Saiu dos palcos para entrar num bunker. Calou os mais
altos líderes mundiais para dar voz a 43 milhões de pessoas. O silêncio do Presidente ucraniano vale um país
texto CHRISTIANA MARTINS E LUCIANA LEIDERFARB
Em maio de 2019, no discurso de posse após uma vitória
com 73% dos votos nas eleições presidenciais ucranianas, Volodymyr Zelensky afirmou que a primeira tarefa do executivo seria conseguir um cessar-fogo no Donbas, a região a leste do país em conflito com a Rússia. “Estou disposto a perder a minha popularidade e, se for necessário, o meu cargo para estabelecer a paz”, arriscou dizer, prometendo que, nos cinco anos seguintes, tudo faria para que os ucranianos não chorassem. Falhou. Em março de 2022, apesar de se ter tornado um símbolo de resistência perante uma invasão mundialmente repudiada, Zelensky não cumpriu a sua missão. E se o ocidente hoje fixa nele os holofotes, descobrindo-o no fundo de uma cave, algures em Kiev, isso acontece pelo que ele próprio considera serem as piores razões. Os ucranianos estão a morrer, a fugir ou a voltar para lutar perante uma das maiores forças militares do planeta. Cerca de duas semanas após a invasão russa da Ucrânia, o mundo já percebeu, entre o melancólico e o atónito, que aquela é uma luta perdida, aconteça o que acontecer. Porque nesta guerra que Zelensky enfrenta lado a lado com o seu povo, no meio de uma Kiev assolada e cercada, não haverá vencedores. E todos temem as consequências de vir a faltar essa voz rouca que todos os dias tem falado de frente, apelando à união de um país que há anos tenta escrever a sua própria história.
Volodymyr Zelensky cavou o seu espaço na geopolítica
internacional. É um herói improvável, e poucos esquecerão o momento em que, perante o silêncio dos membros da União Europeia entre os quais gostaria de estar, recordou que aquela podia ser a última vez que o encontrariam vivo. Em todos os discursos surge para fazer a profissão de fé de que continua de pé, de que está com os ucranianos, de que está na sua terra. Amadureceu na função presidencial e lembrou ao mundo a têmpera de que são feitos os líderes. “O inimigo marcou-me como alvo nº 1. A minha família é o alvo nº 2”, asseverou. Ninguém o contradisse. No sexto dia da invasão que começou a 24 de fevereiro, quando as imagens de destruição em diferentes zonas da Ucrânia eram difundidas com a velocidade que só as sociedades tecnológicas do presente permitem, ele disse no seu característico tom baixo ao Parlamento Europeu as palavras que quase provocaram o pranto do intérprete que traduzia o vídeo da sua intervenção para o inglês: “Provem que não nos deixam cair. Provem que são mesmo europeus e então a vida vencerá a morte, e a luz vencerá a escuridão.”
Ao filmar-se a caminhar pelas ruas da capital, sem colete
antibalas e dirigindo-se diretamente aos ucranianos com frases como “ainda estamos aqui” ou “não quero que a história da Ucrânia seja uma lenda sobre 300 espartanos”, Zelensky mostra que é um homem do seu tempo. Aos 44 anos, o seu estilo contrasta com o de Vladimir Putin, de 69, que profere pomposos discursos de olhar posto na sua interpretação do passado. O Presidente ucraniano opta por vídeos com poucos minutos de duração, vocabulário simples e sintético. “Não temos tempo para longas aulas de história”, ironizou perante uma das preleções de Putin num post no Instagram, uma das suas plataformas favoritas, onde tem 14 milhões de seguidores (a outra é o YouTube). Num país com 16% de jovens e apenas 17% de idosos — e em que a idade média da população é de 41 anos — o modo e o meio de comunicar não são detalhes despiciendos. Zelensky fala como a maioria. Representa literalmente o “homem da rua”, como notou a Al- Jazeera, é casado com uma mulher bonita e tem dois filhos, e uma bagagem que em nada se assemelha ao pesado establishment político que tem governado o país nas três décadas que se seguiram à dissolução do bloco soviético e à independência, em 1991.
