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bisnetos”, explica aquele que é neste momento o mais
idoso sobrevivente do Holocausto do mundo num inglês
com acento alemão que lhe denuncia a origem e no qual
se intrometem algumas palavras em francês — a língua
que fala em casa. Não espere o leitor, portanto, uma
história triste. A sua é a história de alguém que
contrariou a morte para a qual estava destinado, o relato
de quem voltou a ter um nome depois de ter sido o
número 172338: “Se não acredita em milagres, olhe
para mim. Sou um milagre. Deveria ter morrido e não
morri. E desfrutei cada momento, cada dia é
maravilhoso, porque eu era suposto ter morrido há 75
anos.”
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ser cidadão alemão: “Considerávamo-nos alemães em
primeiro lugar, alemães em segundo lugar, e só a seguir
judeus. Ser judeu era a minha religião, não a minha
nacionalidade. Há judeus da Índia, e eu não tenho nada
a ver com eles. As pessoas cometem o erro de achar que
ser judeu é uma nacionalidade, mas não é.” Mesmo
assim, a família seguia as tradições, a ida à sinagoga à
sexta, no início do Shabbat, seguida do grande jantar
com as iguarias e o pão cerimonial challah confecionados
pela mãe. “Ficávamos à mesa no mínimo uma hora e
meia, conversávamos muito”, recorda hoje.
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liceu que frequentava, o Leibniz Gymnasium, foi
contornada por meio dos contactos do pai, graças aos
quais conseguiu matricular-se na Faculdade de
Engenharia Mecânica em Tuttlingen, a nove horas de
Leipzig. Tratava-se, como refere Eddie Jaku no seu livro,
do “epicentro mundial da tecnologia”, onde se construía
“todo o género de máquinas incríveis” e ao qual o jovem
só teve acesso com documentação falsa e o nome de um
órfão alemão desaparecido: Walter Schleif. Eddie
ocupou a vaga na faculdade e ali se manteve durante
cinco anos, a pernoitar num orfanato próximo, longe da
família e, sobretudo, da sua origem judaica.
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não pelas melhores razões. Chegou a casa, abriu a porta
com a sua chave, a cadela veio cumprimentá-lo, mas
dos pais e da irmã não havia sinal. Nem houve depois
de adormecer de exaustão na sua cama de infância.
Acordou às 5h da madrugada porque alguém batia à
porta com violência. Apressou-se a abrir. “Isto nunca irá
sair-me da mente”, diz hoje. Dez nazis irromperam pela
casa adentro, a destruir tudo e a espancá-lo
brutalmente. Um deles tirou a baioneta e quase
completou a tarefa de lhe desenhar uma suástica no
braço, não fosse a cadela saltar-lhe em cima. Com a
mesma baioneta, o nazi atravessou o animal, gritando:
“Cão judeu.”
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Nessa noite, que ficou conhecida como a Noite dos
Cristais (Kristallnacht), todas as sinagogas da Alemanha
— mais de mil — foram destruídas pelas forças
paramilitares nazis, assim como as lojas e as casas dos
judeus. Eddie viu a sua, com 200 anos de existência,
que pertencera aos avós e aos bisavós, ser incendiada à
sua frente. Ele não esteve entre os 40 mil judeus
alemães que morreram, mas sim entre os mais de 30
mil que nessa noite foram detidos e mandados para
campos de concentração. Ao recordar o pogrom, o que
ainda mais o perturba é o comportamento dos “cidadãos
comuns”: “Vi os nossos amigos, vizinhos que já o eram
antes de eu nascer, participar da violência e dos saques.
Isso fez-me sentir uma vergonha profunda. Como é
possível que isto tenha acontecido no país de Schiller e
de Goethe, de Beethoven e de Bach?” Metido num
camião com o pijama coberto do seu próprio sangue,
desencontrado dos pais, foi levado para o campo de
Buchenwald, sobrelotado, sem utensílios básicos como
colheres ou papel higiénico, com uma só latrina gigante
para 25 homens e execuções aleatórias todas as
manhãs.
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Buchenwald mostrou-lhe até que ponto a sua Alemanha
civilizada ficara para trás, substituída por uma outra
“sem moral, sem respeito e sem dignidade humana”.
