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Entrevista

Rui Vaz

“Não tenho uma noção divina do funcionamento do


cérebro”

E-Mail

Faz 20 anos que pegou no bisturi para completar com


sucesso a primeira cirurgia do país à doença de
Parkinson. Nos últimos momentos de uma carreira
cheia, partilha com o Expresso o caminho que o levou a
tentar reparar a estrutura mais complexa do corpo
humano, de um contraste entre o que temos de mais
sofisticado e de mais primitivo

POR JOANA ASCENSÃO (TEXTO) E RUI DUARTE SILVA


(FOTOGRAFIAS)

E
ra quando saía da água do mar, no verão, e se sentava
de novo no quente da areia que fumava o cigarro
preferido. Recorda com vagar os tempos de prazer sem
freio, até o papel de médico vir ao de cima e lhe gritar
aos ouvidos que teria de largar o tabaco. Por cima de
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uma infância a descobrir o mundo a partir das ruas do
Porto, com os amigos de há 50 anos, está um
neurocirurgião português de carreira ímpar, que viu na
medicina a forma de fazer serviço público. Há 20 anos,
Rui Vaz inaugurou em Portugal a primeira cirurgia à
Parkinson. Desde então não se arredou da primeira fila
nas inovações da estimulação cerebral profunda. É dos
poucos portugueses a quem é permitido mexer num
cérebro vivo – tantas vezes com o doente acordado,
entregando-lhe a consciência nas mãos.

Sabe que tem pela frente os últimos anos a pisar os


corredores do Hospital de São João, de onde decidiu
sempre não sair. Continua a ser o primeiro a chegar ao
serviço que encabeça desde 2000. Mantém o hábito de
dar o número de telefone aos doentes. E sobretudo
confia no legado que deixa aos mais novos. Aos 68 anos,
lança o livro “20 Anos de DBS em Portugal”, em
coautoria com a neurologista Maria José Rosas. O
“miúdo” metódico que se fez pioneiro no país ainda lhe
marca o passo, tal como na manhã do dia 22 de outubro
de 2002.

Era um risco fazer aquela cirurgia com uma técnica ainda


não inaugurada em Portugal. Do que se lembra de lhe
ter passado pela cabeça antes de entrar no bloco?

Lembro-me de tudo como se fosse hoje. Sentia medo,


apesar de estar relativamente seguro. A minha
preocupação ali era o doente. Tinha a função de repartir
a atenção entre uma cirurgia completamente nova e o

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doente, acordado, consciente e ansioso. Durante o dia
todo não consegui pensar em mais nada.

Dormiu?

Dormi. [Risos] Houve várias histórias engraçadas nesses


dias e uma delas foi passada com uma colega sua, da
comunicação social. Eu tinha dito a toda a gente que não
queria que a informação saísse daqui. Falaríamos
depois, não antes. Mas na véspera à tarde, eram seis da
tarde, estávamos aqui no Hospital de São João a planear
os últimos detalhes quando recebo um telefonema de
alguém da SIC que queria falar comigo sobre a cirurgia
do dia seguinte. Como é que isto lá chegou? Não faço
ideia.

E falou?

Não. [Risos] Teve muita piada, porque eu pedi à pessoa


que estava ao meu lado, a engenheira Rosália, para
fazer de minha secretária. Pedi-lhe para dizer que eu não
estava, para fazer o que quisesse. E ela falou com o
jornalista como se fosse, de facto, minha secretária. O
assunto morreu e só dois dias depois é que falámos.

As viagens são algo importante porque servem para


lavar a cabeça por dentro. Viajar é uma forma de
cultura”

Quantas horas demorou a cirurgia?

Começámos a cirurgia às 8h30 e foi o dia todo. Só


acabámos à meia-noite, sem jantar. A equipa estava

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com a agitação natural do primeiro caso. Connosco
esteve também um homem do Líbano, funcionário da
empresa [do material técnico] que praticamente sabia
tudo sobre isto. Achei piada. Quando mo apresentaram
disseram mesmo que só não sabia operar, de resto sabia
tudo.

