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INTRODUÇÃO À PSICANÁLISE

AULA 4

Profª Giseli Cipriano Rodacoski


CONVERSA INICIAL

Com base nos estudos anteriores, é possível identificar que o contexto


que deu origem à psicanálise foi o meio médico, universitário e científico. Por
volta do ano 1900, o modelo de atenção à saúde era biomédico, ou seja,
centrado no biológico, com tratamento conduzido pelos saberes dos médicos.
Algo que escapasse ao controle científico causava insegurança, incerteza e
constrangimento. Na década de 1880, o interesse que surgia, especialmente nos
médicos, era “o de compreender algo da natureza daquilo que era conhecido
como doenças nervosas funcionais, com vistas a superar a impotência que até
então caracterizava seu tratamento médico” (Freud, 1986g, p. 239).
Ao decidir abandonar os métodos tradicionais de investigação e
tratamento, Freud definiu um novo campo de estudos sobre o ser humano, o que
o levou ao limite de não mais se apresentar como médico e sim como
psicanalista: “Como psicanalista, estou destinado a me interessar mais pelos
processos emocionais que pelos intelectuais, mais pela vida mental inconsciente
que pela consciente” (Freud, 1986d, p. 286).
A ênfase no inconsciente também é o que diferencia a psicanálise da
psicologia, que, por sua vez, coloca ênfase nos processos mentais conscientes,
chamados de funções mentais: percepção, atenção, memória, linguagem,
pensamento, emoção, inteligência, vontade, que são examinados também pela
psiquiatria. A psicanálise estuda a mente humana, assim como a psicologia e a
psiquiatria, embora é a psicanálise que se deterá na análise dos processos
mentais inconscientes, muito mais do que as outras duas.
Freud acreditava na influência do inconsciente, inclusive nos processos
de identificação com o que é subjetivo nas relações interpessoais. Ao refletir
sobre psicologia escolar, após reencontrar seu antigo professor, Freud escreve:

Minha emoção ao encontrar meu velho mestre-escola adverte-me de


que antes de tudo, devo admitir uma coisa: é difícil dizer se o que
exerceu mais influência sobre nós e teve importância maior foi a nossa
preocupação pelas ciências que nos eram ensinadas, ou pela
personalidade de nossos mestres (Freud, 1986d, p. 286).

Foi a partir desse lugar, nesse contexto e sob esse ponto de vista que
Freud desenvolve sua teoria, inicialmente muito voltada ao estudo individual e
não social das manifestações inconscientes, cujos processos mentais teriam

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como resultado sintomas físicos, motores e outras alterações observáveis,
porém sem causa orgânica e sim psíquica, emocional.
O contexto macrossocial era marcado por guerras, perseguições aos
judeus, imposições de poder autoritário sobre minorias e outras normas. A
relação entre o mundo externo (contexto) e o mundo interno (psiquismo) é muito
particular, cada um experimenta à sua maneira no processo de civilização, no
entanto é possível perceber algo de coletivo, por exemplo, o processo de
internalização do que é tabu em uma sociedade. Do estudo de temas tais como
o processo de civilização, o mal-estar na sociedade, formulação de leis,
internalização de normas, controle, política e contratos sociais, emergem a
evidência de conflitos psíquicos decorrentes da coexistência de forças
antagônicas. Os conflitos psíquicos são percebidos pelo ego e as sensações são
nomeadas como por exemplo: culpa, angústia e necessidade de restauração.
Nesta aula, vamos abordar alguns temas relacionados aos conflitos
vividos pelo ego, pela experiência do sujeito de mediar forças antagônicas e os
efeitos decorrentes desta tensão. O objetivo é compreender de maneira
introdutória, a psicodinâmica do aparelho psíquico na experiência de um conflito.

TEMA 1 – FUNÇÕES PSÍQUICAS

As funções psíquicas e suas alterações são examinadas pela psicologia


e pela psiquiatria por meio do exame do estado mental, que avalia a capacidade
e o grau de adaptação do indivíduo ao meio. São funções psíquicas (Saraceno
et al., 2010):

• consciência;
• atenção;
• memória;
• linguagem;
• afetividade;
• pensamento;
• sensopercepção;
• orientação;
• psicomotricidade; e
• juízo crítico da realidade.

