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Reflexão sobre as concepções de pathos.

Disciplina: Psicopatologia II – 7º período - N

O pathos sob dois olhares

Claudiron Junio Gomes Gonçalves

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – Unidade São


Gabriel

Breves palavras sobre a formar as seguintes variantes de


psicopatologia uma definição denotativa: doença da
alma; sofrimento da alma; desordem
O conceito de psicopatologia da alma; paixões da alma, entre
nem sempre foi entendido como se outras. A depender sobre quais
entende hoje. Em diferentes épocas dessas definições se esteia,
e lugares, havia uma noção daquilo conforme ficará claro no desenvolver
que é considerado normal ou da discussão, estarão atrelados um
anormal (FOUCAULT, 1962). Desse determinado discurso e prática
modo, é importante delimitar, a priori, (FOUCAULT, 1980).
nossa discussão. Tomamos, como
recorte histórico para a presente
reflexão, as idades moderna e a Da doença ao sofrimento

contemporânea. Sabe-se que o positivismo,

Fazendo uma breve análise corrente filosófica cuja criação

etimológica, é possível conceber as atribui-se ao francês Augusto Comte

diversas formas as quais o conceito (1798-1857), dominou o âmbito

de psicopatologia assume. A palavra científico durante o século XIX e

é de origem grega, composta por manteve uma força surpreendente

duas partículas: psykhé+pathos. até aproximadamente os meados do

Psykhé diz sobre aquilo que é século XX e ecoa ainda no século

relativo à alma, enquanto pathos diz XXI. Comte desenvolveu uma tese,

respeito à doença, desordem, segundo a qual a humanidade

sofrimento, paixão. Podemos, então, passou por três estágios: metafísico,


teológico e positivo (COMTE,
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1830/42). Não adentraremos nas Mental Disorders –, pode-se dizer,


discussões acerca dos dois foi o divisor de águas para ciência
primeiros estágios que dizem psiquiátrica. A possibilidade de
respeito a discursos de ordem catalogar e fazer uma descrição
explicativa da realidade pautadas objetiva dos sintomas, os
nas coisas mesmas e em entidades enquadrarem em uma determinada
divinas, respectivamente. Nos classificação – as doenças mentais –
interessa, nesse comenos, o último e a tentativa de dar uma explicação
estágio, visto a influência de tais biológica a colocariam dentro do rol
ideias ainda hoje. das ciências médicas. A partir de
então, toda a práxis psiquiátrica
Em poucas palavras, o
pautar-se-ia em discursos repletos
positivismo é uma atitude filosófica
de explicações objetivas, descritivas,
cujas bases são racionalismo,
classificativas e biologistas, visto
empirismo, pragmatismo,
advir deles a sua legitimidade
objetivismo, descritivismo, dentre
científica (BIRMAN, 1999).
outros (HOTTOIS, 2002). Sua tese
principal é a unidade da ciência: o Observamos que, em
método de estudo deveria ser uno decorrência dessa necessidade de
em todo o corpo científico. Qualquer prestígio científico, dentro da
ciência que não cumprisse tais psiquiatria contemporânea, o
requisitos era desprovida de discurso predominante – que não
legitimidade (SCHULTZ & para de crescer, acompanhado da
SCHULTZ, 2009; ÁLVARO & ascensão das neurociências – é o de
GARRIDO, 2003). que as psicopatologias possuem
uma etiologia orgânica passível de
A psiquiatria, nos seus
ser identificada em áreas corticais
primórdios, não atendia aos critérios
mais ou menos delimitadas e os
positivistas e, portanto, era
sintomas são apenas sinais que
desprovida de legitimidade como
apontam para uma disfunção
ciência. Durante anos, lutou para
cerebral (BIRMAN, 1999;
alcançar o status de corpus
FOUCAULT, 1980). Seguindo essa
científico. O surgimento da “bíblia
lógica discursiva, se a causalidade é
psiquiátrica” (em 1952), o DSM –
orgânica, a melhor forma de
Diagnostic and Statistical Manual of
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tratamento é a medicamentosa, a fim As questões mais íntimas do


de reestabelecer o funcionamento paciente se colocam através dos
normal das retrocitadas áreas. Os sintomas e do seu discurso. Como
psiquiatras, pautados nesse saber bem observou Lacan, (1998a, p.
positivo, diante de um quadro clínico, 532) “o sintoma é uma metáfora,
podem exercer o poder por meio do quer se queira ou não dizê-lo a si
seu saber (FOUCAULT, 1980). Eles mesmo”.
detêm a verdade sobre o sujeito e,
Nesse sentido, o pathos se
portanto, a melhor forma de tratar o
manifesta não como uma doença, tal
seu pathos, sua doença, sua
qual um câncer ou qualquer outra
desordem cerebral.
doença orgânica, que é uma
Entrementes, conforme os desordem física, mas como
bichos nos ensinaram1, e sofrimento cujo cerne é um conflito
aprendemos muito bem, os sintomas não elaborado. Dentro dessa
são mesmos sinais, e nisso não perspectiva, o sujeito, antes em
discordamos do discurso médico fundo, agora torna-se figura. Sai da
dominante. Divergimos, sim, em posição de objeto para ser o sujeito
relação à direção para qual tais de sua própria história. Sua
sinais apontam e como seguir esse subjetividade é enxergada em meio
caminho.2 daquelas peças (syntomas3)
perdidas na objetiva classificação do
Os sintomas são signos. Na
DSM (FOUCAULT, 1980). O
definição do linguística Charles
simbolismo do sintoma é lido pelo
Pierce (1894), signo é uma coisa,
sujeito e pelo psicólogo, seu
para alguém, que está no lugar de
coadjuvante, e o conflito subjacente
outra coisa sob algum aspecto.
é elaborado.
Destarte, através dos
sintomas, seu representante, o
sofrimento do sujeito se manifesta, Considerações finais
traz à tona aquilo que está latente.

