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DESCRIÇÃO

Introdução ao estudo da Psicopatologia e do diagnóstico de transtornos mentais: histórico,


noções de normal e patológico, sofrimento subjetivo, conceituação de transtorno e doença
mental, técnicas de exame psíquico.

PROPÓSITO
Proporcionar uma visão descritiva dos fenômenos e comportamentos disfuncionais, tomando
como ponto de partida o entendimento das alterações mentais, e promover a discussão acerca
da diversidade humana, normalidade e patologia são pontos fundamentais para o profissional
psicólogo ter uma visão mais integrada sobre a realidade humana.

OBJETIVOS

MÓDULO 1

Reconhecer as principais correntes teóricas da Psicopatologia

MÓDULO 2

Avaliar as diferentes concepções de diversidade, normal e patológico

MÓDULO 3
Reconhecer a conceituação de transtornos e doenças mentais, e os sistemas classificatórios
existentes

MÓDULO 4

Avaliar o comportamento humano, a partir do emprego de técnicas no exame psíquico

INTRODUÇÃO
O campo da Psicopatologia pode ser entendido como o conjunto de conhecimentos acerca do
processo de adoecimento mental em seres humanos. Esses fenômenos são marcados pela
especificidade psicológica relativa às vivências dos que adoecem e sua dimensão própria,
genuína, não sendo apenas exagero do que é considerado corriqueiro e funcional. E, também,
são marcados por suas conexões complexas com a Psicologia, no que diz respeito ao mundo
da doença mental como um mundo não totalmente estranho às experiências psicológicas
funcionais. Embora o conceito de saúde inclua as dimensões de bem-estar biológico, psíquico
e social, ainda há uma forte influência enraizada pelo modelo biomédico no estudo da
Psicopatologia. Sendo assim, cabe ao campo de conhecimento da Psicologia considerar, para
além do modelo de observação de comportamentos disfuncionais e desadaptativos, para então
considerar as características sociais presentes na formação da personalidade, tanto funcional
como disfuncional.

Dessa maneira, este material se propõe a definir o campo da Psicopatologia e o problema da


classificação, assim como apresentar os conceitos básicos da semiologia psiquiátrica,
proporcionando a análise de modelos uni e multidimensionais. Para isso, são discutidas as
contribuições das diversas áreas, o estudo sobre normal e patológico, e é apresentada uma
introdução ao modelo de exame psíquico. Para que esse estudo tenha a base necessária para
a formação do psicólogo, são também aprofundados os conceitos de normal e patológico, que
não possuem uma demarcação fixa, mas algo tido como extremamente flexível ao longo da
história da Psicopatologia. Assim, vamos caminhar entendendo como, historicamente, essa
fronteira foi construída por meio dos conceitos técnicos e da junção destes com valores,
tradições e crenças de determinada época e em um lugar, variando o quadro das doenças
mentais.

MÓDULO 1

 Reconhecer as principais correntes teóricas da Psicopatologia

O CAMPO DA PSICOPATOLOGIA
Em uma concepção clássica, Campbell (1986, apud Dalgalarrondo, 2000) define a
Psicopatologia como um campo científico que trata a natureza da doença mental incluindo suas
causas, mudanças de estrutura e funções, em conjunto com a forma pela qual a doença se
manifesta.

Dalgalarrondo (2000) apresenta uma definição mais complexa ao defender que nem todo
estudo psicopatológico segue a rigor os ditames de uma ciência stricto sensu, ou seja, de uma
ciência exata como a Matemática e a Física.

Assim, o referido autor descreve a Psicopatologia como um conjunto de conhecimentos


referentes ao fenômeno do adoecimento mental do ser humano.

É de destaque, para Dalgalarrondo (2000), que no campo psicopatológico encontram-se


fenômenos humanos especiais associados ao que histórica e observacionalmente foi
associado à doença mental. Assim, ao estudarmos esse campo, estamos nos deparando com
vivências, estados mentais e padrões de comportamento que apresentam, ao mesmo tempo,
características disfuncionais e conexões complexas com a existência e o funcionamento
psíquico cotidiano.
DISFUNCIONAIS

Que ultrapassam exageros de comportamentos “ditos normais”.

EXISTÊNCIA E O FUNCIONAMENTO PSÍQUICO


COTIDIANO

Referente à forma de ser e existir no mundo.

Foucault (1975), ao realizar uma historiografia do conceito de loucura, apresenta sua evolução,
desde o Renascimento até a Modernidade, como algo diagnosticável, mas que reflete os
deslocamentos de poder e os mecanismos de controle emergentes das produções discursivas
de cada época, seja no sentido do exílio dos loucos em manicômios, que ocorreu até o
estabelecimento de um Movimento de Reforma Psiquiátrica, por exemplo, até sua
estigmatização, no sentido de associação de comportamentos socialmente indesejáveis à
loucura.

Dessa maneira, Foucault (1975, p. 55) afirma que:


O INTERNAMENTO QUE O LOUCO, JUNTAMENTE COM
MUITOS OUTROS, RECEBE NA ÉPOCA CLÁSSICA
NÃO PÕE EM QUESTÃO AS RELAÇÕES DA LOUCURA
COM A DOENÇA, MAS AS RELAÇÕES DA SOCIEDADE
CONSIGO PRÓPRIA, COM O QUE ELA RECONHECE
OU NÃO NA CONDUTA DOS INDIVÍDUOS.

Ainda que possamos reconhecer a função de assistência que as internações tiveram ao longo
do tempo, não podemos negar a triste realidade em que essas medidas foram empregadas em
muitos casos, nos quais os asilos e hospitais psiquiátricos eram locais onde ficavam excluídos,
de modo permanente, diversas pessoas apenas por motivos morais e de controle.

Uma visão internacionalmente importante acerca da Psicopatologia é oferecida por Karl


Jaspers (1987). Para o autor, a Psicopatologia é uma ciência básica que serve de auxílio à
técnica clínica, tanto na Psiquiatria como na Psicologia. Como técnica, ele entende o
conhecimento aplicado a uma prática profissional e social concreta. Desse modo, esse autor,
pedra fundamental de Psicopatologia Fenomenológica, introduz a ideia de um limite ao campo
que deriva do fato de que, embora o objeto de estudo seja o paciente em sua totalidade, nunca
é possível reduzir por completo o ser humano a conceitos psicopatológicos.

Se na Psicopatologia o pensamento deve ser sistemático e rigorosamente conceitual, na


prática profissional participa opiniões e intuições ao entender o sujeito como complexo e
multifacetado e multideterminado.