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Sabemos se uma pessoa está consciente (ou atenta) se ela responde aos
estímulos, e essa capacidade (função mental) pode ser examinada por meio da
observação às respostas que uma pessoa dá aos estímulos. A psicologia tem
sua formação acadêmica em grande parte voltada para a avaliação das funções
mentais e suas alterações.
O Ministério da Saúde no Brasil orienta o uso de um miniexame do estado
mental (MEEM) a ser aplicado por médicos da atenção primária como um
instrumento de rastreio para identificar precocemente alterações ou distúrbios
nas funções mentais.

Saiba mais

Acesse o link a seguir para verificar como é orientado o rastreio por meio
do Miniexame do Estado Mental (MEEM):
MINIEXAME do estado mental (MEEM). BVS Atenção Primária em
Saúde, S.d. Disponível em: <https://aps.bvs.br/apps/calculadoras/?page=11>.
Acesso em: 19 jan. 2022.
As alterações podem ter diversas origens ou motivos e podem ser
consideradas leves, moderadas, graves ou severas e persistentes, ocasionando
sofrimento ou transtornos mentais descritos no Manual diagnóstico e estatístico
de transtornos mentais – DSM5 (APA, 2014).
O Sistema Único de Saúde (SUS), no Brasil, instituiu por meio da Portaria
n. 3.088, de 23 de dezembro de 2011, a Rede de Atenção Psicossocial, que são
serviços públicos, de acesso universal e gratuito para tratamento
multiprofissional dos sofrimentos e transtornos mentais (Brasil, 2011).
Assim fica delimitado o campo de atuação das ciências médicas em
relação à saúde mental e às suas funções psíquicas.
É possível perceber que as funções mentais descritas não incluem o
inconsciente, mas apenas a consciência e seus estados de alteração em que se
encontra reduzida, por exemplo, no torpor e nos estados de coma, sem, contudo,
teorizar sobre a atividade mental dos conteúdos inconscientes como nos sonhos.
De forma que fica clara a delimitação e interface entre a Psicanálise e as demais
psicologias do ego.
A consciência como função da necessidade de adaptação se organiza
desde o nascimento, mas como estrutura perceptiva, nos primeiros meses de

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vida ainda está voltada às sensações do próprio corpo para só depois ampliar a
percepção do mundo externo.
Não deixe passar a oportunidade de observar um bebê no primeiro mês
de vida, especialmente naqueles momentos em que está na hora de alimentá-
lo, mas ele ainda não acordou. Você vai perceber que ele parece sonhar que
está mamando e se satisfaz ao ponto de continuar dormindo mais um pouquinho.
Teria um recém-nascido a necessidade de se adaptar ao meio ambiente?
E se ele tem essa necessidade, será que ele (bebê) sabe disso, tem
consciência? Em que momento da vida o mundo externo é percebido e como é
a estrutura primitiva do aparelho psíquico?
Hoje, pode parecer mais coerente estudar a formação do psiquismo do
ser humano a partir do nascimento, mas não foi o que aconteceu com a
psicanálise. Freud começou a investigar o psiquismo com base no atendimento
clínico de adultos, especificamente no atendimento clínico de mulheres com
sintomas psicossomáticos, e o que ele percebeu foi que o aparelho psíquico das
pessoas era um campo de batalhas e que, para dar conta de se adaptar ao
contexto em que viviam, especialmente as mulheres experimentavam
importantes conflitos.
Nas suas primeiras concepções, ainda em um período pré-psicanalítico
(Freud, 1986a, p. 48-49), Breuer e Freud consideram a hipótese do que era
chamado no meio médico da época como divisão da consciência:

a divisão da consciência, que é tão marcante nos casos clássicos


conhecidos sob a forma de double conscience, acha-se presente em
grau rudimentar em toda histeria, e que a tendência a tal dissociação,
e com ela o surgimento dos estados anormais da consciência que
(reuniremos sob a designação de hipnoides), constitui o fenômeno
básico dessa neurose. (Freud, 1986, p. 47-48)

