alguém como Freud se interessou para ver o que havia
no interior do homem, em algo distinto dessa exterioridade, deparou-se novamente com a
repetição. Essas são algumas das coisas que nos levam a crer que aquilo que se repete é a
própria vida.

Endereço para correspondência

Roberto Henrique Amorim de Medeiros


R. Engº Vespúcio de Abreu, 36/32 - Santana
90040-330 Porto Alegre-RS
E-mail:
robertoamorim80@hotmail.com

Recebido 12/06/00

Aprovado 22/09/00

Psicólogo. Mestre em Psicologia Clínica pela PUCRS. Especialista em Atendimento Clínico


Individual com ênfase em Psicanálise pela Clínica de Atendimento Psicológico da UFRGS.
1

Vide O Homem dos Lobos e a cena primária.

Freud, S. (1976). Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos Ediçăo
Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago, v.
XVIII.

_____. (1976b). Atos obsessivos e práticas religiosas In:_____ Gradiva de Jensen e outros
trabalhos Ediçăo Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de
Janeiro: Imago, v. IX.

_____. (1987). A Interpretaçăo de sonhos 2Ş parte. Ediçăo Standard das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago. Círculo do Livro.

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_____. (1974). Futuro de uma ilusăo, mal estar na civilizaçăo e outros trabalhos Ediçăo
Brasil Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago, v.
XXI.

_____. (1969). A Dinâmica Psicologia: Ciência


da transferęncia e Profissão
In:_____ O casoSchreber, artigos sobre técnica
e outros trabalhos Ediçăo Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud,
Rio de Janeiro: Imago, v. XII.

Lacan, J. (1985). O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise O Seminário: livro 2


(1954-55), Rio de Janeiro: Zahar.

_____. (1988a). A ética da psicanálise. O Seminário: livro 7 (1959-60), Rio de Janeiro:


Zahar.

_____. (1988b). Os Quatro conceitos fundamentais da psicanálise O Seminário: livro 11


(1964), Rio de Janeiro: Zahar.

Kaufmann, P. (1996). Dicionário enciclopédico de psicanálise: O legado de Freud e Lacan


Rio de Janeiro: Zahar.

Endereço para correspondência Roberto Henrique Amorim de Medeiros R. Engº Vespúcio de


Abreu, 36/32 - Santana 90040-330 Porto Alegre-RS E-mail: robertoamorim80@hotmail.com *
Psicólogo. Mestre em Psicologia Clínica pela PUCRS. Especialista em Atendimento Clínico
Individual com ênfase em Psicanálise pela Clínica de Atendimento Psicológico da UFRGS. 1
Vide O Homem dos Lobos e a cena primária.

Datas de Publicação
» Publicação nesta coleção
10 Set 2012
» Data do Fascículo
Set 2001

Histórico
» Aceito
22 Set 2000
» Recebido
12 Jun 2000

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