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13/09/2023, 20:08 O enigma da anestesia | Super

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Saúde

O enigma da anestesia
Ela faz você apagar no ato, como se desligasse o seu cérebro. Mas até hoje a ciência não
sabe ao certo como a anestesia geral funciona. Duas experiências sugerem uma
resposta intrigante: talvez o paciente fique acordado o tempo todo – e não se lembre
disso.
Por Eduardo Szklarz e Bruno Garattoni
Atualizado em 18 nov 2020, 10h10 - Publicado em 22 jan 2019, 16h58

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13/09/2023, 20:08 O enigma da anestesia | Super

(Francisco Martins/Superinteressante)

Texto Eduardo Szklarz e Bruno Garattoni

Ian Russell não era um anestesista qualquer. Além de trabalhar em partos e


cirurgias no hospital público de Hull, uma cidade portuária quatro horas ao norte
de Londres, também escrevia artigos científicos sobre o tema. Já tinha publicado
mais de 20, todos bem técnicos (como “Analgesia subaracnoide em cesarianas”).
Até que, em 1993, resolveu tentar algo menos ortodoxo. Monitorar 32 mulheres,
na mesa de cirurgia, para tentar responder à seguinte pergunta: quando uma
pessoa toma anestesia geral, ela perde a consciência? É óbvio que sim, você dirá.
Afinal, a anestesia – que tem ação sedativa, analgésica e relaxante muscular – faz
qualquer pessoa apagar em segundos. Mas Russell, do alto de sua experiência,
suspeitava que não fosse bem assim. E criou uma experiência insólita para tentar
descobrir.

Antes de cada cirurgia, ele colocou um manguito (medidor) de pressão arterial,


bem apertado, no antebraço direito da paciente. O instrumento servia como um
torniquete, impedindo o fluxo de sangue – e evitando que o relaxante muscular

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chegasse à mão da mulher. O objetivo era preservar os movimentos da mão (você


já vai entender o porquê disso). Em seguida, a mulher recebia a anestesia geral,
apagava, e os médicos começavam a cirurgia. Russell punha fones de ouvido na
paciente, e tocava uma mensagem que ele havia gravado numa fita cassete. “Se
você consegue me ouvir, abra e feche os dedos da sua mão direita.”

O plano era o seguinte. Se a mulher mexesse a mão, Russell tiraria o fone e lhe
diria ao ouvido: “se você puder me ouvir, aperte meu dedo”. Se a paciente
fizesse isso, ele lhe pediria que apertasse seu dedo de novo caso estivesse
sentindo dor. E aí, se a paciente fizesse esse último gesto, ele lhe daria mais
sedativo para que ela voltasse a dormir. O resultado foi impressionante. 70% das
mulheres apertaram o dedo de Ian, ou seja, estavam conscientes mesmo sob
anestesia geral. E 62% indicaram que estavam sentindo dor. Depois de acordar,
nenhuma delas se lembrou de nada. Mas Russell ficou tão abalado que
interrompeu o estudo no meio (a meta era testar 60 pacientes).

“A definição de anestesia geral inclui inconsciência e ausência de dor durante a


operação – fatores não assegurados por esta técnica”, escreveu. Para ele, o
procedimento nem sequer deveria ter esse nome; seria melhor chamá-lo de
“amnésia geral”. Russell conta a história no livro Anesthesia: The Gift of
Oblivion and the Mystery of Consciousness (“Anestesia: o dom do esquecimento
e o mistério da consciência”, sem versão em português), da australiana Kate
Cole-Adams. E esse caso não é o único. Nas últimas décadas, outros cientistas
observaram fenômenos similares – e ainda mais intrigantes.

Num estudo de 1985, o psicólogo Henry Bennett, da Universidade da California,


colocou fones de ouvido em pessoas sob anestesia geral, durante operações de
vesícula e coluna. Elas foram divididas em dois grupos. Metade ouviu, pelos
fones, sons típicos de sala de cirurgia. A outra, uma mensagem gravada por
Bennett: “Quando eu vier conversar com você daqui a alguns dias, você vai
puxar sua orelha”. Alguns dias depois, Bennett foi conversar com os pacientes.
Eles não se lembravam de nada – mas quem tinha ouvido a mensagem deu seis
puxadinhas na orelha, em média (as outras pessoas, no máximo, uma vez).