Trazemos este assunto para ilustrar o percurso da psicanálise que


inicialmente se deparou com uma divisão da consciência em duas partes e
pareceu razoável entender que era uma consciência dividida, mas por meio da
interpretação dos sonhos (Freud, 1986b) diferenciou as estruturas, definindo
duas estruturas diferentes: uma consciente e outra inconsciente. Desde então,
foi abandonada a concepção de se tratar de estados alterados de consciência,
foi abandonado o método hipnótico e inaugurado o método psicanalítico que
reconhece o inconsciente.

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A partir de 1900, o inconsciente foi reconhecido como sendo outra
instância e não um estado alterado da consciência nem uma dupla consciência.
Freud concluiu que a consciência faz parte do psíquico, mas não o totaliza.
A seguir compreendeu que a consciência estava subordinada ao
inconsciente e as primeiras técnicas terapêuticas eram pela via da recordação
para só mais tarde ser pela via da interpretação da repetição e da transferência.
Esse percurso é muito importante para compreender o desenrolar da
teoria psicanalítica!
Atualmente é muito mais aceito que a elaboração dos conflitos se dê mais
pela compreensão das manifestações do inconsciente do que pela memória do
fenômeno que causou o trauma emocional. Se é um trauma, as emoções
relacionadas a ele voltam, se repetem, doem novamente e a pessoa chega à
consulta com queixa de estar em um círculo vicioso do qual não consegue se
livrar. E é pela análise dessa psicodinâmica que se percebe a repetição.
Quando Lacan disse que o inconsciente se comunica como uma
linguagem, é disso que estava falando. A linguagem da repetição, da atuação,
do que parece não ter sentido, mas a pessoa repete mesmo assim.

TEMA 2 – CISÃO DO EU

O eu é o centro da identidade das pessoas, é como nos definimos, nos


reconhecemos. Costumamos usar o termo indivíduo para se referir às pessoas
e esse termo está relacionado ao fato de ser uma unidade, um todo, indivisível.
Na teoria psicanalítica, Freud concluiu pela cisão do eu:

Com essa concepção freudiana, na qual o inconsciente passa da


condição de apêndice da consciência à estrutura particular e
determinante da subjetividade, o sujeito se torna cindido em duas
formas de funcionamento, a consciente e a inconsciente, e subjugado
à primazia desta". (Torezan; Aguiar, 2011, p. 525)

São vários os estados de cisão, de ruptura, que Freud e os psicanalistas


pós freudianos irão chamar de cisão, splitting, dissociação. No ano de 1893, em
Estudos sobre a histeria, Freud chamou de splitting, em alemão Spaltung, que
assume a função de afastar da consciência determinados conteúdos
desagradáveis e, em sendo assim, defende o psíquico de uma desintegração.
São mecanismos de defesa para manutenção da homeostase, neutralizando
tanto quanto possível o jogo de forças opostas dentre de si.

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Figura 1 – Jogo de forças

Fonte: EamesBot/Shutterstock.

