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• Serguei M.

EISENSTEIN
Co &TOFHHK*

i9
SIM &A.PSI.
Capítulo
"1 Ascensão e queda de um boichevique

Serguei Mikhailovitch Eisenstein contava apenas

19 anos quando eclodiu em Petrogrado, na Rússia,


a revolução mais influente deste século. Até então,
apenas gozara o privilégio de uma vida pequeno-
burguesa isenta de quaisquer privações. Seu pai, um
Judeu alemão, era engenheiro dos serviços municipais
da cidade de Riga e circulava entre as altas autorida­
des da Rússia tzarista. Sua avó materna presidia a
mais importante companhia de navegação a vapor
do país. Se a revolução não tivesse acontecido na
vida desse jovem estudante de engenharia, prova­
velmente ele teria seguido a tradição conservadora
da família, dedicando-se à administração da fortuna
dos Eisenstein. Mas a colossal virada de 1917
atravessou-lhe a cabeça e o arrastou como num
turbilhão a uma radicalidade sem retorno. Apenas
um ano mais tarde, ele estava alistado como voluntá­
rio no Exército Vermelho dos bolcheviques e lutaria
contra seu próprio pai, engajado no Exército Branco
DE UM BOLCHEVIQUE

i^pêâssaristâ. Todas as crenças e preconceitos nele


. fecutídos pela formação de classe se esfarelam como
areia na água: tal como os milhares de estudantes
da sua época, que trocaram os estudos pelos combates
de rua, Eisenstein sentia que era preciso virar tudo
pelo avesso e ousar empurrar a roda da História
para a frente.
Não é diffcil imaginar tal reboliço em sua cabeça.
A Rússia de 1917 era um cadinho de fermentação
polftica e de inquietação intelectual. Enquanto
as greves se sucediam, os quartéis se amotinavam e
as barricadas eram erguidas nas ruas, os teatros e
estúdios dedicavam-se a uma intensa atividade
experimentai, fustigados peia fúria demolidora do
futurismo e a rigorosa inventividade do construti-
vismo. é ainda em 1917 que Eisenstein assiste a
irreverente encenação da Mascarada de Lermontov
por Meyerhold e fica profundamente impressionado
com as possibilidades expressivas abertas pela arte
nova. Por ocasião da guerra civit, ele aplicaria suas
idéias inovadoras na decoração de trens e caminhões
de propaganda, durante os deslocamentos das tropas
vermelhas em direção ao leste. Essa atividade criativa
não passou despercebida à direção polftica do
partido, que, dois anos depois, o enviaria às frentes
de Minsk e Smofensk como desenhista de cartazes
e pintor-decorador da secção de teatro de propaganda
do exército. Entre 1919 e 1920, Eisenstein vive nos
trens de agitação polftica, que percorriam o interior
da Rússia montando espetáculos e fazendo divulgação
da. causa revolucionária: é af que ele toma contato
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com o teatro e faz suas primeiras incursões como


encenador.
Essa origem militante, bem como a temática
revolucionária que ele iria enfocar invariavelmente em
todos os seus filmes, criaram um certo mito em
torno do seu nome, a ponto dé o senso comum
creditar a Eisenstein a expressão artística mais
cristalina da Rússia revolucionária. Nada mais inexato.
Provavelmente, nenhum outrp autor soviético manteve
com o Estado uma relação tão tensa e ambígua
quanto Eisenstein, ora marcada por uma aproximação
entusiástica, ora maculada por um afastamento
tácito. Ao mesmo tempo, sua atividade cultural, ao
longo de seus trinta anos produtivos, foi permeada
de incidentes, desconfianças e ameaças por parte
da cúpula dirigente: ele era destronado com a mesma
impaciência com que era endeusado; as mesmas
vozes que exattavam seu ardor revolucionário
acusavam-no, logo depois, de trair a causa do prole­
tariado. Eisenstein foi distinguido com as mais
altas honrarias de uma personalidade soviética, como
a Ordem de Lênin e o tftuio de doutor Honoris
causa; mas também chegou muito perto de perder
o pescoço nos expurgos stalinistas. Sua agilidade,
entretanto, sua falta de escrúpulos em retratar-se,
seu oportunismo, dirão alguns, livraram-no do pior
e lhe permitiram, pelo menos, morrer de morte
natural, malgrado o ostracismo a que fora condenado
nos últimos anos de sua vida. Essa contradição
constante entre o pacto e a ruptura em relação aos
rumos tomados pela revolução é o percurso que
■ ASCENSÃO e QUEDA DE UM BOLCHEVIQUE

.'/^stendemõs acompanhar ao longo deste primeiro


capftulo.
Em primeiro lugar, ó um erro pensar que os confli­
tos de Eisenstein com o Estado se dão apenas no
período stalinista. E certo que af eles atingem o
íímite máximo, mas desde os primeiros anos da
revolução o {ovem artista já estava colocado no
fogo cruzado entre o pragmatismo da cúpuia
dirigente e a radicalidade dos grupos culturais de
vanguarda. Já em 1920, ele entra para o Proletkult
como desenhista de cenários teatrais, e ali vai viver
a sua primeira aventura contestatória. O Proletkult
era um organismo independente, que passou a tratar
dos negócios da educação e da cultura após a tomada
do poder pelos bolcheviques, e seu objetivo primor­
dial era fazer nascer uma cultura proletária inteira­
mente desvinculada da tradição burguesa. Desde sua
criação, ele encontrou forte resistência por parte
dos dirigentes soviéticos. Lênin considerava o
Proletkult uma aventura pequeno-burguesa; para
ele, as tarefas culturais importantes naquele momento
eram a alfabetização das massas e a formação de
uma cultura de base, uma vez que achava impossível
à classe operária prescindir da tradição cultural
forjada pela burguesia. Trotsky achava que a ditadura
do proletariado era uma fase transitória e nela os
operários deveríam dedicar-se à construção da base
econômica da nação, não havendo, portanto, tempo
histórico para criar uma cultura. Mas, acima de tudo,
o partido temia a força polftica do Proletkult: em
1920, este já contava com cerca de meio milhão
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de membros, enquanto o partido tinha 620 mitl


