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Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 27

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Definição de psicopatologia
e ordenação dos seus fenômenos
Um fenômeno é sempre biológico em suas raízes
e social em sua extensão final. Mas nós não nos
devemos esquecer, também, de que,
entre esses dois, ele é mental.
Jean Piaget

Campbell (1986) define a psicopatologia lógico; o conhecimento que busca está per-
como o ramo da ciência que trata da natu- manentemente sujeito a revisões, críticas
reza essencial da doença mental – suas cau- e reformulações.
sas, as mudanças estruturais e funcionais O campo da psicopatologia inclui
associadas a ela e suas formas de manifes- um grande número de fenômenos huma-
tação. Entretanto, nem todo estudo psi- nos especiais, associados ao que se deno-
copatológico segue a rigor os ditames de minou historicamente de doença mental.
uma ciência sensu strictu. A psicopatologia, São vivências, estados mentais e padrões
em acepção mais ampla, pode ser definida comportamentais que apresentam, por um
como o conjunto de conhecimentos refe- lado, uma especificidade psicológica (as
rentes ao adoecimento mental do ser hu- vivências dos doentes mentais possuem
mano. É um conhecimento que se esforça dimensão própria, genuína, não sendo ape-
por ser sistemático, elucidativo e des- nas “exageros” do normal) e, por outro,
mistificante. Como conhecimento que visa conexões complexas com a psicologia do
ser científico, não inclui critérios de valor, normal (o mundo da doença mental não é
nem aceita dogmas ou verdades a priori. um mundo totalmente estranho ao mundo
O psicopatólogo não julga moralmente o das experiências psicológicas “normais”).
seu objeto, busca apenas observar, identifi- A psicopatologia tem boa parte de
car e compreender os suas raízes na tradição médica (na obra dos
O psicopatólogo não diversos elementos grandes clínicos e alienistas do passado),
julga moralmente o da doença mental. que propiciou, nos últimos dois séculos, a
seu objeto, busca ape- Além disso, rejeita observação prolongada e cuidadosa de um
nas observar, iden- qualquer tipo de considerável contingente de doentes men-
tificar e compreender dogma, seja ele re- tais. Em outra vertente, a psicopatologia
os diversos elementos
ligioso, filosófico, nutre-se de uma tradição humanística (filo-
da doença mental.
psicológico ou bio- sofia, literatura, artes, psicanálise) que sem-
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pre viu na “alienação mental”, no pathos do Em todo indivíduo, oculta-se algo que
sofrimento mental extremo, uma possibi- não se pode conhecer, pois a ciência requer
lidade excepcionalmente rica de reconhe- um pensamento conceitual sistemático,
cimento de dimensões humanas que, sem pensamento que cristaliza, torna evidente,
o fenômeno “doença mental”, permane- mas também aprisiona o conhecimento.
ceriam desconhecidas. Apesar de se bene- Quanto mais conceitualiza, afirma Jaspers,
ficiar das tradições neurológicas, psicoló- “quanto mais reconhece e caracteriza o tí-
gicas e filosóficas, a psicopatologia não se pico, o que se acha de acordo com os prin-
confunde com a neurologia das chamadas cípios, tanto mais reconhece que, em todo
funções corticais superiores (não se resu- indivíduo, se oculta algo que não pode co-
me, portanto, a uma ciência natural dos nhecer”. Assim a psicopatologia sempre
fenômenos relacionados às zonas associa- perde, obrigatoriamente, aspectos essen-
tivas do cérebro lesado), nem à hipotética ciais do homem, sobretudo nas dimensões
psicologia das funções mentais desviadas. existenciais, estéticas, éticas e metafísicas.
A psicopatologia é, pois, uma ciência autô- O filósofo Gadamer (1990) postula que:
noma, e não um prolongamento da neuro-
logia ou da psicologia. diante de uma obra de arte, experimenta-
Karl Jaspers (1883-1969), um dos mos uma verdade inacessível por qualquer
outra via; é isso o que constitui o significa-
principais autores da psicopatologia, afir-
do filosófico da arte. Da mesma forma que
ma que esta é uma ciência básica, que ser- a experiência da filosofia, também a expe-
ve de auxílio à psiquiatria, a qual é, por riência da arte incita a consciência cientí-
sua vez, um conhecimento aplicado a uma fica a reconhecer seus limites.
prática profissional e social concreta.
Jaspers é muito claro em relação aos Dito de outra forma, não se pode com-
limites da psicopatologia: embora o ob- preender ou explicar tudo o que existe em
jeto de estudo seja o homem na sua totali- um homem por meio de conceitos psico-
dade (“Nosso tema é o homem todo em patológicos. Assim, ao se diagnosticar Van
sua enfermidade.” [Jaspers, 1913/1979), Gogh como esquizofrênico (epiléptico, ma-
os limites da ciência psicopatológica con- níaco-depressivo ou qualquer que seja o di-
sistem precisamente em que nunca se pode agnóstico formulado), ao se fazer uma aná-
reduzir por completo o ser humano a con- lise psicopatológica de sua biografia, isso
ceitos psicopatológicos. O domínio da nunca explicará totalmente sua vida e sua
psicopatologia, segundo ele, estende-se a obra. Sempre resta algo que transcende à
“todo fenômeno psíquico que possa apre- psicopatologia e mesmo à ciência, perma-
ender-se em conceitos de significação cons- necendo no domínio do mistério.
tantes e com possibilidade de comunica-
ção”. Assim, a psicopatologia, como ciên-
cia, exige um pensamento rigorosamente FORMA E CONTEÚDO DOS SINTOMAS
conceptual, que seja sistemático e que pos-
sa ser comunicado de modo inequívoco. Na Em geral, quando se estudam os sintomas
prática profissional, entretanto, participam psicopatológicos, dois aspectos básicos
ainda opiniões instintivas, uma intuição costumam ser enfocados: a forma dos
pessoal que nunca se pode comunicar. Des- sintomas, isto é, sua estrutura básica, rela-
sa forma, a ciência psicopatológica é tida tivamente semelhante nos diversos pa-
como uma das abordagens possíveis do cientes (alucinação, delírio, idéia obsessiva,
homem mentalmente doente, mas não a labilidade afetiva, etc.), e seu conteúdo, ou
única. seja, aquilo que preenche a alteração estru-
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tural (conteúdo de culpa, religioso, de per- A ORDENAÇÃO DOS FENÔMENOS