Com isso, é possível entender a Psicopatologia como multidimensional, pela diversidade de


campos teóricos, indicativa da constante construção dessa ciência, mas também da
complexidade e multidimensionalidade dos fenômenos patológicos.

Você está familiarizado com a definição de sujeito biopsicossocial? A Organização Mundial da


Saúde definiu saúde, em 1948, determinada pela influência de fatores biológicos ou somáticos,
psicológicos e os fatores sociais.

Ora, se o sujeito é multifacetado e multideterminado, como o estudo de seus fenômenos


mentais não seria? Por esse motivo, querer uma única explicação, uma só etiologia, uma única
concepção teórica taxativa que determine o fenômeno psicopatológico, não só é impossível
como também reducionista.

HISTÓRIA DA PSICOPATOLOGIA
Ao olhar para a história da Psiquiatria, pode-se notar que, por muito tempo, as “doenças” da
mente eram vistas como algo que remetia à alma, algo do campo imaterial. Entretanto, no
século XIX, Kraepelin traz a ideia de que existe um órgão por trás do sofrimento psíquico, e
esse órgão seria o cérebro. Além disso, ressaltava que era importante classificar esses
quadros de sofrimento, visto que cada um demonstrava um padrão de sintomas e de evolução
da doença.

Posteriormente, em meados do século XX, surge o método psicanalítico de Freud.

Bebendo da fonte de Charcot, Sigmund Freud se dedicou bastante ao estudo da histeria, que
Charcot denominava como doença sine materiae (doença sem matéria).


Freud, então, começou a considerar que haveria uma causa para as doenças da mente, e que
essas deveriam ser causas psicodinâmicas.


Ele trouxe, desse modo, a ideia, já muito difundida atualmente, de que acontecimentos na vida
de uma pessoa, principalmente os que dizem respeito aos estágios iniciais do
desenvolvimento, poderiam alterar o psiquismo dela.

Com isso, surgiu a ideia da clínica em Psicologia, na qual trazer à tona esses acontecimentos
traumáticos passados poderia, de alguma forma, reverter suas consequências indesejadas no
presente. Consequentemente, surgiu, também, a ideia de diagnóstico na clínica psicológica,
sendo que o diagnóstico, dentro da abordagem de Freud, deveria ser feito pelo acesso ao
inconsciente do sujeito, elaborado ao longo da análise, lançando mão do uso da transferência e
da escuta do discurso do analisando.
A Teoria Comportamental, que até então era mais marcada pelo aspecto experimental e pela
utilização em laboratórios, migra também para a clínica, percebendo que a compreensão do
comportamento adquirido segundo o paradigma behaviorista teria muito a acrescentar.

Logo passa a ser nomeada como Teoria Cognitiva Comportamental (e teve como figura de
destaque Aaron Beck), pois deixa de estudar apenas o comportamento para investigar também
os aspectos cognitivos.

Nessa teoria, o pensamento é a base para o trabalho na clínica. Dessa forma, o diagnóstico
para a TCC é a conceituação cognitiva com o reconhecimento dos pensamentos automáticos,
das crenças nucleares e intermediárias.

Por volta dos anos 1960, surge a Abordagem Centrada na Pessoa, de Carl Rogers, seguida
de outras terapias humanistas, com uma forte rejeição ao modelo diagnóstico médico e
psicométrico. Segundo essa teoria, o adoecimento psíquico é entendido como um bloqueio na
tendência atualizante. Além disso, surge a ideia de que ninguém poderia saber mais sobre o
cliente do que ele mesmo. Desse modo, a terapêutica deveria direcionar o paciente para
redescobrir a ele mesmo, e dessa forma ele evoluiria bem. Em outras palavras, aqui o
diagnóstico era considerado algo que rotulava as pessoas.
Ainda dentro do movimento humanista, surge a Gestalt-terapia, de Fritz Perls, também com
essa ideia de rejeição ao modelo diagnóstico médico. Para a Gestalt-terapia, o adoecimento
psíquico ocorreria quando a capacidade de ajustamento criativo da pessoa fosse interrompida.
Dessa forma, o diagnóstico veio voltado para o reconhecimento de padrões de evitação de
contato. Logo, a ideia era não diagnosticar pessoas, mas diagnosticar padrões em que essas
pessoas estão “presas”. Sendo assim, o processo de diagnóstico não é fechado, e se dá
simultaneamente ao processo terapêutico, pois uma mesma pessoa pode apresentar
determinado padrão de evitação de contato, e na outra sessão ela já pode manifestar outros
padrões, por exemplo.

Na atualidade, todos esses enfoques teóricos são considerados e, geralmente, não se exclui o
diagnóstico sindrômico e nosológico, assim como tampouco o diagnóstico psicodinâmico. Ao
contrário, é possível eles caminharem juntos. Veja o resumo das três!

NOSOLÓGICO

A nosologia no campo da saúde equivale ao conceito de taxonomia. Ela permite a


categorização dos transtornos e doenças.

ABORDAGEM SINDRÔMICA
Apresenta uma visão descritiva dos sintomas e tem uma clínica pautada na eliminação dos
sintomas.

ABORDAGEM NOSOLÓGICA
Busca compreender a doença pela observação e caracterização nosográfica do quadro,
visando à intervenção mais investigativa e supostamente mais profunda.

DIAGNÓSTICO PSICODINÂMICO
Preocupa-se em compreender a origem e a dinâmica do transtorno.

CORRENTES DE ESTUDO DA
PSICOPATOLOGIA
O campo multidimensional da Psicopatologia tem influência e contribuições de diversas
correntes teóricas da Psicologia, Psiquiatria e Filosofia. Veja os detalhes, a seguir!

PSICOPATOLOGIA DESCRITIVA
Dedica-se, basicamente, ao estudo das alterações psíquicas e da estrutura dos sintomas.
Portanto, busca conhecer a experiência geral e típica. Para Jaspers (1987), nesse campo, as
formas importam mais para os estudiosos. Já os conteúdos resultantes de funções psíquicas
disfuncionais têm caráter individual, sendo esses conteúdos considerados acidentais.

PSICOPATOLOGIA DINÂMICA
Tem como objeto de investigação científica o conteúdo da vivência patológica e normal, nos
movimentos internos dos afetos, desejos, temores do indivíduo, ou seja, em sua experiência
individual. Bleuler, no final do século XIX (apud DALGALARRONDO, 2008), ao estudar tais
fenômenos, destacou que quando nos defrontamos com pessoas psiquicamente enfermas
(termo usado na época), podemos optar por nos concentrar nos sinais e sintomas ou podemos
optar pela escuta qualificada do sujeito, para tentar compreender uma pessoa humana em sua
singularidade, suas aflições, seus temores, seus desejos e suas expectativas pessoais.