Em 1993, cientistas da Universidade Ludwig-Maximilians, na Alemanha,


colocaram fones de ouvido em 30 pacientes de cirurgia cardíaca. Quando as
pessoas estavam inconscientes, sob anestesia geral, os fones tocavam um resumo

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do clássico Robinson Crusoé, bem como a seguinte instrução: “Quando você for
perguntado sobre a palavra ‘sexta-feira’, vai mencionar Robinson Crusoé”. Três
dias depois, nenhum deles se lembrava de nada. Mas, ao ouvirem a palavra
“sexta-feira” – que é o nome de um personagem da história –, sete pacientes a
relacionaram com Robinson Crusoé.

Há estudos mostrando que, mesmo sob doses normais de anestesia, muitos


pacientes ouvem e entendem o que os médicos estão dizendo na mesa de cirurgia.
E, ainda que não se lembrem de nada depois, alguns traços emocionais desses
episódios permanecem. É a chamada “memória implícita” – um tipo de memória
que não podemos acessar de forma consciente, mas que de alguma maneira está
em nossa mente e pode provocar mudanças em nosso comportamento. Ao
contrário da memória explícita (que você se lembra de ter), a memória implícita
só pode ser detectada em testes psicológicos.

Será, então, que os pacientes desses estudos estavam parcialmente conscientes


durante a cirurgia? Pode ser. Ou talvez algo mais assustador. “Eu diria que muitos
dos pacientes no estudo do Robinson Crusoé estavam plenamente conscientes
durante a anestesia geral, mas tiveram amnésia posterior”, diz Michael Wang,
professor emérito de psicologia clínica da Universidade de Leicester, na
Inglaterra, que há décadas trabalha com pacientes que acordaram durante
operações. “É como acontece quando usam drogas do tipo ‘boa noite, Cinderela’,
ou quando alguém fica muito bêbado. No dia seguinte, essas pessoas não têm
memória do que ocorreu, mas isso não significa que estivessem inconscientes”,
afirma Wang.

Trata-se de uma tese polêmica, longe de ser comprovada. Mas os pesquisadores


concordam num ponto: ainda não sabemos exatamente como os anestésicos
gerais funcionam. Afinal, o que essas drogas fazem conosco quando nos mandam
para o “andar de baixo”? De que forma “desligam” nossa mente? Os cientistas
não têm todas as respostas, mas algumas estão surgindo. Novos estudos revelam
o que acontece no nosso cérebro quando estamos sob a ação desse coquetel
poderoso. Você não dorme; é bem mais complexo que isso.

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(Francisco Martins/Superinteressante)

Do alívio ao nocaute
Ao longo da história, os médicos tentaram de tudo para evitar a dor dos
pacientes. Apertaram nervos, pressionaram artérias, usaram ópio, álcool, hipnose,
acupuntura, extratos de plantas… Cirurgias só eram feitas em último caso, pois
tinham risco de morte elevado e causavam sofrimento brutal. Imagine amputar
um braço sem anestesia; era preferível morrer. Isso só começou a mudar em
1772, quando o químico inglês Joseph Priestley descobriu o óxido nitroso. O gás
relaxava o paciente e produzia uma incontrolável vontade de rir – daí o nome
“gás hilariante”. No século 19, o físico inglês Michael Faraday viu que o éter
tinha um efeito similar, e os dentistas passaram a usar esse gás para extrair
dentes. Em 1841, o médico americano Crawford Long realizou a primeira
cirurgia usando éter como anestésico geral. Long retirou dois tumores da nuca de
um paciente – que apagou e não sentiu nada.

Mas quem levou a fama como o “pai” da anestesia geral foi o dentista americano
William Morton. Em 1846, ele aplicou éter ao jovem Gilbert Abbott com um
inalador de vidro, fazendo-o dormir calmamente enquanto o cirurgião John
Collins Warren retirava um tumor de seu maxilar. A demonstração foi feita no
Hospital Geral de Massachusetts, em Boston, e virou manchete. No mesmo ano,
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o médico americano Oliver Holmes se apropriou do termo grego anaesthesia


para descrever aquele efeito mágico do éter de “tornar insensível” o paciente.

