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Zelensky

a voz humana

SERGEI SUPINSKY/AFP via Getty Images

Saiu dos palcos para entrar num bunker. Calou os mais


altos líderes mundiais para dar voz a 43 milhões de
pessoas. O silêncio do Presidente ucraniano vale um país

texto CHRISTIANA MARTINS E LUCIANA LEIDERFARB

Em maio de 2019, no discurso de posse após uma vitória


com 73% dos votos nas eleições presidenciais
ucranianas, Volodymyr Zelensky afirmou que a primeira
tarefa do executivo seria conseguir um cessar-fogo no
Donbas, a região a leste do país em conflito com a
Rússia. “Estou disposto a perder a minha popularidade
e, se for necessário, o meu cargo para estabelecer a
paz”, arriscou dizer, prometendo que, nos cinco anos
seguintes, tudo faria para que os ucranianos não
chorassem. Falhou. Em março de 2022, apesar de se ter
tornado um símbolo de resistência perante uma invasão
mundialmente repudiada, Zelensky não cumpriu a sua
missão. E se o ocidente hoje fixa nele os holofotes,
descobrindo-o no fundo de uma cave, algures em Kiev,
isso acontece pelo que ele próprio considera serem as
piores razões. Os ucranianos estão a morrer, a fugir ou
a voltar para lutar perante uma das maiores forças
militares do planeta. Cerca de duas semanas após a
invasão russa da Ucrânia, o mundo já percebeu, entre o
melancólico e o atónito, que aquela é uma luta perdida,
aconteça o que acontecer. Porque nesta guerra que
Zelensky enfrenta lado a lado com o seu povo, no meio
de uma Kiev assolada e cercada, não haverá
vencedores. E todos temem as consequências de vir a
faltar essa voz rouca que todos os dias tem falado de
frente, apelando à união de um país que há anos tenta
escrever a sua própria história.

Volodymyr Zelensky cavou o seu espaço na geopolítica


internacional. É um herói improvável, e poucos
esquecerão o momento em que, perante o silêncio dos
membros da União Europeia entre os quais gostaria de
estar, recordou que aquela podia ser a última vez que o
encontrariam vivo. Em todos os discursos surge para
fazer a profissão de fé de que continua de pé, de que
está com os ucranianos, de que está na sua terra.
Amadureceu na função presidencial e lembrou ao mundo
a têmpera de que são feitos os líderes. “O inimigo
marcou-me como alvo nº 1. A minha família é o alvo nº
2”, asseverou. Ninguém o contradisse. No sexto dia da
invasão que começou a 24 de fevereiro, quando as
imagens de destruição em diferentes zonas da Ucrânia
eram difundidas com a velocidade que só as sociedades
tecnológicas do presente permitem, ele disse no seu
característico tom baixo ao Parlamento Europeu as
palavras que quase provocaram o pranto do intérprete
que traduzia o vídeo da sua intervenção para o inglês:
“Provem que não nos deixam cair. Provem que são
mesmo europeus e então a vida vencerá a morte, e a
luz vencerá a escuridão.”

Ao filmar-se a caminhar pelas ruas da capital, sem colete


antibalas e dirigindo-se diretamente aos ucranianos com
frases como “ainda estamos aqui” ou “não quero que a
história da Ucrânia seja uma lenda sobre 300
espartanos”, Zelensky mostra que é um homem do seu
tempo. Aos 44 anos, o seu estilo contrasta com o de
Vladimir Putin, de 69, que profere pomposos discursos
de olhar posto na sua interpretação do passado. O
Presidente ucraniano opta por vídeos com poucos
minutos de duração, vocabulário simples e sintético.
“Não temos tempo para longas aulas de história”,
ironizou perante uma das preleções de Putin num post
no Instagram, uma das suas plataformas favoritas, onde
tem 14 milhões de seguidores (a outra é o YouTube).
Num país com 16% de jovens e apenas 17% de idosos
— e em que a idade média da população é de 41 anos
— o modo e o meio de comunicar não são detalhes
despiciendos. Zelensky fala como a maioria. Representa
literalmente o “homem da rua”, como notou a Al-
Jazeera, é casado com uma mulher bonita e tem dois
filhos, e uma bagagem que em nada se assemelha ao
pesado establishment político que tem governado o país
nas três décadas que se seguiram à dissolução do bloco
soviético e à independência, em 1991.