BLEULER
Paul Eugen Bleuler (1857-1939), psiquiatra suíço conhecido pelas suas contribuições para o
entendimento da esquizofrenia.

PSICOPATOLOGIA MÉDICA
Domina a perspectiva médico-naturalista, na qual a noção de homem é centrada no ser
biológico e o adoecimento é visto como desregulação do cérebro (DALGALARRONDO, 2008).

PSICOPATOLOGIA EXISTENCIAL
O sujeito que adoece é entendido como uma existência singular, como um ser lançado a um
mundo que é apenas natural e biológico na sua dimensão elementar, mas fundamentalmente
histórico e humano (DALGALARRONDO, 2008).

O campo psicopatológico também é atravessado e influenciado pela visão cognitivo-


comportamental e pela visão psicodinâmica, observe!

PERSPECTIVA COGNITIVA

Traz um homem visto como conjunto de comportamentos, que podem ser observados e
condicionados por estímulos específicos e gerais, e entende que o sintoma resulta de
comportamentos e representações disfuncionais.
POSTURA PSICODINÂMICA

Entende-se o homem como ser determinado e dominado por pulsões, desejos, e conflitos
inconscientes; e os sinais e sintomas observados são considerados como forma de expressão
de conflitos inconscientes recalcados, desejos que não podem ser realizados, temores aos
quais o indivíduo não tem acesso.

Por último, mas não menos importante, na formação do campo que estamos estudando
coexiste a ideia dimensional do sintoma, que entende as doenças como compostas por
dimensões (espectros), que incluem diferentes graus de comprometimento e de alteração de
funções psicológicas, noção presente no DSM-V com a dimensão categorial, a qual
compreende “entidades nosológicas completamente individualizadas, com contornos e
fronteiras bem-demarcados” (DALGALARRONDO, 2008, p. 37).

AS PRINCIPAIS CORRENTES EM
PSICOPATOLOGIA
O especialista Diogo Bonioli reflete sobre as diferenças entre a Psicopatologia descritiva,
dinâmica, médica, existencial, e as influências das abordagens teóricas na compreensão dos
sintomas e dos transtornos.

VEM QUE EU TE EXPLICO!


O campo da Psicopatologia – História e definição de Psicopatologia

História da Psicopatologia – Enfoques teóricos no diagnóstico e tratamento do psiquismo

VERIFICANDO O APRENDIZADO

MÓDULO 2

 Avaliar as diferentes concepções de diversidade, normal e patológico


NORMATIVIDADE E ANORMALIDADE
SEGUNDO CANGUILHEM
Em algum momento, todos nós fizemos a pergunta do que seria normal e o que seria
patológico, ou pelo menos não normal. Cientistas, psicólogos, médicos e filósofos se debatem
em tono dessa questão há muito tempo. Muitos pensam que as definições desses dois termos
são simples e cartesianas, como 2+2=4. No entanto, a natureza humana e sua existência
colocam à prova toda e qualquer possibilidade de pensarmos o normal e o patológico como
conceitos estanques e dicotômicos.

Essa discussão encontra-se no centro da reflexão clínica e na base da formação dos


profissionais da Psicologia. Por esse motivo, faz-se necessário o uso de ferramentas
conceituais para pensar de forma crítica esse problema. Apenas de posse de tais reflexões
poderemos sair da discussão na ordem no senso comum e entender os limites éticos da
intervenção biotecnológica sobre a vida, bem como as mudanças sociais que nos levam a
pensar e gerir uma linha tênue que separa comportamentos funcionais e disfuncionais.

Para podermos gerar uma base epistemológica sólida e clássica sobre essa reflexão em
relação à definição de normal e patológico, usaremos o pensamento de Georges Canguilhem
(1904-1995) importante filósofo e médico francês, autor de importantes obras em diferentes
áreas.
[...] O ESTADO PATOLÓGICO EM ABSOLUTO NÃO
DIFERE RADICALMENTE DO ESTADO FISIOLÓGICO,
EM RELAÇÃO AO QUAL ELE SÓ PODERIA
CONSTITUIR, SOB UM ASPECTO QUALQUER, UM
SIMPLES PROLONGAMENTO MAIS OU MENOS
EXTENSO DOS LIMITES DE VARIAÇÕES, QUER
SUPERIORES QUER INFERIORES [...] SEM JAMAIS
PRODUZIR FENÔMENOS REALMENTE NOVOS [...].

Em outras palavras, para esse autor, o que é dito normal é aquilo que acontece e é observado
no âmbito da vida cotidiana e, precisamente, a patologia nos permite entender melhor o que
seria saúde.

Canguilhem destaca que o que se observa e mensura em um comportamento acontece em


grande parte da população, passando, por conseguinte, a ser considerado normal.
Com isso, podemos entender que o conceito de normalidade tem a ver com o conceito de
normatividade, ou seja, com as normas de funcionamento vigentes e a distribuição
estatisticamente normal de comportamentos observáveis.

A partir desse tipo de conceituação, é necessário sempre ter em mente que a definição de
normal vem a partir de um valor, e não de um fato (CANGUILHEM, 1982, p. 95-97).

No que por muitos é entendida como o antônimo desse conceito está a ideia de anormalidade.
Ela é definida pelo mesmo autor não como um dado objetivo ou um conceito, nem mesmo
como medidas estatisticamente aferidas, mas a partir da implicação que esse desvio tem, ou
seja, em função do julgamento ou o valor positivo ou negativo que se atribui, relativo à sua
funcionalidade no processo de preservação e reprodução. Desse modo, Canguilhem (1982)
comprova que uma mesma variação objetiva pode ser sinal de normalidade ou de patologia,
dependendo do contexto em que se apresenta.

CONTINUIDADE ENTRE OS FENÔMENOS


DA SAÚDE E PATOLOGIA
Com as emblemáticas considerações de Canguilhem (1982), torna-se possível entender que,
para se descrever um estado ou um fato como normal ou patológico em si mesmo, é
obrigatório realizar uma análise dos seus efeitos sobre o exercício normativo do organismo, ou
seja, encontrar a diferença de qualidade entre o estado de saúde ou doença.

Se pensamos em saúde como bem-estar biopsicossocial, logo, os estados psicopatológicos


serão derivados exatamente por um desequilíbrio nesse bem-estar, revelado por um estado de
luto, por uma enfermidade biológica, pela apresentação de sinais e sintomas que caracterizam
comportamentos disfuncionais, ou mesmo por uma reação a questões sociais.
Canguilhem apresenta o conceito de normatividade vital, que sugere uma continuidade entre
os fenômenos da saúde e da patologia.

