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PSICANÁLISE, CIÊNCIA E

PROFISSÃO
AULA 5

Prof. Giovana Madrucci


CONVERSA INICIAL

Anteriormente, pudemos trabalhar um pouco sobre as origens da


psicologia e de sua profunda relação com os mais diversos tipos de psicoterapia.
Nesse interim, encontra-se a psicanálise. Tendo em mente que a psicanálise não
se pretende um fazer e nem uma ciência que busca inserção e adequação às
metodologias que são tidas como científicas, devemos entender que o que a
sustenta é uma posição ética. O que quer dizer isso? A psicanálise tem uma
concepção de homem e uma ética muito específicas, que seria a do desejo e a
do sujeito do Inconsciente. Isso a torna paralela aos fazeres da psicologia e aos
outros tipos de psicoterapia, pois, com isso, devemos entender que o objetivo
principal da análise não é a cura e o bem-estar, mesmo que essas sejam
consequências que possam ocorrer ao longo do tratamento analítico.
Como analistas, devemos nos ocupar com o fato de que o sujeito do
inconsciente e o desejo devem vir à tona. Freud percebeu que os sintomas só
poderiam ser tratados com base no momento em que os impulsos insuportáveis
provenientes do Inconsciente pudessem vir à tona (normalmente carregados de
fantasias) para serem trabalhados. Somente fazendo emergir os conteúdos do
Inconsciente é que o sujeito pode se haver com aquilo que há de mais particular
nele, e, assim, haver-se com seu desejo, diminuindo a "divisão subjetiva" que o
faz sofrer.
Essa deve ser a ética que guiará o fazer do analista: a escuta da
singularidade e do desejo de cada sujeito, sem normatizações, sem
enquadramentos, sem moralismos e adequações sociais. Considerando a
questão ética da psicanálise, podemos dizer que o fazer do psicanalista é um
fazer laico, que não possui vínculo com nenhum tipo de prática ou crença
religiosa. Portanto, isso não deve estar em pauta na postura que deve ser
assumida pelo psicanalista. Considerando todos esses aspectos éticos que
estão sendo e que foram levantados na discussão da psicanálise enquanto
ciência, nesta aula, pretendemos seguir com as distinções entre psicanálise e
outros tipos de psicologia ou ciências.
Em um primeiro momento, seguiremos estabelecendo as distinções que
existem tanto na concepção de homem (que, na psicanálise, tira o foco da
consciência e leva para o inconsciente) quanto na de ética, que guia os fazeres
da psicologia e das psicoterapias, bem como o da psicanálise.

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Veremos, também, o motivo pela qual essas concepções devem ser
consideradas tão distintas. Para tanto, retornaremos a dois textos seminais de
Freud, os quais versam sobre a técnica psicanalítica e dão instruções àqueles
que querem exercê-la. No momento final da aula, trataremos sobre como foi
difundida e estruturada a psicanálise desde Freud. Esse aspecto historiográfico
nos dará subsídios para que, em conteúdo posterior, possamos tratar da questão
do fazer analítico como um ofício, verificando como se forma um analista.
É importante frisar que a psicanálise, por mais que se veja um tanto
quanto “de fora” quanto a normativas e regulamentações, não deve ser praticada
à revelia. Um analista não se forma apenas com estudo teórico, pois é
necessário haver um outro fator em sua formação, fator esse que tentaremos
deixar bem claro em nosso percurso. A psicanálise também não se abstém de
posições políticas, seja num quadro político mais geral (da sociedade em si),
seja uma política própria que rege as instituições de psicanalistas e a relação da
psicanálise com a sociedade.

TEMA 1 – A PSICANÁLISE E AS PSICOTERAPIAS: UM POUCO MAIS

De acordo com Silva, Gasparetto e Campezatto (2015), o período em que


se formulam os primeiros tipos de psicoterapias propriamente ditas se dá entre
1880 e 1900. As autoras afirmam ainda que, de um lado, surgiram os laboratórios
de psicologia experimental, com W. Wundt e W. James. Por outro, durante esse
mesmo período, surgiram as psicoterapias sugestivas e a psicanálise.