Debateu-se vários anos para conseguir fazer a cirurgia.

Foram três anos a tentar conseguir o financiamento. Bati


a várias portas e tive múltiplas respostas como “vamos
ver”, “vamos estudar a situação”, “oportunamente dir-
lhe-emos alguma coisa”, até que o Hospital de São João
assumiu a liderança do processo e investiu o dinheiro
necessário para arrancar. Isto aconteceu depois de
percebemos que vários doentes que nos procuravam
depois de serem intervencionados no estrangeiro eram
só a ponta do icebergue. Por trás, havia um número
enorme de portugueses que poderiam beneficiar com a
cirurgia. E, desses, só poucos tinham recursos
económicos para serem operados lá fora.

Lá fora era onde?

Espanha e França, sobretudo. Mas tivemos sempre o


cuidado de não fazer os doentes pagar o preço da curva
de aprendizagem. Lembro-me de nessa altura, em
fevereiro de 2003, trazermos cá o professor [Alim-Louis]
Benabid, o homem de Grenoble, França, que criou o
método e agora é Honoris Causa pela nossa faculdade,
para rever os nossos primeiros cinco casos. Fizemo-lo
detalhadamente, era sábado de Carnaval. Recordo-me

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de ele só poder vir naquele dia e de ter férias na neve
marcadas para essa data. Tive de as adiar. A minha
família foi indo na sexta de manhã e eu meti-me no
carro, sozinho, às seis da tarde. De direta, cheguei lá no
dia seguinte.

Tem estado ao leme das inovações da estimulação


cerebral profunda em Portugal. O que mais o entusiasma
no que aí vem?

Duas coisas: uma clínica e outra tecnológica. Na área


tecnológica, futuramente vejo como muito possível uma
transformação daquilo que são, hoje, dois elétrodos,
cabos e uma bateria, em dois elétrodos apenas juntos a
uma minibateria colocada na abertura do crânio, por
forma a que não haja nem cabos nem bateria colocada
no peito dos doentes. Para eles, seria uma importante
melhoria. Depois, a nova tecnologia capaz de dar
informação à máquina sobre as ondas do cérebro será o
primeiro passo para aquilo que eu antecipo ser a grande
evolução na cirurgia da doença de Parkinson, a
personalização do tratamento. No futuro, quando
alguém tiver um sistema destes implantado, antes de
sentir o que quer que seja, já o elétrodo vai informar a
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bateria de que estão a aparecer ondas [cerebrais] que
vão levar a sintomas. A bateria recebe a informação e
liga a estimulação. O doente não chega a sentir nada.
Mas costumo brincar dizendo que gostava mesmo era de
deixar de operar a doença de Parkinson.

A doença trata-se mas não se cura.

Os doentes operados têm melhorias de 80% dos seus


sintomas, nos casos melhores, mas não se pode dizer
que ficam sem sintomas.

Mesmo perante muita investigação, ainda é difícil


conhecer os meandros do cérebro?

É difícil. Apesar de a tecnologia nos estar agora a


permitir evoluir para uma coisa com muita piada: os
circuitos, os conectomas do cérebro. Os nossos
conectomas são todos diferentes. Por exemplo, eu, sem
jeito para desenho ou sem ouvido musical, não sou
menos inteligente que alguém com jeito para desenho
ou com ouvido. Isso é o caminho para onde estamos
agora a começar a entrar.

Eu saboreei pouco os meus filhos e estou a saborear


pouco os meus netos. Continuo a não ser um avô capaz
de ir buscá-los ao colégio”

É verdade que a estimulação cerebral profunda também


pode melhorar condições como a anorexia ou a
depressão?