Além do mais, o Proletkult insistia em manter-se
"independente", o que significava o risco de um
poder paralelo dentro do Estado. Com base nesses
argumentos, o partido aperta o cerco ao redor do
organismo cultural, de forma que as pressões o
acabam levando a um esvaziamento progressivo.
£ difícil imaginar como a cúpula dirigente via
Eisenstein nos primeiros anos de sua atividade
artística. Certamente, o cineasta colecionava elogios;
seus primeiros fiímes receberam críticas favoráveis
dós jornais de toda a União Soviética. Mas havia
sempre uma ponta de mal-estar em tudo em que ele
punha a mão. Ela era independente demais e não
tinha muito senso de oportunidade para medir a
conveniência de seus impulsos criativos. Em 1924,
estreando no cinema, dirige A Greve, que, segundo
suas próprias palavras, deveria ser uma espécie de
pedagogia da greve, um ensaio didático destinado
a ensinar às massas a estratégia de um movimento
paredista. Estranho projeto para um sistema político
que já declarara a ilegalidade da greve e não admitia
mais esse meio de autodefesa operária! Em 1925,
quatro anos depois do massacre dos marinheiros
revoltosos de Kronstadt pelas tropas governamentais
comandadas por Trotsky, Eisenstein roda O Encoura-
çacfo Potemkin, sobre o duplo tema de uma revolta
de marinheiros contra a autoridade opressora e
o massacre popular nas escadarias de Odessa.
Segura mente, a direção do partido ter ia preferido
esquecer esse tema incômodo. Em todo caso, parece
. ■ ”■:ASCENSAC E QUEDA DE UM BOLCHEVIQUE

que © ganho em termos de agitação revolucionária


compensava a "inconveniência" desse lado mórbido
de seus filmes, e Eisenstein foi saudado, apesar de
tudo, como a grande força criativa da Rússia soviética.
Os problemas começam mesmo a partir de Outubro,
seu terceiro longa-metragem. Eisenstein rodou essa
obra num momento muito conturbado na União
Soviética: 1927 é a data em que Trotsky e todos os
seus colaboradores reunidos na oposição de esquerda
são expulsos do partido e deportados. O filme de
Eisensteín sofreu profundamente os efeitos dessa
luta política. Outubro deveria ser um ensaio sobre a
revolução boichevique de 1917, mas à medida que os
principais personagens do evento caíam em desgraça
no cenário político, eles caíam fora do filme também.
Sabe-se que Stálin interveio diversas vezes nas filma­
gens: entre outras coisas, exigiu a supressão dos
planos onde aparecia Trotsky tsó ficou uma pequena
ponta onde Trotsky é criticado por pretender adiar a
data do levante) e a minimização do papel de Lênin
nos acontecimentos. Mesmo assim, o filme foi rece­
bido com uma frieza glaciat por parte dos correli­
gionários de Stálin, a essa altura já colocados nós
principais postos de decisão. Condenou-se nele o
excesso de experimentação, o "formalismo", o seu
caráter "hermético", tudo isso que o tornava pouco
eficiente para a educação política das grandes massas.
Stálin queria filmes simples, imediatamente decodi-
fícáveis até mesmo pelo mais rude camponês, e que
"ilustrassem" a linha política do partido.
Se assim era, assim Eisenstein o fez. Seu quarto
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fiime, :A Linha Gera!r deveria ser simples, didático e


"ilustraria" o programa partidário para a questão
agrária. Na verdade, a rodagem desse fiime havia
começadoem 1926, mas Eisenstein teve de inter-
rompê-ia para realizar Outubro, que deveria festejar
o primeiro decênio da revolução. Quando Eisenstein
o retoma, quase três anos depois, muita coisa mudara
na União Soviética e a linha polftica do partido para
o campo se transformara no seu oposto diametral.
Acossado pelo caos econômico e pela fome que
rondava as cidades, Stálin decide-se por uma medida
tíe força e se aproxima substancial mente das teses
"uítra-esquerdistas" de Trotsky, optando pela coleti-
vização forçada da agricultura e pela liquidação
do kufaks {camponeses ricos e atravessadores).
Mas os camponeses eram conservadores, estavam
presas a tradições milenares, e a resistência à
modernização se fez inevitável. Como resultado,
assiste-se, a partir de 1929, a um verdadeiro banho
de sangue no campo. Dentro desse contexto, o
fíime de Eisenstein perdeu o sentido: ele deveria
convencer com argumentos aquilo que Stálin consi­
derou mais eficaz obter pelos fuzis. Quando o filme
fica pronto, ele mostra uma situação que não existe
mais: o trabalho incansável de um pequeno grupo
de camponeses comunistas tentando superar a
tradição conservadora, resistindo contra o boicote
dqs kufaks e logrando modernizar os kolkhozes
(fazendas coletivas). Por essa razão, o partido exige
a mudança do título: ao invés de A Linha Geral
(pois o filme já não mais espelhava a linha oficial),
ASCENSÃO E QUEDA DE UM BOLCHEVIQUE

./. ■ ele pesss a chamar-se 0 Velho e o Novo, tftuio que


refletia bem a contradição existente na pelfcula
entre o que era e o que passava a ser a polftica
agrfcoía stalinista.
Esse n£o foi o único problema. A realidade socia­
lista. enfocada pelo filme era a mais patética que o
cinema soviético jamais mostrou. Açoitados pelo
vento e pela chuva, sofrendo toda sorte de privações,
os camponeses comunistas não podiam contar senão
com um único e velho trator, uma única desnatadeira,
um único touro (que morre envenenado pelos AroZaksj
e ainda assim têm de enfrentar a inépcia e a morosi­
dade de uma burocracia privilegiada, absolutamente
negligente em relação ao sofrimento das massas
trabalhadoras. Comparando com a nata do "realismo
socialista" da época, exemplares triunfalistas que
cantavam apenas o ideal realizado, o filme de
Eisenstein contrasta visivelmente: nele, o entusiasmo
revolucionário não escamoteia a verdade, nem redime
os prejuízos da incompetência polftica. A paisagem
de O Velho e o Novo pareceu a Stálin tão outonal,
que ele convocou Eisenstein e seu assistente Alexan­
drov para uma conversa particular, onde provavel­
mente sugeriu modificações e os "convidou” a
realizar uma viagem de reconhecimento pela União
Soviética, para constatar que a coletivização já estava
em marcha, que a indústria de base nascia, que a
agricultura se modernizava e que o socialismo
triunfava. A viagem se fez, mas o filme não mudou
muito.
Antes mesmo que O Velho e o Novo estreasse
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em Moscou em outubro de 1929, provocando a ira