Inicialmente, Freud não fazia distinção entre os termos “psicoterapia” e


“psicanálise”; a necessidade mais premente parecia ser distingui-la da
medicina. Ilustra esta indiferenciação a conferência proferida por Freud
em 1904 no Colégio de Médicos de Viena, a qual abordou a
especificidade da psicanálise frente a outros métodos de tratamento,
que recebeu o título: ‘Sobre a Psicoterapia’ (Über Psychotherapie). Em
1919, Freud sentiu a necessidade de diferenciar seu método das
técnicas que empregavam a sugestão direta. Ele acreditava que a
psicanálise era a forma ideal de tratamento psicológico [...]. (p. 40)

A psicanálise, portanto, é absorvida pela psicologia e vai se afastando da


medicina. E, assim, torna-se uma ciência “aplicada” e que pode ser ensinada nos
cursos de psicologia. Silva, Gasparetto e Campezatto (2015) afirmam que esse
é um ponto de bastante controvérsia. Com a inclusão da psicanálise nos cursos
de psicologia, muitos psicanalistas passaram a discordar de sua identificação
enquanto uma psicoterapia.

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Tal distinção se deve a uma tentativa de diferenciação da “psicanálise
pura” do conjunto de práticas que compunham o arsenal mais amplo das
psicoterapias. Mesmo assim, há alguma dificuldade dos psicanalistas em
manterem tal distanciamento. Um exemplo disso é o fato de que “[...] uma das
primeiras práticas psicoterápicas instituídas após a Segunda Grande Guerra, o
humanismo criado por Rogers, estava carregada de elementos psicanalíticos”
(Silva; Gasparetto; Campezatto, 2015, p. 41). Contudo, as psicoterapias surgidas
depois da guerra não foram herdeiras somente da psicanálise. Elas foram
formadas por uma convergência de várias práticas realizadas nos EUA desde o
século XIX. Silva, Gasparetto e Campezatto (2015), citando Zimerman (1999),
afirmam que grande parte da confusão que ocorre acerca do que é psicanálise
e do que é psicoterapia se deve ao fato de que a palavra psicoterapia engloba
uma série de possibilidades terapêuticas, psicanalíticas ou não, tanto nas suas
concepções teóricas quanto nas suas aplicações práticas.
Entretanto, seus fundamentos éticos as distanciam deste rol maior. Por
quê? Que fundamentos seriam esses? De acordo com Tanis (2006), citando
Birman (2000), a psicanálise nasceu principalmente fundamentada como um tipo
de consciência crítica da modernidade. Por meio dela, os reinos vigentes do eu
e da razão soberana são destronados para que, assim, possa ascender uma
concepção de homem que o vê como um sujeito do inconsciente.

O que a psicanálise colocou e, a meu ver, ainda coloca em evidência


inquestionável é a limitação do discurso médico para dar conta do mal-
estar moderno enquanto produção subjetiva e cultural. O desejo, o
conflito e o sofrimento psíquico nas suas múltiplas expressões são
irredutíveis a motivações de natureza exclusivamente biológica. Freud
aponta o descentramento do sujeito frente ao próprio desejo
inconsciente, tematizado na primeira descrição do psiquismo.
Posteriormente, amplia sua visão e a complementa. (Tanis, 2006, p.
311)

Ainda segundo o autor, a psicanálise não se visa um tipo de correção,


adequação e normalização (que ele chama de ortopedia psíquica) como
tratamento, mas sim uma transformação do sofrimento do sujeito por meio de
um fazer-saber sobre o inconsciente. Com isso, pode-se promover a
desalienação deste sujeito, condenado, até então, à repetição. Um trecho
bastante importante do texto Sobre o início do tratamento (1913) nos dá o tom
de tais distinções e da ética que propõe Freud acerca do sofrimento psíquico:

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A estranha conduta dos pacientes, por serem capazes de combinar um
conhecimento consciente com o desconhecimento, permanece
inexplicável pela chamada psicologia normal. Para a psicanálise,
entretanto, que reconhece a existência do inconsciente, ela não
apresenta dificuldade. [...] Os pacientes conhecem agora a experiência
reprimida em seu pensamento consciente, mas falta a este
pensamento qualquer vinculação com o lugar em que a lembrança
reprimida [...] está contida. Nenhuma mudança é possível até que o
processo consciente de pensamento tenha penetrado esse lugar e lá
superado as resistências da repressão. (Freud, 1913, p. 156)

TEMA 2 – O QUE POSTULOU FREUD ACERCA DO EXERCÍCIO DA


PSICANÁLISE

Há, na obra de Freud, uma série de artigos que versam sobre a técnica
psicanalítica e sua ética, são os artigos sobre a técnica. Em Recomendações
aos médicos que exercem a psicanálise (1912), Freud expõe diversas questões
que devem ser postas em prática no exercício da psicanálise para que a
experiência do Inconsciente seja a mais legítima possível e sua ética sustentada.
A primeira delas é a “atenção uniformemente suspensa” ou atenção flutuante. O
que seria essa atenção flutuante? De acordo com Laplanche e Pontalis (2001),
na atenção flutuante não se deve privilegiar a priori qualquer elemento do
discurso do paciente, assim, a emergência do Inconsciente é facilitada. Aquilo
que o Inconsciente do próprio analista capta e prioriza do discurso do paciente
(que está em associação livre) é o que precisa ser trabalhado em análise.
Com isso, percebe-se que a prioridade na experiência do Inconsciente
não é a produção de sentido, mas sim a captação daquilo que não faz sentido
num primeiro momento. É justamente na falta de sentido que se mostra o
Inconsciente com o qual trabalha a psicanálise. A tomada de notas integrais, por
exemplo, é algo ao qual Freud (1912) se mostra contrário, justamente pela
questão da produção de sentido que pode ocorrer com base nisso, e, com isso,
perder-se-ia uma parte importante da experiência Inconsciente.

Nenhuma objeção pode ser levantada a fazerem-se exceções a essa


regra no caso de datas, [...] ou eventos específicos dignos de nota que
podem ser facilmente desligados de seu contexto e são apropriados
para uso independente [...]. (Freud, 1912, p. 127)

Outro ponto importante no que concerne à experiência analítica, diz Freud


(1912), é que, em psicanálise, tratamento e pesquisa ocorrem ao mesmo tempo
e até mesmo se confundem. Ao se investigar os fenômenos inconscientes,
também se tratará deles.

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Aqui, é de fundamental importância visualizarmos o fato de que, em um
tratamento psicanalítico, o que se prioriza o tempo todo é a emergência dos
aspectos inconscientes que precisam ser trabalhados.
A técnica é toda estruturada para a facilitação desse processo (seja pela
via da associação livre, seja pela atenção flutuante, seja pela investigação que
se confunde com tratamento).
Uma outra observação importante que faz Freud, e aí entramos no plano
daquilo que distingue a psicanálise de outros tipos de psicoterapia, é que,
segundo ele, o médico (ou para nós, o analista) não deve possuir um furor de
cura. Ele trata a questão dessa ambição terapêutica de produzir algo que gere
algum efeito convincente sobre as outras pessoas como um tipo de perigo, pois
pode tornar o tratamento impotente frente a determinadas resistências do
paciente. O foco do trabalho deve ser investigar e trazer à tona os conteúdos
provenientes do inconsciente, e, com base nisso, será possível realizar algum
trabalho.