Guerra Depois de prometer o fim do conflito com a


Rússia no Donbas, Zelensky visitou a região em 2021.
Hoje, é o rosto de uma Ucrânia invadida e um alvo a
abater. E já está a ser pensada a sua sucessão Ukrainian
Presidency/Handout/Anadolu Agency via Getty Images

Não é por acaso que, no seu programa eleitoral,


Zelensky tenha privilegiado a integração na NATO e na
União Europeia. Um olhar rápido pela história recente do
país revela que, para a maior parte dos ucranianos,
esses são passos obrigatórios para que o futuro não se
assemelhe ao passado. E já mostraram estar dispostos
a lutar por isso. Em 2013, depois de o Presidente pró-
russo Viktor Yanukovych frustrar um prometido acordo
de comércio com a UE, estalou uma revolta popular hoje
conhecida como Revolução da Dignidade ou Euromaidan
— por ter a praça de Maidan, em Kiev, como centro
nevrálgico — na qual à concentração pacífica da
população a polícia respondeu com violência. Os
ucranianos não só não capitularam como se
manifestaram ininterruptamente durante três meses,
afluindo de todas as regiões. Ao todo, morreram quase
200 pessoas e 2 mil ficaram feridas. Mas o governo de
Yanukovych caiu e convocaram-se eleições, nas quais
Petro Poroshenko — oligarca com participação em
holdings do chocolate à comunicação social, considerado
uma das dez pessoas mais ricas da Ucrânia — obteve
54% dos votos e ocupou a cadeira do poder. De
imediato, a Rússia ‘vingou’ o líder deposto com a invasão
da Crimeia, em 2014. A Ucrânia, cujo nome vem do
eslavo krai (terras da fronteira), e que em tempos fora
conhecida como a Rússia Pequena, não conseguia deixar
de o ser. Toda a argumentação de Putin para invadir o
país vizinho prende-se com a ideia, por ele defendida
num ensaio divulgado em 2021, de que russos e
ucranianos “são o mesmo povo” e de que a Ucrânia,
longe de ser um Estado, foi roubada à União Soviética.

Outro pretexto do Presidente russo para esta invasão foi


o da necessidade de ‘desnazificar’ a Ucrânia. Porém,
além de o Pew Research Center ter concluído em 2018
que este é o país da Europa central e do leste com
melhor aceitação dos judeus, e além de a extrema-
direita ter apenas conseguido 2% dos votos nas eleições
do ano seguinte, a Ucrânia tem mais um argumento de
peso para apresentar a Putin: o próprio Presidente, o
judeu Volodymyr Zelensky.

Russo, judeu e comediante: o outsider

O primeiro judeu a ocupar o mais alto cargo político, faz


parte de uma minoria que não ultrapassa as 140 mil
pessoas. A sua família sobreviveu aos pogroms
anteriores à II Guerra Mundial; à razia nazi avalizada
pelo colaboracionismo ucraniano, que matou 1,5
milhões de judeus; e à emigração maciça de judeus nos
anos 70, pressionados pelos soviéticos. “Historicamente
falando, torna-se um pouco difícil argumentar, com um
mínimo de plausibilidade, como o senhor Putin faz, que
a Ucrânia é liderada por nazis”, diz ao Expresso o jurista
Philippe Sands, autor do livro “Este-Oeste”, sobre o
conceito de genocídio.

É a origem judaica que explica o local de nascimento de


Zelensky — em Krivyi Rih, no centro do país, uma cidade
metalúrgica russófona, fundada pelos cossacos e situada
na única região onde, durante o Império Russo, era
permitido aos judeus viverem. Filho de Oleksandre,
professor de matemática e computação, e de Rimma,
uma engenheira, os seus tios morreram no Holocausto
e o avô foi coronel do exército vermelho. Volodymyr
falou russo, a língua de comunicação em casa, muito
antes de falar o ucraniano. Teve o que ele próprio
denomina de uma “educação judaica comum no período
soviético”, ou seja, sem professar a religião.