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Temos três situações diferentes. Existem as doenças
para as quais a estimulação cerebral profunda está
completamente estabelecida, como a doença de
Parkinson, o tremor essencial, a distonia ou a epilepsia
refratária. Há patologias para as quais está a ser
investigada — e nessas incluem-se as que mencionou —
a depressão grave refratária, a anorexia nervosa e a
doença de Alzheimer. Num terceiro grupo, há coisas
publicadas sobre a utilização da estimulação cerebral
profunda na modificação das características da pessoa.
Isso foi essencialmente associado à memória e à
agressividade. E sobre estas últimas, eu tenho
muitíssimas dúvidas.

Incomodam-no as questões éticas?

Suponhamos o caso de um gestor de uma empresa que,


aos 60 anos, começou a notar alterações da memória.
“Ponha-me cá um chip para melhorar a memória.”
Pessoalmente, acho que não é aceitável. Ou, no limite,
imagine um serial killer ao qual é proposto que se meta
um chip para lhe reduzir a pena. Não é aceitável.

E naquele segundo grupo, o que inclui doenças do foro


mental como a anorexia e a depressão, as questões
éticas serão um entrave?

Enquanto eu estiver neste serviço, nós só avançaremos


depois de estar cientificamente validado. Agora, há
investigação em ambas as áreas. Por exemplo, em
Portugal suicidam-se três a cinco pessoas por dia. Os
números europeus para os suicídios são uma coisa

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assustadora. Nesse caso, o da depressão grave, teria
sempre de ser a psiquiatria a indicar os doentes para os
quais a cirurgia estaria indicada, sendo ela sempre uma
terapêutica de fim de linha, quando não há mais nada a
fazer e sabemos que o doente acabará por se suicidar.
Sabe? O consentimento informado num doente
psiquiátrico é completamente diferente. Há também
uma carga negativa associada à psicocirurgia, depois do
trabalho que deu o Prémio Nobel ao professor Egas
Moniz [trabalho que ajudou a desenvolver a lobotomia,
uma cirurgia que consiste em tratar cirurgicamente
distúrbios como as psicoses]. Chegou-se até a criar um
movimento no sentido de retirar o prémio ao professor
Egas Moniz, no início dos anos 2000, que não teve culpa
nenhuma daquilo que foi feito nos Estados Unidos pelo
professor Freeman. A ideia dele era genial. Portanto,
quando se fala de psicocirurgia, estamos logo a falar de
um fantasma.

O neurocirurgião britânico Henry Marsh disse, numa


entrevista, que a relação entre a neurocirurgia e a
neurociência é um pouco como a diferença entre
arranjar canos e mecânica quântica.

Não concordo nada com ele. A neurocirurgia é uma parte


fundamental da neurociência, também é mecânica
quântica. Essa ideia é redutora.

Nunca se arrepiou ao pensar que poderia estar a entrar


pela mente de alguém?

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Nós temos a noção clara de que estamos a interferir na
forma de ser de alguém, mas para a melhorar. Estamos
sempre a tratar uma doença.

É crente?

Sou, mas para mim é algo muito pessoal. Não misturo


as coisas. Não tenho uma noção divina do
funcionamento do cérebro.

Em que é que essa crença entra na sua vida?

Fui criado assim. O fundamental está na forma como


vemos a relação com os outros. Mas também lhe digo,
se fosse ateu poderia ter a mesma consideração pelas
pessoas e o mesmo humanismo a tratá-las. O respeito
não tem que ver com a religião, tal como a educação
não tem que ver com licenciaturas.

Falava da forma como foi educado. Como é que a


medicina entra na vida do rapaz metódico, jogador de
andebol que dividia sempre a conta, de cabeça, nos
jantares entre amigos? Não foi legado familiar.

Pois não. A esmagadora maioria dos meus amigos de


infância são engenheiros e eu nunca tive nenhuma
tendência para nenhuma engenharia. Penso que foi por
paixão. Quase todas as decisões importantes que
tomamos na vida são sem grande base racional. Se
procurar uma base racional para casar, se calhar não
encontra. A verdade é que nunca coloquei uma segunda
hipótese.