É fácil perceber para que objetivo as diferentes regras que apresentei


convergem. Todas elas se destinam a criar, para o médico, uma
contrapartida à ‘regra fundamental da psicanálise’ estabelecida para o
paciente. Assim como o paciente deve revelar tudo o que sua auto-
observação possa detectar, e impedir todas as objeções lógicas e
afetivas que procuram induzi-lo a fazer uma seleção entre elas,
também o médico deve colocar-se em posição de fazer uso de tudo o
que lhe é dito para fins de interpretação e identificar o material
inconsciente oculto [...] ele deve voltar seu próprio inconsciente, como
um órgão receptor na direção do Inconsciente transmissor do paciente.
(Freud, 1912, p. 129)

Nesse ponto, podemos perceber o quanto é necessário que o próprio


analista tenha trabalhadas suas próprias questões inconscientes e o quanto o
Inconsciente do analista é importante para o trabalho de análise (seja pela
questão da transferência, seja pelo fato de que é no ponto de encontro entre o
inconsciente do analista e o do paciente que é possível que ocorra algum
trabalho). Passemos, então, às recomendações de Freud quanto à questão da
formação do analista e à posição que este deve assumir.

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TEMA 3 – O QUE DIZ FREUD ACERCA DA POSIÇÃO E DA FORMAÇÃO DO
ANALISTA

Uma das pontuações mais relevantes de Freud no que diz respeito ao


inconsciente do analista e ao modo como ele atua em um processo de análise é
que

ele não pode tolerar quaisquer resistências em si próprio que ocultem


de sua consciência o que foi percebido pelo inconsciente, doutra
maneira, introduziria na análise nova espécie de seleção e deformação
que seria muito mais prejudicial [...]. (Freud, 1912, p. 129)

O que ele quer dizer com isso? Que a resistência do analista pode causar
prejuízos no trabalho realizado, pois, devido a tais resistências, o analista pode
não perceber, não levar em conta e/ou não suportar não trabalhar aspectos
importantes do material inconsciente do paciente. Ao analista, há, portanto, que
trabalhar seu próprio inconsciente.

Todo aquele que possa apreciar o alto valor do autoconhecimento e


aumento de controle assim adquiridos, continuará, quando ela
terminar, o exame analítico de sua personalidade sob a forma de
autoanálise e ficará contente em compreender que [tanto] dentro de si
quanto no mundo externo, deve esperar descobrir algo de novo. Mas
quem não tiver dignado a tomar precaução de ser analisado não só
será punido por ser incapaz de aprender um pouco mais em relação a
seus pacientes, mas correrá também perigo mais sério, que pode se
tornar perigo também para os outros. Cairá facilmente na tentação de
projetar para fora algumas das peculiaridades de sua própria
personalidade [...]. (Freud, 1912, p. 130)

O que fica evidente nessa passagem é que o analista deve se analisar


tanto para que não caia em pressuposições e deixe de escutar seu paciente
quanto para que não projete questões próprias para fora enquanto estiver
escutando alguém, ou seja, o inconsciente do próprio analista precisa estar
trabalhado. Assim, para que seja possível ter a experiência do inconsciente, é
necessário ter essa experiência na própria pele por meio da vivência e da análise
do próprio inconsciente.
Entretanto, Freud (1912) observa que mesmo que o analista tenha
trabalhado seu próprio inconsciente, sua personalidade e questões particulares
devem ficar de fora do tratamento analítico. Segundo o autor, uma exposição da
figura no analista em nada contribui para o avanço do paciente, podendo piorar
por facilitar que se ergam resistências que dificultem o manejo da transferência,
tão essencial para o setting analítico.

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Portanto, “o médico deve ser opaco aos seus pacientes, e como um
espelho, não mostrar-lhes nada exceto o que lhe é mostrado” (Freud, 1912, p.
131).
Uma outra observação importante de Freud, que vai ao encontro da
posição da psicanálise, segundo a qual não se deve buscar o bem-estar nem a
cura, mas sim a ética que guiará o analista, é a de que não se deve dar “dicas”
nem “indicações do que fazer”. Segundo Freud (1912), há que se respeitar a
limitação e o tempo de cada paciente, portanto, dar “conselhos” não é efetivo
com aquilo que se busca numa análise.

