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Psiquiatria

Psicanálise e
Psicopatologia
A etiologia orgânica e ouso recorrente de drogas químicas constituem o
discurso e a prática dominantes na psiquiatria atual. Outras abordagens
psiquiátricas, a abordagem psicanalítica e estudos pslcopatológicos irão
apontar outros caminhos e explicações para os distúrbios psíquicos.

Os meios de comunicação e divulgação têm sido insistentes em publicar Riva Satovschi


descobertas médicas que prometem alívio para qualquer tipo de sofrimento psíquico. As Schwartzman
notícias afirmam sempre que tais sofrimentos são na verdade, doenças orgânicas cujas
causas acabam de ser descobertas, assim como o medicamento que as cura. Nessa
perspectiva, a Psicopatologia é tomada como área de conhecimento que pertence
naturalmente ao campo epistêmico da Medicina.
Mais do que no terreno da teorização, no entanto, é no cotidiano da prática médica
que a abordagem do fenômeno psicopatologia) como doença tem sido grandemente
reforçada pelas recentes e bem sucedidas descobertas de drogas que atuam de forma
eficiente na eliminação ou abrandamento de muitos dos sintomas das chamadas doenças
mentais. Esse inegável ganho prático obscurece e até mesmo exclui da discussão
especializada o objetivo inaugural da investigação psicopatológica, cuja ambição é a de
alcançar o esclarecimento sobre a origem, natureza e diferenciações entre as muitas
expressões dessas doenças. O tratamento a ser dado ao sofrimento psíquico fica então
reduzido aos limites da busca de alívio imediato; ou, pior ainda, condenado à conclusão de
que "isso não é nada": nada que possa ser explicado por uma causa orgânica. Define-se nesse
ponto o marco de separação entre os projetos da Psiquiatria e da Psicanálise, apontado por
Freud já em 1915 (Freud,S., 1915): a Psiquiatria firmando-se na busca de causas orgânicas; a
Psicanálise postulando a historicidade do corpo. Prof. adjunto d o Depto d e
Psicologia da UFMG
Proponho que se reflita não apenas nas razões que alimentam a postura (aposentada)
guerreira que a Psiquiatria tem adotado ao afirmar a causalidade exclusivamente biológica de Mestro(DuquesneUniversity,
Pittsburgh, Pa., U.S.A.;
todo sofrimento psíquico, mas também nas razões que a têm levado a, concomitantemente, Psicanalista
declarar que a Psicanálise está morta. Logo de início, não concordo com a opinião de muitos
que vêem aí tão somente uma luta corporativista. Se a motivação de uma disputa pelo
"mercado de clientes" preside parte dos interesses que alimentam esse esforço, pergunto-
me sobre que outras forças motivadoras se somariam a essa, para que o empenho se mostre
ao final tão forte. Um tal questionamento acaba No entanto, não me parece estar aí o melhor
por tornar-se exigência imposta a todos os que de seu trabalho; considero melhor sua
se interessam pelo estudo da Psicopatologia advertência: ela dirige-se a todos os que se
e pelo trabalho clínico voltado para o propõem a estudar a loucura; não há como
sofrimento psíquico, face à realidade da fazê-lo a não ser identificando e lutando
entusiasmada acolhida que as promessas de continuadamente contra as resistências que
cura química recebe da maioria das pessoas. surgem sempre no caminho dessa investiga-
E se fizéssemos uma escuta psicanalítica ção.
daquelas declarações repetidas? Entendo então que a reação da
"A Psicanálise está morta"!.... "A Psicanálise não Psiquiatria deve ter para a comunidade dos
está viva"!... "Todo sofrimento psíquico é fruto psicanalistas o valor de uma boa caricatura. Vê-
de uma causa orgânica curável através de se nela a instalação de uma cisão dualista que
medicamentos!". O que se pode ouvir aqui paralisa o fluxo da investigação das obscuri-
afirmado sob a forma de uma negativa tão dades da loucura e do funcionamento
reiterada? psíquico em geral. A existência de polos
opostos, que regem a vida psíquica na
O preconceito idealista na Psiquiatria. tessitura de seu confronto permanente, foi
uma constatação à qual Freud - mesmo
Recorro a Paul Bercherie (Bercherie, P., enfrentando dificuldades, manteve-se fiel. O
1989) para o encaminhamento dessa discus- impedimento nas investigações do psiquismo
são. Esse autor mostra, em sua cuidadosa faz-se pela redução da riqueza paradoxal do
reconstrução da história do pensamento confronto de poios opostos inseparáveis e
psiquiátrico, que o trabalho inaugurado por inerentes à condição humana a um de seus
Pinel no século XVIII estagnou, após longo lados apenas.