Ganhou uma bolsa para estudar em Israel mas os pais


opuseram-se à viagem e, numa entrevista em 2018,
disse estar-lhes grato por o terem educado em Krivyi
Rih, onde estão enterrados os seus antepassados.
Estudou Direito ainda que nunca exercesse a profissão,
embora sonhasse ser diplomata. Para surpresa da
família, o seu caminho infletiu numa direção totalmente
diferente ao converter-se num comediante, algo que
sempre levou muito a sério. O pai confidenciaria à “New
Yorker”: “Resisti, mas não muito. Via-se que ele estava
envolvido e que gostava daquilo. Encontrou-se a si
mesmo, e isso é ótimo.” Eram os tempos pós-
independência, a cidade estava em declínio e muitos
jovens caíam em desgraça. O seu modo de escapar a
essa tendência foi o humor, tendo ajudado a fundar, aos
19 anos, o coletivo de comédia Kvartal 95, que mais
tarde daria origem a uma produtora de televisão com o
mesmo nome. Competitivo e ambicioso, ganha uma
edição do “Dança com as Estrelas”, participa numa mão-
cheia de filmes, grava a voz do urso Paddington. Quem
o conheceu nesta altura, garante que Zelensky era um
workaholic e que apreciava trabalhar em equipa. Dizia-
se influenciado pelos Monty Python, mas foi comparado
com Benny Hill.

“Estou disposto a perder a minha popularidade e, se for


necessário, o meu cargo para estabelecer a paz”,
arriscou dizer Zelensky

Em 2013, durante os meses sangrentos do Euromaidan,


Zelensky e o seu grupo caricaturavam a repressão
policial no programa de televisão “Evening Kvartal” —
cuja dinâmica o aproximava do “Saturday Night Live”
americano — a partir da sede, em solo russo, da sua
lucrativa produtora. Porém, quando a Rússia ocupa a
Crimeia em 2014, ele doa dinheiro ao exército ucraniano
e mais tarde apoia um batalhão de voluntários que
lutava no Donbas, numa tomada de posição clara que o
obriga a regressar ao seu país. Instala os escritórios da
Kvartal 95 nos três últimos andares de um arranha-céus
perto do centro de Kiev, com vista panorâmica sobre a
cidade, e esforça-se por dominar a língua ucraniana,
nunca conseguindo apagar o sotaque russo. Acima de
tudo, começa a escrever “Servant of the People”, a série
que o catapulta para o estatuto de celebridade e que o
leva mais longe no campo da sátira política. Aqui, como
se a realidade pudesse imitar a ficção — e não ao
contrário —, encarna o papel de um professor de História
do liceu, com os seus 30 anos, chamado Vasyl Petrovych
Holoborodko, que é filmado por um aluno enquanto
discursa contra a corrupção do seu país. O vídeo torna-
se viral e acaba por conduzi-lo à presidência da Ucrânia.
Numa cena emblemática, Holoborodko recebe uma
chamada da então chanceler alemã, Angela Merkel, que
lhe comunica a decisão de permitir a entrada da Ucrânia
na UE e lhe dá os parabéns. O presidente fica eufórico,
mas logo se apercebe que se tratava de um erro e que
Merkel, na verdade, pretendia ligar para o Montenegro.

A série não tardou a chamar a atenção da Netflix e de


vários canais televisivos fora da Ucrânia. E não é
exagerado dizer que Zelensky enriqueceu, ao ponto de
à pergunta de um jornalista sobre se é um homem rico,
ele responder: “Claro, tenho tudo.” Mas a consequência
mais importante foi ter emprestado o nome ao partido
que a produtora Kvartal 95 fundou e registou em 2018.
“Comecei por gozar com os políticos e a parodiá-los, e
ao fazer isso, ia mostrando que tipo de Ucrânia gostaria
de ver. Depois veio a série, na qual fazia o papel de
presidente. Ok, então eu não podia ser realmente
presidente, mas podia representá-lo... A dado momento
percebi que havia uma hipótese”, contaria Zelensky.
Estava-se à porta das eleições de 2019 e, de repente,
ao tom nacionalista e passadista do oponente
Poroshenko — cujo slogan de campanha era “Exército,
língua, fé” —, opunha-se o impulso aspiracional,
informal e contemporâneo de um novo candidato de 41
anos que não pertencia à elite burocrata com fortes laços
à oligarquia que havia governado o país nas últimas três
décadas. Um outsider que anunciou, exatamente no dia
de ano novo, a candidatura no seu programa de
televisão, sem sequer antes contar à mulher, a guionista
Olena Zelenska.