Como médico, tem-se acima de tudo de ser tolerante com a fraqueza


do paciente, e contentar-se em ter reconquistado certo grau de
capacidade para o trabalho e divertimento para uma pessoa mesmo de
valor moderado. (Freud, 1912, p. 132)

TEMA 4 – O QUE O ANALISTA DEVE SABER SOBRE O INÍCIO DO


TRATAMENTO PSICANALÍTICO SEGUNDO FREUD

Neste ponto de nossa aula, já nos vemos advertidos pelo próprio Freud
de que a prática analítica só se dá por meio da experiência com o Inconsciente
(tanto por parte do analista, que deve ter passado pela experiência particular de
investigar seu próprio inconsciente pela via da análise pessoal; quanto por parte
do paciente, que viverá o contato com seu próprio Inconsciente via análise).
Sendo assim, algumas medidas devem ser tomadas logo de início para que o
tratamento seja levado a cabo e se mostre eficaz no sentido de trabalhar com os
conteúdos inconscientes que estão adoecendo o sujeito. Tais advertências são
também uma forma de manter a ética que se propõe num processo de análise:
a do sujeito do inconsciente e a do desejo.
Em seu texto Sobre o Início do tratamento (1913), Freud nos ensina que,
em um tratamento psicanalítico, há um período preliminar em que o “médico” ou
o analista deve decidir se vai ser possível levar em frente o tratamento, seja pelas
possibilidades que se apresentam em termos de diagnóstico, seja em função da
possibilidade de se estabelecer uma relação transferencial que possibilite o
trabalho analítico. Para Freud, pontos de extrema relevância no início do
tratamento são acordos que se estabelecem com relação ao tempo e ao
dinheiro.

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Para o autor, com relação aos acordos de tempo, não se deve
estabelecer com o paciente promessa de cura nem prazos de trabalho
predeterminados. O que quer dizer isso? Não há uma resposta certa e firme
sobre quanto tempo o tratamento poderá durar, pois isso depende das
possibilidades de cada sujeito que procura uma análise: suas defesas, suas
possibilidades subjetivas, seu objetivo ao procurar a análise etc. Freud
estabelece que o ritmo de tratamento deve ser intenso para que os conteúdos a
serem trabalhados não se percam com os espaços entre as sessões, nem se
submetam a defesas que tais espaços possam facilitar, dificultando, assim, o
trabalho.
Já com relação aos acordos relativos ao dinheiro em um processo de
análise, tem-se que a análise deve ter um custo suficientemente alto, na qual o
sujeito entenda que deve trabalhar e que está despendendo recursos tanto de
tempo quanto de dinheiro para tal. Não se recomendam os atendimentos
gratuitos, pois, com isso, entende-se que o paciente não se motivaria ao
trabalho.
No que tange ao conteúdo com o qual se deve iniciar o tratamento, Freud
é bastante persistente na ideia de que a fluição de ideias dever ser o mais livre
possível. Quando o paciente é demasiadamente organizado em seu discurso, ou
quando são pedidas “tarefas de casa”, impede-se a livre circulação do conteúdo
inconsciente, facilitando, assim, que a resistência atue para manter o conteúdo
inconsciente recalcado. “O material com que se inicia o tratamento é, em geral,
indiferente, [...] em todos os casos, deve-se deixar que o paciente fale e ele deve
ser livre para escolher em que ponto começará” (Freud, 1913, p. 149). Há que
se tomar relativo cuidado para não acelerar também as interpretações, pois isso
pode também acabar afastando o paciente do tratamento.