seguição, etc.). Este último é geralmente EM PSICOPATOLOGIA
mais pessoal, dependendo da história de
vida do paciente, de seu universo cultural e O estudo da doença mental, como o
da personalidade prévia ao adoecimento. de qualquer outro objeto, inicia pela obser-
De modo geral, os conteúdos dos sin- vação cuidadosa de suas manifestações. A
tomas estão relacionados aos temas cen- observação articula-
trais da existência humana, tais como so- se dialeticamente O estudo da doença
brevivência e segurança, sexualidade, temo- com a ordenação mental, como o de
res básicos (morte, doença, miséria, etc.), dos fenômenos. Isso qualquer outro obje-
religiosidade, entre outros. Esses temas re- significa que, para to, inicia pela obser-
presentam uma espécie de substrato, que observar, também é vação cuidadosa de
suas manifestações.
entra como ingrediente fundamental na preciso produzir, de-
constituição da experiência psicopatológica. finir, classificar, in-
Nesse sentido, é apresentado a seguir um terpretar e ordenar o observado em de-
esquema simplificado de temas e temores terminada perspectiva, seguindo certa ló-
básicos do ser humano (Quadros 2.1 e 2.2). gica.

Quadro 2.1
Temas existenciais que freqüentemente se expressam no conteúdo dos sintomas psicopatológicos

Temas e interesses centrais para o ser humano O que busca e deseja

Sexo Sobrevivência e prazer


Alimentação
Conforto físico

Dinheiro Segurança
Poder e controle sobre o outro
Prestígio

Quadro 2.2
Temores que freqüentemente se expressam no conteúdo dos sintomas psicopatológicos

Temores centrais do ser humano Formas comuns de lidar com tais temores

Morte Religião/mundo místico


Continuidade através das novas gerações

Ter uma doença grave Vias mágicas/medicina/psicologia, etc.


Sofrer dor física ou moral
Miséria

Falta de sentido existencial Relações pessoais significativas


Cultura
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Assim, desde Aristóteles, o problema essas experiências são basicamen-


da classificação está intimamente ligado te semelhantes para todos.
ao da definição e do conhecimento de 2. Fenômenos em parte semelhan-
modo geral. Segundo ele, definir é indicar tes e em parte diferentes. São fe-
o gênero próximo e a diferença específica. nômenos que o homem comum
Isso quer dizer que definir é, por um lado, experimenta, mas apenas em par-
afirmar a que o fenômeno definido se as- te são semelhantes aos que o doen-
semelha, do que é aparentado, com o que te mental vivencia. Assim, todo ho-
deve ser agrupado e, por outro, identificar mem comum pode sentir tristeza;
do que ele se diferencia, a que é estranho mas a alteração profunda, avassa-
ou oposto. Portanto, na linha aristotélica, ladora, que um paciente com de-
o problema da classificação é a questão pressão psicótica experimenta é
da unidade e da variedade dos fatos e apenas parcialmente semelhante
dos conhecimentos que sobre eles são pro- à tristeza normal. A depressão
duzidos. grave, por exemplo, com idéias de
Classicamente, distinguem-se três ti- ruína, lentificação psicomotora,
pos de fenômenos humanos para a psicopa- apatia, etc., introduz algo qualita-
tologia: tivamente novo na experiência hu-
mana.
1. Fenômenos semelhantes em to- 3. Fenômenos qualitativamente
das as pessoas. De modo geral, novos, diferentes. São pratica-
todo homem sente fome, sede ou mente próprios apenas a certas
sono. Aqui se inclui o medo de um doenças e estados mentais. Aqui
animal perigoso, a ansiedade pe- incluem-se fenômenos psicóticos,
rante uma prova difícil, o desejo como alucinações, delírios, turva-
por uma pessoa amada, etc. Em- ção da consciência, alteração da
bora haja uma qualidade pessoal cognição nas demências, entre
própria para cada ser humano, outros.

Questões de revisão
• Defina psicopatologia e comente suas origens e seu campo de atuação.
• Discuta os dois aspectos básicos dos sintomas psicopatológicos: forma e conteúdo.
• Relacione os temas centrais da existência humana com o conteúdo dos sintomas
psicopatológicos.
• Descreva a ordenação dos fenômenos psicopatológicos em semelhantes, parcialmente
semelhantes e qualitativamente novos.

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