período fértil, diante de impasses que não Essa dificuldade não é um privilégio
pode superar. Destaca-se dentre eles o que psiquiátrico. As descobertas mais cruciais da
o autor chamou com justiça de preconceito Psicanálise só se fizeram através de sua
idealista. Ele consiste em "conceber a superação. Por outro lado, alguns dos impor-
ordem dos fenômenos como uma casca opaca tantes momentos de impasse e paralisia da
que encobre a essência pura, a realidade pesquisa psicanalítica assentam-se também
última que é responsável por eles" (Bercherie, no apego a um dos polos de uma construção
P., 1989, p. 318) e que deveria ser a realidade psíquica ambígua e complexa, negando e
de um corpo doente. obscurecendo sua articulação a um polo
Deixo de lado muitas questões que oposto. Isso não pode ser entendido como
inevitavelmente surgem desse postulado para simples sinal de imaturidade do pensa-
dar atenção à sua qualidade dualista: ela se mento psicanalítico: vislumbra-se aí o cerne
define na separação mente/corpo. Na do que constitui o objeto da investigação da
Psiquiatria hoje, expressa-se não apenas pela Psicanálise, o qual mostra-se capaz de
divisão, mas, mais fortemente, pela afirma- convocar uma defesa e, tendo sido já parcial-
ção do valor de determinação do lado do mente revelado, ocultar-se mais uma vez.
corpo, anulando o polo mental. A insistência São esses enfrentamentos o que discutirei
nessa anulação faz-nos pensar numa reação à a seguir.
Psicanálise, numa formação reativa à descober-
ta do inconsciente.
Tomada como defesa, a força da Retorno a Freud e o respeito às
repetição da notícia da morte da Psicanálise oposições na Psicanálise.
denuncia o quanto a revelação de um polo
inconsciente que (pelo menos em parte) nos Uma das críticas que se faz com maior
governa é mesmo desconcertante. A história freqüência à Psicanálise diz respeito ao fato
do movimento psicanalítico está povoada de inegável de que em sua produção retoma-
conflitos que atestam o desconforto de se maciçamente o texto freudiano. Não sendo
depararmo-nos com meandros de nossas essa uma prática comum em outras áreas de
próprias vidas que não podemos compreen- conhecimento, tal retorno à palavra do
der e muito menos dominar. Reagir a esse pioneiro é interpretado como estagnação,
impacto com tentativas variadas de negação como dificuldade no progresso do conheci-
tem custado à ciência psiquiátrica uma mento, cujo percurso é aí pressuposto como
paralisação da construção teórica. Essa é a linear. Estariam os psicanalistas todos, tão
conclusão a que chega o estudo de Bercherie. somente presos à autoridade de Freud na
validação de seu próprio trabalho? Ou podemos trabalho em Psicanálise ao contar a Marta, em
-tomando um pouco de distância da ideologia cartas coloridas de grande entusiasmo, o
mecanicista e pragmatista que nos submerge impacto que sofreu por ocasião de seu
- captar, na ironia daqueles comentários, um encontro com Charcot. Ele encontra em
dos preconceitos acima discutidos? Charcot o modelo de cultivo da verdade, de
Uma cisão subjacente ao preconceito espírito de investigação e de honestidade
acima é a que separa novo de velho. Nada intelectual que o fazem diferente e destacado
aí é neutro: novo seria obviamente melhor que no cenário dos homens de ciência de sua
velho, e o progresso do conhecimento deveria época. O encantamento com o professor
brindar-nos sempre com novidades. O que a que estas cartas exalam não é dirigido tanto à
Psicanálise vem-nos dizer no entanto, é que o obra, mas à atitude. É a partir de um tal
crucial dos fenômenos psíquicos é sempre um modelo que o jovem Freud enche-se de
conhecido e desconhecido. Especialmente no coragem para enfrentar as barreiras nas quais
terreno da loucura, sabe-se que a patologia esbarravam todos no tratamento de pacientes
faz parte do cotidiano e brinca de nos surpre- histéricos e que, já naquele momento, não
ender; não com algo novo mas, constrangedo¬ lhe eram desconhecidas.