Para favorecer a compreensão desse tema, sugerimos a leitura e


posterior discussão em grupo do artigo intitulado “Notas sobre o conceito
de splitting (Spaltung) à luz de questões de tradução” (Susemihl, 2009). A autora
faz observações sobre as dificuldades existentes decorrentes das diversas
traduções do termo original splitting (cisão, divisão, dissociação, clivagem,
renegação, recalque). A autora faz um rastreamento desde a origem conceitual
em Freud, e no desenvolvimento teórico em Melanie Klein e Wilfred Bion,
contribuindo com comentários bastante esclarecedores para a nossa
compreensão.
Em Cinco lições de psicanálise, Freud (1986c) elabora uma teoria
metapsicológica, ou seja, ele faz uma teoria para explicar a teoria anterior. E
explica novamente, ainda que usando outras palavras, que no aparelho psíquico
coexistem forças psíquicas em oposição.
A concepção freudiana avança em complexidade sobre a compreensão
do aparelho psíquico entre a primeira e a segunda tópica. Percebam que ele não
muda de opinião, apenas acrescenta mais elementos na análise.
Baseou-se inicialmente em uma separação da consciência (Cs – Ic) para
chegar à 2ª tópica em que vai teorizar sobre o id, ego, superego, sem deixar de
considerar o Cs Pc e Ic (Freud, 1986F)
Por isso, vimos que sua teoria foi considerada como revolucionária, pois
o que Freud disse ao mundo foi algo como: O ser humano não é senhor de si,
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ou seja, não tem o completo domínio sobre o que se passa em sua mente, está
sempre em conflito.
Para quem busca tratamento e cura para a dor e o sofrimento, essa
constatação é muito desalentadora, não acham? Assim como também é
desconfortável para quem gosta de ter o controle das situações, de ter poder e
certezas.

TEMA 3 – DA CLÍNICA À TEORIA

Já sabemos que a psicanálise não nasceu em laboratórios de pesquisa,


mas sim da experiência clínica.
Como vimos no início desta aula, Freud não começou a estudar o
psiquismo levando em conta a sua constituição, ou seja, a partir do nascimento.
Ele formulou uma teoria do desenvolvimento psicossexual infantil, mas ele
chegou a essa teoria depois de ter compreendido os fenômenos que provocaram
os sintomas nos adultos.
É com base na experiência na clínica com adultos que Freud desenvolve
a teoria do desenvolvimento psicossexual infantil para explicar que durante toda
a vida há o reflexo de termos sido um bebê indefeso na mão do outro,
dependente e vulnerável. Por isso a infância é tão importante para a psicanálise,
porque de alguma forma os adultos voltam para a criança que foram ao longo da
vida inteira.
Você já percebeu que quando estamos muito tristes, ou quando queremos
adormecer com tranquilidade e em segurança, costumamos deitar-se em
posição fetal, igual como ficávamos no útero materno? Podemos entender que
temos alguma memória de ser esta uma posição confortável, segura e protegida.

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Figura 2 – Deitada em posição fetal (1)

Fonte: Fizkes/Shutterstock.

Figura 3 – Deitada em posição fetal (2)

Fonte: Fábio Paganini/Shutterstock.

O que acontece na vida mental de um bebê enquanto ele ainda não sabe
falar e não entende o que dizem a ele? Os primórdios da constituição do
psiquismo, na teoria psicanalítica, têm relação com o mito de Narciso.

Segundo o mito grego, Narciso era um belo jovem tespiano por quem
a ninfa Eco se apaixonou. Eco fora privada de fala por Hera, a esposa
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de Zeus, e só podia repetir as últimas sílabas das palavras que ouvia.
Incapaz de expressar seu amor por Narciso, foi por este rejeitada e
morreu de desgosto, com o coração dilacerado. Os deuses puniram
então Narciso por seu tratamento desalmado para com Eco, fazendo-
o apaixonar-se pela própria imagem. O vidente Tirésias profetizara que
Narciso viveria até ver-se a si mesmo. Um dia, quando se debruçava
sobre as águas cristalinas de uma fonte, Narciso viu a própria imagem
refletida na água. Ficou perdidamente enamorado dela e recusou-se a
abandonar o local. Morreu de debilidade e metamorfoseou-se numa
flor – o narciso que cresce à beira de fontes e mananciais. (Lowen,
2017, p. 31)

No mito, Narciso foi incapaz de amar, e a sua libido estava direcionada a


ele próprio. Narciso não investiu amor em mais ninguém. Ele se encantou por si
mesmo ao admirar sua imagem no lago.

Figura 4 – Narciso

Fonte: Delcarmat/Shutterstock.