Guerra Depois de prometer o fim do conflito com a
Rússia no Donbas, Zelensky visitou a região em 2021. Hoje, é o rosto de uma Ucrânia invadida e um alvo a abater. E já está a ser pensada a sua sucessão Ukrainian Presidency/Handout/Anadolu Agency via Getty Images
Não é por acaso que, no seu programa eleitoral,
Zelensky tenha privilegiado a integração na NATO e na União Europeia. Um olhar rápido pela história recente do país revela que, para a maior parte dos ucranianos, esses são passos obrigatórios para que o futuro não se assemelhe ao passado. E já mostraram estar dispostos a lutar por isso. Em 2013, depois de o Presidente pró- russo Viktor Yanukovych frustrar um prometido acordo de comércio com a UE, estalou uma revolta popular hoje conhecida como Revolução da Dignidade ou Euromaidan — por ter a praça de Maidan, em Kiev, como centro nevrálgico — na qual à concentração pacífica da população a polícia respondeu com violência. Os ucranianos não só não capitularam como se manifestaram ininterruptamente durante três meses, afluindo de todas as regiões. Ao todo, morreram quase 200 pessoas e 2 mil ficaram feridas. Mas o governo de Yanukovych caiu e convocaram-se eleições, nas quais Petro Poroshenko — oligarca com participação em holdings do chocolate à comunicação social, considerado uma das dez pessoas mais ricas da Ucrânia — obteve 54% dos votos e ocupou a cadeira do poder. De imediato, a Rússia ‘vingou’ o líder deposto com a invasão da Crimeia, em 2014. A Ucrânia, cujo nome vem do eslavo krai (terras da fronteira), e que em tempos fora conhecida como a Rússia Pequena, não conseguia deixar de o ser. Toda a argumentação de Putin para invadir o país vizinho prende-se com a ideia, por ele defendida num ensaio divulgado em 2021, de que russos e ucranianos “são o mesmo povo” e de que a Ucrânia, longe de ser um Estado, foi roubada à União Soviética.
Outro pretexto do Presidente russo para esta invasão foi
o da necessidade de ‘desnazificar’ a Ucrânia. Porém, além de o Pew Research Center ter concluído em 2018 que este é o país da Europa central e do leste com melhor aceitação dos judeus, e além de a extrema- direita ter apenas conseguido 2% dos votos nas eleições do ano seguinte, a Ucrânia tem mais um argumento de peso para apresentar a Putin: o próprio Presidente, o judeu Volodymyr Zelensky.
Russo, judeu e comediante: o outsider
O primeiro judeu a ocupar o mais alto cargo político, faz
parte de uma minoria que não ultrapassa as 140 mil pessoas. A sua família sobreviveu aos pogroms anteriores à II Guerra Mundial; à razia nazi avalizada pelo colaboracionismo ucraniano, que matou 1,5 milhões de judeus; e à emigração maciça de judeus nos anos 70, pressionados pelos soviéticos. “Historicamente falando, torna-se um pouco difícil argumentar, com um mínimo de plausibilidade, como o senhor Putin faz, que a Ucrânia é liderada por nazis”, diz ao Expresso o jurista Philippe Sands, autor do livro “Este-Oeste”, sobre o conceito de genocídio.
É a origem judaica que explica o local de nascimento de
Zelensky — em Krivyi Rih, no centro do país, uma cidade metalúrgica russófona, fundada pelos cossacos e situada na única região onde, durante o Império Russo, era permitido aos judeus viverem. Filho de Oleksandre, professor de matemática e computação, e de Rimma, uma engenheira, os seus tios morreram no Holocausto e o avô foi coronel do exército vermelho. Volodymyr falou russo, a língua de comunicação em casa, muito antes de falar o ucraniano. Teve o que ele próprio denomina de uma “educação judaica comum no período soviético”, ou seja, sem professar a religião.
