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Um homem feliz

Recordação Eddie Jaku exibe o único bem que preservou


dos tempos dos campos de concentração: um cinto de
cabedal Katherine Griffiths

Eddie Jaku passou por Buchenwald e Auschwitz, viu os


seus serem gaseados e fez a Marcha da Morte, mas não
odeia. Aos 101 anos, o mais velho sobrevivente do
Holocausto diz que não esquece nem perdoa e prometeu
nunca voltar à Alemanha natal. Em conversa exclusiva
com o Expresso, eis um homem que encontrou na
felicidade a sua vingança

texto LUCIANA LEIDERFARB

Sobre ele poderíamos dizer que a sua vida dava um livro,


mas chegaríamos com atraso. Na verdade, o livro está
aí, qualquer um pode comprá-lo. Na capa, Eddie Jaku
está de olhos postos no leitor, com a manga do casaco
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arregaçada no braço direito, a mostrar a tatuagem. A
expressão, longe de nos desafiar, abraça-nos. É um
abraço pleno, o olhar de alguém feliz. E, de facto, o título
do livro — “O Homem Mais Feliz do Mundo” (Objectiva)
— não deixa dúvidas. Eddie é um homem feliz, um
homem feliz com lágrimas e mazelas, como todos os
homens felizes. Construiu uma família, tem mulher,
filhos, netos e bisnetos. Embora não aprecie luxos nem
goste de ostentação, reformou-se com uma vida
confortável. Vive em Sydney, na Austrália, desde julho
de 1950, onde chegou de navio e onde foi fabricante de
instrumentos médicos e dono de negócios prósperos,
como uma estação de serviço e uma imobiliária.

Ele é feliz porque sê-lo é a sua “vingança”, como disse


ao Expresso desde Sydney, durante uma conversa
exclusiva na qual os seus 101 anos não se fizeram notar.
“Queriam que morresse, não morri. Queriam que
odiasse, não odeio. Queriam que fosse mau, não o sou.
Esta é a minha vingança. Estive quase morto, condenado
a morrer, e tenho um casamento de 75 anos. A vingança
é estar vivo, e eles não estão. Perdi uma centena de
pessoas e nunca vou substituí-las. Mas construí uma
ótima família. Tenho dois filhos, quatro netos e cinco

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bisnetos”, explica aquele que é neste momento o mais
idoso sobrevivente do Holocausto do mundo num inglês
com acento alemão que lhe denuncia a origem e no qual
se intrometem algumas palavras em francês — a língua
que fala em casa. Não espere o leitor, portanto, uma
história triste. A sua é a história de alguém que
contrariou a morte para a qual estava destinado, o relato
de quem voltou a ter um nome depois de ter sido o
número 172338: “Se não acredita em milagres, olhe
para mim. Sou um milagre. Deveria ter morrido e não
morri. E desfrutei cada momento, cada dia é
maravilhoso, porque eu era suposto ter morrido há 75
anos.”

Eddie Jaku é o nome que escolheu usar no pós-guerra,


aproveitando o diminutivo “Adi” com que era por todos
conhecido na infância e a isso juntando as primeiras
letras do apelido Jakubowicz. Nasceu Abraham Salomon,
na Leipzig de 1920, no seio de uma família judia alemã
com raízes polacas por parte do pai — um engenheiro
que se empregou num navio mercante rumo aos Estados
Unidos e, ao regressar, foi apanhado pela Primeira
Guerra Mundial e colocado pela Alemanha a trabalhar na
indústria de armamento. Tinha, diz Eddie, orgulho em

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ser cidadão alemão: “Considerávamo-nos alemães em
primeiro lugar, alemães em segundo lugar, e só a seguir
judeus. Ser judeu era a minha religião, não a minha
nacionalidade. Há judeus da Índia, e eu não tenho nada
a ver com eles. As pessoas cometem o erro de achar que
ser judeu é uma nacionalidade, mas não é.” Mesmo
assim, a família seguia as tradições, a ida à sinagoga à
sexta, no início do Shabbat, seguida do grande jantar
com as iguarias e o pão cerimonial challah confecionados
pela mãe. “Ficávamos à mesa no mínimo uma hora e
meia, conversávamos muito”, recorda hoje.