ca critica stalinista, Eisenstein, Alexandrov e o
fotógrafo Eduard Tissé partem correndo, quase
fugindo, em uma viagem ao exterior, sob pretexto
de estudar o cinema sonoro. Levavam nos bolsos
cada um deles 25 dólares: essa quantia irrisória
explica a delirante atividade do trio durante a viagem,
seja através de cursos, conferências, entrevistas,
artigos para jornais, ou até mesmo a reaiização de
picaretagens cinematográficas, como Miséria das
Mu/heres, Aíegria das Mulheres, rodado em Zurich,
e Romance Sentimental, rodado em Paris, sem
falar de um curto realizado durante um congresso
dè cinema em Sarraz, na Suíça, que se perdeu defí-
pítivamente. A viagem foi acidentada, cheia de
. conflitos com a polícia e com manifestantes de
direita. São expulsos da Suíça em 1929, Ém 1930,
uma projeção de O Ve/ho e o Novo é interditada
em Paris e o comandante de polícia exige a retirada
do cineasta do país, o que desencadeia uma onda
de protestos por toda a França. Ainda no mesmo
ano, já em Nova Yorque, diversas entidades reacio­
nárias, comandadas pelo major Frank Pease, desen­
cadeiam uma campanha anticomunista e anti-semita
contra o "cão vermelho" Eisenstein, até que o
Departamento de Estado cancela o visto de perma-
■■ nência, obrigando os três cineastas a deixar o país.
Em compensação, Eisenstein aproveitou a viagem
para fazer contatos com as mais notórias persona­
lidades da época, uma das quais — o escritor socialista
americano e candidato ao governo da Califórnia
:’;.'ÍSL\ ASCENSÃO E QUEDA DE UM BOLCHEVIQUE

üpton Sinclair - apresenta-lhe a proposta de rodar


um'filme no Méxifco. Era o que o cineasta mais
esperava. A empresa que o contratara nos EUA, a
Rsramount, recusara-lhe todos os roteiros apresen­
tados e por fim rescindiu o contrato no final de 1930.
Eisenstein estava há mais de um ano sem rodar
nada de importante, e não deixaria escapar a
oportunidade que lhe dava Sinclair,
Que Viva México! seria o nome do novo filme de
Eisenstein, uma co-produção russo-americana. Era um
dos projetos mais ambiciosos do cineasta, abarcando
toda "a civilização mexicana e sua história, desde os
primórdios astecas até hoje. Tal filme, entretanto,
de que foram rodados cerca de 70 000 metros de
película, jamais seria concluído, pois uma série de
incidentes e discórdias foram afastando Eisenstein
de Sinclair, até que, em fevereiro de 1932, este
decide suspender definitivamente as filmagens.
Existem várias versões explicando a tragédia do
filme mexicano, muitas delas conflitantes entre si.
Diz-se, por exemplo, que Eisenstein foi irresponsável
nos gastos, dilatando exagerada mente os prazos e
os custos, até tornar a película comercialmente
inviável em termos capitalistas. Mas a verdade era
mais de ordem polftica que econômica. Em primeiro
lugar, Sinclair não suportou a pressão desencadeada
peias ligas direitistas americanas, que não podiam
aceitar que Hollywood financiasse um fiime comu­
nista. Além disso, a própria União Soviética se desin­
teressou pelo filme e começou a pressionar Sinclair
pela esquerda, para que suspendesse as filmagens e
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repatriasse Eisenstein. A essa época, subia â direção


da indústria cinematográfica soviética um inimigo
declarado do cineasta, Bóris Chumiatski, que iria
dedicar-se de forma particular a barrar-lhe todos os
projetos. E antes mesmo que Upton Sinclair tomasse
qualquer decisão, a Amtorg (representação comercial
russa nos EUA) cancelou a parte soviética do
financiamento. Enfim, a gota d'água: em novembro
de 1931, Sinclair recebe de Stálín um telegrama que
dizia explicitamente: "Eisenstein aqui é considerado
um desertor que rompeu com sua pátria. Ele perdeu
a confiança de seus camaradas".
. Bioqueado na fronteira pela polícia mexicana, sem
dinheiro e sem apoio, desesperado com o fracasso
do- projeto no qual ele depositara a maior confiança,
.«custa a Eisenstein obter visto de saída para Nova
Yorque, e só o consegue para ser imediatamente
s.nviado de volta a Moscou. Na União Soviética,
©: cineasta teve o desprazer de verificar como as
> coisas haviam mudado. 0 partido se convertera num
bioco monolítico, no centro do qual Stálin imperava
com poderes de um monarca absoluto. Na adminis­
tração dos negócios da cultura predominava um
burocrata assumido, de nome Andrei Jdanov, para
quem a arte deveria ser pensada em termos de renta-
biitdade política imediata. Acima de tudo, o espectro
de ■. Chumiatski rondava Eisenstein, vigiava-lhe os
: -passos, armava-lhe ciladas, esperava impaciente pelo
primeiro deslize para condená-lo ao limbo. É preciso
considerar ainda que, durante a ausência do cineasta,
as publicações especializadas abriram fogo contra
’ / *S.' ASC5NSÂO £ QUEDA DÊ UM BOLCHEVI QUE