Ganhou uma bolsa para estudar em Israel mas os pais
opuseram-se à viagem e, numa entrevista em 2018, disse estar-lhes grato por o terem educado em Krivyi Rih, onde estão enterrados os seus antepassados. Estudou Direito ainda que nunca exercesse a profissão, embora sonhasse ser diplomata. Para surpresa da família, o seu caminho infletiu numa direção totalmente diferente ao converter-se num comediante, algo que sempre levou muito a sério. O pai confidenciaria à “New Yorker”: “Resisti, mas não muito. Via-se que ele estava envolvido e que gostava daquilo. Encontrou-se a si mesmo, e isso é ótimo.” Eram os tempos pós- independência, a cidade estava em declínio e muitos jovens caíam em desgraça. O seu modo de escapar a essa tendência foi o humor, tendo ajudado a fundar, aos 19 anos, o coletivo de comédia Kvartal 95, que mais tarde daria origem a uma produtora de televisão com o mesmo nome. Competitivo e ambicioso, ganha uma edição do “Dança com as Estrelas”, participa numa mão- cheia de filmes, grava a voz do urso Paddington. Quem o conheceu nesta altura, garante que Zelensky era um workaholic e que apreciava trabalhar em equipa. Dizia- se influenciado pelos Monty Python, mas foi comparado com Benny Hill.
“Estou disposto a perder a minha popularidade e, se for
necessário, o meu cargo para estabelecer a paz”, arriscou dizer Zelensky
Em 2013, durante os meses sangrentos do Euromaidan,
Zelensky e o seu grupo caricaturavam a repressão policial no programa de televisão “Evening Kvartal” — cuja dinâmica o aproximava do “Saturday Night Live” americano — a partir da sede, em solo russo, da sua lucrativa produtora. Porém, quando a Rússia ocupa a Crimeia em 2014, ele doa dinheiro ao exército ucraniano e mais tarde apoia um batalhão de voluntários que lutava no Donbas, numa tomada de posição clara que o obriga a regressar ao seu país. Instala os escritórios da Kvartal 95 nos três últimos andares de um arranha-céus perto do centro de Kiev, com vista panorâmica sobre a cidade, e esforça-se por dominar a língua ucraniana, nunca conseguindo apagar o sotaque russo. Acima de tudo, começa a escrever “Servant of the People”, a série que o catapulta para o estatuto de celebridade e que o leva mais longe no campo da sátira política. Aqui, como se a realidade pudesse imitar a ficção — e não ao contrário —, encarna o papel de um professor de História do liceu, com os seus 30 anos, chamado Vasyl Petrovych Holoborodko, que é filmado por um aluno enquanto discursa contra a corrupção do seu país. O vídeo torna- se viral e acaba por conduzi-lo à presidência da Ucrânia. Numa cena emblemática, Holoborodko recebe uma chamada da então chanceler alemã, Angela Merkel, que lhe comunica a decisão de permitir a entrada da Ucrânia na UE e lhe dá os parabéns. O presidente fica eufórico, mas logo se apercebe que se tratava de um erro e que Merkel, na verdade, pretendia ligar para o Montenegro.
A série não tardou a chamar a atenção da Netflix e de
vários canais televisivos fora da Ucrânia. E não é exagerado dizer que Zelensky enriqueceu, ao ponto de à pergunta de um jornalista sobre se é um homem rico, ele responder: “Claro, tenho tudo.” Mas a consequência mais importante foi ter emprestado o nome ao partido que a produtora Kvartal 95 fundou e registou em 2018. “Comecei por gozar com os políticos e a parodiá-los, e ao fazer isso, ia mostrando que tipo de Ucrânia gostaria de ver. Depois veio a série, na qual fazia o papel de presidente. Ok, então eu não podia ser realmente presidente, mas podia representá-lo... A dado momento percebi que havia uma hipótese”, contaria Zelensky. Estava-se à porta das eleições de 2019 e, de repente, ao tom nacionalista e passadista do oponente Poroshenko — cujo slogan de campanha era “Exército, língua, fé” —, opunha-se o impulso aspiracional, informal e contemporâneo de um novo candidato de 41 anos que não pertencia à elite burocrata com fortes laços à oligarquia que havia governado o país nas últimas três décadas. Um outsider que anunciou, exatamente no dia de ano novo, a candidatura no seu programa de televisão, sem sequer antes contar à mulher, a guionista Olena Zelenska.