[...] O SER VIVO E O MEIO, CONSIDERADOS


SEPARADAMENTE, NÃO SÃO NORMAIS; [...] É SUA
RELAÇÃO QUE OS TORNA NORMAIS UM PARA O
OUTRO. O MEIO É NORMAL PARA UMA
DETERMINADA FORMA VIVA NA MEDIDA EM QUE LHE
PERMITE UMA TAL FECUNDIDADE E,
CORRELATIVAMENTE, UMA TAL VARIEDADE DE
FORMAS QUE, NA HIPÓTESE DE OCORREREM
MODIFICAÇÕES DO MEIO, A VIDA POSSA
ENCONTRAR NUMA DESSAS FORMAS A SOLUÇÃO
PARA O PROBLEMA DA ADAPTAÇÃO QUE,
BRUTALMENTE, SE VÊ FORÇADA A RESOLVER. UM
SER VIVO É NORMAL NUM DETERMINADO MEIO NA
MEDIDA EM QUE ELE É A SOLUÇÃO MORFOLÓGICA E
FUNCIONAL ENCONTRADA PELA VIDA PARA
RESPONDER A TODAS AS EXIGÊNCIAS DO MEIO.

(CANGUILHEM, 1982, p. 112-113)

Essa citação tão importante para o campo da saúde significa que, para fins de definição da
saúde ou da doença, indivíduo e meio não podem, de maneira alguma, ser considerados de
forma única e isolada. A normalidade ou a patologia, ao contrário do que o senso comum
aponta, não são dois polos ou conceito opostos, mas duas faces de uma mesma moeda, a
moeda que na Psicologia entendemos como sujeito ou ser humano.
Canguilhem contesta os autores que se opõem à compreensão da patologia como uma
variação de grau de um estado considerado sadio.

O autor defende a tese de que uma patologia, ao ser semanticamente classificada, deve:

Não usar os prefixos a ou dis.


Usar os prefixos hipo ou hiper.

Assim, considerando a relação entre o sujeito e seu meio e a visão de doença como uma
variação, para esse autor, uma patologia pode ser a expressão da presença ou ausência de
uma determinada característica, que passa a ser vital para a adaptação a um determinado
contexto. É precisamente nas condições patológicas que a Medicina pode se deparar com
importantes descobertas sobre saúde.

A VIDA E A SAÚDE COMO PROCESSO


CRIATIVO
A saúde não pode ser pensada como mera adaptação bem-sucedida do organismo ao meio,
porque a norma vital saudável implica não só a produção de um equilíbrio adequado às
exigências da relação entre os dois polos, mas também a capacidade de recriar esse equilíbrio
com bases em normas diferentes sempre que isso se tornar necessário. Vemos, assim, uma
visão dinâmica, pois as definições de normal e patológico não podem ser consideradas de
forma estanque.

A vida em si implica um processo criativo que demanda resolver a solução para o problema de
adaptação, que envolve mais do que apenas aspectos físicos relativos ao funcionamento de
um órgão, tecido ou estrutura.
É nesse contexto que Canguilhem nos oferece uma reflexão incrivelmente importante:

O patológico não é a consequência da ausência de qualquer norma. A doença é ainda uma


norma de vida, mas uma norma inferior, no sentido de que não tolera nenhum desvio das
condições em que é válida, por ser incapaz de se transformar em outra norma.
(CANGUILHEM, 1985, p. 146)

Esse pensamento, que pode parecer complicado no começo, aponta para aspectos muito
importantes. Em primeiro lugar, nos permite refletir em relação à necessidade de procurarmos
construir as ciências do cuidado em saúde livre de preconceitos. Vale lembrar que o que pode
ser saúde em um determinado momento ou contexto pode ser entendido como doença em
outras condições.

Quando o autor aponta a ausência de qualquer norma, isso nos permite refletir sobre a
necessidade de, como psicólogos, consideremos a Psicopatologia como possibilidade de
entendermos a experiência de sofrimento como centro do processo terapêutico e de nossa
atuação. Esse conceito dialoga com a perspectiva e a crítica fenomenológica apresentadas
anteriormente. Precisamos entender que focar apenas a dimensão chamada patológica e seus
sinais pode sacrificar o sujeito que ali existe. Assim, independentemente de comportamento
disfuncional, não se pode priorizar uma objetividade que não faz sentido, se não traz a
promoção de bem-estar para quem se encontra em sofrimento psíquico. E mais ainda, não
podemos apenas categorizar o sujeito sem compreender a sua condição em relação à sua
totalidade.
Também é importante retomarmos o conceito de normatividade vital para o estudo da
Psicopatologia. Mas o que isso quer dizer? O que seria essa normatividade vital?

Esse autor, central em nossa discussão, conceitua como aquela norma superior de sanidade,
ou seja:

Um sujeito normal é aquele que está dentro das determinações sociais e constrói meios de
superar os obstáculos que se oponham a seu funcionamento.


Logo, ele é capaz de criar padrões para si, sempre que necessário. Já um órgão/organismo é
considerado patológico por não poder exibir essa plasticidade.

Assim, Canguilhem propõe um conceito de normatividade vital como substituto da ideia de


normalidade.

Canguilhem defende um conceito fundamentado na adoção do vitalismo contra o mecanicismo


como premissa básica para explicitação da natureza dos fenômenos biológicos.

O objetivo do autor é, exatamente, conciliar uma visão materialista do mundo sem deslizar para
um fisicalismo reducionista, que não seria capaz de contemplar a singularidade dos fenômenos
vitais frente aos demais fenômenos do universo.
2

O pensamento desse autor nos permite ter uma visão integrada do processo saúde doença
como processo, promovendo a valorização da diversidade e o respeito à singularidade.

IMPLICAÇÕES DO PENSAMENTO DE
CANGUILHEM
O especialista Diogo Bonioli reflete sobre o pensamento de Canguilhem e os conceitos de
normatividade vital na Psicopatologia e suas implicações.
VEM QUE EU TE EXPLICO!
Normatividade e anormalidade segundo Canguilhem – Norma, normalidade e anormalidade

Continuidade entre os fenômenos da saúde e patologia – Normatividade vital

VERIFICANDO O APRENDIZADO

MÓDULO 3

 Reconhecer a conceituação de transtornos e doenças mentais, e os sistemas


classificatórios existentes

SEMIOLOGIA PSICOPATOLÓGICA
Na Psicopatologia, Psiquiatria e em outras áreas da saúde, são empregados termos como
sinais e sintomas para referência aos aspectos observáveis do comportamento de sujeitos em
uma sociedade que determinarão classificações como funcional ou disfuncional. Dessa
maneira, é importante ressaltar que a Psicopatologia parte de um sintoma, seja para definir a
esfera existencial, seja para classificar comportamentos.