Enquanto as comunicações e ideias do paciente fluírem sem qualquer


obstrução, o tema da transferência não deve ser aflorado. Deve-se
esperar até que a transferência, que é o mais delicado dos
procedimentos, tenha-se tornado resistência. (Freud, 1913, p. 154)

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O que fica claro no discurso de Freud em seu texto sobre o início do
tratamento é que ao mesmo tempo em que se deve trabalhar com as resistências
que venham a surgir no decorrer do tempo (o que torna a resistência também
um material de trabalho), é necessário que a espontaneidade do paciente seja a
maior possível, pois, assim, as resistências não se tornem tão grandes e tão
atuantes a ponto de impedir o trabalho analítico e a emergência do material
inconsciente.

TEMA 5 – A DIFUSÃO DA PRÁTICA PSICANALÍTICA E A PSICANÁLISE COMO


UMA PRÁTICA LEIGA

De acordo com Robert (2016), a difusão da prática psicanalítica e a


história do movimento psicanalítico se iniciam com a reunião de Freud e mais
quatro colegas às quartas-feiras. Essas reuniões se tornaram a Sociedade
Psicológica das Quartas-feiras. Compunham o grupo Wilhelm Stekel, que foi o
idealizador; Max Kahane; Rudolf Reitler e Alfred Adler. “O encontro destes cinco
homens judeus marca o início da configuração do campo psicanalítico” (p. 39).
Robert (2016) ainda nos reitera que tais reuniões aos poucos foram
recebendo outros interessados em discutir a teoria psicanalítica. Citando Gay
(1989), Robert (2016) afirma que não eram apenas médicos que frequentavam
essas reuniões. Freud apreciava particularmente os leigos, temendo que a
psicanálise pudesse virar um monopólio de médicos.

A configuração do campo psicanalítico, iniciada através da Sociedade


das Quartas-Feiras, indubitavelmente, uma associação singular para a
reflexão científica, parece refletir nos primórdios institucionais a
complexa relação que a psicanálise, desde antes da
institucionalização, sempre manteve entre o sujeito que pesquisa e o
objeto pesquisado e também entre o normal e o patológico. (Robert, p.
40)

Esse grupo das quartas-feiras segue seu trabalho, mas não sem algum
nível de desentendimento entre Freud e seus membros. Segundo Zacharewicz
e Formigoni (2015), não havia consenso em muitas discussões, e conflitos
instalavam-se. Tais desentendimentos geraram consequências para o campo
psicanalítico, especialmente no que se refere às dissidências e ao surgimento
de ramificações da teoria freudiana (sabemos que a teoria psicanalítica é
razoavelmente ampla no que tange aos seus autores e leituras da obra de
Freud).

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[...] tal aspecto talvez tenha contribuído para que, na última reunião
antes do recesso de verão de 1907, Freud anunciasse a dissolução da
Sociedade e sua imediata refundação, com aqueles que
manifestassem interesse [...]. (Zacharewicz; Formigoni, 2015, p. 311)

Tendo acesso a esses aspectos importantes da história do movimento


psicanalítico e da difusão da prática psicanalítica, podemos ter em mente como
seu corpo teórico e clínico se constrói, sobretudo fora do âmbito universitário
formal.
“As reuniões de pessoas interessadas na psicanálise marcam o estilo da
transmissão freudiana desde os primeiros tempos” (Zacharewicz; Formigoni,
2015, p. 311). Zacharewicz e Formigoni (2015) afirmam que uma interlocução
entre aqueles que se ocupavam do exercício da psicanálise era de grande
relevância para Freud.

Destaca-se, ao longo da leitura dos documentos da Sociedade, outra


relevante preocupação freudiana: a transmissão da psicanálise. A
iniciativa de reunir diferentes interessados por sua ainda incipiente
teoria, pelo comportamento humano e pelas diversas manifestações
culturais é, por si só, um reflexo de tal preocupação. A postura e o
comportamento de Freud ao longo das reuniões e na condução da
Sociedade também têm marcas de seu interesse pela transmissão da
psicanálise. Além disso, diversas pessoas, também de fora de Viena,
foram convidadas a participar dessas reuniões. (Zacharewicz;
Formigoni, 2015, p. 312)

Em 1908, a Sociedade das Quartas-feiras seria transformada por Freud


na Sociedade Psicanalítica de Viena, a Wiener Psychoanalytische Vereinigung
(WPV). Robert (2016, p. 44) afirma que

uma das estratégias mais curiosas de legitimação do poder, da


definição da hierarquia e das relações entre os agentes atuantes na
configuração do campo psicanalítico é a formação do Comitê Secreto,
em 1912.