eiseenjunto dé sua obra. Sua admiração pela cultura


ao ocidente foi considerada suspeita e suas idéias
'.'soWe. cinema e estética em geral rejeitadas como
"e&tistas" e alheias aos interesses do socialismo.
Em tais circunstâncias, Eisenstein refugia-se durante
alguma tempo no cargo de professor do Instituto
de Estudos Cinematográficos de Moscou e trabalha
em relativo isolamento. Não se pode dizer que foi
uma fuga: primeiro, porque o trabalho didático
que ele desenvolveu no Instituto, hoje reconstituído
por alguns de seus alunos, foi da maior importância
no campo da pedagogia cinematográfica; além disso, a
reclusão não arrefeceu sua verve polêmica, de modo
que, mesmo acossado, Eisenstein continuou a fustigar
o mau humor dos burocratas, sobretudo em seus
escritos teóricos (geralmente recusados pelos editores).
Mas o móvel principal das desavenças entre Eisens­
tein e a burocracia se deu quanto â questão do
"realismo socialista", uma vez que o cineasta se
recusava teimosamente a se submeter às estreitas
concepções de "realismo" em voga entre a inte­
lectualidade da época. Para Eisenstein, a arte era,
antes de mais nada, produção de sentido e, por isso
mesmo, reduzi-la a um puro "reflexo" mecânico
da natureza ou da sociedade significava ocultar o seu
papel ideológico real, que seria preencher de sentido
o mundo. Se os conservadores em geral se sentem
mais à vontade sob a égide do "realismo" é porque
taf carapuça parece imprimir ao objeto significante
um estatuto de "verdade", sem deixar transparecer
qua essa "verdade" é produzida. Num célebre escrito
EISENSTEIN 19

4$ 1929 {0príncfpio cinematográfico e o ideograma),


Eisenstein dizia: "0 realismo positivista não corres­
ponde de modo algum à verdadeira forma de
percepção. £ simplesmente função de uma determi­
nada forma de estrutura social na qual, em decorrên­
cia do absolutismo estatal, impõe-se uma unidade
estatal de pensamento. Uma uniformidade ideológica
que brota das fileiras de uniformes dos regimentos
da guarda imperial...". Qualquer coincidência
com a situação soviética é pura semelhança!
Em janeiro de 1935, Eisenstein começa a viver
■ , seu momento mais diffcil. Essa é a data do 19 Con-
- grasso dos Trabalhadores da Cinematografia Soviética,
; ■ que acabou transformando-se numa guerra declarada
contra o cineasta. Seu discurso de abertura, uma
brilhante exposição sobre a convergência da arte
contemporânea com a cultura "primitiva", desenca-
: ' eeou uma violenta reação em bloco. De iá saiu
humilhado, vilipendiado, carregando na lapela a mais
humilde e despre2fvel condecoração da noite. Entre
outras coisas, foi acusado de fechar-se numa torre
j. de marfim, recusar-se a fazer filmes e se abster do
trabalho de construção do socialismo. 0 congresso
■ valeu como um ultimato: era preciso fazer um filme
imediata mente, antes que sua situação polftica
■ degringolasse de vez.
Esse filme se chamaria 0 Prado de Ôejin e estava
i fadado a tornar-se o mais fulminante desastre na vida
do cineasta. Basicamente, era a narrativa de um
v jpvem pioneiro assassinado pelo pai, dirigente de
;; -um koíkhoz, ao denunciá-lo por envolvimento em
;2C ASCENSÃO E QUEDA DE UM BOLCHEVIQUE

. .sabotagem e corrupção. Mas, desgraçada mente, o


fííiíie sofreu uma interrupção que lhe foi fatal:
o cineasta contraiu varfola durante as filmagens
e tève de ficar hospitalizado por vários meses. Nesse
meio tempo, a polftica stalinista referente às campa­
nhas anti-religiosas no campo mudou para uma
convivência pacífica; e o filme tinha uma sequência
inteira de invasão de uma igreja e depredação de
seus ícones! Bastou isso para que Chumiatski
exigisse uma completa revisão do roteiro. As altera­
ções foram providenciadas, as filmagens reiniciadas,
mas o filme sofreu nova interrupção por complicações
de saúde do cineasta, e novas exigências de revisão
se acumularam tragicamente, fazendo estourar
prazos e orçamentos. Até que, em maio de 1937,
Chumiatski suspende em definitivo as filmagens e
publica violentos ataques contra Eisenstein, acuSando-
o do vício do "formalismo" e do "estetismo"
(referia-se principalmente aos experimentos com som
não-sincronizado com a imagem, que Eisenstein
pretendia praticar nesse filme). Finalmente, o
cineasta é forçado a publicar uma retratação: esse
texto deprimente é hoje um dos mais tenebrosos
documentos que nos sobraram do período, pois nele
Eisenstein assume e leva ao delírio os dogmas da
polftica cultural stalinista. Depois disso, o filme vira
tabu: ninguém mais se dispõe a falar dele, e o
próprio cineasta queima todos os documentos que
se referiam a ele, apagando-o em definitivo de sua
vida. Quanto aos negativos, não se sabe bem que fim
tiveram; diz-se que eles foram depositados nos
EISENSTEIN 21

v subterrâneos da Mosfílm e destruídos por uma


inundação durante a 2? Grande Guerra, mas há
V' suspeitas de que a destruição foi criminosa. Desse
j- fiime malogrado, só nos sobraram as fotos de
1 fifmagem tiradas por Eduârd Tissé e uma série de
fotogramas sequestrados pela montadora Esfír Tobak,
| ao que parece a pedido de Eisenstein ío cienasta
não tinha mais acesso â saia de montagem).
> Mas como nem tudo na vida são espinhos, a imi-
f - hência da guerra acabou criando condições para a
: “reabilitação" de Eisenstein. Em primeiro lugar,
it exigências de economia e eficiência impuseram o
> afastamento de Bóris Chumiatski do cenário cinema-
; tográfico, reconhecido afinal como um incompetente
I < de pai e mãe. Afastado o inimigo mais imediato,
V Eisenstein pôde respirar um pouco mais aliviado e
J; estudar as táticas de seu retorno à direção. Nesse
momento, a Rússia se dedicava a um vasto plano de
£. filmagens destinado a preparar o espírito soviético
: para enfrentar a ameaça nazi-fascista e precisava
5 contar com as forças disponíveis. Eisenstein se
|- ofereceu para dirigir Alexandre Nevski, biografia de
-' . um dos unificadores do império russo. 0 seu trabalho
nesse filme significou a sua completa ressurreição
? V ,política: em pouco mais de um ano, ele acumulou
mais prêmios e condecorações que em todo o resto
í de sua vida, além de ter sido nomeado diretor
;í artístico dos estúdios Mosfílm. De fato, raciocinando
r k em termos de eficácia polftica, Alexandre Nevski era
( poderoso: sua fúria antigermânica era tão explícita
•> que, assim que os russos assinaram o pacto germano-
■:"'22 ASCENSÃO E QUEDA.OE UM BOLCHEVIQUE