ramente, com lapsos, esquecimentos e O retorno ao texto freudiano é uma
enganos gerados e desenvolvidos por paixões marca muito visível que distingue a produção
por demais familiares. do pensamento psicanalítico da produção das
A coexistência de desconhecimento ciências da natureza. Com maior sutileza,
e intimidade que qualifica o objeto da mas não com menor Importância, listam-se
investigação psicanalítica obriga não apenas à outras diferenças impostas pelo objeto de
sustentação dessa tensão novo/velho, mas interesse da Psicanálise. Algumas delas são
também ao reconhecimento de que não se especialmente importantes para a
trata aí apenas da aplicação de um método já Psicopatologia.
consagrado de pesquisa, nem dos espantos Tomo então os polos sujeito/objeto e
de uma descoberta. Trata-se de uma recupera- alguns de seus derivados. O momento
ção. dramático de seu surgimento na história da
Se se toma como horizonte de Psicanálise dá-se quando Freud descobre em
reflexão a singularidade do objeto da investi- sua própria infância as mesmas paixões que
gação psicanalítica, vê-se que não é nada tecem osofrimento de seus pacientes. Seu
acidental a volta constante ao texto freudiano. registro está na conhecidíssima carta dirigida a
O que se busca alcançar nesse retorno não Fl iess, a 4 de outubro de 1897:
é a certeza de um conhecimento fixo, "Muito pouca coisa está acontecendo
garantido. Busca-se a postura pessoal que comigo externamente; contudo, internamente,
possibilita a abertura para o instante sempre ocorre algo muitíssimo interessante. Pois, nos
fluido e fugaz no qual o inconsciente se faz últimos quatro dias, minha auto-análise, que
ouvir. Aquele posicionamento, face a si próprio considero indispensável para esclarecer todo o
e ao outro, é o que define essencialmente o problema, tem prosseguido nos sonhos e me
analista e seu trabalho. É com essa paixão pela presenteou com as mais valiosas referências e
verdade que ele se identifica e é ela o que indicações" (Freud,S., 1897).
primordialmente o constitui. Busca-se em Nas linhas que se seguem, Freud, em
Freud muito mais a inspiração do que a tom de confissão, relata a Fliess ter reconhe-
palavra final. cido em sua própria história infantil desejos e
E só reconhecendo a importância do conflitos que ele (Fliess) identificara em seu
envolvimento do psicanalista com o seu filho: um envolvimento apaixonado por sua
objeto de investigação que se pode compre- mãe, assim como um ciúme feroz do irmão
um ano mais novo que ele, e que morreu
ender o grande interesse que desperta
com poucos meses de idade. Condensa-se aí o
qualquer depoimento que enriqueça o que se
drama que sustenta a construção do sujeito
conhece da biografia de Freud. As muitas cartas
psíquico e também de todo sofrimento
que ele escreveu destacam-se nesse interesse.
neurótico: o triângulo familiar, o complexo
Um bom número delas não trata de temas de Édipo, os processos que resultam nas
psicanalíticos; elas mostram algo do olhar construções identificatórias e nas escolhas
sobre o mundo, das atitudes, opiniões, gostos, amorosas. É também em sua auto
afeições e desafetos do Mestre. -análise que Freud reconhece ter captado o
Freud é quem primeiro afirma a núcleo construtor da subjetividade que se
crucialidade da sustentação de uma paixão expressa no sofrimento neurótico, nos sonhos,
inspiradora para o desenvolvimento do nos enganos da fala, nos esquecimentos.
Anula-se a separação pesquisador/objeto de de que se ocupa o Investigador psicanalista,
pesquisa. A linha de divisão entre público e sendo também ele mesmo, não é propriamen-
privado fita também, conseqüentemente, te objeto de uma "descoberta". Nem o
enfraquecida. tempo, nem o espaço medem-se aí da mesma
O mesmo cuidado que desperta forma. A distância inexiste e o tempo não
no analista o relato de um caso clínico para obedece ao relógio. O tratamento de pacien-
que a vida particular de seu paciente não tes é também um trato de si mesmo, como é
sofra exposição, lnibe-o quando o relato de reconhecido na Psicanálise, na sustentação
suas reflexões atinge os meandros de seu da tensão entre transferência e contra-
próprio psiquismo e de sua vida privada. transferência.