Política 2.0
A forma como o novo partido organizou o seu programa
trouxe para a política um método totalmente diferente do utilizado até então. A equipa começou por retirar das redes sociais as ideias dos seus seguidores, dando desde logo aos seus oponentes o pretexto para criticar a falta de visão estratégica própria. Mas Zelensky pretendia basear-se no modo como as pessoas desejavam ser governadas, em vez de lhes impor um ponto de vista. E, de facto, em janeiro de 2019, no centro da recém- lançada plataforma política estava um dos requisitos centrais apontados pelos apoiantes: usar sempre que possível a ferramenta dos referendos públicos, sobretudo por meio da internet, para determinar a agenda e os rumos da governação.
Ao longo da campanha deu poucas entrevistas e serviu-
se quase exclusivamente da web para comunicar a sua mensagem, não só pacifista como pró-aborto, pró- distribuição gratuita de canábis e a favor de legislar a prostituição e o jogo. “Quero ser um presidente como Vasyl Holoborodko [a sua personagem], com os mesmos valores morais. As pessoas foram alimentadas pelo establishment e querem algo de novo”, anunciou, citado pelo “The Guardian”. Ao Expresso, a ex-eurodeputada Ana Gomes, que em 2019 integrou a missão europeia que acompanhou as eleições na Ucrânia, diz que o crescimento de Zelensky “não foi surpreendente”. “Ele é jovem e o movimento de aproximação da Ucrânia à Europa é um desejo de gente jovem, que conhece a história soviética, mas que também conhece a diferença de nível de vida em países como a Polónia e a Roménia. Zelensky é desta geração.”
Poder Mal chegou ao cargo, Zelensky quis mudar a sede
da presidência, mas não conseguiu Laurent Van der Stockt for Le Monde/Getty Images
Qual troupe de atores ambulantes, Zelensky e a sua
equipa viajaram pelo país, elaborando vídeos curtos e eficazes. Fez, por exemplo, uma visita guiada à cidade de Lviv, hoje o local de passagem para tantos ucranianos a fugirem da guerra, na qual pronunciava frases no dialeto local. No final da digressão, em Dnipro, largou a câmara e dirigiu-se à multidão que o rodeava: “É como se nos últimos 28 anos tivéssemos estado a viver numa floresta escura. Mas nós podemos fazer isto juntos e deixar a escuridão para trás.” Pediu para acenderem as luzes dos telemóveis: “A 31 de março, levantem os olhos e procurem a luz.”
O tipo engraçado da televisão, que chegou a baixar as
calças e a fingir tocar o piano com o pénis, ao som de uma tradicional canção judaica, dava lugar ao quase- messias que se erguia contra a oligarquia e a corrupção, prometia cessar a guerra no Donbas em cinco anos e entrar na NATO e na UE. Os críticos centraram-se no facto de ele ser russófono — “é fraco, não tem religião nem nacionalidade”, acusou o comentador russo Sergey Parkhomenko. Outros apontaram, e ainda apontam, as suas ligações ao oligarca ucraniano Ihor Kolomoisky, com negócios nos metais, aviação, bancos, energia, mas acima de tudo dono do 1+1, o canal que emitia “Servant of the People” e que promoveu a campanha eleitoral de Zelensky. Kolomoisky, que está a ser investigado por corrupção pelos Estados Unidos, fugiu para a Suíça e depois para Israel. Duas semanas antes das eleições, a imprensa ucraniana publicou provas de que Zelensky teria também viajado 13 vezes para Genebra e para Telavive, num avião privado. O atual Presidente ucraniano negou esta relação, argumentando que os encontros com o oligarca visavam financiar projetos urbanos e sociais. “Tens 2 mil milhões de dólares? Ok, 1 milhão vai para pavimentar ruas. É assim que se deve falar com eles.”