Esse comitê teria sido criado por iniciativa de Ernest Jones e Sándor
Ferenczi. Ainda segundo o autor, citando Kupperman (1996), o que se via por
trás das cortinas para a criação do Comitê Secreto, criado para defender
secretamente a causa psicanalítica (tendo por compromisso não se afastar dos
princípios fundamentais da teoria psicanalítica), era a relação desgastada entre
Freud e Jung, que sinalizava inclusive sua ruptura. Jung era então presidente da
IPA, a Associação Internacional de Psicanálise, criada em 1910 no Congresso
de Nuremberg.

Na história da psicanálise narrada por Freud, a complexidade das


relações entre os agentes do processo é substituída pelo acento dado
a uma narrativa linear de um herói contra um mundo não receptivo,

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inóspito e incapaz de aceitar uma verdade que lhe é dolorosa. Freud,
pelo menos no campo institucional, parece saber que não é somente
isso. Por isso, não se resignou ao destino que seria obter
reconhecimento científico em um momento posterior em que o mundo
enfim estivesse preparado para lhe dar este reconhecimento. (Robert,
2016, p. 49)

O que se percebe com base nessa breve narrativa histórica acerca do


início do movimento psicanalítico no mundo é que desde seus primórdios
existem divergências acerca de como deve ser a formação, a transmissão e até
mesmo de como devem sem compreendidos e tratados determinados conceitos
dentro do campo psicanalítico. No movimento psicanalítico, houve a
necessidade de centralização de poder nas mãos de Freud, inclusive como uma
forma de assegurar seus princípios, sua ética e suas bases teóricas e filosóficas.
Por fim, Robert (2016, p. 51) ainda chama a atenção para a “[...]
advertência de ficar atento às forças que agem sobre o campo psicanalítico”.

NA PRÁTICA

No percurso desta aula, a pretensão foi que se pudesse dar conta dos
aspectos éticos e técnicos que atravessam o fazer do psicanalista. Sua ética não
deve ser a da cura, mas sim a do desejo. E é por isso que o fazer do psicanalista
por vezes acaba ganhando essa característica de “estar de fora” do que se
entende como normativas e expectativas sociais. Entretanto, um outro aspecto
ético é o de levar em consideração a singularidade do sujeito que se escuta. Mas
o que isso quer dizer? Que todo tipo de ruído deve ser evitado para que se
emerja apenas o sujeito que está sendo escutado. Esses ruídos são evitados
principalmente por meio de uma postura ética do psicanalista, o qual trabalha o
seu próprio inconsciente.
Essa postura ética nos coloca num lugar diferente dos outros tipos de
psicologia, um lugar até mesmo muito menos normativo. Mas a grande questão
é que deve ser um fazer ético. O que se visa em um processo de análise? A
emergência do sujeito do inconsciente e de seu desejo. Entretanto, essa é uma
experiência que não se obtém a menos que se passe por ela e que se trate do
próprio inconsciente. É preciso que fique bem claro que o que forma um analista
é sua experiência pessoal com o Inconsciente, experiência essa que só pode ser
obtida por meio de uma análise pessoal.