A anestesia geral é um procedimento altamente seguro, e que evoluiu muito de


algumas décadas para cá. “Nos últimos 20 anos, a taxa de mortalidade de causa
anestésica caiu dez vezes, sendo agora de 1 para cada 100.000 casos”, diz Sérgio
Logar, presidente da Sociedade Brasileira de Anestesiologia. Isso é resultado da
melhora na qualidade das drogas, do monitoramento e da formação dos
profissionais (além da faculdade de medicina, o anestesiologista faz mais três
anos de especialização), além de medidas que minimizam a chance de falhas no
equipamento e erros humanos. “Nas últimas décadas, a evolução na segurança da
anestesia foi comparável ao progresso na segurança da aviação”, diz Logar.

Anestesia funciona, e bem. Mas só recentemente a ciência começou a descobrir


como funciona. “A anestesia geral é muito diferente do sono. Ela tem mais
semelhanças com o estado de coma”, diz a neurocientista Laura Lewis, do MIT.
De fato, a anestesia geral busca vários objetivos simultâneos: que a pessoa fique
inconsciente, que não se mexa, não sinta dor e nem tenha respostas fisiológicas à
dor, como hipertensão e taquicardia. E, finalmente, que não se lembre de nada.
Os anestésicos fazem isso. Mas como?

As primeiras pistas vieram nos anos 1980, quando os cientistas Nick Franks e
William Lieb, da Imperial College de Londres, descobriram que as moléculas
desses remédios se ligam aos receptores de GABA (ácido gama-aminobutírico)
no cérebro. Essa substância é produzida naturalmente pelo organismo, e sua
função é frear a comunicação entre os neurônios (que, em excesso, pode causar
convulsões e ataques epiléticos). O álcool também se liga aos receptores de
GABA, e por isso causa torpor – um estado mais profundo do que o sono. Se
você estiver dormindo, certamente acordará se alguém cortar sua pele com um
bisturi. Já uma pessoa muito bêbada pode até ser operada sem anestesia, e mesmo
assim não despertar. O álcool e os anestésicos funcionam como uma espécie de
GABA artificial, mais potente, e por isso nos fazem apagar. Mas isso não explica
tudo. Há algo a mais.

O enigma só começou a ser desvendado em janeiro de 2017, quando


pesquisadores da Universidade de Queensland, na Austrália, publicaram um
estudo sobre o propofol, um dos anestésicos mais usados atualmente (e que,

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numa dose letal, matou o cantor Michael Jackson). Os cientistas descobriram que
esse remédio restringe a mobilidade de uma proteína chamada sintaxina 1A. “A
proteína parece ficar presa num ‘engarrafamento’ dentro das sinapses
[extremidades dos neurônios]”, diz o neurologista Bruno van Swinderen, líder do
estudo. Com isso, haveria ainda menos descarga de neurotransmissores e,
portanto, menos comunicação entre os neurônios.

Todos os neurônios dependem da sintaxina 1A para se comunicar. Por isso, os


cientistas suspeitam que esse congestionamento aconteça no cérebro inteiro,
afetando até 100 trilhões de sinapses (são cerca de mil delas por neurônio).

Mas não para aí. Estudos recentes provaram que os anestésicos também
dificultam a ação da cinesina, uma proteína essencial para o funcionamento dos
neurônios, e inibem a produção de uma enzima chamada Complexo I – que é
vital para a produção de energia nas mitocôndrias, dentro das células. Todas essas
descobertas têm ampliado o foco dos cientistas.

“A anestesia geral não produz inconsciência só tornando os neurônios menos


ativos. Ela pode quebrar as conexões entre várias regiões cerebrais”, diz Laura
Lewis, do MIT. Isso pode ajudar a explicar aqueles casos impressionantes, sobre
os quais falamos no começo desta reportagem, em que a pessoa mantém algum
nível de consciência enquanto está anestesiada. Uma possibilidade é que o
neocórtex, região cerebral ligada à consciência, continue funcionando em algum
grau – e o hipocampo (área que coordena a formação de memórias) não consiga
monitorar sua atividade. Mas isso ainda é mera especulação.

A anestesia geral só será plenamente desvendada quando a ciência resolver o


maior mistério de todos: o que é a consciência. Somente entendendo isso
poderemos saber como trilhões de sinapses podem se desligar na mesa de cirurgia
e depois voltar a funcionar perfeitamente, sem sequelas. E por que, em muitos de
nós, algo continua ligado – mesmo que não nos lembremos de nada depois.

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