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Alusão ao artigo de Aline Aguiar Mendes Syntomas, do grego: junção de pedaços;
Vilela e Franciele Nunes Nunes de Oliveira, tem uma relação muito estreita com a
“O que os bichos nos ensinam”. symbolon: colidir, atirar juntos. O sintoma e
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Methodos: via, caminho, meio para um fim. o simbólico andam juntos.
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Atualmente, buscamos incompetência, mas por não terem a


resgatar o sentido de pathos formação voltado ao acolhimento, à
enquanto sofrimento psíquico, a fim escuta do sofrimento.
de trazer com ele o sujeito, que se
Em outras palavras, por não terem a
perdeu no meio das classificações e
preparação e a sensibilidade de um
rótulos exacerbados da prática
psicólogo. Medicar o sujeito pode até
médica.
eliminar os sintomas, porém a causa
Ressalta-se, entrementes, subjacente não desaparecerá até
que embora queiramos adotar um que o sujeito consiga elaborar o
discurso mais voltado à escuta, ao conflito que lhes deu origem. Esse é
sofrimento do sujeito, não significa o fato que queremos resgatar.
dizer que ignoramos a existência de
Concluímos essa pequena
quadro clínicos de etiologia orgânica,
reflexão com a frase de Foucault: a
i.e., cuja origem encontra-se
Psicologia jamais poderá dizer a
determinada na estrutura do sistema
verdade sobre a loucura, visto sê-la
nervoso. Esse fato não pode nem
a detentora da verdade da
deve ser ignorado ou negado se
Psicologia.
buscamos entender o sujeito em sua
totalidade e atravessamentos, afinal
ele é biopsicossocial. De mais a Referências
mais, se buscamos um diálogo com
Mendes, A.; Vorcaro, A.; Nunes, F;
as outras áreas, em uma abordagem
Estevam, N. (2012). O que os
que seja inter ou multidisciplinar.
bichos nos ensinam: a construção
Entretanto, na clínica, nem do caso clínico em um Centro de
sempre seremos procurados por Atenção Psicossocial Infanto
pessoas que possuem alguma Juvenil. CLINICAPS. Disponível em
disfunção neurológica ou os quadros http://www.clinicaps.com.br/clinicaps
supracitados. Na maior das vezes, _revista_16_relato.html.
nossos pacientes estarão
LACAN, J. A Instância da letra no
enfrentando sofrimentos que a
inconsciente. In:_______.Escritos.
psiquiatria ou as ciências médicas de
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998ª.
um modo geral não podem dar o
devido cuidado. Não por
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Auguste Comte (1830/42). Curso de Hottois, Gilbert (2002). Do


filosofia positiva / Auguste Comte; Renascimento à Pós –
traduções de José Arthur Giannotti e Modernidade: uma história da
Miguel Lemos. — São Paulo: Abril filosofia moderna e
Cultural, 1978. contemporânea / Gilbert Hottois;
[tradução Ivo Storniolo]. Aparecida,
DUNKER, Christian Ingo Lenz.
SP: Ideias & Letras, 2008.
Questões entre a psicanálise e o
DSM. J. psicanal., São Paulo , v. PIERCE, Charles Sanders (1894). O
47, n. 87, p. 79-107, dez. 2014 . que é um signo? / PIERCE, Charles
Disponível em Sanders; tradução Ana Maria
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php Guimarães Jorge. Facom, 2007.
?script=sci_arttext&pid=S01035835
ÁLVARO, José Luis; GARRIDO,
2014000200006&lng=pt&nrm=iso>.
Alicia. Psicología Social –
acessos em 04 set. 2017.
Perspectivas Psicológicas y
BIRMAN, J. Mal-estar na Sociológicas. McGraw-Hill
atualidade: a psicanálise e as novas Internacional de Espanã S.A.U,
formas de subjetivação. Rio de 2003.
Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
p. 175-193.

SCHULTZ, Duane P (2009). História


da Psicologia Moderna / Duane p.
Schultz, Sydney Ellen Schultz;
tradução Suely Sonoe Murai Cuccio.
– São Paulo: Cengage Learning,
2012.

FOUCAULT, M. História da
Loucura na Idade Clássica. São
Paulo: Perspectiva, 1978.

FOUCAULT, M., 1980. O


Nascimento da Clínica. Rio de
Janeiro. Editora Forense –
Universitária.

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