soviético de nSd-agressão, retiraram-no imediatamente


das teias, para colocá-lo em circulação novamente tão
fogo Hitler jogou suas divisões blindadas em direção
ao leste. As metáforas do filme falavam muito clara­
mente: entre outras coisas, a mão direita aberta e
estendida para a frente, inscrita nas armas do
cavaleiro alemão Ditlib e com a qual ele identificava
sua casa nobre, era a própria continência fascista!
Na verdade, porém, Alexandre Nevski não era
inteiramente um filme de Eisenstein. A fim de
impedir que o cineasta retomasse os seus "desvarios
experimentais", a administração da Mosfiim impõe-
Ihe uma nova equipe e o obriga a dividir a direção
com um co-realizador, Dimitri Vassilev, encarregado
de velar pelo respeito ao roteiro aprovado. Esse
Vassilev - que não tem nada a ver com os irmãos
Vassilev, tristemente célebres por terem sido as
pontas-de-lança do "realismo socialista" no cinema
— dirigiu a maior parte das tomadas, com base em
esquemas desenhados por Eisenstein. A este último
coube dirigir pessoalmente apenas a famosa sequência
da batalha no gelo. Em conseqüência disso, o desnfvel
de realização é gritante: a batalha no gelo é extraordi­
nária, controladissima, um verdadeiro balé de formas
de alta densidade significante, enquanto o resto da
pelfcula, salvo passagens muito episódicas, apenas se
conforma á mediocridade geral do cinema soviético
dos anos 30. O resultado final é um filme qufe, mal­
grado ocupando um lugar menor dentro da filmogra­
fia do cineasta, não é de forma alguma — e a isso
voltaremos na. terceira parte — uma obra de capitula-
EISENSTEIN

cão ou de conformismo. ,
Finalmente, durante toda a década de 40, até
çue complicações cardíacas lhe tirassem a vida em
- . 1Õ48 Eisenstein se dedica à elaboração da colossal
trilogia Ivan-o-TemVel, que reconstituía a lute pela
■ unificação dos principados russos, conduzida no
século XVI por Ivan IV, que se coroou a si próprio o
"tzar de todas as rüssias". Tanto Ivan quanto
Alexandre Nevski pertencem a uma linha de desen­
volvimento do cinema soviético que resulta direta-
• mente da revivescência do nacionalismo naiUR»,
durante os anos imediatamente anteriores à Segunda
Gyérra Mundial. 0 historiador Isaac Deutscher, em
seu livro A Revolução Inacabada, explica o surgí-
mento dessa ideologia patriótica como consequência
■ . inevitável da política da "revolução num só país
introduzida por Stálin desde meados dos anos ZQ.
L .Tal política estabelecia que para defender uma
União Soviética cercada, hostilizada e sabotada pela
. ' burguesia de todo o mundo, era preciso «ssarcorri a
atividade bélica de exportação da revolução, voltar-se
• ©ara a própria nação e restaurar a economia, criando
: Çna indústria de base poderosa. Malyacto.ajparente
■benevolência das intenções, essa política nao demo-
• raria a revelar^e uma tática para o grupo dirigente
i ; centralizar o poder em suas mãos, remover todas as
' liberdades e justificar o peso do sacrifício imposto a
ciasse operária. Foi essa política, segundo Deutecher,
que deu ao tratamento soviético da Segunda Guerra
•■ um caráter eminentemente nacionalista, de luta ue
país contra país, abafando portanto a luta de classes
EISENSTEIN 26

que já se processava no interior das nações beligeran­


tes, Ela explica também a, ênfase dada na virada dos
anos 30/40 aos fiimes que enfocavam as personali-
dades históricas que construíram e unificaram o
império russo, figuras como Nevski, Ivan, Pedro-o-
grande e, evidentemente, o próprio Stálin.
E certo que Ivan-o-Terrível foi concebido como um
tributo a Stálin, ou pelo menos foi a partir desse
argumento que Eisenstein obteve concessão para
filmá-lo. De fato, não é muito difícil traçar paralelos
entre as personalidades e os contextos de Ivan e
; Stáiin. Um como outro se celebrizaram por "unificar"
o país e defendê-lo da agressão estrangeira. Da mesma
forma, os dois enfrentaram a "conspiração" de um
f rfâmero incontável de "traidores", "sabotadores" e
"espiões", sabendo enfrentá-los com um regime de
: terror, baseado em expurgos e perseguições políticas.
No filme de Eisenstein, com exceção apenas de
Anastácia, mulher de Ivan, todas as demais persona-
gens se opõem e conspiram de alguma forma contra o
c? tz.acr mesmo seus companheiros mais fiéis passam para
- o lado inimigo. Como resposta â subversão generali-
: zada, o tzar faz desencadear a violência, mandando
matar inclusive parentes e companheiros mais próxi-
; mos e depois fazendo executar também os próprios
executores. Exatamente como na vida real. Sabe-se
, f püei enquanto Eisenstein rodava /van, a União
Soviética era acometida por um pesadelo sem fim: por
toda parte acumulavam-se acusações de traição, logo
respondidas com o terror generalizado, os degredos e
as condenações á morte; no final da vida, Stálin
///i6 • ASCENSÃO E QUEDA DE UM BOLCHEVIQUE