Na teoria psicanalítica, o mito de Narciso servirá de inspiração para a


delimitação teórica da expressão narcisismo primário, que acontece com os
bebês no início da vida, naquele período em que eles não percebem nada além
deles no mundo. Toda a libido está voltada ao próprio bebê e ele é incapaz de

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perceber o outro, o mundo externo e, portanto, não dirige sua energia mental
para nada além dele próprio.
O bebê recém-nascido ao ser observado aparenta ser alguém pleno,
capaz de viver ao seu modo, autossuficiente e magicamente soberano, mas não
demora muito para perceber que não está sozinho no mundo, que o mundo
inteiro não é apenas ele e que não consegue sobreviver sozinho. Identifica que
as suas necessidades só podem ser satisfeitas quando a mãe (ou quem estiver
exercendo a função materna) prover. Muitas vezes a mãe demora e a sensação
de desamparo desencadeia uma emoção que mais tarde o bebê aprenderá a dar
o nome de raiva, tristeza ou medo. Só que quando a mãe chega, mesmo com
raiva o bebê acaba por aceitá-la. Nos relatos de mães de bebês nessa fase é
comum dizerem que precisam acalmar o bebê que está chorando para que então
ele consiga mamar.
Esse exemplo é muito bonito e pode ser a primeira experiência de amar
que o ser humano tem. O bebê percebe que a sua mãe não o satisfaz
plenamente e continua gostando dela mesmo assim, sem nunca deixar de ficar
triste por ela não ser tão ideal quanto ele gostaria que ela fosse.
Na relação com o mito de Narciso, o bebê foi capaz de fazer o que Narciso
não fez, ou seja, foi capaz de amar, de manter seu vínculo, o apego com o outro,
mesmo que esse outro não seja ideal nem perfeito, que o frustre.
A observação de bebês é algo fundamental para a compreensão do
conceito de narcisismo primário, assim como para a compreensão dos estados
narcísicos considerados patológicos.
No texto Sobre o narcisismo: uma introdução (Freud, 1986e, p. 101),
Freud vai dizer que: “Um egoísmo forte constitui uma proteção contra o adoecer,
mas, num último recurso, devemos começar a amar a fim de não adoecermos,
e estamos destinados a cair doentes se, em consequência da frustração, formos
incapazes de amar”.
Ao perder a sensação de ser completo o bebê experimentará o
desamparo da insegurança, de ser um pequeno na mão do outro, e essa ferida
narcísica ficará para sempre doendo, por outro lado nos colocará em movimento,
sempre buscando algo que nos complete, que nos satisfaça e restitua aquela
sensação plena e mágica dos primeiros e poucos meses de vida.
Um personagem que exemplifica muito bem essa busca pelo objeto de
desejo que lhe trará a completude é o esquilo Scrat no filme A Era do Gelo. O

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esquilo passa o filme desejando e fazendo de tudo para obter a desejada noz
que, quando alcançada, logo é novamente perdida e o mantém em incansável
movimento.
Essa capacidade de amar também é o que coloca os seres humanos em
conflito, pois o afeto e o amor, quando saudáveis, não garantem domínio nem
controle, nem posse, nem certezas e, sendo assim, aquele estado primário onde
o bebê experimentou a vida plena jamais será restituído.
Agora podemos diferenciar a psicanálise dos conselhos de amigos! Os
bons amigos podem nos dizer: da próxima vez vai dar tudo certo! Um bom
psicanalista, por sua vez, nos ajuda a conviver com a incompletude.

TEMA 4 – ENTRE A PRIMEIRA E A SEGUNDA TÓPICA

Entre a primeira e a segunda tópica se passaram 20 anos.

• Primeira Tópica (1900): inconsciente, pré-consciente, consciente.


• Segunda Tópica (1920): id, ego, superego.

Com base na convergência das duas teorias freudianas sobre o aparelho


psíquico, as instâncias são apresentadas sob os pontos de vista tópico, dinâmico
e econômico, cujo funcionamento tem o propósito de evitar o desprazer.