“Vi os nossos amigos, vizinhos que já o eram antes de


eu nascer, participar da violência e dos saques. Isso fez-
me sentir uma vergonha profunda”

Pertence a uma linhagem de engenheiros, e ele também


o foi. “O meu avô fazia máquinas de imprimir para
jornais e o meu pai fabricava máquinas de escrever, na
Remington. Eu fiz instrumentos cirúrgicos: quando um
médico mete um tubo no seu estômago para ver como
funciona, esse tubo era fabricado por mim”, esclarece.
Mas o modo como teve de encarar a sua formação diz
muito daquilo em que estava a tornar-se a Alemanha
após a eleição de Adolf Hitler, em 1933. A expulsão do

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liceu que frequentava, o Leibniz Gymnasium, foi
contornada por meio dos contactos do pai, graças aos
quais conseguiu matricular-se na Faculdade de
Engenharia Mecânica em Tuttlingen, a nove horas de
Leipzig. Tratava-se, como refere Eddie Jaku no seu livro,
do “epicentro mundial da tecnologia”, onde se construía
“todo o género de máquinas incríveis” e ao qual o jovem
só teve acesso com documentação falsa e o nome de um
órfão alemão desaparecido: Walter Schleif. Eddie
ocupou a vaga na faculdade e ali se manteve durante
cinco anos, a pernoitar num orfanato próximo, longe da
família e, sobretudo, da sua origem judaica.

Em 1938 coube-lhe a distinção de melhor aprendiz da


instituição. Teve logo uma proposta de trabalho em
Tuttlingen, a fabricar instrumentos médicos de precisão,
que aceitou. Mas avizinhavam-se os 20 anos de
casamento dos pais e decidiu visitá-los de surpresa.
Longe de um centro urbano importante, a trabalhar de
dia e a continuar os estudos à noite, Eddie desconhecia
a realidade do seu país e o agravamento feroz do
antissemitismo em Leipzig. Por isso, não poderia ter
adivinhado que, no dia da sua chegada, a 9 de novembro
de 1938, os acontecimentos viriam a ser históricos, e

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não pelas melhores razões. Chegou a casa, abriu a porta
com a sua chave, a cadela veio cumprimentá-lo, mas
dos pais e da irmã não havia sinal. Nem houve depois
de adormecer de exaustão na sua cama de infância.
Acordou às 5h da madrugada porque alguém batia à
porta com violência. Apressou-se a abrir. “Isto nunca irá
sair-me da mente”, diz hoje. Dez nazis irromperam pela
casa adentro, a destruir tudo e a espancá-lo
brutalmente. Um deles tirou a baioneta e quase
completou a tarefa de lhe desenhar uma suástica no
braço, não fosse a cadela saltar-lhe em cima. Com a
mesma baioneta, o nazi atravessou o animal, gritando:
“Cão judeu.”

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Terror Mulheres judias em Linz, na Áustria, são exibidas


em público, com cartazes ao pescoço onde se lia “Fui
excluída da comunidade nacional”, durante a Noite dos
Cristais, em novembro de 1938 Galerie Bilderwelt/Getty
Images

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A entrada do campo de concentração de Auschwitz, com


a frase “O trabalho liberta”, numa imagem de 1965
Keystone/Getty Images

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Nessa noite, que ficou conhecida como a Noite dos
Cristais (Kristallnacht), todas as sinagogas da Alemanha
— mais de mil — foram destruídas pelas forças
paramilitares nazis, assim como as lojas e as casas dos
judeus. Eddie viu a sua, com 200 anos de existência,
que pertencera aos avós e aos bisavós, ser incendiada à
sua frente. Ele não esteve entre os 40 mil judeus
alemães que morreram, mas sim entre os mais de 30
mil que nessa noite foram detidos e mandados para
campos de concentração. Ao recordar o pogrom, o que
ainda mais o perturba é o comportamento dos “cidadãos
comuns”: “Vi os nossos amigos, vizinhos que já o eram
antes de eu nascer, participar da violência e dos saques.
Isso fez-me sentir uma vergonha profunda. Como é
possível que isto tenha acontecido no país de Schiller e
de Goethe, de Beethoven e de Bach?” Metido num
camião com o pijama coberto do seu próprio sangue,
desencontrado dos pais, foi levado para o campo de
Buchenwald, sobrelotado, sem utensílios básicos como
colheres ou papel higiénico, com uma só latrina gigante
para 25 homens e execuções aleatórias todas as
manhãs.