desconfiava até da própria sombra, O necrológio


staiínista, hoje bem conhecido, mostra o que repre­
sentou essa fase de inquisição na URSS: cerca de
ddis terços dos oficiais superiores fuzilados, mais de
noventa por cento dos delegados do partido liquida­
dos, cinco por cento da população presa, dez milhões
de detidos em campos de concentração e um número
incalculável de desaparecimentos, fugas e deporta­
ções, Esse labirinto dfe traições e perseguições, essa
redução de toda a atividade política de uma nação
a uma trama maquiavélica encenada em bastidores
escuros, tal é o tema que Eisenstein interpreta no
primeiro plano de sua trilogia cinematográfica.
Mas o estilo de representação que Eisenstein
imprime aos seus intérpretes, cheio de contorções
de corpo, espasmos e estranhas viradas de olhos,
parece criar um clima geral de demência coletiva,
como se o castelo de Ivan se tivesse convertido num
asilo, onde hostes de loucos encenassem uma paródia
do degringolamento do poder, à maneira do Marat/
Sade de Peter Weiss. Ademais, a ambiguidade toma
conta de tudo, Eufrosfnia Starftskaia, líder dos
boiardos e chefe da conspiração contra o izar, aparece
ora como uma personagem positiva, ora como uma
personagem negativa: diante do ataúde das vítimas
do tzar, ela se ajoelha e promete justiça; e quando
toma nos braços o cadáver do filho, morto no lugar
■ de Ivan, a sua dureza de chefe político, sua carranca
marcada peta sede de poder se liquefaz num choro
de mãe louca. À medida que evoluía da primeira para
• . a segunda parte e desta para a terceira inacabada, o
EISENSTEIN 27

tema do poder absoluto torna-se o da suà degeneres-


oência, e a carranca da autocracia se converte no
rosto da solidão. "Eu me esforço — escrevia o cineasta
em 1943 — por colocar no filme o motivo da auto-
4 cfacia como fatalidade trágica da solidão do senhor
absoluto". A obsessão por colocar os interesses do
Estado acima dos interesses dos cidadãos, o culto
fanatizado da razão do Estado como uma mística
//■cega aos clamores da realidade, tudo isso transforma o
projeto totalitário numa trajetória sangrenta e
Infinita: quanto mais se mata, mais se tem de matar;
, quanto mais se suprime inimigos, mais se faz inimigos.
No roteiro da terceira parte, prevista mas não
, executada, o tzar parece hesitar: "E preciso pagar um
: preço tão alto para se construir um Estado? Tenha
piedade de mim, Senhor!"
Evidentemente, não era essa exatamente a imagem
y de Ivan que a burocracia stalinista queria. 0 Ivan
retratado por Eisenstein era uma personagem hesi-
: tante e contraditória demais para ser celebrada como
um herói; estava mais para um Hamlet conturbado
pelas vicissitudes do poder do que para o monumento
nacional destinado â reverência pública. Por razões
dessa espécie, a segunda parte da obra foi alvo de
•'7 críticas bastante severas na imprensa oficial do
; partido, que levaram enfim à sua interdição pejo
/ Comitê Central e à suspensão das filmagens da ter-
/ ceira parte. Chamado para uma conversa particular
/. çòm Stálin, Eisenstein foi constrangido a fazer uma
/ :Ésõva autocrítica, que apareceu na revista Cultura
. e Vida de outubro de 1946 com o título: "Traí o
íá26 ASCENSÃO E QUEDA DE UM 8OLCHEVIQUE

sentido da verdade histórica", A segunda parte de


iV3n só seria liberada para exibição pública em 1958,
por ocasião do tímido processo de desestalinização
conduzido por Krutchev na década de 50.
Nada disso, porém, autoriza uma interpretação do
fiime que seja absolutamente hostil ao stalinismo.
Por mais que Eisenstein arrebentasse a cara com a
estrelteza de visão dos burocratas da época, ele se
conservou fiel, senão ao stalinismo como doutrina,
peio menos â feição tomada pelo socialismo a partir
dos anos 30. Mas a sua escritura fflmica era eloquente
demais para caber nos limites dessa geografia, e o
resultado é uma contradição profunda que sacode o
filme inteiro, um paradoxo brutal que, todavia, era a
única maneira de ser contestatório nas condições em
que ele viveu. Parodiando Marx, se é verdade que a his­
tória de Ivan se repete na história de Stálin, a primeira
é a tragédia e a segunda é a farsa-, mas, por uma espécie
de inversão revelatória, a celebração da farsa virou de­
núncia da tragédia por excesso de ênfase. De qualquer
forma, Ivan-o-Terrívei entrou para a história do cine­
ma por propor um modelo de dramaturgia polftica
que assume a contradição e, ao invés de fustigar o
inimigo de fora e objetivamente, deixa-se absorver por
ele para corroê-lo por dentro, oomo um câncer.
Nos últimos anos de sua vida, Eisenstein dedicou-se
à compilação de seus escritos e â redação de suas
memórias. Sabe-se que o cineasta derxou uma obra
escrita imensa, quase como uma espécie de compen­
sação peto boicote que sofreu em sua produção
cinematográfica. Depois da "reabilitação" do
EISENSTEIN 29

• . cineasta, já foram publicados na União Soviética seis


grossos volumes de suas Obras Selecionadas, mas
./ acredita-se que para abranger o conjunto de seus
escritos seriam necessários peto menos uns vinte
r volumes. Isso significa que a maior parte de sua obra
é ainda inédita em todo o mundo. Não se trata, é
claro, de textos acabados e sistemáticos; a leitura
Xítótes é muitas vezes difícil. Mas é preciso considerar
que Eisenstein, na maioria das vezes, escrevia para si
próprio e de uma maneira frenética, sem controle e
■.sem rigor. Sua escritura, diferentemente das disserta-
. ções teóricas, consiste em um fluxo quase irreprimível
• de idéias que brotam umas das outras de forma
d contínua. Apesar da prolixidade, essa obra é da maior
importância do ponto de vista qualitativo. Desco-
nnece-se um conjunto de reflexões que tenha sido
, capaz de atacar a teoria cinematográfica com a
mesma penetração e com a abertura que Eisenstein o
fez. Suas idéias ousadas permanecem um desafio que
obriga até mesmo a mais avançada crítica de hoje a
. meditar sobre seu sentido. Eisenstein foi também ata-
cado, questionado e odiado por suas idéias, sobretudo
durante os anos do neo-reaiismo italiano que, como
todo e qualquer "realismo", não se podia compatibiii-
•: zar com a radical idade do pensamento do cineasta. No
' entanto, seus detratores envelheceram e as críticas que
lhe foram desferidas não resistiram ao peso dos anos.
...As idéias de Eisenstein, pelo contrário, não apenas so-
breviveram aos ataques, como ainda estão sendo recu-
peradas pelas gerações mais jovens, que nelas encon-
tram um alento novo para suas criações arrojadas.
Capítulo
2 Entre a razSo e a paixão