Figura 5 – Primeira tópica

CONSCIENTE

PRÉ CONSCIENTE

INCONSCIENTE

Fonte: Arcady/Shutterstock.

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4.1 Perspectiva tópica

Trata-se de como elas se delimitam, ou seja, onde está cada instância.


Para isso, usamos a metáfora do iceberg. Do ponto de vista tópico, o ego está
numa relação de dependência tanto para com as reivindicações do id quanto
para os imperativos do superego e exigências da realidade.

4.2 Perspectiva dinâmica

É como as instâncias se relacionam. Durante a aula falamos bastante


sobre quem está contra quem, quem é o mediador, como a repressão está a
favor de quem etc. É uma explicação sobre a dinâmica das relações entre as
instâncias psíquicas, por isso chamamos de psicodinâmica: o superego com a
ajuda da repressão se opõe ao id; o ego tenta mediar com a ajuda dos
mecanismos de defesa. O que resulta dessa disputa são os sintomas, as
manifestações do Ics. Do ponto de vista dinâmico, o ego representa o polo
defensivo da personalidade; põe em jogo uma série de mecanismos de defesa,
sendo estes motivados pela percepção de um afeto desagradável (sinal de
angústia).

4.3 Perspectiva econômica

Trata-se de quanto de libido é destinado para cada local. Em última


análise, o aparelho psíquico tende à homeostase e vai preferir economizar
energia libidinal. Quando o conflito, o jogo de forças, está muito intenso, será
gasta muita energia, e a sensação é de ter perdido a vontade de viver, assim
como no caso da Dora.
A homeostase, no equilíbrio de prazer – desprazer foi uma questão que
inquietou Freud e podemos acompanhar seu raciocínio por meio da leitura do
texto Além do princípio do prazer (Freud, S. 1986f) e foi uma questão também
que tomou a atenção de Lacan e o fez delimitar o conceito de gozo.
A questão é algo como: gostamos de sofrer?
Freud percebia uma satisfação, um ganho secundário com o sintoma o
que motivava uma repetição.

encontramos pessoas em que todas as relações humanas têm o


mesmo resultado, tal como o benfeitor que é abandonado iradamente,
após certo tempo, por todos os seus proteges, por mais que eles

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possam, sob outros aspectos, diferir uns dos outros, parecendo assim
condenado a provar todo o amargor da ingratidão [...]. Ficamos muito
mais muito mais impressionados nos casos em que o sujeito parece ter
uma experiência passiva, sobre a qual não possui influência, mas nos
quais se defronta com uma repetição da mesma fatalidade. (Freud,
1986f, p. 35-36).

Essa construção teórica leva à compreensão do sintoma, da compulsão à


repetição, da angústia e não parece racional dizer à pessoa que de alguma forma
há um ganho secundário ou algum tipo de gozo com o sofrimento.
Isso demonstra o motivo pelo qual não deve o psicanalista explicar coisas
aos pacientes, pois não é da ordem do racional, não faz sentido ao paciente a
noção de obter prazer com o sofrimento. Também decorre desse conflito a
necessidade de ser a elaboração um processo e não um ato.
A psicanálise ousou investigar o subjetivo e é um problema quando
tentamos compreender o subjetivo sob o ponto de vista racional. Esse é um dos
desafios do ensino da psicanálise tal como estamos fazendo aqui, de forma que
será sempre parcial até que o aprendiz se ponha em análise para se deparar
com o seu próprio inconsciente e a partir de então aprender a sua linguagem.
Também não foi fácil para Freud. Como vimos, Freud chegou ao estudo
do desenvolvimento do psiquismo na criança após ter compreendido as origens
dos conflitos dos adultos. Ao longo de 40 anos de prática clínica, Freud nos
deixou um legado importante e, com base em suas concepções, outros
psicanalistas, desde a sua época, deram continuidade, a exemplo de sua filha
Anna Freud.
Já ao final de sua vida, Freud deixou inacabado o texto “A divisão do ego
no processo de defesa”, escrito no natal de 1937 e publicado em 1940,
posteriormente à sua morte, conforme as notas do editor inglês no início do texto
publicado no volume XXIII das Obras de Freud que reúnem os textos escritos
entre 1937-1939 (Freud, 1986h, p. 307).
Dentre os psicanalistas pós-freudianos, destacam-se Anna Freud, que
ampliou a compreensão sobre os mecanismos de defesa do ego, e Melanie
Klein, que se dedicou a desvendar clinicamente a estruturação psíquica dos
bebês com base na teoria freudiana de cisão do eu.
Os mecanismos de defesa explicam a psicodinâmica no aparelho
psíquico, ou seja, o funcionamento para que o organismo organize a relação
entre prazer-desprazer que caracteriza o conflito psíquico.