“Este não é um lugar para uma pessoa normal, as
paredes estão repletas do simbolismo dos últimos 30 anos. Apetece lavá-las com as próprias mãos”, foi o primeiro desejo do chefe de Estado
Na primeira volta eleitoral, Zelensky ficou em primeiro
lugar, com 30% dos votos, deixando Poroshenko em segundo, com apenas 16%. Isto deu margem a Zelensky para afirmar, no debate final entre ambos, ocorrido no imponente estádio olímpico de Kiev: “Eu sou a consequência dos teus erros.” O resultado da segunda volta pareceu dar-lhe a razão, com 73% dos votos e a primeira vez na história do país que um presidente atinge um tal consenso sem a necessidade de fazer acordos com outros partidos. Mas ele, que se afirmava como um não-político, mostrou logo que dominava o assunto, antecipando as eleições parlamentares na sua tomada de posse. Sendo o servant of the people minoritário nesta assembleia, a jogada deu frutos, outorgando-lhe a maioria parlamentar. Putin não o cumprimentou pela vitória. Antes, questionou a sua legitimidade e reiterou que a entrada na NATO era uma “linha vermelha”.
Um dos seus primeiros desejos enquanto chefe de
Estado foi mudar a morada presidencial, situada na Rua Bankova e reminiscência do estalinismo, para um espaço menos aparatoso, mas não o conseguiu. “Este não é um lugar para uma pessoa normal, as paredes estão repletas do simbolismo dos últimos 30 anos. Representam o local que conduziu o nosso país à condição em que se encontra hoje. Apetece lavá-las com as próprias mãos”, disse ao repórter da “New Yorker”, em 2019. Porém, impôs logo algumas ruturas simbólicas, como reduzir a frota presidencial a dois carros sem sirene e alterar o conteúdo de uma das celebrações mais relevantes para os ucranianos, o Dia da Independência. Em vez da tradicional parada militar de tanques e porta mísseis, que considerou “pomposa e cara”, implementou uma Marcha da Dignidade, convidando atletas, médicos e professores. Quem lá esteve descreve um quadro em que Volodymyr e Olena, a mulher e “melhor amiga”, desciam a rua ladeados pelos filhos, Oleksandra e Kyrylo, ao som dos sinos das igrejas. Família Ao lado da mulher e dos filhos, tem na testa o símbolo do super-herói que o mundo ocidental quer rever nele d.r.
Na arena política internacional, as primeiras impressões
foram mais reservadas. Há uma semana, o “New York Times” recordava o batismo de fogo de Zelensky no embate com Donald Trump, explicando como “ambos interpretaram o papel de líderes em programas de TV e depois se tornaram líderes na vida real, usaram as redes sociais para ganhar poder e ambos tiveram shows de atuação insólitos”, mas, chegados ao poder, separaram- se, com “Trump a tentar derrubar a democracia americana e Zelensky a tentar salvar a democracia ucraniana”.
Pouco depois de ter assumido a presidência, Zelensky
foi contactado pelo advogado pessoal de Trump, Rudy Giuliani, que iniciou uma campanha de pressão para forçar uma investigação a uma empresa de gás ucraniana associada ao filho de Joe Biden, Hunter, como parte de um aparente esforço para enfraquecer o opositor. Três dias após o telefonema de Giuliani, Zelensky recebeu outro do próprio Donald Trump, pedindo que a Ucrânia lhe fizesse “um favor”. Zelensky esquivou-se como pôde, assegurando que escolheria um procurador-geral “100% de confiança”. A resposta evasiva deixou Trump insatisfeito ao ponto de o levar a reter os 400 milhões de dólares previstos para ajuda militar à Ucrânia. O pedido de Trump — “I would like you to do us a favor” — viria a tornar-se uma das tiradas memoráveis no seu posterior processo de impeachment. A revista “Time”, que acompanhou Zelensky na sua visita ao Donbas em 2021, relata a calma com que abordou as tropas ucranianas ali destacadas. Levado ao local onde três soldados foram mortos — segundo o general Ruslan Khomchak, ali presente, “a sangue frio” —, o Presidente não prometeu retaliação. Apenas disse: “Para alguns, isso significaria que somos tipos duros. Para outros, que os filhos não voltarão a casa.” Não é de admirar, portanto, que um ano depois, logo no início da invasão russa, tenha enviado uma mensagem a pedir às mães daquele país que fossem buscar os filhos capturados no campo de batalha. “A Ucrânia tomou a decisão de devolver os prisioneiros de guerra às suas mães se elas os vierem buscar”, podia ler-se.