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Foi a sua faceta metódica o que o levou onde está hoje?

Penso que fiz um percurso natural. Entrei nesta casa em


1971 e ainda não saí. Fiz o curso todo cá, o internato
também, fui ficando. A minha carreira toda foi uma
evolução, até ser diretor de serviço, em 2000. As
pessoas foram achando que eu tinha capacidades.
Talvez as características que mais me definam sejam o
gosto pela inovação e a persistência. Se quiser em
linguagem atual, sou resiliente. Nunca fui um corredor
de 100 metros.

É verdade que dá o seu número de telefone aos doentes?

É verdade. Tenho o mesmo número há muitos anos e


nunca desligo o telefone, nem de dia nem de noite, nem
ao fim de semana. E nunca me dei mal com isso. Já me
aconteceu tudo o que possa imaginar, como atender um
telefonema em Londres por causa de uma doente que
não estava bem, ter de apontar na areia de uma praia
números de telefone de profissionais do serviço. Mas se
me perguntar se estou arrependido, não.

Nasceu no Porto. Entre as muitas viagens que fez,


profissionais e pessoais, foi sempre uma decisão não sair
da cidade?

Houve alturas na vida em que pensei sair. As viagens


são algo importante porque servem para lavar a cabeça
por dentro. Viajar é uma forma de cultura. Houve uma
ou duas alturas na vida em que estive para sair. Pensei
seriamente ir para África do Sul, no internato da
especialidade, e fui lá ver a realidade, quer no Cabo quer
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em Joanesburgo. Depois, houve uma outra altura em
que, perante dificuldades internas, estive para sair do
São João para um de dois outros hospitais do Porto. Mas
feito o balanço, não estou arrependido de ter ficado.

Lisboa nunca foi uma opção?

Não.

Num país tão pequeno, esta centralidade sente-se, por


exemplo, em visibilidade?

Eu nunca procurei isso. Acho Lisboa uma cidade


fantástica onde gosto de ir, mas não sei se gostaria de
lá trabalhar. Tenho muitas dúvidas se iria atrás de uma
quimera. Por outro lado, tenho cá as minhas raízes
todas, entre as quais a mais forte, a família.

Tem três filhos e seis netos. O seu neto mais novo já


nasceu em pandemia. Como viveu esta fase?

A pandemia vivi-a relativamente bem. Fiquei


surpreendido comigo próprio por não me aborrecer de
não trabalhar.

Quanto tempo aguentou em casa?

Muito pouco [risos]. Continuei a vir ao serviço quase


todos os dias, mas vivi com alguma amargura sobretudo
por causa das cirurgias [adiadas]. Felizmente, e sem
querer ser politicamente conveniente, este hospital
manteve uma abordagem muito certa em relação aos
casos não-covid. Conseguimos sempre manter toda a
cirurgia oncológica e urgente. Tivemos sempre sala,
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bloco, anestesista, equipa, enfermagem... Mas é
verdade que tudo o que não era urgente foi ficando para
trás. Irritam-me cirurgias adiadas. Tudo o que interfira
com a pessoa diretamente me incomoda e aborrece. Há
muitos anos que eu digo aqui no serviço que eu sou o
provedor do doente. Essa é a minha função.

Sentiu-se menos médico por não ter estado na linha da


frente?

Definitivamente, não. A minha função não era essa. Eu


não tinha de ir para a tenda ou para a urgência tratar de
doentes covid. As coisas têm de ser feitas por quem tem
de as fazer. Senti acima de tudo que isto era uma nuvem
negra que teria de passar. Como alguém já disse, o
problema não é chorar na tempestade, é saber cantar
na chuva.

O que é que descobriu que gostava de fazer em casa?

Foi a primeira vez na vida que vi Netflix [risos]. Eu


pagava e nunca tinha tido tempo de lá ir.