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TEMA 5 – CONFLITO PSÍQUICO

Vamos considerar o quanto pode ter sido maravilhoso ser um bebê


cuidado pelo outro sem nem ao menos ter a consciência dessa dependência!
Quem aqui concorda que seria maravilhoso ter alguém que assumisse todos os
nossos problemas e suprisse nossas necessidades? Seria esse o lugar de
Deus? Ou o lugar do vilão? Do pai? A passividade e subordinação a alguém
poderoso poderia ser um desejo?
Atribuir poder, culpa ou responsabilidade a alguém ou a alguma coisa
pode ser muito confortável. Podemos entender como um mecanismo de defesa
então.

• Eu estou em um relacionamento abusivo.


• Eu não quero, mas ela me faz perder a cabeça.
• Se não sou eu ninguém come nessa casa.
• Foi Deus quem quis assim.
• É mais forte do que eu.

Mecanismos de defesa: culpar o outro, a história de vida, os


determinantes sociais de saúde-doença, a sociedade injusta, o sistema etc.
O psicanalista não desmerece a realidade e as influências dos
determinantes sociais de saúde-doença, mas não segue a narrativa consciente
como direção do tratamento, vai na direção de investigar os mecanismos
subliminares, escondidos, aqueles mal-entendidos, mal explicados, mas que na
associação livre vão sendo lembrados e trazidos à cena. A posição passiva, de
vítima, é de fato ruim (explicação racional), mas pela via do inconsciente mantém
o sujeito na condição de estar na mão do outro. E estar na mão, ou no colo do
outro é ambivalente, pois, apesar da insatisfação do controle, da ameaça de
abandono, também pode coexistir a experiência de ser amparado, como
ilustrado na imagem a seguir:

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Figura 6 – Experiência de ser amparado

Fonte: Glinskaja Olga/Shutterstock.

Podemos perceber nas letras de música o discurso ambivalente que


evidencia clinicamente o conflito entre as forças antagônicas em situações
cotidianas:

Eu me afasto e me defendo de você


Mas depois me entrego
Faço tipo, falo coisas que eu não sou
Mas depois eu nego
(Fresno)

A letra da música “Evidências” é um exemplo de coisas que fazemos por


causa do id e depois negamos por causa do superego (conceitos da segunda
tópica de Freud). Qual seria a verdade e a mentira? Um atenderia aos desejos
e satisfaria as pulsões vindas do Inconsciente, mas por outro lado não
corresponderia ao que as regras sociais esperam como uma conduta adequada.
Então, o conflito se dá entre fazer o que eu desejo e ser adequado socialmente.
As duas são necessidades individuais, porém contraditórias. Mas e agora? O
ego que lute!
Sobre o pacto da situação analítica, feito entre psicanalista e paciente,
sob o ponto de vista dinâmico, Tavares (2014, p. 87) descreve como:

O Eu encontra-se enfraquecido pelo conflito interno; temos que ir em


seu auxílio. É como em uma guerra civil que tem de ser decidida pelo
socorro de um aliado vindo de fora. O médico analista e o Eu
enfraquecido do enfermo, apoiados no mundo externo real, devem
formar um partido contra os inimigos: as exigências pulsionais do Isso
e as exigências da consciência moral do Supereu. Celebramos um
pacto de um com o outro. O Eu doente nos promete a mais completa
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sinceridade, quer dizer, pôr à disposição todo o material que sua
autopercepção lhe fornece, e nós lhe asseguramos a mais estrita
discrição e colocamos a seu dispor nossa experiência na interpretação
do material influenciado pelo inconsciente.