Homem de uma só identidade no centro das duas
culturas, o Presidente ucraniano pôs a circular um vídeo no YouTube no qual afirma ser errado o cancelamento da cultura russa: “Como pode alguém odiar a cultura, qualquer que ela seja? Os vizinhos devem enriquecer-se mutuamente.” Essa tem sido igualmente a posição do embaixador ucraniano na ONU, que expressou tristeza pelos soldados russos a morrerem na guerra. Sergeiy Kylytsya tem em comum com Zelensky a linguagem sem artifícios, como aquele momento em que comparou Putin a Hitler ou outro em que disse “não há purgatório para os criminosos de guerra, vão diretamente para o inferno”.
Para a estrutura do Governo, Zelensky levou vários
colegas do passado. Muitos são ex-associados do Studio Kvartal 95, outros apenas amigos fiéis, quase todos da mesma faixa etária, que partilham o estatuto de outsiders. Entre os antigos funcionários da produtora estão Andriy Yermak, atual chefe do OPU [Office of the President of the Ukraine]; e Serhiy Trofimov e Yuriy Kostyuk, ‘vices’ ou assessores diretos da presidência. Sergey Shefir, amigo e coproprietário da Kvartal 95, é o primeiro assistente e um dos seus principais confidentes, assim como Ivan Bakanov, que é amigo de infância e advogado da empresa. Segundo o Comité Eleitoral, mais de 30 integrantes de Kvartal 95 foram nomeados para cargos de topo.
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Fiéis Equipa ucraniana que tenta negociar com a Rússia.
Em primeiro plano, o ministro da Defesa, Oleksii Reznikov MAXIM GUCHEK/BELTA/AFP via Getty Images
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O presidente da Câmara de Kiev, Vitali Klitschko, é um
ex-pugilista que agarrou as armas para combater a invasão GENYA SAVILOV/AFP via Getty Images 3/3
Nas Nações Unidas, a voz da Ucrânia é a de Sergiy
Kyslytsya Michael M. Santiago/Getty Images
Entre as restantes figuras da sua confiança estão
Mykhailo Podoliak, atual conselheiro do gabinete do Presidente e líder das conversações com a Rússia, e Davyd Arakhamiya, economista, empresário e líder do partido Servant of the People. O seu staff conta também com alguns políticos de carreira, como é o caso de Oleksii Reznikov, advogado e atual ministro da Defesa, e Denys Shmygal, o primeiro-ministro ucraniano, nomeado em 2020 pelo Presidente com a aprovação do Parlamento. Mas um dos apoiantes de Zelensky já caiu: o banqueiro Denys Kireev, alegadamente morto pelos próprios ucranianos, acusado de prestar serviço ao inimigo. Nos primeiros dias da invasão, o chefe de Estado teve logo o apoio de outras figuras da política ucraniana que alinham com a sua atitude heroica. Exemplo é o autarca de Kiev desde 2014, Vitali Klitschko, filho de um militar soviético, que é também empresário e ex-pugilista de pesos pesados. Com uma taxa de knockout de 87% — atrás apenas de Rocky Marciano — ele e o irmão pegaram em armas e confirmaram à CNN estarem prontos para morrer pela Ucrânia.