Política 2.0

A forma como o novo partido organizou o seu programa


trouxe para a política um método totalmente diferente
do utilizado até então. A equipa começou por retirar das
redes sociais as ideias dos seus seguidores, dando desde
logo aos seus oponentes o pretexto para criticar a falta
de visão estratégica própria. Mas Zelensky pretendia
basear-se no modo como as pessoas desejavam ser
governadas, em vez de lhes impor um ponto de vista. E,
de facto, em janeiro de 2019, no centro da recém-
lançada plataforma política estava um dos requisitos
centrais apontados pelos apoiantes: usar sempre que
possível a ferramenta dos referendos públicos,
sobretudo por meio da internet, para determinar a
agenda e os rumos da governação.

Ao longo da campanha deu poucas entrevistas e serviu-


se quase exclusivamente da web para comunicar a sua
mensagem, não só pacifista como pró-aborto, pró-
distribuição gratuita de canábis e a favor de legislar a
prostituição e o jogo. “Quero ser um presidente como
Vasyl Holoborodko [a sua personagem], com os mesmos
valores morais. As pessoas foram alimentadas pelo
establishment e querem algo de novo”, anunciou, citado
pelo “The Guardian”. Ao Expresso, a ex-eurodeputada
Ana Gomes, que em 2019 integrou a missão europeia
que acompanhou as eleições na Ucrânia, diz que o
crescimento de Zelensky “não foi surpreendente”. “Ele é
jovem e o movimento de aproximação da Ucrânia à
Europa é um desejo de gente jovem, que conhece a
história soviética, mas que também conhece a diferença
de nível de vida em países como a Polónia e a Roménia.
Zelensky é desta geração.”

Poder Mal chegou ao cargo, Zelensky quis mudar a sede


da presidência, mas não conseguiu Laurent Van der
Stockt for Le Monde/Getty Images

Qual troupe de atores ambulantes, Zelensky e a sua


equipa viajaram pelo país, elaborando vídeos curtos e
eficazes. Fez, por exemplo, uma visita guiada à cidade
de Lviv, hoje o local de passagem para tantos ucranianos
a fugirem da guerra, na qual pronunciava frases no
dialeto local. No final da digressão, em Dnipro, largou a
câmara e dirigiu-se à multidão que o rodeava: “É como
se nos últimos 28 anos tivéssemos estado a viver numa
floresta escura. Mas nós podemos fazer isto juntos e
deixar a escuridão para trás.” Pediu para acenderem as
luzes dos telemóveis: “A 31 de março, levantem os olhos
e procurem a luz.”

O tipo engraçado da televisão, que chegou a baixar as


calças e a fingir tocar o piano com o pénis, ao som de
uma tradicional canção judaica, dava lugar ao quase-
messias que se erguia contra a oligarquia e a corrupção,
prometia cessar a guerra no Donbas em cinco anos e
entrar na NATO e na UE. Os críticos centraram-se no
facto de ele ser russófono — “é fraco, não tem religião
nem nacionalidade”, acusou o comentador russo Sergey
Parkhomenko. Outros apontaram, e ainda apontam, as
suas ligações ao oligarca ucraniano Ihor Kolomoisky,
com negócios nos metais, aviação, bancos, energia, mas
acima de tudo dono do 1+1, o canal que emitia “Servant
of the People” e que promoveu a campanha eleitoral de
Zelensky. Kolomoisky, que está a ser investigado por
corrupção pelos Estados Unidos, fugiu para a Suíça e
depois para Israel. Duas semanas antes das eleições, a
imprensa ucraniana publicou provas de que Zelensky
teria também viajado 13 vezes para Genebra e para
Telavive, num avião privado. O atual Presidente
ucraniano negou esta relação, argumentando que os
encontros com o oligarca visavam financiar projetos
urbanos e sociais. “Tens 2 mil milhões de dólares? Ok, 1
milhão vai para pavimentar ruas. É assim que se deve
falar com eles.”