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Buchenwald mostrou-lhe até que ponto a sua Alemanha
civilizada ficara para trás, substituída por uma outra
“sem moral, sem respeito e sem dignidade humana”.
Porém, mesmo aí encontrou uma mão estendida. Foi o
caso do soldado nazi que resultou ser um vizinho da
pensão onde vivia nos tempos de estudante e, admirado
por ele ser judeu — conhecia-o como Walter Schleif —,
intercedeu em seu favor junto do comandante do
campo. Ao saber que o prisioneiro tinha formação
técnica, contrataram-no para trabalhar numa fábrica
aeronáutica em Dessau. Eddie aproveitou para indagar
sobre o paradeiro dos pais, que após um período
escondidos na casa de uma tia a 50 quilómetros de
Leipzig tinham regressado à cidade. Chegou a um
acordo: o pai iria buscá-lo para o levar à nova morada,
com paragem em Leipzig para rever a mãe. Mas o pai
não seguiu esse itinerário. Conduziu ate à fronteira,
perseguindo o plano de os quatro membros da família se
reunirem na Bélgica. Junto a outros refugiados e a pé,
chegaram à raia entre a Holanda e aquele país, onde,
em Bruxelas, a família havia alugado um apartamento.
Não chegaram a encontrar-se. A mãe e a irmã foram
presas em Leipzig durante três meses e só então

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rumaram à capital belga. E, nessa altura, Eddie já tivera
outra sorte.

Não deixa de ser irónico que, tendo sido preso pelos


alemães por ser judeu, o fosse agora por ser alemão. Foi
na qualidade de alemão ilegal que a polícia belga o
deteve, enviando-o para o campo de refugiados de
Exarde. Ao lado de Buchenwald, a vida nesse espaço era
“razoável”. Teve de explicar que, apesar de alemão, não
era nazi, e disponibilizou-se a ensinar engenharia
mecânica em troca de aperfeiçoar o seu francês. Em
1940, a Alemanha invadiu a Bélgica, e Eddie viu-se de
novo em fuga: 10 horas de caminhada até Dunquerque
e mais dois meses e meio até ao sul de França, onde
acabaria novamente preso por ter sido confundido com
um dos muitos espiões alemães que eram lançados de
paraquedas na região. Os sete meses passados no
campo de concentração de Gurs terminaram
bruscamente no dia em que a França de Vichy decidiu
trocar prisioneiros de guerra franceses por judeus
estrangeiros que se encontrassem no território. Ao
abrigo dessa troca, Eddie foi forçado a apanhar um
comboio, cujo destino lhe marcaria a vida para sempre.

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Vestígios Eddie Jaku, nascido em Leipzig em 1920, traz
na pele a marca dos campos de concentração: o número
172338, tatuado no seu braço esquerdo Louise
Kennerley/The Sydney Morning Herald/Getty Images

“Não vivo no passado, mas o passado vive em mim. Não


posso esquecer. Nunca vou perdoar ou esquecer”, diz. O
passado que vive nele e que não o larga chama-se
Auschwitz, ainda que, na altura, não fizesse ideia do que
Auschwitz significava. Ter por lá passado — e ter
sobrevivido — deixou-o, durante décadas, vazio de

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palavras para falar do que viu. Eddie refugiou-se num
silêncio obstinado que só quebrou em 1972, 30 anos
depois. “Não falei sobre os campos, não disse aos meus
filhos que estive em Auschwitz. Se queria criar uma
família o mais normal possível, não podia falar dos
campos aos meus filhos. O meu filho mais velho parece-
se com o meu pai, e tentei falar com ele, mas vim-me
abaixo. Não pude falar, porque os meus pais tiveram a
morte mais horrível, na câmara de gás. 1500 pessoas
morriam lá a cada hora. Até morrerem, levava 20
minutos. As pessoas sufocavam. Uma morte terrível,
não se faz ideia”, vai narrando. “Em 1972, eu e um
grupo de sobreviventes decidimos começar a contar a
nossa história. Se não fôssemos nós, quem iria dizer ao
mundo o que aconteceu? Desde então, uma vez por
semana vou falar a alguma escola ou instituição. A quem
quiser ouvir. No início intrigava-me a razão por que
sobrevivi. Percebi que, enquanto sobrevivente, tinha
uma responsabilidade.” Os filhos acabaram por
descobrir a história do pai numa dessas conferências.
Mas ainda hoje o assunto nunca foi tocado “cara a cara”,
numa conversa pessoal.