Nesse contexto, o campo da Psicopatologia tem como influência em sua construção os


seguintes conceitos:

SEMIOLOGIA MÉDICA

É o estudo dos sintomas e sinais das doenças, permitindo “identificar alterações físicas e
mentais, ordenar os fenômenos observados, formular diagnósticos, e empreender terapêuticas”
(DALGALARRONDO, 2008, p. 23).

SEMIOLOGIA PSICOPATOLÓGICA

É o estudo dos diversos sinais e sintomas relativos aos transtornos mentais.

É de destaque a importância do campo da semiologia na Psicopatologia, que pode ser definido


como responsável por estudar a vida dos signos no seio da vida social. Essa definição, embora
antiga e pertencente ao campo da linguística, é de extrema relevância para a Psicopatologia,
uma vez que ressalta o signo como “elemento nuclear” da semiologia. Se entendermos
que o signo é um sinal que contém em si mesmo significado, podemos concluir que essa
espécie de sinal pode ser entendida como qualquer estímulo emitido pelos objetos ou sujeitos
que nos rodeiam. Com isso, entendemos que a semiologia na Medicina e na Psicologia se
encarrega de estudar especificamente os signos que apontam à existência de sofrimento
psíquico, associados a transtornos e patologias.

Kaplan e Sadock (2007, p. 306) destacam que “os sinais são observações e descobertas
objetivas, como os afetos constritos ou retardos psicomotores do paciente. Os sintomas são as
experiências descritas por este, expressadas muitas vezes como suas principais queixas, como
humor depressivo ou falta de energia”. Assim, enquanto o sinal é o comportamento observável
e classificável, o sintoma se liga à experiência vivida e sentida pelo paciente.
A partir dessa visão, é possível entender que a semiologia psicopatológica determina grupos
de sinais e sintomas representando síndromes para, dessa forma, estabelecer categorias ou
definições identificáveis, que se apresentam mais ambíguas do que uma doença ou um
transtorno determinado (KAPLAN; SADOCK, 2007).

NA PRÁTICA CLÍNICA, OS SINAIS E OS SINTOMAS


NÃO OCORREM DE FORMA ALEATÓRIA; SURGEM EM
CERTAS ASSOCIAÇÕES, CERTOS CLUSTERS MAIS
OU MENOS FREQUENTES.

(DALGALARRONDO, 2008, p. 26)

DOENÇA, TRANSTORNO E SÍNDROMES


Antes de prosseguir, é de fundamental importância explicar as diferenças existentes entre os
conceitos de doença, transtorno, síndrome e distúrbio. Vamos lá!

DOENÇA
Para entendermos melhor uso da terminologia, precisamos esclarecer a inadequação do uso
do termo doença na nosologia psicopatológica. No passado, você já deve ter escutado falar
sobre doenças mentais. No entanto, essa identificação foi descartada por vários motivos. Por
um lado, o termo doença se refere ao prejuízo das funções de um órgão ou do organismo
como um todo, resultando na evidência de sintomas e sinais característicos.

Existem vários critérios que determinam que uma condição seja considerada doença:

Precisa ter uma causa conhecida.

Precisa se manifestar por meio de sinais e sintomas específicos.

Precisa provocar alterações também características no organismo.

TRANSTORNO
No caso dos transtornos, entendemos que eles se apresentam com uma alteração na saúde,
nem sempre associada a uma doença propriamente dita. As diversas categorias nosológicas
em Psicopatologia se comportam como transtornos porque não cumprem os critérios
supracitados de doença: não apresentam uma etiologia determinada; e ainda contando com
sinais e sintomas identificáveis, eles são mais variados do que no caso de uma doença, assim
como a diversidade das consequências que podem acarretar.

Dessa maneira, o termo transtorno passa a ser o usado no caso de alterações no psiquismo,
inclusive porque a palavra doença, nesse meio, acarretou historicamente um estigma social,
que buscamos eliminar em Psicopatologia.

SÍNDROME
A delimitação do conceito síndrome se liga ao fato de que não são identificáveis etiologias
específicas de uma natureza essencial do processo psicopatológico (pode existir mais de uma
causa, em alguns casos). Uma síndrome representa um conjunto de sinais e sintomas que,
sem causa específica, resultam em vários processos patológicos, com manifestações clínicas
de uma ou mais doenças e/ou transtornos.
Como exemplo, temos a síndrome de Burnout, a síndrome do pânico, a síndrome de Down,
entre outras. Nelas, não se fala de uma etiologia determinada, mas é possível observar uma
série de moléstias e problemas de ordem psíquica e física no sujeito que padece. Por exemplo,
na síndrome de Burnout existem alterações no sono, falta de concentração, alterações no
sistema imune e outras condições diversas.

DISTÚRBIO
Diferentemente da síndrome, não necessariamente aponta para um diagnóstico fechado, e
apresenta anormalidades funcionais de um órgão ou de um sistema, como, por exemplo, os
distúrbios alimentares que envolvem diversas causas.
Para a construção das características semiológicas (conjuntos de sinais e sintomas que
caracterizam uma síndrome ou transtorno) são considerados os seguintes fatores:

etiologia;

curso temporal;

desfechos típicos;

mecanismos psicológicos e psicopatológicos;

antecedentes genéticos e de desenvolvimento;

repostas aos tratamentos mais e menos previsíveis.

ORDENAÇÃO DOS FENÔMENOS


PSICOPATOLÓGICOS E SINAIS
PATOGNOMÔNICOS
Nesse contexto, os fenômenos psicopatológicos são ordenados conforme o quadro a seguir:

Fenômeno Descrição

Fenômenos Ocorrem em todas as pessoas (p. ex., medo de animais


semelhantes perigosos, ansiedade frente a uma situação social nova).

Fenômenos Aqueles que em parte são semelhantes ao que o paciente


parcialmente vivencia (a tristeza é apenas parcialmente semelhante ao humor
semelhantes deprimido).

Fenômenos
Fenômenos que são próprios para certas doenças e estados
qualitativamente
mentais.
novos

 Atenção! Para visualização completa da tabela utilize a rolagem horizontal


Quadro de Ordenação dos Fenômenos Psicopatológicos

Fonte: Vanessa Nolasco Ferreira

Observando o quadro, chegamos ao que autores clássicos como Dalgalarrondo (2008) e


Kaplan e Sadock (2007) apontam como o problema da classificação. Classificar, nesse
contexto, implica a complexa atividade de utilizar a observação sistemática e cuidadosa das
manifestações psicopatológicas para classificar, interpretar e ordenar os fenômenos
observados.