tara Eisenstein, a revolução chega pelas portas do


construtívismo. Na Rússíâ dos anos 20, era a tendên­
cia cultural majoritária que buscava varrer do cenário
todos os resquícios de afetação romântica remanes­
cente da produção intelectual do tzarismo. Para os
construtivistas, o artista seria antes de mais nada um
engenheiro: sua arte deveria estar apoiada em
conceitos científicos solidamente assimilados; cada
ato de criação seria um processo consciente e raciona!
de manipulação de seu meio de expressão. Compreen­
de-se bem esse estado de espírito: a Rússia milenar e
tradicionalista acabava de vencer as trevas de uma
monarquia antiquada e repressiva e abria-se para a
esperança de uma era nova que nunca povo nenhum
experimentara. O clima era de euforia construtiva.
Assim é que, no caso do teatro, a atitude constfu-
tivista mandava o artista afastar-se definitivamente
dos métodos de Stanisiavsky, considerados psicologi-
zantes e baseados numa "inspiração" poética de gosto
EISENSTEIN 31

rançoso e de caráter quase místico. Esse Stanislavsky


Sêreca ponta de lança do teatro do período monárqui-
cc (mais tarde, paradoxalmente, ele seria ressuscitado
pêlos burocratas de Stálin e voltaria à circulação
.como o modelo oficial do teatro proletário!} e
representava o teatro "díreitinho", com sua separação
(rígida de palco e platéia, com seus atores-estrelas
"inspirados" e um estilo de encenação naturalista.
VÔ novo teatro soviético, entretanto, deveria entregar-
se à função pedagógica de educar as grandes massas
para as tarefas do socialismo, e por isso deveria
fazer-se funcional e eficaz. Meyerhold, principal
'('-figura do teatro revolucionário e pai espiritual de
Eisenstein, desenvolveu nesse tempo uma teoria da
representação teatral chamada biomecânica, que
visava liberar o ator de toda movimentação supérflua,
em nome de uma máxima eficiência. A biomecânica
èra um conjunto de exercícios físicos, baseado na
C-teoria dos reflexos de Paviov, que visava fazer do
edrpo do ator um rigoroso mecanismo de estímulos
e respostas destinado a atuar sobre os espectadores.
O teatro, no entender de Meyerhold, deveria trabalhar
. apenas com ações, gestos e eventos claramente
?decifráveis pelo público receptor e, para tanto, era
preciso que o ator fosse capaz de entender e dominar
í( a "mecânica" de seu próprio corpo,
Eisenstein foi o mais ardoroso continuador dos
experimentos de Meyerhold. Sua formação científica
(^permitia-lhe mover-se com desembaraço entre as
equações e geometrias dos círculos construtivistas e
exigir sempre mais em matéria de rigor e funcionali-
32 ENTRE A RAZÃO E A PAIXÃO

dade. Juntamente com seu companheiro de trabalho l


Tretiakov, estudou em primeiro lugar a teoria das ?
marionetes de Kleist, para verificar o funcionamento i
puramente mecânico e reflexivo do corpo físico. í
Kleist desenvolveu uma teoria segundo a qual era ?
possfvei operar as marionetes sem necessidade de :
inumeráveis fios para controlar todas as juntas, mas :
simplesmente fazendo variar o centro de gravidade do ■
boneco: qualquer impulso nesse centro seria imediata­
mente distribuído para as extremidades por força da ■
lei da gravidade. Mas o corpo do ator em cena não era
constituído apenas de movimentos irrefletidos ou
"reflexos", mas também de impulsos voluntários
que, inclusive, poderíam controlar e inibir os primei­
ros.. Daí a necessidade de completar o sistema de
Kleist com a chamada "ginástica expressiva" de
Rudolf Bode, que era uma espécie de inventário das
potencialidades motoras do organismo humano e das
técnicas adequadas para controlá-io. Através desses
estudos, Eisenstein e Tretiakov acreditavam poder
amparar o jovem teatro soviético com uma metodolo­
gia científica de representação.
Um pouco mais tarde, Eisenstein vai acrescentar í
ainda a toda essa parafernália teórica o sistema '«
fisionômico de Lavater, para dominar também a
expressão facial dos atores: ele queria rostos que
dessem de imediato uma impressão da figura represen­
tada. Dessa preocupação, nasceu a sua célebre
"tipagem" (galeria de tipos), marca registrada de
todas as suas peças e filmes: rostos humanos profun­
damente transfigurados pela expressão, fisionomias
&$!’(■••• EISENSTEIN 33
gfé--. .
petrificadas em espasmos e enformadas pelo sentido,
fé como no teatro de triáscaras do JapSo, em que o
caráter da personagem já vem diretamente esculpido
fé no rosto do ator. Claro que o espectador ocidental,
fé viciado pelo abuso de uma produção naturalista
ÈÇ&btídiana, frequentemente se irrita com esses gestos
liféaferuptos ou essas faces deformadas, acha tudo isso
^te"^®@erado demais, mas para Eisenstein esse era o
ÉW-í^minho para penetrar mais profundamente no
fé?sentido, deixando de lado as ligações apenas episódicas
exigidas pela linearidade da narrativa tradicional,
fé’. Õ. que ele queria, no fundo, era isolar dentre todos os
te; movimentos produzidos pelo ator no palco apenas
te i aqueles dotados de intenção, aqueles capazes de
?? interferir sobre a percepção do espectador e aos quais
fé? sie deu o nome de movimentos expressivos. Mesmo
jte depois de superados a ortodoxia e os exageros de sua
éfé? produção inicial, Eisenstein conservará essa fixação
ÊteWas expressões calculadas e gesticulações insólitas: as
Ute.acentuadas contorções que impôs ao ator principal de
&i- Jv$n-oTerrfrel, por exemplo, levaram-no, segundo
feiteítízem, à beira da asfixia ...
Ête Mas aqui está a primeira contradição: todo esse rigor
^^construtivo, toda essa dissecação teórica catalogada
em tábuas logarftmicas não está ali senão para produ-
fêféttro ardor da paixão. Eisenstein queria um teatro de
|féfébma tal saturação emotiva que o sentimento de raiva
Kte '"seria expresso por um salto mortal num trapézio e
felicidade por uma explosão no palco. Para tanto, o
fe teatro deveria despir-àe de todos os seus adornos
fev fénarrativos e reduzir-se à sua essência: um mecanismo
Bfe?- ■
ENTRE A RAZÃO E A PAIXÃO