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Auschwitz despertou em Eddie Jaku uma pergunta
abissal: “Porquê?” Pergunta que encarou “como um
problema de engenharia que tivesse de resolver”. Talvez
por ser um especialista em máquinas, esforçou-se por
compreender a lógica interna do campo, o modo como a
engrenagem mortal deste funcionava. Por isso, a
memória reteve sobretudo os expedientes a que os
prisioneiros recorriam para aguentar mais um dia.
“Dormíamos dez pessoas nuas em cada camarata,
coladas umas às outras, devido aos 25 graus negativos,
e a meio da noite tínhamos de puxar os de fora, o
primeiro e o décimo, para o meio dos outros — caso
contrário congelavam. Todas as noites perdíamos uns
quantos. Sabe porque é que dormíamos nus? Para não
podermos escapar. Depois íamos trabalhar, uma hora e
meia à ida e à volta”, salienta. “A toda a hora,
cheirávamos o fumo dos crematórios. Todos os dias,
entre 15 e 20 pessoas eram cremadas. Os fornos eram
tão sofisticados que destruíam até os ossos, nada ficava
intacto. À noite, só paravam durante quatro horas. Era
terrível não sabermos se seríamos nós a seguir, embora
eles pudessem matar-nos de muitas outras maneiras. Se
alguém olhasse ‘mal’ para ti, matava-te. Estive nessa
posição algumas vezes. Uma vez, a caminho do
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trabalho, íamos a contar anedotas, e uma SS — que
andava sempre com os seus pastores alemães atrás, a
que chamava Mein liebling [meus queridos] — irritou-se
por estarmos a rir. Quis saber qual era a piada. Retorqui:
‘Qual piada? Estar em Auschwitz não tem piada
nenhuma.’ Bateu-me de imediato, no peito, onde eu
tinha escondido um tubo de pasta de dentes debaixo da
camisa, que rebentou com a pancada. A pasta sujou-me
tudo, e para fúria dela ainda nos rimos mais.”

Libertação Prisioneiros de Buchenwald olham para o


fotógrafo, em abril de 1945. No dia 11 desse mês, o
campo de concentração foi tomado por forças
americanas lideradas pelo general Patton, pondo fim a
oito anos de terror, durante os quais passaram por

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Buchenwald cerca de 250 mil prisioneiros; mais de 56
mil morreram, entre eles 11 mil judeus ERIC
SCHWAB/AFP/Getty Images

Porém, tudo isto passou-se na segunda ida para


Auschwitz — porque a primeira Eddie soube contorná-la.
No comboio, usou as nove horas de viagem para abrir
um buraco no piso da carruagem e, a 10 quilómetros da
fronteira, em Estrasburgo, atirou-se para a linha férrea.
Demorou uma semana para chegar a Bruxelas, subindo
e pulando de comboios à noite, para descobrir que os
pais se tinham escondido fora da cidade ocupada pelos
nazis. Estavam no sótão de uma pensão, num cubículo
cedido pelo proprietário, e Eddie juntou-se a eles. Para
subsistirem em tempos de racionamento, arranjou um
trabalho que consistia em reparar as máquinas de uma
fábrica em troca de cigarros, que por sua vez eram
trocados num restaurante por alimentos. O pai deu
também guarida a três órfãos judeus da casa ao lado, e
assim decorreram 11 meses que ele reconhece, no seu
livro, como “a melhor altura da minha vida” —
“estávamos juntos”. Porém, no inverno de 1944,
acabaram por ser presos e metidos no comboio para
Auschwitz-Birkenau, numa carruagem sobrelotada na

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qual se mantiveram vivos graças a um sistema de
racionamento de água inventado pelo pai de Eddie. As
três crianças que a família acolhera não os
acompanharam: o pai conseguira escondê-las por trás
de uma parede falsa, e sobreviveram à guerra.