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As recomendações de Freud trabalhadas nesta aula vão no sentido de
mostrar àquele que se pretende um psicanalista a importância de se ter o maior
cuidado possível em termos éticos e técnicos para que se priorize a
singularidade e o inconsciente do sujeito que se escuta. Na prática, se deixamos
emergir nossa própria singularidade e não nos colocamos como um tipo de tela
em branco para o paciente, o tratamento corre um sério risco de não ser bem-
sucedido. Quanto mais tomamos atitudes que podem fazer erguer resistências
no sujeito, menos bem-sucedido será o tratamento que propomos a esse sujeito.
Se levamos o tratamento de uma pessoa que apresenta compulsão em
termos de educá-la a não repetir mais o comportamento indesejado, maior
propensão essa pessoa apresentará a se apegar em seu sintoma devido às
resistências. Por isso, nosso objetivo não deve ser o de educar nem o de tornar
o sujeito socialmente adaptado, mas sim verificar com ele o que faz com que
essa seja a única solução encontrada para manejar com a angústia.
A (re)construção da singularidade do sujeito e a (re)construção da
narrativa acerca daquilo que o faz sofrer é o que deve objetivar o psicanalista.
Não se deve arrancar o sintoma do sujeito, mas sim investigar como ele foi
construído. É por meio dessa investigação que algum efeito mais duradouro
poderá surgir em termos de bem-estar e qualidade de vida para o sujeito.

FINALIZANDO

Eis os conteúdos a serem absorvidos nesta aula:

1. A psicanálise não deve ser inserida no rol maior das psicoterapias, mesmo
que tenha coisas em comum. O que a diferencia da psicologia em geral é
sua ética;
2. A ética da psicanálise não visa à cura nem adequações ou normatizações,
mas sim o desejo. Ela trabalha com o sujeito do Inconsciente e não com
o Eu ou a consciência;
3. Freud, em seu texto Recomendações aos médicos que exercem a
psicanálise, de 1912, afirma o tempo todo que a posição do analista deve
ser a mais neutra possível (no sentido de se tornar um tipo de ‘tela em
branco’ para o paciente), para que, assim, possam emergir os aspectos
inconscientes a serem trabalhados;

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4. Outro ponto que Freud aponta como crucial para um tratamento bem-
sucedido é que o analista não deve ter um furor de cura, mas sim priorizar
os aspectos inconscientes que causam os sintomas. Quanto maior o furor
de cura, mais resistências que impedem que o paciente se confronte com
o conteúdo inconsciente que o está adoecendo podem vir à tona;
5. O analista deve o tempo todo estar atento àquilo que pode erguer
resistências no paciente. Mesmo que a resistência seja material de
trabalho, é preciso não contribuir para aumentá-las, mas sim reduzi-las,
e, assim, o material inconsciente pode vir à tona;
6. O setting deve ser organizado de maneira que o paciente entenda que
está se dispondo a um trabalho e que isso vai exigir investimento tanto de
tempo quanto de dinheiro. A análise deve ter um custo, somente assim o
paciente poderá entender que deve se colocar a trabalho;
7. Freud deixa claro que o que torna alguém apto para a prática da
psicanálise é a experiência com o próprio inconsciente, portanto, não
deve praticar a psicanálise quem não colocar seu próprio inconsciente a
trabalho;
8. O movimento psicanalítico tem início com as reuniões das quartas-feiras.
Nessas reuniões, tratava-se de assuntos relativos à prática analítica e sua
estrutura enquanto uma ciência e um fazer;
9. Houve grandes cisões e rompimentos durante a história do movimento
psicanalítico (seja no que tange à sua difusão, seja no que tange à sua
estruturação ou transmissão), o que nos leva a visualizar que há um
aspecto político que atravessa a psicanálise em termos de sua
historiografia.

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REFERÊNCIAS

FREUD, S. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. Edição


Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
Imago, 2006.

______. Sobre o início do tratamento. Edição Standard Brasileira das Obras


Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2006.

LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo:


Martins Fontes, 2001.

ROBERT, M. R. Histórias da psicanálise em Curitiba: surgimento e difusão de


uma cultura psicanalítica entre clínica, teoria e política. 147 f. Tese (Doutorado
em Psicologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. Disponível em:
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