“Este não é um lugar para uma pessoa normal, as


paredes estão repletas do simbolismo dos últimos 30
anos. Apetece lavá-las com as próprias mãos”, foi o
primeiro desejo do chefe de Estado

Na primeira volta eleitoral, Zelensky ficou em primeiro


lugar, com 30% dos votos, deixando Poroshenko em
segundo, com apenas 16%. Isto deu margem a Zelensky
para afirmar, no debate final entre ambos, ocorrido no
imponente estádio olímpico de Kiev: “Eu sou a
consequência dos teus erros.” O resultado da segunda
volta pareceu dar-lhe a razão, com 73% dos votos e a
primeira vez na história do país que um presidente
atinge um tal consenso sem a necessidade de fazer
acordos com outros partidos. Mas ele, que se afirmava
como um não-político, mostrou logo que dominava o
assunto, antecipando as eleições parlamentares na sua
tomada de posse. Sendo o servant of the people
minoritário nesta assembleia, a jogada deu frutos,
outorgando-lhe a maioria parlamentar. Putin não o
cumprimentou pela vitória. Antes, questionou a sua
legitimidade e reiterou que a entrada na NATO era uma
“linha vermelha”.

Um dos seus primeiros desejos enquanto chefe de


Estado foi mudar a morada presidencial, situada na Rua
Bankova e reminiscência do estalinismo, para um espaço
menos aparatoso, mas não o conseguiu. “Este não é um
lugar para uma pessoa normal, as paredes estão
repletas do simbolismo dos últimos 30 anos.
Representam o local que conduziu o nosso país à
condição em que se encontra hoje. Apetece lavá-las com
as próprias mãos”, disse ao repórter da “New Yorker”,
em 2019. Porém, impôs logo algumas ruturas
simbólicas, como reduzir a frota presidencial a dois
carros sem sirene e alterar o conteúdo de uma das
celebrações mais relevantes para os ucranianos, o Dia
da Independência. Em vez da tradicional parada militar
de tanques e porta mísseis, que considerou “pomposa e
cara”, implementou uma Marcha da Dignidade,
convidando atletas, médicos e professores. Quem lá
esteve descreve um quadro em que Volodymyr e Olena,
a mulher e “melhor amiga”, desciam a rua ladeados
pelos filhos, Oleksandra e Kyrylo, ao som dos sinos das
igrejas.
Família Ao lado da mulher e dos filhos, tem na testa o
símbolo do super-herói que o mundo ocidental quer
rever nele d.r.

Na arena política internacional, as primeiras impressões


foram mais reservadas. Há uma semana, o “New York
Times” recordava o batismo de fogo de Zelensky no
embate com Donald Trump, explicando como “ambos
interpretaram o papel de líderes em programas de TV e
depois se tornaram líderes na vida real, usaram as redes
sociais para ganhar poder e ambos tiveram shows de
atuação insólitos”, mas, chegados ao poder, separaram-
se, com “Trump a tentar derrubar a democracia
americana e Zelensky a tentar salvar a democracia
ucraniana”.

Pouco depois de ter assumido a presidência, Zelensky


foi contactado pelo advogado pessoal de Trump, Rudy
Giuliani, que iniciou uma campanha de pressão para
forçar uma investigação a uma empresa de gás
ucraniana associada ao filho de Joe Biden, Hunter, como
parte de um aparente esforço para enfraquecer o
opositor. Três dias após o telefonema de Giuliani,
Zelensky recebeu outro do próprio Donald Trump,
pedindo que a Ucrânia lhe fizesse “um favor”. Zelensky
esquivou-se como pôde, assegurando que escolheria um
procurador-geral “100% de confiança”. A resposta
evasiva deixou Trump insatisfeito ao ponto de o levar a
reter os 400 milhões de dólares previstos para ajuda
militar à Ucrânia. O pedido de Trump — “I would like you
to do us a favor” — viria a tornar-se uma das tiradas
memoráveis no seu posterior processo de impeachment.
A revista “Time”, que acompanhou Zelensky na sua
visita ao Donbas em 2021, relata a calma com que
abordou as tropas ucranianas ali destacadas. Levado ao
local onde três soldados foram mortos — segundo o
general Ruslan Khomchak, ali presente, “a sangue frio”
—, o Presidente não prometeu retaliação. Apenas disse:
“Para alguns, isso significaria que somos tipos duros.
Para outros, que os filhos não voltarão a casa.” Não é de
admirar, portanto, que um ano depois, logo no início da
invasão russa, tenha enviado uma mensagem a pedir às
mães daquele país que fossem buscar os filhos
capturados no campo de batalha. “A Ucrânia tomou a
decisão de devolver os prisioneiros de guerra às suas
mães se elas os vierem buscar”, podia ler-se.