A ex-eurodeputada Ana Gomes mostra-se satisfeita com
a força revelada. “Zelensky foi à jugular dos europeus no discurso ao Parlamento. Quem me dera ter um líder europeu que lhe chegasse aos calcanhares.” Inna Ohnivets, embaixadora da Ucrânia em Portugal, sublinha que “o Presidente da Ucrânia é o líder de um grande Estado europeu, a lutar convictamente para preservar a sua soberania”, e que “o mundo precisa” deste tipo de políticos. Zelensky usa a retórica como um míssil, sem desvios nem rodeios — negou-se, por exemplo, a aceitar a oferta de ser retirado da Ucrânia feita por Joe Biden, esclarecendo que precisa de munições, “não de boleia”.
Numa equação sem soluções fáceis, o Presidente
ucraniano sabe como o seu nome se cola ao problema e, simultaneamente, à solução. É assim que o embaixador Francisco Seixas da Costa coloca a intransponível questão: “Se o futuro da Ucrânia tiver de passar por um qualquer compromisso com Moscovo, como é que Zelensky — que foi a face de uma Ucrânia que recusou o diktat russo — conseguirá representar o saldo dessas cedências? Dito isto, Zelensky já ganhou um lugar na história da Europa contemporânea.” Mas de que lhe valerá, ou ao seu povo, o verbete enciclopédico?
O puzzle parece impossível de montar, entre a vontade
da população de se ligar definitivamente à Europa e o imperialismo de Putin. Há oito anos, num artigo publicado no “The Washington Post”, Henry Kissinger alertava de forma clarividente que “a Rússia não conseguiria impor uma solução militar sem se isolar” e, com cinismo, punha o dedo na ferida da consciência ocidental: “Para o Ocidente, a demonização de Vladimir Putin não é uma política; é um álibi para a ausência da mesma.” Zelensky percebeu a armadilha, mas não a conseguiu desarmar.
E o que dizer dos riscos de uma “marvelização” de
Zelensky — o termo é da revista “Wired” —, o herói online cuja fotografia de testa pintada de super-homem ao lado da família nutre um imaginário sem o sangue e o sofrimento próprios da vida real? Ele é o mesmo homem que pediu aos funcionários do gabinete da Presidência para retirarem a sua imagem das paredes e colocarem as dos filhos, porque “o Presidente não é um ícone, um ídolo ou um retrato”. O mesmo que, hoje, os colaboradores mais próximos descrevem como tendo a “pele fina”, a necessidade de ser aplaudido e uma tendência a deprimir-se face aos comentários negativos. E o mesmo que, numa entrevista de 2018, à pergunta sobre se tinha medo, respondeu: “Bom, sou uma pessoa. Tenho medo de perder a vida e, claro, medo pela minha família. Somos pessoas, queremos viver, mais nada.” Criticado por ter condecorado os paramilitares do Batalhão do Azov, de extrema-direita, e por ter telhados de vidro quanto à sua fortuna pessoal — em outubro de 2021, a investigação Pandora Papers revelara que Zelensky tinha criado offshores nas Ilhas Virgens, Belize e Chipre —, mais recentemente causou polémica por decretar que nenhum ucraniano entre os 18 e os 60 anos abandonasse o país. Mas é inegável o impacto que causa nas pessoas que com ele se cruzaram. O ator Sean Penn, a filmar em Kiev na altura da invasão, encontrou-se com o Presidente na véspera e no próprio dia da entrada dos russos no país e disse à CNN ter-se sentido perante “algo novo para o mundo moderno em termos de coragem e de dignidade”. Resumiu Volodymyr à sua tragédia: “Não sei se ele sabia que tinha nascido para isso.”