Em Auschwitz, eram “animais de trabalho”. De início,


Eddie foi destacado para limpar um depósito de
munições que tinha sido bombardeado; depois tornou-
se operário numa mina de carvão. Até que um dia
alguém se deu conta da sua aptidão técnica e colocou-o
sob a alçada da companhia química IG Farben,
fabricante do mortífero Zyklon B e uma das muitas
empresas alemãs que se serviam da mão de obra
escrava no complexo de campo de Auschwitz,
convertendo-o num “judeu economicamente
indispensável”. Isso significava salvar-se quando fosse
conduzido para as câmaras de gás — o que aconteceu
por três vezes. Como engenheiro da fábrica, responsável
por 200 máquinas que só ele conseguia reparar, teve um
pequeno acidente que acabaria por ser providencial.
Eddie identificou um instrumento que estava nas mãos
de um neurocirurgião e oficial das SS, que quis saber
como é que ele conhecia aquele dispositivo. O prisioneiro

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explicou que outrora o fabricava, e o SS atribuiu-lhe
novas funções: iria produzir uma mesa de operações
para neurocirurgia.

“Não falei sobre os campos, não disse aos meus filhos


que estive em Auschwitz. Se queria criar uma família o
mais normal possível, não podia falar disso”

Eddie ainda se surpreende com os ‘negócios’ —


mecanismos de sobrevivência — que fez dentro do
campo. “Tínhamos dinheiro, podíamos comprar
limonada, pasta de dentes, trapos e sabonete. Mas onde
guardá-los? Esse era o grande problema”, recorda. “Os
trapos, para nós, eram semelhantes ao ouro, eram
preciosos. Serviam para muitas coisas: para nos manter
quentes, para tratar feridas, para nos limparmos... Eu
fazia meias, porque era difícil andar com socas. Com o
metal das serras que os carpinteiros deitavam fora, eu
confecionava facas, que vendia para comprar comida ou
artigos de higiene. Noutro momento, encontrei uma
panela e passei a ferver as batatas cruas que os
prisioneiros médicos (havia muitos, dois em cada dez
judeus alemães eram médicos) recebiam como forma de
pagamento — ficava sempre com uma, um acrescento
para a minha alimentação.” Tal como Primo Levi o fez

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em “Se Isto É um Homem”, escrito em 1947, na
sequência da sua estadia em Auschwitz-Monowicz, Eddie
também observou a teia de colaboracionismo em que o
regime nazi assentava, mesmo entre os prisioneiros,
que cediam à possibilidade de obter o favor dos seus
opressores. “Sabe, isto acontecia, prisioneiros que eram
monstruosos, kapos judeus que enviavam gente para as
câmaras de gás. Mas eles eram igualmente vítimas. No
meu caso, fui sempre civilizado, agarrei-me aos meus
princípios, para não me perder a mim próprio”, salienta
ele.

Um dia, mais exatamente a 18 de janeiro de 1945, foram


acordados às 3h da manhã para marcharem rumo à
Alemanha. O exército russo estava demasiado perto e
os nazis não queriam deixar vestígios das suas
atrocidades. Eddie caminhou naquela que ficou
conhecida como a Marcha da Morte, pela floresta, em
pleno inverno polaco, com temperaturas inferiores a 20
graus negativos. Após três dias, nos quais 15 mil
prisioneiros morreram na intempérie, os restantes
acabariam em Buchenwald. Para ele, tratava-se de um
retorno ao primeiro campo onde estivera, e mais uma
vez a profissão protegeu-o. Quando um SS questionou