E assim é a psicanálise, cheia de metáforas de relações, de símbolos,


de negociações etc., tal qual nossa vida cotidiana!

NA PRÁTICA

A observação dos bebês e crianças pequenas é muito interessante para


se ter uma ideia da aplicabilidade da teoria psicanalítica na vida cotidiana. Ao
longo do crescimento se perceberá que, por volta do 1º ano de idade, já será
comum que os cuidadores digam com mais frequência: “Espere!”, “Já vou!”, “Não
precisa chorar assim, espere só mais um pouquinho”.
Quanto mais crescem, mais limites recebem: “Não faça isso!”, “Não é a
sua vez!”, “O coleguinha também quer!”, “Devolva porque esse brinquedo não é
teu!”.
O desafio tanto para crianças quanto para adultos é mediar os interesses
contraditórios do eu quero só que eu não posso.
Freud percebeu que nesse terreno se evidenciava clinicamente uma
batalha, sendo que o terreno é o próprio ego, o eu, a pessoa que sofre por forças
opostas que buscam satisfação. Para se defender do conflito, o eu tem a seu
serviço os mecanismos de defesa, que o ajudam a gerenciar essa batalha.
A delimitação teórica sobre os mecanismos de defesa do eu (ou do ego)
caracterizam a perspectiva dinâmica e a segunda tópica sobre o aparelho
psíquico.
Primeiro Freud delimitou uma separação: um terreno onde os conteúdos
eram conscientes e outro terreno em que eram inconscientes.
Depois Freud compreendeu que havia esse jogo de forças entre elas, um
conflito para tentar manter uma certa organização mental, e o que está no centro
da batalha é o ego, ou seja, o próprio eu.

FINALIZANDO

Nesta aula recuperamos a concepção do aparelho psíquico conforme foi


sendo elaborada entre 1900 e 1920.

• Primeira Tópica (1900): Inconsciente, Pré-Consciente, Consciente.

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• Segunda Tópica (1920): Id, Ego, Superego.

O aparelho psíquico pode ser explicado sobre diferentes perspectivas:

1. Perspectiva dinâmica – como as instâncias se relacionam;


2. Perspectiva tópica – como elas se delimitam; e
3. Perspectiva econômica – quanto de libido é destinado para cada local.

A ciência médica definiu critérios para avaliar o estado mental das


pessoas e entende que o psiquismo tem a função de ajustar e adaptar o indivíduo
ao meio onde vive.
A psicanálise se interessa em saber o quanto custa ao indivíduo esse
processo de adaptação, quais forças precisa reprimir para se ajustar, o que
precisa negar em si para ser aceito pelo outro. Conceitualmente, a psicanálise
chama esse movimento de conflito psíquico, ou seja, um jogo de forças
antagônicas que busca satisfações.
O que percebemos desse movimento psíquico são sensações, coisas, a
que muitas vezes não conseguimos dar nome e mesmo que seja dado um nome
para cada experiência subjetiva parece que não se consegue descrevê-la
totalmente. Ansiedade, angústia, culpa, remorso, por exemplo, são o resto do
conflito psíquico, aquilo que resultou do jogo de forças antagônicas
experimentado de forma inconsciente.
Sabendo disso, fica claro o motivo pelo qual não adianta dar conselhos na
psicoterapia psicanalítica. Dar conselhos seria mais uma pressão por
ajustamento. A psicanálise não busca ajustamento e, sim, esclarecimento.

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REFERÊNCIAS

APA – American Psychiatric Association. Manual diagnóstico e estatístico de


transtornos mentais: DSM-5. Tradução: Maria Inês Corrêa Nascimento et al.;
revisão técnica: Aristides Volpato Cordioli et al. 5. ed. Porto Alegre: Artmed,
2014.

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