O problema reside no fato de que há muitos traços semelhantes entre fenômenos normais e
patológicos, ao mesmo tempo em que há uma variedade de definições que se aplicam a
ambos. Apenas os fenômenos qualitativamente novos nos permitem identificar melhor
transtornos específicos, como no caso de delírios, alucinações, entre outros. Entretanto, na
Psicopatologia não contamos com sinais chamados de patognomônicos, quer dizer, sinais que
são considerados como diacríticos ou que nos permitem identificar uma doença de forma
característica.

 EXEMPLO
No diagnóstico de doença de Chagas, temos o sinal de Romaña e que se caracteriza por
oftalmia unilateral. Isso quer dizer que, na presença desse marcador ou indicador (sinal), a
doença é diagnosticada sem sombra de dúvidas.

Ainda sem esses sinais, na Psicopatologia, a classificação é importante uma vez que é por
meio dela que determinamos se um dado transtorno mental é válido e se a categoria
representa de forma eficiente e uniforme as ocorrências do transtorno, para apoiar as
inferências sobre o tratamento. Além disso, é pelos sistemas classificatórios que acessamos a
história causal do transtorno e podemos julgar quão informativa é a categoria classificatória.

Como já explicamos, devemos nos lembrar de que na Psicopatologia existe um debate entre as
definições do que é considerado normal e o que é considerado patológico, mas isso não
descarta o fato de pressupor que algumas alterações comportamentais ou cognitivas são parte
de um transtorno e não de outro. Nesse contexto, vale ressaltar:

Todo sistema de classificação precisa ser confiável e descrever subgrupos específicos de


sintomas que, especialmente para clínicos experientes, sejam evidentes e facilmente
identificáveis.

Além disso, sistemas de classificação pouco confiáveis estão sujeitos a vieses por parte dos
clínicos, assim, é obrigatório que um sistema de classificação passe por um processo de
validade (BARLOW; DURAND, 2016, p. 84).

A VALIDADE DOS SISTEMAS


CLASSIFICATÓRIOS
Em Psicopatologia, contamos com diferentes sistemas classificatórios que nos permitem
estudar e identificar os transtornos e as síndromes observadas. Muitos desses sistemas são
atualizados regularmente buscando a sua adequação às mudanças sócio-históricas e culturais
associadas à saúde mental, assim como adequação a mudanças na terminologia e
informações mais apropriadas. Podemos citar:

Manual Diagnóstico e Estatístico de transtornos Mentais (DSM-V)

Elaborado pela American Psychiatric Association.

Classificação Internacional de Doenças 11 (CID-11)


Elaborada pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Barlow e Durand (2016) entendem a validade desses sistemas como valor de construto, nos
quais sinais e sintomas escolhidos como critério para a categoria estão consistentemente
associados, e o que identificam difere de outras categorias. Nesse contexto, há o valor
preditivo/de critério, que se liga à capacidade de prever o curso e o desfecho em um paciente
prototípico e o valor de conteúdo, atrelado a critérios diagnósticos que devem refletir a maneira
como a maioria dos especialistas do campo veem a categoria.

Nos estudos sobre validade, também se destacam sua conceituação como um construto
diagnóstico válido apenas se sua estrutura interna corresponde a como os sintomas são
estruturados na população, o que mais uma vez remete à lógica dialógica dos conceitos de
normalidade e patologia (ZACHAR; JABLENSKY, 2015).

Ao retomar a perspectiva multidimensional da Psicopatologia, é possível pensar criticamente e


concluir que afirmar que uma doença mental é causada por uma alteração no funcionamento
do cérebro, ou por condicionamento, ou por mecanismos de defesa inconscientes; é aceitar um
modelo linear e unidimensional, que tenta traçar as origens do comportamento a uma única
causa (BARLOW; DURAND, 2016).

Mesmo os modelos que afirmam se opor ao modelo biomédico têm essa característica. Assim,
modelos mais contemporâneos buscam interpretar as alterações do comportamento como
resultantes de múltiplas influências – perspectiva sistêmica – isso “implica que qualquer
influência particular contribuindo para a Psicopatologia não pode ser considerada fora do
contexto [que], nesse caso, refere-se à biologia e ao comportamento do indivíduo, bem como
ao ambiente cognitivo, emocional, social e cultural” (BARLOW; DURAND, 2016, p. 29).

A partir de todo o conteúdo apresentado até aqui é preciso ressaltar:

Os circuitos específicos envolvidos nos transtornos mentais são sistemas complexos,


identificados por vias de neurotransmissores que inervam várias regiões.


Fatores psicológicos e sociais influenciam fortemente esses circuitos; mais uma vez é possível
remeter à questão da interrelação biopsicossocial se provando como estritamente importante
para o estudo da psicopatologia.

Dessa maneira, as “experiências psicológicas precoces afetam o desenvolvimento do sistema


nervoso e, portanto, determinam a vulnerabilidade a transtornos psicológicos na vida adulta.
Parece que a própria estrutura do sistema nervoso está constantemente mudando como
resultado da aprendizagem e da experiência, mesmo em idosos, e que algumas dessas
mudanças tornam- se permanentes” (BARLOW; DURAND, 2016, p. 52).

Estudos como o de Tseng (2007) apontam de um ponto de vista conceitual que existem seis
modos diferentes com os quais a cultura pode contribuir para os transtornos mentais:
EFEITOS PATOGÊNICOS
Ligam-se a situações nas quais a cultura é um fator de efeito direto na formação da doença.
Isso se dá quando a síndrome que ocorre tende a ser relacionada à vivência cultural.

EFEITOS SELETIVOS
Dizem respeito à tendência de algumas pessoas, diante de acontecimentos vitais, de
selecionar certos padrões de reação determinados pela cultura que resultam na manifestação
de certos transtornos.

EFEITOS PLÁSTICOS
Estudam como a organização social contribui para a modelagem das manifestações da
patologia (p. ex., conteúdo de sintomas).

EFEITOS ELABORADORES
São as reações exageradas em algumas culturas, por meio do reforçamento cultural (p. ex.,
suicídio honroso em algumas culturas orientais).

EFEITOS FACILITADORES
Incidências de transtornos por meio de costumes (p. ex., transtornos alimentares nas
sociedades ocidentais pós-industriais).

EFEITOS REATIVOS
Entendimento dos membros de uma cultura acerca de uma síndrome e/ou transtorno.