Homem de uma só identidade no centro das duas


culturas, o Presidente ucraniano pôs a circular um vídeo
no YouTube no qual afirma ser errado o cancelamento
da cultura russa: “Como pode alguém odiar a cultura,
qualquer que ela seja? Os vizinhos devem enriquecer-se
mutuamente.” Essa tem sido igualmente a posição do
embaixador ucraniano na ONU, que expressou tristeza
pelos soldados russos a morrerem na guerra. Sergeiy
Kylytsya tem em comum com Zelensky a linguagem sem
artifícios, como aquele momento em que comparou
Putin a Hitler ou outro em que disse “não há purgatório
para os criminosos de guerra, vão diretamente para o
inferno”.

Para a estrutura do Governo, Zelensky levou vários


colegas do passado. Muitos são ex-associados do Studio
Kvartal 95, outros apenas amigos fiéis, quase todos da
mesma faixa etária, que partilham o estatuto de
outsiders. Entre os antigos funcionários da produtora
estão Andriy Yermak, atual chefe do OPU [Office of the
President of the Ukraine]; e Serhiy Trofimov e Yuriy
Kostyuk, ‘vices’ ou assessores diretos da presidência.
Sergey Shefir, amigo e coproprietário da Kvartal 95, é o
primeiro assistente e um dos seus principais confidentes,
assim como Ivan Bakanov, que é amigo de infância e
advogado da empresa. Segundo o Comité Eleitoral, mais
de 30 integrantes de Kvartal 95 foram nomeados para
cargos de topo.

1/3

Fiéis Equipa ucraniana que tenta negociar com a Rússia.


Em primeiro plano, o ministro da Defesa, Oleksii
Reznikov
MAXIM GUCHEK/BELTA/AFP via Getty Images

2/3

O presidente da Câmara de Kiev, Vitali Klitschko, é um


ex-pugilista que agarrou as armas para combater a
invasão GENYA SAVILOV/AFP via Getty Images
3/3

Nas Nações Unidas, a voz da Ucrânia é a de Sergiy


Kyslytsya Michael M. Santiago/Getty Images

Entre as restantes figuras da sua confiança estão


Mykhailo Podoliak, atual conselheiro do gabinete do
Presidente e líder das conversações com a Rússia, e
Davyd Arakhamiya, economista, empresário e líder do
partido Servant of the People. O seu staff conta também
com alguns políticos de carreira, como é o caso de
Oleksii Reznikov, advogado e atual ministro da Defesa,
e Denys Shmygal, o primeiro-ministro ucraniano,
nomeado em 2020 pelo Presidente com a aprovação do
Parlamento. Mas um dos apoiantes de Zelensky já caiu:
o banqueiro Denys Kireev, alegadamente morto pelos
próprios ucranianos, acusado de prestar serviço ao
inimigo. Nos primeiros dias da invasão, o chefe de
Estado teve logo o apoio de outras figuras da política
ucraniana que alinham com a sua atitude heroica.
Exemplo é o autarca de Kiev desde 2014, Vitali
Klitschko, filho de um militar soviético, que é também
empresário e ex-pugilista de pesos pesados. Com uma
taxa de knockout de 87% — atrás apenas de Rocky
Marciano — ele e o irmão pegaram em armas e
confirmaram à CNN estarem prontos para morrer pela
Ucrânia.