Porém, mesmo aí encontrou uma mão estendida. Foi o
caso do soldado nazi que resultou ser um vizinho da
pensão onde vivia nos tempos de estudante e, admirado
por ele ser judeu — conhecia-o como Walter Schleif —,
intercedeu em seu favor junto do comandante do
campo. Ao saber que o prisioneiro tinha formação
técnica, contrataram-no para trabalhar numa fábrica
aeronáutica em Dessau. Eddie aproveitou para indagar
sobre o paradeiro dos pais, que após um período
escondidos na casa de uma tia a 50 quilómetros de
Leipzig tinham regressado à cidade. Chegou a um
acordo: o pai iria buscá-lo para o levar à nova morada,
com paragem em Leipzig para rever a mãe. Mas o pai
não seguiu esse itinerário. Conduziu ate à fronteira,
perseguindo o plano de os quatro membros da família se
reunirem na Bélgica. Junto a outros refugiados e a pé,
chegaram à raia entre a Holanda e aquele país, onde,
em Bruxelas, a família havia alugado um apartamento.
Não chegaram a encontrar-se. A mãe e a irmã foram
presas em Leipzig durante três meses e só então
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rumaram à capital belga. E, nessa altura, Eddie já tivera
outra sorte.
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Vestígios Eddie Jaku, nascido em Leipzig em 1920, traz
na pele a marca dos campos de concentração: o número
172338, tatuado no seu braço esquerdo Louise
Kennerley/The Sydney Morning Herald/Getty Images
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palavras para falar do que viu. Eddie refugiou-se num
silêncio obstinado que só quebrou em 1972, 30 anos
depois. “Não falei sobre os campos, não disse aos meus
filhos que estive em Auschwitz. Se queria criar uma
família o mais normal possível, não podia falar dos
campos aos meus filhos. O meu filho mais velho parece-
se com o meu pai, e tentei falar com ele, mas vim-me
abaixo. Não pude falar, porque os meus pais tiveram a
morte mais horrível, na câmara de gás. 1500 pessoas
morriam lá a cada hora. Até morrerem, levava 20
minutos. As pessoas sufocavam. Uma morte terrível,
não se faz ideia”, vai narrando. “Em 1972, eu e um
grupo de sobreviventes decidimos começar a contar a
nossa história. Se não fôssemos nós, quem iria dizer ao
mundo o que aconteceu? Desde então, uma vez por
semana vou falar a alguma escola ou instituição. A quem
quiser ouvir. No início intrigava-me a razão por que
sobrevivi. Percebi que, enquanto sobrevivente, tinha
uma responsabilidade.” Os filhos acabaram por
descobrir a história do pai numa dessas conferências.
Mas ainda hoje o assunto nunca foi tocado “cara a cara”,
numa conversa pessoal.
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Auschwitz despertou em Eddie Jaku uma pergunta
abissal: “Porquê?” Pergunta que encarou “como um
problema de engenharia que tivesse de resolver”. Talvez
por ser um especialista em máquinas, esforçou-se por
compreender a lógica interna do campo, o modo como a
engrenagem mortal deste funcionava. Por isso, a
memória reteve sobretudo os expedientes a que os
prisioneiros recorriam para aguentar mais um dia.
“Dormíamos dez pessoas nuas em cada camarata,
coladas umas às outras, devido aos 25 graus negativos,
e a meio da noite tínhamos de puxar os de fora, o
primeiro e o décimo, para o meio dos outros — caso
contrário congelavam. Todas as noites perdíamos uns
quantos. Sabe porque é que dormíamos nus? Para não
podermos escapar. Depois íamos trabalhar, uma hora e
meia à ida e à volta”, salienta. “A toda a hora,
cheirávamos o fumo dos crematórios. Todos os dias,
entre 15 e 20 pessoas eram cremadas. Os fornos eram
tão sofisticados que destruíam até os ossos, nada ficava
intacto. À noite, só paravam durante quatro horas. Era
terrível não sabermos se seríamos nós a seguir, embora
eles pudessem matar-nos de muitas outras maneiras. Se
alguém olhasse ‘mal’ para ti, matava-te. Estive nessa
posição algumas vezes. Uma vez, a caminho do
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trabalho, íamos a contar anedotas, e uma SS — que
andava sempre com os seus pastores alemães atrás, a
que chamava Mein liebling [meus queridos] — irritou-se
por estarmos a rir. Quis saber qual era a piada. Retorqui:
‘Qual piada? Estar em Auschwitz não tem piada
nenhuma.’ Bateu-me de imediato, no peito, onde eu
tinha escondido um tubo de pasta de dentes debaixo da
camisa, que rebentou com a pancada. A pasta sujou-me
tudo, e para fúria dela ainda nos rimos mais.”