Volodymyr, Vladimir em russo, já foi considerado o
homem mais bonito da Ucrânia. Hoje, o que mais cativa o mundo é a sua voz rouca, com a qual manda as mensagens ao povo ucraniano, do fundo do bunker — não em vão o “The Guardian” fez disso um título, “O homem que lidera a defesa da Ucrânia com a sua voz”. Não é alto, mede 1,70 m (quem o conhece fala de 1,66 m), mas gostaria de o ser. Antes das eleições, um jornalista ucraniano perguntou-lhe se, quando estivesse com Putin, o russo iria olhá-lo de cima. Zelensky respondeu: “Acredito que a pessoa que represente os interesses do nosso país deva enfrentar o seu homólogo, seja o primeiro-ministro do Canadá, Trump ou Putin. E certamente não podemos ser desprezados. Talvez o nosso país não seja o maior… mas é nosso.” “Se for eleito Presidente, eles primeiro jogarão lama sobre mim, depois respeitar-me-ão e depois chorarão quando eu sair”, previu Zelensky
“Vova”, o diminutivo de Volodymyr, tanto gosta de
“Voando Sobre um Ninho de Cucos” e de “Era uma Vez na América", como de “O Código Da Vinci", mas é a Bulgakov, escritor ucraniano, enterrado em Moscovo, que dá as honras de autor favorito. Dono de uma escrita complexa e mordaz, escreveu “O Mestre e Margarita”, romance cuja epígrafe, retirada do “Fausto”, de Goethe, constitui uma síntese do tempo vivido por Zelensky, que, como a personagem principal, questiona o diabo: “Mas quem é você, afinal? Sou a parte da força que quer sempre o mal, mas faz sempre o bem.” Se nunca fala sobre religião em público, diz que “of course” acredita em Deus e não se furtou a visitar Israel nos 75 anos da libertação de Auschwitz, embora diga que ser judeu é “uma pequena parte” da sua “lista de falhas”. A fé, assumiu, é o que possui de mais íntimo e afirma que fala com Deus “sem intermediários”. Na segunda-feira, num vídeo publicado nas redes sociais, Zelensky foi mais longe na narrativa religiosa: “Hoje é Domingo do Perdão. Mas não podemos perdoar as centenas e centenas de vítimas. Nem os milhares e milhares que sofreram. E Deus não perdoará. Não hoje. Não amanhã. Nunca. E em vez de Perdão, haverá Julgamento.”
Será esse diálogo interior com o divino o segredo desta
atitude estoica? Zelensky reforça a mitologia de um homem que usa as tecnologias para tornar próximo o que é inacessível, para empurrar o que parece inamovível. Putin acusa-o de usar os ucranianos como escudos humanos, o mundo prefere ver nele as capacidades raras de um dirigente carismático, um profeta com missão, como diria Max Weber. Antes de ser eleito, de forma premonitória, deixou um aviso que ainda ecoa: “Se for eleito Presidente, eles primeiro jogarão lama sobre mim, depois respeitar-me-ão e depois chorarão quando eu sair.”
Um artigo deste fim de semana no “The New York Times”
antecipava as negociações que já se desenvolvem entre os aliados e os ucranianos para assegurar a sucessão de Zelensky, caso este seja morto. O jornal refere que os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a União Europeia não reconheceriam um governo-fantoche criado pelos russos e por isso teriam já pressionado para que altos- funcionários na linha de sucessão não permaneçam no mesmo local por longos períodos e que sejam transferidos para locais mais seguros fora da capital. Um retiro nas montanhas dos Cárpatos, com abrigos antiaéreos e meios de comunicação reforçados seria uma hipótese. De acordo com a Constituição ucraniana, o Presidente do Parlamento seria o sucessor natural de Zelensky como presidente interino. Ruslan Stefanchuk é um político pró-ocidente e foi fotografado assinando o pedido de adesão da Ucrânia à União Europeia. Desde que assumiu o cargo, Zelensky foi alvo de três atentados alegadamente por forças especiais chechenas e pelo Grupo Wagner, mercenários com uma lista de nomes ucranianos a abater. Hoje mais do que nunca, sabe que tem a cabeça a prémio. O mundo, em choque, aguarda expectante o silêncio que se seguirá à mudez daquela voz áspera. Neste momento, a possibilidade de chegar a manhã e o silêncio ocupar o lugar de “Vova” é um dos medos que assalta o mundo. Porque se calou Zelensky?