O que viu?

Vi a série “The Spy”, mais meia dúzia de outras séries


às quais achei piada. E aproveitei para organizar o meu
e-mail por pastas. Fiz um daqueles cursos online. Antes
era uma confusão desgraçada. Todos nós tivemos de
inventar um bocado.

Quebrou regras?

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Acho que estive a meio caminho. Mas penso que cumpri
mais do que descumpri. Sabe, eu tenho os mesmos
amigos há 50 anos. E hoje, mais do que na altura, vamos
jantar juntos, viajamos juntos, passamos férias juntos.
Acho que não há semana nenhuma em que não esteja
com algum deles e uma garrafa de Barca Velha é um
excelente motivo para passar concelhos durante a
pandemia.

Teria conseguido deixar de fumar se o tivesse decidido


nestes tempos de pandemia e agora de guerra?

Eu nunca hei de ser um não fumador, sou um fumador


contrariado. Gosto de fumar. Comecei a fumar aos 12
anos e, como costumo dizer, deixar de fumar é fácil,
difícil é não voltar. Já larguei o tabaco para aí umas vinte
vezes. Tenho perfeita noção de que me atinge um órgão,
a laringe, e sei que se insistir em fumar vou acabar com
um tumor. Se pudesse fumar, fumava.

Então, não se sente particularmente afetado, nervoso ou


inseguro com este microcosmos que vivemos?

Tenho medo mais pelos meus filhos e netos. Felizmente,


estamos neste canto da Europa, mas o receio vem pela
geração que está a seguir. A minha foi muito protegida.

Sente isso?

Sim. A geração dos meus pais ainda apanhou parte da


II Guerra Mundial. Repare que eu até tive a sorte de não
apanhar a Guerra Colonial.

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Mas pelo que sei viveu o 25 de Abril com bastante
intensidade.

Completamente eufórico. Tinha 21 anos. Foi das alturas


mais marcantes.

Viveu-o ali nos cafés situados no fim da Avenida da


Boavista?

Vivi-o nas confusões, nas manifestações, no barulho —


da Serra do Pilar [caso conhecido como CICAP-RASP] ao
Congresso do CDS. A notícia, em si mesma, tive-a de
manhã. Lembro-me de estar a ir para a faculdade. Foi o
espoletar de tudo. Como o meu grupo de amigos, de
uma absoluta diversidade ideológica, morava todo ali na
Fonte da Moura, lembro-me das infindáveis discussões
políticas com a tendência esquerdizante habitual de
quem era daquela idade.

Até que ponto o ritmo em que vivemos, com


compromissos profissionais para ontem e a sensação
permanente de tempo a esgotar-se, pode causar danos
no cérebro?

O nosso cérebro tem uma absoluta capacidade de


adaptação àquilo que lhe vai sendo imposto. Nem tenho
a certeza se o nosso ritmo de vida é agora mais
desgastante. Os meus pais diziam a mesma coisa.

Preocupa-o mais a doença da sociedade do que a doença


do indivíduo?

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Esse é um ponto crítico. Ao contrário do que se pensa,
nós temos tempo para parar e pensar. Só que muitas
vezes não o usamos. Deixe-me pôr a questão de um
outro modo. Se eu acho que os meus filhos estão piores
do que eu estava com a idade deles? Não. É-lhes exigida
mais velocidade, mas também têm mais meios. Já
pensou naquilo a que a minha geração se teve de
adaptar? Para a minha tese de doutoramento, ia à
biblioteca e cheguei mesmo a ir aos Estados Unidos
consultar revistas científicas. Eles hoje, com um clique,
têm isso tudo. Admiro-me quando estamos em reunião
de serviço com um caso raro, a perguntarmo-nos como
o vamos resolver. Na minha altura, tinha de ir para casa
estudar. Hoje, instantaneamente, tenho um [médico]
interno que me diz existirem dois casos iguais publicados
na Pensilvânia e outro na Alemanha.