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Buchenwald cerca de 250 mil prisioneiros; mais de 56
mil morreram, entre eles 11 mil judeus ERIC
SCHWAB/AFP/Getty Images
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qual se mantiveram vivos graças a um sistema de
racionamento de água inventado pelo pai de Eddie. As
três crianças que a família acolhera não os
acompanharam: o pai conseguira escondê-las por trás
de uma parede falsa, e sobreviveram à guerra.
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explicou que outrora o fabricava, e o SS atribuiu-lhe
novas funções: iria produzir uma mesa de operações
para neurocirurgia.
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em “Se Isto É um Homem”, escrito em 1947, na
sequência da sua estadia em Auschwitz-Monowicz, Eddie
também observou a teia de colaboracionismo em que o
regime nazi assentava, mesmo entre os prisioneiros,
que cediam à possibilidade de obter o favor dos seus
opressores. “Sabe, isto acontecia, prisioneiros que eram
monstruosos, kapos judeus que enviavam gente para as
câmaras de gás. Mas eles eram igualmente vítimas. No
meu caso, fui sempre civilizado, agarrei-me aos meus
princípios, para não me perder a mim próprio”, salienta
ele.
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se alguém ali sabia fabricar ferramentas, ele acusou-se,
o que ditou a sua transferência para o pequeno campo
de Sonnenburg, onde, por um daqueles acasos
inexplicáveis, o responsável tinha sido prisioneiro de
guerra junto de Isidore, o pai de Eddie, durante a
Primeira Guerra Mundial. Eddie teve direito a mais
comida, mais até do que o seu corpo minguado podia
suportar. “Estava tão faminto que não conseguia
comer”, diz. Mas a artilharia russa fechava um cerco
que, do outro lado, era controlado pelo exército norte-
americano, e uma nova evacuação atirou-os para a
estrada. Com a sua cabeça de engenheiro, Eddie
idealizou a fuga, guardando tampas de barris de madeira
que, mais tarde, lhe serviram para se cobrir depois de
se encerrar no interior de um dos tubos de drenagem
que atravessavam a estrada. Metido nesse buraco,
adormeceu. Acordou com as tampas crivadas de balas.
Saiu, não viu ninguém. Rastejou, dormiu ao relento,
tentou apagar a tatuagem com uma pedra lascada,
alimentou-se de lesmas e caracóis, até que um tanque
americano o recolheu e o depositou num hospital,
doente com cólera, febre tifoide e uns escassos 28
quilos. “Deram-me 65% de hipóteses de morrer e 35%
de viver.” Ele viveu.
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Memória A entrada para o campo de concentração de
Auschwitz-Birkenau, na Polónia getty images
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Eddie não odeia, segundo ele isso é algo que não nos
podemos permitir. “O ódio é sempre o preâmbulo de
acontecimentos muito malignos.” Diz que “um homem
só é um homem se sabe o que está certo e o que está
errado”. Por isso escreveu o livro. Por isso teve esta
conversa. “Está nas nossas mãos aquilo que os nossos
filhos irão odiar ou não: se eu disser que odeio
muçulmanos, ou judeus, eles também o farão.” Aos 101
anos, o sobrevivente do Holocausto mais velho do
mundo ainda tem tempo para dizer que, se existem
negacionistas, talvez o mundo não tenha discutido o
suficiente a terrível herança da Segunda Guerra Mundial
— o genocídio dos judeus. “Onde é que essas pessoas
pensam que foram parar seis milhões? Quem é que me
fez esta tatuagem? Como é que acham que morreram
os meus pais, os meus tios, os meus amigos?”
“E porquê?”
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