Quando lemos A Interpretação dos Sonhos Retomei acima alguns dos impor-
(Freud.S., 1900), é com pesar que nos tantes pares de polos opostos, cuja susten¬
deparamos com interrupções no trabalho tanção resulta nas produções mais ricas da
interpretativo, em momentos em que Freud teorização psicanalítica. As dificuldades dessa
declara que o prosseguimento implicaria em sustentação são as mesmas que se interpõem
mostrar algo que prefere guardar. Concede-
no processo de um tratamento psicanalítico:
se ao analista que assim procede o direito de
fazê-lo: o simples relato de um sintoma ou a resistência que mantém a cisão inconscien-
do fragmento de um sonho é revelador, já que te/consciente. Assim, um impasse teórico
a separação sintoma/doença, tal como difícil de superar indica a força da resistên-
entendida pela Medicina não se aplica aqui. cia no teorizador. A construção da teoria
Não há no sofrimento psíquico uma verticali- psicanalítica é também, tanto quanto qualquer
dade que ordene as coisas de modo a outra produção psíquica, afetada pelo recalca-
colocar as causas da doença em lugar oculto mento.
e distante, deixando à tona apenas os sinto- O trabalho desenvolvido desde há algum
mas. Os sintomas são os portadores de seu tempo por Paulo César Ribeiro (Ribeiro, P.C.,
sentido, convidando-nos a esculá-los. Aquilo 1993) atesta o efeito do recalcamento no
que se oculta emaranha-se com o artifício pensamento do próprio pai da Psicanálise. Esse
ocultador na horizontalidade da fala e então autor documenta momentos de "surdez" na
também se revela. escuta desenvolvida por Freud em alguns dos
Finalmente, se pensamos o todo do casos clínicos que a sua análise tornou
trabalho em Psicanálise, constatamos que as clássicos. Ele demonstra de forma precisa o
divisões ordenadoras da Ciência não são que se dizia acima: o progresso na construção
aplicáveis a seu objeto. A limpeza de uma do conhecimento em Psicanálise não é linear,
separação entre a teoria pslcopatológica e a pois os obstáculos impostos pelo recalcamento
metapsicologia psicanalítica não existe. Não devem ser superados a cada passo. A
se pode dizer também de uma teoria que se construção teórica é, também ela, sofredora
"aplica" à prática clínica ou de uma "técnica de dos limites impostos pelo trabalho do
pesquisa" que num segundo momento se inconsciente. É nesse cenário que se esclarece
preste à construção da teoria. Quem dedica- a diferença entre teoria psicopatológica
se ao tratamento de pacientes, pesquisa o psiquiátrica e teoria psicopatológica
inconsciente e constroi a teoria. Os três polos psicanalítica. Indica-se aí também que os
nutrem-se recíproca e continuadamente. momentos de psiquiatrlzação que invadem o
A interrupção desse fluxo resulta em teorização pensamento psicanalítico são fruto de
empobrecida, clínica estereotipada e pesquisa motivações mais complexas e não somente da
estéril. Além disso, o objeto a que se dedica a disputa pelo mercado de clientes.
Psicanálise não está lá, lá fora. O Inconsciente

Referências Bercherie, E Os Fundamentos da Clínica: história e Freud, S.,(1915). Conferências Introdutórias sôbre
estrutura do saber psiquiátrico. Rio de Janeiro, Jorge Psicanálise. Edição Standard Brasileira das Obras
bibliográficas
Zahar Editor, 1989. Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol XV Rio de
Janeiro, Imago Editora, 1976.
Freud, S.,(1897). Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol I. Rio de Ribeiro, P.C. "O edipe et Castration selon le 'petit Hans'",
Janeiro, Imago Editora, 1976. in: Psychanalyse a I'Université, Tome 18, no.70, avril
1993.
Freud, S„ (1900). Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol IV eV.Rio

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