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se alguém ali sabia fabricar ferramentas, ele acusou-se,
o que ditou a sua transferência para o pequeno campo
de Sonnenburg, onde, por um daqueles acasos
inexplicáveis, o responsável tinha sido prisioneiro de
guerra junto de Isidore, o pai de Eddie, durante a
Primeira Guerra Mundial. Eddie teve direito a mais
comida, mais até do que o seu corpo minguado podia
suportar. “Estava tão faminto que não conseguia
comer”, diz. Mas a artilharia russa fechava um cerco
que, do outro lado, era controlado pelo exército norte-
americano, e uma nova evacuação atirou-os para a
estrada. Com a sua cabeça de engenheiro, Eddie
idealizou a fuga, guardando tampas de barris de madeira
que, mais tarde, lhe serviram para se cobrir depois de
se encerrar no interior de um dos tubos de drenagem
que atravessavam a estrada. Metido nesse buraco,
adormeceu. Acordou com as tampas crivadas de balas.
Saiu, não viu ninguém. Rastejou, dormiu ao relento,
tentou apagar a tatuagem com uma pedra lascada,
alimentou-se de lesmas e caracóis, até que um tanque
americano o recolheu e o depositou num hospital,
doente com cólera, febre tifoide e uns escassos 28
quilos. “Deram-me 65% de hipóteses de morrer e 35%
de viver.” Ele viveu.
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Memória A entrada para o campo de concentração de
Auschwitz-Birkenau, na Polónia getty images

Sendo um dos milhares de refugiados que no pós-guerra


deambulavam pela Europa à procura de um futuro,
escolheu ir para a Bélgica. Mas já não se sentia em casa
na Europa. Da sua família não restava quase ninguém,
e o antissemitismo ainda grassava um pouco por toda a
parte. Arranjou emprego a fazer ferramentas
ferroviárias, reencontrou a irmã, cruzou-se na rua com
um dos kapos mais cruéis do campo. Este era o cenário
quando Flore, uma belga judia com raízes em Salónica e
de origem sefardita, o atendeu no balcão da Câmara
Municipal onde Eddie tinha ido buscar as senhas de
racionamento. Para ele, “foi amor à primeira vista”. “É a
melhor cozinheira, a melhor esposa, tem sangue quente,
por vezes grita um bocado, mas eu não respondo. Duas
horas depois pede-me desculpas.” Casaram-se em abril
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de 1946 e estão juntos desde então. Podiam ter ido para
o Canadá, mas o frio orientou-os para as terras mais
cálidas da Austrália. A condição de sobrevivente levou
Eddie a ter uma vida ativa na defesa de algumas causas.
“Protestei à porta da embaixada dos EUA, com os meus
dois filhos, contra a guerra do Vietname. À minha volta
só havia chineses e vietnamitas. Quando Timor-Leste foi
invadido, havia 25 mil timorenses aqui em pequenos
campos, fui lá três vezes, disse-lhes para não perderem
a esperança. Que iam ter o seu país de volta. E quando
Timor foi libertado convidaram-me para lá ir.”

O único sítio do mundo para onde não vai é a Alemanha:


“Não posso e não vou perdoar nem esquecer. De dois
em dois anos sou convidado para ir a Leipzig, para duas
semanas no melhor hotel, com voos em primeira classe,
e eu digo que não. Por razões pessoais, não posso ir.
Quando saí da Alemanha prometi que daí em diante
nunca, mas nunca colocaria um pé de novo em solo
alemão. E nunca quebrei esta promessa. A cada cinco
anos vou para França e Bélgica. Três amigos alemães
encontraram-se comigo na Bélgica, na França e na
Suíça. Tenho muitos amigos alemães aqui, em Sydney,
bons amigos, não me fizeram nada de mal.”

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Eddie não odeia, segundo ele isso é algo que não nos
podemos permitir. “O ódio é sempre o preâmbulo de
acontecimentos muito malignos.” Diz que “um homem
só é um homem se sabe o que está certo e o que está
errado”. Por isso escreveu o livro. Por isso teve esta
conversa. “Está nas nossas mãos aquilo que os nossos
filhos irão odiar ou não: se eu disser que odeio
muçulmanos, ou judeus, eles também o farão.” Aos 101
anos, o sobrevivente do Holocausto mais velho do
mundo ainda tem tempo para dizer que, se existem
negacionistas, talvez o mundo não tenha discutido o
suficiente a terrível herança da Segunda Guerra Mundial
— o genocídio dos judeus. “Onde é que essas pessoas
pensam que foram parar seis milhões? Quem é que me
fez esta tatuagem? Como é que acham que morreram
os meus pais, os meus tios, os meus amigos?”

“E porquê?”

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