A partir desses conceitos, encerramos o estudo sobre sofrimento subjetivo, conceituação de


transtorno mental e sistemas classificatórios. Lembre-se de que sempre precisamos lançar
mão de uma visão sistêmica e multidimensional acerca desses temas, com vistas a
entendermos os sujeitos e seus acometimentos de saúde mental dentro do âmbito
biopsicossocial.
VALIDADE DOS SISTEMAS
CLASSIFICATÓRIOS EM PSICOPATOLOGIA
O especialista Diogo Bonioli reflete sobre importância da validade dos sistemas classificatórios
em Psicopatologia, apresentando o DSM 5 e o CID 11.

VEM QUE EU TE EXPLICO!


Semiologia psicopatológica – Definições de sinal e sintoma

Doença, transtorno e síndromes – Diferença entre doença, transtorno, síndrome e distúrbio


Ordenação dos fenômenos psicopatológicos e sinais pagtonomônicos – Definição de
patognomônico

VERIFICANDO O APRENDIZADO

MÓDULO 4

 Avaliar o comportamento humano, a partir do emprego de técnicas no exame


psíquico

EXAME PSÍQUICO E SUA IMPORTÂNCIA


O exame psíquico possui como objetivo a hipotetização de um diagnóstico, a formulação de um
prognóstico e a formulação de um projeto terapêutico. Esse complexo processo tem início a
partir de uma entrevista, que além de permitir a observação de sinais e sintomas
psicopatológicos deve estabelecer rapport e vínculo entre psicólogo e paciente.

O contexto no qual a entrevista acontece pode ser diverso: uma paciente que procura um
serviço de psicologia voluntariamente; ou para ele é encaminhado; a ida a um hospital geral;
uma visita domiciliar do Núcleo de Apoio à Saúde da Família etc.

RAPPORT
Este termo deriva do francês rapporter, que significa trazer de volta. Refere-se à oportunidade
de criar uma sintonia e empatia com outra pessoa. O rapport pode incluir elementos como,
atenção mútua, positividade e coordenação, muito utilizado nas relações pessoais e
profissionais.

Para que o rapport e o vínculo terapêutico sejam bem estabelecidos, é importante que a
entrevista aconteça em um ambiente seguro, agradável e no qual a obrigação de sigilo possa
ser mantida.

Recomenda-se que o psicólogo se apresente e explicite de maneira clara para o paciente o


motivo da entrevista e do exame psíquico. Além disso, esse processo só deve prosseguir após
o paciente entender o objetivo e dar explicitamente seu consentimento.

Caso necessário, familiares podem ser entrevistados também. Isso acontece, frequentemente,
no caso de crianças e adolescentes, pois só é possível prosseguir com qualquer processo
diagnóstico e terapêutico nessa população, caso haja autorização de pelo ao menos um dos
responsáveis.

 ATENÇÃO
Fique atento a dois importantes requisitos para que um bom exame psíquico ocorra: o treino e
o estudo. É preciso se preparar antes de cada atendimento, treinar a capacidade de
observação da linguagem falada e corporal do paciente.

Observe uma lista com regras básicas:

No começo, deve-se deixar o paciente falar livremente, e só depois perguntar de modo


mais específico temas ou pontos duvidosos.

É preciso saber quando e como interromper o paciente: sem cortar o fluxo da


comunicação, mas sem deixar que a minuciosidade ou a prolixidade (alterações da forma
do pensamento) prejudiquem a obtenção da história clínica. Sempre controlar e dirigir a
entrevista.

Não formular as perguntas de maneira monótona ou mecânica. O diálogo deve ser tão
informal quanto possível.

Evitar perguntas muito sugestivas, fechadas, que podem ser respondidas com um
simples sim ou não. É melhor perguntar: Como você está se sentindo? Você está
ansioso?

Não aceitar jargões fornecidos pelos pacientes, como nervoso, deprimido, tenho pânico:
pedir que ele explique o que quer dizer com essas palavras.

Certificar-se de que o paciente compreende as perguntas: utilizar linguagem acessível,


sem termos médicos.

(CHENIAUX, 2015, p. 21)

PONTOS BÁSICOS DO EXAME PSÍQUICO


Outro procedimento muito usado na dinâmica do exame psíquico é a anamnese, um processo
que significa algo como rememorar, relembrar.


Geralmente, segue-se um roteiro preestabelecido, do qual o estudante ou profissional deve se
lembrar.


No entanto, o uso desse roteiro não deve afetar a espontaneidade e a naturalidade do
processo de condução de uma entrevista clínica.

A seguir, serão destacados alguns itens de extrema importância para o exame psíquico em
Psicopatologia.

Os itens essenciais para um bom exame psíquico para identificação de sinais e sintomas que
caracterizam síndromes e transtornos são:

Identificação;

queixa principal;

motivo do atendimento;

história da doença atual;

história patológica pregressa;

história fisiológica;

história pessoal;

história social;

história familiar.
Além da anamnese, incluem-se na avaliação do paciente, um completo exame psíquico e a
conduta terapêutica.

Para fins didáticos, no quadro a seguir estão listados os itens e suas definições:

Item Conceituação

Composta pelos dados pessoais, auxilia no processo de formação de


vínculo, bem como na coleta sobre histórico do paciente que pode
Identificação
trazer informações preciosas para a observação de sinais
semiológicos e sintomas.

Queixa É o foco na história da doença atual, deve ser redigida nas palavras
principal do paciente.

Motivo do Necessário quando não há consciência sobre a morbidade e as


atendimento informações são fornecidas por outra pessoa.

História da Relato sobre a época do início dos sintomas até o presente momento.
doença Fornecida pelo paciente ou informantes, em caso de menores de
atual idade ou pacientes psicóticos em episódios de surto.

História Referente a estados mórbidos anteriores que não se relacionam com


patológica a patologia atual. Deve incluir todos os acometimentos de saúde
pregressa retratados.

São investigados gestação (da mãe), nascimento, aleitamento,


História desenvolvimento psicomotor (andar, falar, controle esfincteriano),
fisiológica menarca, catamênios, atividade sexual, gestações, partos,
abortamentos, menopausa, padrões de sono e de alimentação.

História Esse tópico pode ser fundido com a história pregressa e elementos da
pessoal identificação. É importante pesquisar acerca de infância,
adolescência; sexualidade; vida laboral; personalidade em momentos
anteriores ao da queixa atual.

Informações relativas à moradia: condições sanitárias, pessoas com


quem convive, número de cômodos, privacidade, características
História sociodemográficas da região; situação socioeconômica;
social características socioculturais; atividade ocupacional atual; situação
previdenciária; vínculo com o sistema de saúde; atividades religiosas
e políticas; antecedentes criminais.

