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Rui Vaz
E
ra quando saía da água do mar, no verão, e se sentava
de novo no quente da areia que fumava o cigarro
preferido. Recorda com vagar os tempos de prazer sem
freio, até o papel de médico vir ao de cima e lhe gritar
aos ouvidos que teria de largar o tabaco. Por cima de
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uma infância a descobrir o mundo a partir das ruas do
Porto, com os amigos de há 50 anos, está um
neurocirurgião português de carreira ímpar, que viu na
medicina a forma de fazer serviço público. Há 20 anos,
Rui Vaz inaugurou em Portugal a primeira cirurgia à
Parkinson. Desde então não se arredou da primeira fila
nas inovações da estimulação cerebral profunda. É dos
poucos portugueses a quem é permitido mexer num
cérebro vivo – tantas vezes com o doente acordado,
entregando-lhe a consciência nas mãos.
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doente, acordado, consciente e ansioso. Durante o dia
todo não consegui pensar em mais nada.
Dormiu?
E falou?
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com a agitação natural do primeiro caso. Connosco
esteve também um homem do Líbano, funcionário da
empresa [do material técnico] que praticamente sabia
tudo sobre isto. Achei piada. Quando mo apresentaram
disseram mesmo que só não sabia operar, de resto sabia
tudo.
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de ele só poder vir naquele dia e de ter férias na neve
marcadas para essa data. Tive de as adiar. A minha
família foi indo na sexta de manhã e eu meti-me no
carro, sozinho, às seis da tarde. De direta, cheguei lá no
dia seguinte.
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Temos três situações diferentes. Existem as doenças
para as quais a estimulação cerebral profunda está
completamente estabelecida, como a doença de
Parkinson, o tremor essencial, a distonia ou a epilepsia
refratária. Há patologias para as quais está a ser
investigada — e nessas incluem-se as que mencionou —
a depressão grave refratária, a anorexia nervosa e a
doença de Alzheimer. Num terceiro grupo, há coisas
publicadas sobre a utilização da estimulação cerebral
profunda na modificação das características da pessoa.
Isso foi essencialmente associado à memória e à
agressividade. E sobre estas últimas, eu tenho
muitíssimas dúvidas.
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assustadora. Nesse caso, o da depressão grave, teria
sempre de ser a psiquiatria a indicar os doentes para os
quais a cirurgia estaria indicada, sendo ela sempre uma
terapêutica de fim de linha, quando não há mais nada a
fazer e sabemos que o doente acabará por se suicidar.
Sabe? O consentimento informado num doente
psiquiátrico é completamente diferente. Há também
uma carga negativa associada à psicocirurgia, depois do
trabalho que deu o Prémio Nobel ao professor Egas
Moniz [trabalho que ajudou a desenvolver a lobotomia,
uma cirurgia que consiste em tratar cirurgicamente
distúrbios como as psicoses]. Chegou-se até a criar um
movimento no sentido de retirar o prémio ao professor
Egas Moniz, no início dos anos 2000, que não teve culpa
nenhuma daquilo que foi feito nos Estados Unidos pelo
professor Freeman. A ideia dele era genial. Portanto,
quando se fala de psicocirurgia, estamos logo a falar de
um fantasma.
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Nós temos a noção clara de que estamos a interferir na
forma de ser de alguém, mas para a melhorar. Estamos
sempre a tratar uma doença.
É crente?
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Foi a sua faceta metódica o que o levou onde está hoje?
Não.
O que viu?
Quebrou regras?
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Acho que estive a meio caminho. Mas penso que cumpri
mais do que descumpri. Sabe, eu tenho os mesmos
amigos há 50 anos. E hoje, mais do que na altura, vamos
jantar juntos, viajamos juntos, passamos férias juntos.
Acho que não há semana nenhuma em que não esteja
com algum deles e uma garrafa de Barca Velha é um
excelente motivo para passar concelhos durante a
pandemia.
Sente isso?
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Mas pelo que sei viveu o 25 de Abril com bastante
intensidade.
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Esse é um ponto crítico. Ao contrário do que se pensa,
nós temos tempo para parar e pensar. Só que muitas
vezes não o usamos. Deixe-me pôr a questão de um
outro modo. Se eu acho que os meus filhos estão piores
do que eu estava com a idade deles? Não. É-lhes exigida
mais velocidade, mas também têm mais meios. Já
pensou naquilo a que a minha geração se teve de
adaptar? Para a minha tese de doutoramento, ia à
biblioteca e cheguei mesmo a ir aos Estados Unidos
consultar revistas científicas. Eles hoje, com um clique,
têm isso tudo. Admiro-me quando estamos em reunião
de serviço com um caso raro, a perguntarmo-nos como
o vamos resolver. Na minha altura, tinha de ir para casa
estudar. Hoje, instantaneamente, tenho um [médico]
interno que me diz existirem dois casos iguais publicados
na Pensilvânia e outro na Alemanha.
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E quando deixar o SNS, ficará descansado com o destino
do serviço público?
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agora ou nunca mais faço. Esta vida está muito bem
feita.
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