A ex-eurodeputada Ana Gomes mostra-se satisfeita com


a força revelada. “Zelensky foi à jugular dos europeus
no discurso ao Parlamento. Quem me dera ter um líder
europeu que lhe chegasse aos calcanhares.” Inna
Ohnivets, embaixadora da Ucrânia em Portugal, sublinha
que “o Presidente da Ucrânia é o líder de um grande
Estado europeu, a lutar convictamente para preservar a
sua soberania”, e que “o mundo precisa” deste tipo de
políticos. Zelensky usa a retórica como um míssil, sem
desvios nem rodeios — negou-se, por exemplo, a aceitar
a oferta de ser retirado da Ucrânia feita por Joe Biden,
esclarecendo que precisa de munições, “não de boleia”.

Numa equação sem soluções fáceis, o Presidente


ucraniano sabe como o seu nome se cola ao problema e,
simultaneamente, à solução. É assim que o embaixador
Francisco Seixas da Costa coloca a intransponível
questão: “Se o futuro da Ucrânia tiver de passar por um
qualquer compromisso com Moscovo, como é que
Zelensky — que foi a face de uma Ucrânia que recusou
o diktat russo — conseguirá representar o saldo dessas
cedências? Dito isto, Zelensky já ganhou um lugar na
história da Europa contemporânea.” Mas de que lhe
valerá, ou ao seu povo, o verbete enciclopédico?

O puzzle parece impossível de montar, entre a vontade


da população de se ligar definitivamente à Europa e o
imperialismo de Putin. Há oito anos, num artigo
publicado no “The Washington Post”, Henry Kissinger
alertava de forma clarividente que “a Rússia não
conseguiria impor uma solução militar sem se isolar” e,
com cinismo, punha o dedo na ferida da consciência
ocidental: “Para o Ocidente, a demonização de Vladimir
Putin não é uma política; é um álibi para a ausência da
mesma.” Zelensky percebeu a armadilha, mas não a
conseguiu desarmar.

E o que dizer dos riscos de uma “marvelização” de


Zelensky — o termo é da revista “Wired” —, o herói
online cuja fotografia de testa pintada de super-homem
ao lado da família nutre um imaginário sem o sangue e
o sofrimento próprios da vida real? Ele é o mesmo
homem que pediu aos funcionários do gabinete da
Presidência para retirarem a sua imagem das paredes e
colocarem as dos filhos, porque “o Presidente não é um
ícone, um ídolo ou um retrato”. O mesmo que, hoje, os
colaboradores mais próximos descrevem como tendo a
“pele fina”, a necessidade de ser aplaudido e uma
tendência a deprimir-se face aos comentários negativos.
E o mesmo que, numa entrevista de 2018, à pergunta
sobre se tinha medo, respondeu: “Bom, sou uma
pessoa. Tenho medo de perder a vida e, claro, medo pela
minha família. Somos pessoas, queremos viver, mais
nada.”
Criticado por ter condecorado os paramilitares do
Batalhão do Azov, de extrema-direita, e por ter telhados
de vidro quanto à sua fortuna pessoal — em outubro de
2021, a investigação Pandora Papers revelara que
Zelensky tinha criado offshores nas Ilhas Virgens, Belize
e Chipre —, mais recentemente causou polémica por
decretar que nenhum ucraniano entre os 18 e os 60 anos
abandonasse o país. Mas é inegável o impacto que causa
nas pessoas que com ele se cruzaram. O ator Sean Penn,
a filmar em Kiev na altura da invasão, encontrou-se com
o Presidente na véspera e no próprio dia da entrada dos
russos no país e disse à CNN ter-se sentido perante “algo
novo para o mundo moderno em termos de coragem e
de dignidade”. Resumiu Volodymyr à sua tragédia: “Não
sei se ele sabia que tinha nascido para isso.”