São os dados relacionados a doenças psiquiátricas e não


psiquiátricas; ter sido a gravidez desejada ou não pelos pais do
paciente, separação dos pais, quem criou o paciente; ordem de
História
nascimento entre os irmãos, diferenças de idade; características de
familiar
personalidade dos familiares, o relacionamento entre eles e deles com
o paciente; atitude da família diante da doença do paciente;
relacionamento com o cônjuge e filhos.

 Atenção! Para visualização completa da tabela utilize a rolagem horizontal


Quadro dos Itens essenciais na anamnese e exame psíquico

Fonte: Adaptado de Cheniaux (2015)

O EXAME DO ESTADO MENTAL


Considerando os itens da anamnese, do processo de rapport e estabelecimento de vínculo
com o paciente, chega-se à etapa de maturação da elaboração do exame psíquico, que
constitui o exame do estado mental. Emprega-se aqui o termo maturação, visto que esse
processo se inicia no começo do contato e na coleta de dados com o paciente e/ou seus
familiares.

Nesse processo, são descritas as alterações presenciadas ao longo da sequência das


entrevistas.

Devemos ressaltar a afirmação de Jaspers (1987, p. 31):


“A maioria das autodescrições psicopáticas deve ser considerada de modo bastante crítico. Os
doentes relatam, para serem agradáveis, o que deles se espera, ou por sensação quando
notam o interesse”.

Dessa maneira, esse processo deve ser considerado como fluido e altamente mutável. Daí a
noção utilizada pela Psicologia não de diagnóstico, mas de hipótese diagnóstica.

Objetivamente, descreve-se no exame psíquico apenas alterações presenciais e detectáveis no


momento da entrevista. No reporte ou na redação de prontuário são descritas também as
condições diante das quais foi realizado o exame, como, por exemplo, número de sessões;
local; demanda etc.

O examinador deve estar atento à interseção entre as funções psíquicas e suas alterações,
avaliando-as de forma simultânea e observando a presença de alterações qualitativas e
quantitativas.

O EXAME PSÍQUICO, A ANAMNESE E O


EXAME MENTAL
O especialista Diogo Bonioli reflete sobre os pontos básicos e as diferenças entre o exame
psíquico, a anamnese e o exame mental.
VEM QUE EU TE EXPLICO!
Exame psíquico e sua importância – Os cuidados com menores de idade

Pontos básicos do exame psíquico – Anamnese

VERIFICANDO O APRENDIZADO

CONCLUSÃO

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste conteúdo, estudamos a história e as principais correntes da Psicopatologia, entendendo
suas origens, principais contribuições, bem como seu caráter multidimensional e observacional.
Também nos aprofundamos na discussão entre normal e patológico, discutindo como a
sociedade influencia os conceitos de normalidade e disfuncionalidade. Dessa maneira,
procuramos nos distanciar da visão cartesiana do conceito de saúde como total ausência de
doença. Também foi possível notar a interdependência do estudo da dimensão
multidimensional da Psicopatologia para compreensão de tais conceitos e discussão.

Ao nos aprofundarmos nos conceitos de sofrimento subjetivo, conceituação de transtorno e


doença mental e sistemas classificatórios, entramos em uma esfera técnica relevante para as
discussões em Psicologia e Psicopatologia. Foram apresentados os conceitos de semiologia
psicopatológica, sintomas e síndromes, bem como discutidos os dilemas dos sistemas de
classificações de transtornos mentais.

Por fim, fizemos uma importante transição entre teoria e prática, ao nos dedicarmos ao estudo
do exame psíquico, com características e requisitos para sua realização. Entendemos a
diferença entre entrevista, anamnese e como essas técnicas compõem a totalidade de
questões relativas ao exame mental.

 PODCAST
Neste podcast, o especialista Diogo Bonioli destaca a importância do uso de terminologia e
sistemas classificatórios adequados, assim como a relevância do exame psíquico para o
desempenho responsável e ético do psicólogo em saúde mental na identificação dos
transtornos mentais.

AVALIAÇÃO DO TEMA:

REFERÊNCIAS
BARLOW, D. H; DURAND, V. M. Psicopatologia: Uma abordagem integrada. 7. ed. São
Paulo: Cengage Learning Nacional, 2016.
BEZERRA JR., B. O normal e patológico: uma discussão atual. In: SOUZA A. N.; PITANGUY,
J. (org.). Saúde, corpo e Sociedade. Rio de Janeiro. Editora UFRJ, 2006.

CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.

DALGALARRONDO, P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. 2. ed. Porto


Alegre: Artmed, 2008.

CHENIAUX, E. Manual de psicopatologia. 5. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2015.

FOUCAULT, M. Vigiar e punir – Nascimento da prisão. São Paulo: Vozes, 1975.

JASPERS, K. Psicopatologia geral. Rio de Janeiro: Atheneu, 1987.

KAPLAN, B. J.; SADOCK, V. A. Compêndio de psiquiatria – Ciência do comportamento e


psiquiatria clínica. 9. ed. Porto Alegre: Artmed, 2007

SABBARTON-LEARY, N.; BORTOLOTTI, L; BROOME, M. R. Natural kinds and para-natural


kinds in psychiatry. In: ZACHAR, P.; STOYANOV, D.; ARAGONA, M.; JABLENSKY, A.
Alternative perspectives on psychiatric validation: DSM, ICD, RDoC, and Beyond. Oxford:
Oxford University Press, 2015, p. 77-93.

TSENG, W.-S. Culture and psychopathology: A general view. In: BHUGRA, D.; BHUI, K.
Textbook of Cultural Psychiatry. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 95-112.

ZACHAR, P.; JABLENSKY, A. Introduction: The concept of validation in psychiatry and


psychology. In: ZACHAR, P.; STOYANOV, D.; ARAGONA, M.; JABLENSKY, A. Alternative
perspectives on psychiatric validation: DSM, ICD, RDoC, and Beyond. Oxford: Oxford
University Press, 2015, p. 3-24.

EXPLORE+

Para entender melhor a evolução da Psicopatologia e a história da loucura no Brasil,


assista ao documentário Holocausto Brasileiro, produzido pela jornalista Daniela Arbex,
a partir de seus estudos para a publicação de livro homônimo.

Assista ao Café Filosófico: A história da Psicopatologia no Brasil, com Benilton


Bezerra, para compreender melhor todos os conceitos revisados ao longo do tema e suas
implicações.
CONTEUDISTA
Vanessa Nolasco Ferreira

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