Porque é que faz questão de ser sempre o primeiro a


chegar ao serviço?

Tenho de dar o exemplo.

Com reunião diária às 8h15, chega sempre antes das 8h.


É-lhe natural acordar cedo?

O preço que pago por ficar mais dez minutos na cama é


uma data de chatices. De um lado, tenho o parque do
hospital. Assim tenho sempre lugar para o carro. Mas
também gosto de chegar com tempo, tomar o meu café
com tempo, vestir-me. Não gosto de andar a correr.

O físico francês René Leriche disse uma vez que “cada


cirurgião carrega consigo um pequeno cemitério”...
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Eu costumo dizer que só há dois grupos de cirurgiões
sem casos maus: os que não operam e os que mentem.

Tem algum caso que não esquece?

Lembro-me de uma rapariga que operei com o professor


António Cerejo. Tinha um tumor. Com a gravidez, o
tumor cresceu imenso e depois de ter o filho era uma
coisa assustadora. Recordo-me de termos ido operar
essa mulher e de a cirurgia não ter corrido bem. Na
altura, eu gravava em vídeo todas as operações.
Lembro-me perfeitamente de no final ter ido com o Dr.
Cerejo para minha casa ver a cassete de vídeo do
princípio para o fim e do fim para o princípio, várias
vezes, e de nos perguntarmos o que é que ali tinha
corrido mal.

Custa-lhe pensar em abandonar o bisturi?

Nada. Não me custa rigorosamente nada. Tudo na vida


tem um tempo certo e há também um para sair. Quando
eu me sentir um peso morto, saio.

Muitos acreditam que só se vai reformar quando não


mais o deixarem ficar.

Aos 70 tenho de sair, sou obrigado por lei. Somos um


país que aproveita pouco a experiência acumulada. Mas
não tenho muita tendência para prolongar
desnecessariamente as coisas. Não tenciono ir chorar no
meio da tempestade.

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E quando deixar o SNS, ficará descansado com o destino
do serviço público?

Vou ter muita pena. A minha vida sempre foi o SNS e


sempre foi aqui onde fui mais útil. Tive vários desafios
para sair para uma carreira somente privada e quis ficar.
Este já não é o SNS do António Arnaut. Já não é. Há
muito que tem evoluído. Às vezes não é com a
velocidade que queríamos. Mas como eu costumo dizer
aos doentes, para os casos graves funciona muito bem
e na pandemia deu uma excelente resposta. Não fico
preocupado. Tal como o cérebro, o SNS tem resiliência
suficiente para se ir adaptando às adversidades. Agora,
esta questão que se vai colocar nos próximos quatro
anos, da exclusividade dos médicos, vai ser um ponto
fulcral.

O que acha disso?

Pode ser uma vantagem, depende do modo como ela for


remunerada. Acima de tudo, não podemos correr o risco
de só os piores tomarem a opção de ficar.

A experiência tem-no tornado mais cauteloso?

A idade tira-nos umas coisas e dá-nos outras. O que nos


dá, tenho para mim que compensa o que nos tira. Se
calhar, quando estou numa cirurgia que já fiz muitas
vezes, sou capaz de avisar o médico mais novo para ter
cuidado porque vai encontrar isto ou aquilo, aqui ou
acolá. Por outro lado, quando se chega a uma certa fase
da vida, também existe um raciocínio inverso. Ou faço

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agora ou nunca mais faço. Esta vida está muito bem
feita.

O que mais lhe deu a experiência?

Deu-me calma. Sou menos influenciado pela espuma


dos dias.

A pouco das sete décadas, o que lhe falta fazer?

Falta-me a minha falha principal. Parte dela já não tem


retorno. Eu saboreei pouco os meus filhos e estou a
saborear pouco os meus netos. Continuo a não ser um
avô capaz de ir buscá-los ao colégio. Se vou gostar
disso, não sei. Mas é o que me falta.

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