Volodymyr, Vladimir em russo, já foi considerado o


homem mais bonito da Ucrânia. Hoje, o que mais cativa
o mundo é a sua voz rouca, com a qual manda as
mensagens ao povo ucraniano, do fundo do bunker —
não em vão o “The Guardian” fez disso um título, “O
homem que lidera a defesa da Ucrânia com a sua voz”.
Não é alto, mede 1,70 m (quem o conhece fala de 1,66
m), mas gostaria de o ser. Antes das eleições, um
jornalista ucraniano perguntou-lhe se, quando estivesse
com Putin, o russo iria olhá-lo de cima. Zelensky
respondeu: “Acredito que a pessoa que represente os
interesses do nosso país deva enfrentar o seu homólogo,
seja o primeiro-ministro do Canadá, Trump ou Putin. E
certamente não podemos ser desprezados. Talvez o
nosso país não seja o maior… mas é nosso.”
“Se for eleito Presidente, eles primeiro jogarão lama
sobre mim, depois respeitar-me-ão e depois chorarão
quando eu sair”, previu Zelensky

“Vova”, o diminutivo de Volodymyr, tanto gosta de


“Voando Sobre um Ninho de Cucos” e de “Era uma Vez
na América", como de “O Código Da Vinci", mas é a
Bulgakov, escritor ucraniano, enterrado em Moscovo,
que dá as honras de autor favorito. Dono de uma escrita
complexa e mordaz, escreveu “O Mestre e Margarita”,
romance cuja epígrafe, retirada do “Fausto”, de Goethe,
constitui uma síntese do tempo vivido por Zelensky,
que, como a personagem principal, questiona o diabo:
“Mas quem é você, afinal? Sou a parte da força que quer
sempre o mal, mas faz sempre o bem.” Se nunca fala
sobre religião em público, diz que “of course” acredita
em Deus e não se furtou a visitar Israel nos 75 anos da
libertação de Auschwitz, embora diga que ser judeu é
“uma pequena parte” da sua “lista de falhas”. A fé,
assumiu, é o que possui de mais íntimo e afirma que fala
com Deus “sem intermediários”. Na segunda-feira, num
vídeo publicado nas redes sociais, Zelensky foi mais
longe na narrativa religiosa: “Hoje é Domingo do Perdão.
Mas não podemos perdoar as centenas e centenas de
vítimas. Nem os milhares e milhares que sofreram. E
Deus não perdoará. Não hoje. Não amanhã. Nunca. E
em vez de Perdão, haverá Julgamento.”

Será esse diálogo interior com o divino o segredo desta


atitude estoica? Zelensky reforça a mitologia de um
homem que usa as tecnologias para tornar próximo o
que é inacessível, para empurrar o que parece
inamovível. Putin acusa-o de usar os ucranianos como
escudos humanos, o mundo prefere ver nele as
capacidades raras de um dirigente carismático, um
profeta com missão, como diria Max Weber. Antes de ser
eleito, de forma premonitória, deixou um aviso que
ainda ecoa: “Se for eleito Presidente, eles primeiro
jogarão lama sobre mim, depois respeitar-me-ão e
depois chorarão quando eu sair.”

Um artigo deste fim de semana no “The New York Times”


antecipava as negociações que já se desenvolvem entre
os aliados e os ucranianos para assegurar a sucessão de
Zelensky, caso este seja morto. O jornal refere que os
Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a União Europeia não
reconheceriam um governo-fantoche criado pelos russos
e por isso teriam já pressionado para que altos-
funcionários na linha de sucessão não permaneçam no
mesmo local por longos períodos e que sejam
transferidos para locais mais seguros fora da capital. Um
retiro nas montanhas dos Cárpatos, com abrigos
antiaéreos e meios de comunicação reforçados seria
uma hipótese. De acordo com a Constituição ucraniana,
o Presidente do Parlamento seria o sucessor natural de
Zelensky como presidente interino. Ruslan Stefanchuk é
um político pró-ocidente e foi fotografado assinando o
pedido de adesão da Ucrânia à União Europeia. Desde
que assumiu o cargo, Zelensky foi alvo de três atentados
alegadamente por forças especiais chechenas e pelo
Grupo Wagner, mercenários com uma lista de nomes
ucranianos a abater. Hoje mais do que nunca, sabe que
tem a cabeça a prémio.
O mundo, em choque, aguarda expectante o silêncio que
se seguirá à mudez daquela voz áspera. Neste
momento, a possibilidade de chegar a manhã e o silêncio
ocupar o lugar de “Vova” é um dos medos que assalta o
mundo. Porque se calou Zelensky?

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