gerador de estfmulos e choques, ao qual o esoertadnr


Kri”-tu;:;™™:

~7Sou°:

□; S™ h máXim° de COnTOIe inetélX


raTto 1T %PraZ6r afetiVO' Esss íensa unidade da

Noseanosê3co^inciuXe'deieatMrá

* x»0
ím làí? S°trataremos mais adiante.
LEF Id rinM aPaT.n,° terceiro número revista
por ÉtX ■ P°r Ma'akovski} um manifesto redigido
SíL nJ, °nde peis primeira vez ele torna
e£ pXsTT Sm/M°nta9eni de atrações" é como
“atraS? ri hamsr 0 seu Projeto teatral, onde
ou dsXrT» T3V! tOd° momepto de agressividade
ou de.forte impacto emotivo, destinado a produzir
O;-, EISENSTEIN 35

^Cfoóddesnos espectadores. A "atração" seria então a


tínidade de base de seu teatro, a célula significante de
^dç decorrem as macroestruturas ideológicas da
ètera. Porque o teatro era constituído de "atrações",
jjfe-Hâvia mais necessidade de narrar uma estória ou

Í
decsêguir um fio dramático ligado a um aconteci-
tóento: só a "atração" era produtiva e essencial
e,põr isso, um teatro voltado para a máxima eficácia
deveria simplesmente dar-se ao trabalho de montá-ías.
Para quê - perguntava Eisenstein - gastar quatro
BiW-de encenação do Hamlet se, para se dar conta
ds- sua carga emotiva e dos seus jogos ideológicos,
feãsteva detectar os seus nós dramáticos, as suas
poucas mas intensas "atrações"? Assim é que, na sua
píimeira experiência de encenação teatral, a monta-
gem de um texto clássico de Ostrovski, Eisenstein
g$.;/reduziu toda a intriga da peça a pouco mais de vinte
^/■atrações", enxugando-a de seus meandros narrativos
;J.ongos e discursivos. O teatro tornava-se fábrica:
B .. J?eecjnomia e concisão de uma linha de montagem,
racionalização e eficiência de um cronograma de
^ operações; mais tarde, por ocasião das Máscaras de
h/í -íjáf, ele de fato se transferiría para a fábrica.
A origem dessas "atrações”, o leitor já terá descon-
fiado, está no teatro de variedades. Nada de surpre-
endente nisso: para toda a vanguarda teatral da época,
X; Ã> teatro era circo, music-hall, rebolado, ringue de
^.pb&xe, tudo menos a ribalta erudita tradicional. As
4/V suas "atrações", por mais calculadas que fossem,
^ Eisenstein .as buscava nas, formas de diversões
^■-■.'populares, muito mais intensas em impacto emocional
Duas "atrações"
circenses para a
montagem de
0 Sábio.
’ EISENSTEIN 37

|fê&$ií^íòs frios diálogos e monólogos do drama clássico.


^^BÍÈwie, os "atores" de Eisenstein revelavam-se
acrobatas, pafhaços e mágicos. Em O Sábio,
Ifeppcexemplo, a citada adaptação de Ostrovski, o palco
real idade um ginásio de esportes, isolado por
llwHa-corda de nós e pontilhado de traves, barras e
feijeáiiatós de salto. Sobre esse cenário, os "atores",
iWarícaturando militares fascistas e exilados "brancos"
os soviéticos designavam a reação pró-tzarista),
fe^frâterpretavam”, através de cambalhotas, rodopios e
|||iÈà8aneiras, a conspiração de uma burguesia refugiada
BB /França contra o Estado operário. Palhaços e
de ruídos fustigavam os espectadores na
lll^Üfáia, enquanto bombinhas juninas explodiam
|||íÉfeaixo das cadeiras. Era nesse clima que, a certa
pí dos acontecimentos, as luzes se apagavam, uma
descia do teto e... começava um filme. Esse
fl? filme — 0 Diárío de Glumov — representou o pri-
metro contato de Eisenstein com a prática cinemato-
gráfica, mas não tinha ainda nada a ver com o cinema
H^prõpriamente dito. Apenas um final surpreendente:
á/:;no filme, o ator Alexandrov saltava de um avião e
£í./caía num automóvel que rodava a alta velocidade; o
Ipíttóíomóvel parava finalmente em frente ao teatro do
^/Proletkult, onde encenavam O Sábio; Alexandrov
;^?/^ftava do carro e entrava; nesse momento, as luzes da
sala acendiam, e do fundo da platéia entrava de fato
p ator, trazendo debaixo dos braços o rolo de filme!
k i Eisenstein levou à cena ainda mais duas peças
^v?fámbas de Tretíakov) antes de se dedicar em defini -
r jivoao cinema. A primeira. Escuta, Moscou?, tratava
33 êntRE A RAZÃO E A PAIXÃO

; das recentes revoltas comunistas na Alemanha e na


Hungria, e a outra, Máscaras de Gás, sobre um
acidente numa usina de gás, foi encenada realmente
no interior de uma fábrica na periferia de Moscou
Tanto numa como noutra, ele se esforçou por
aperfeiçoar a sua técnica, reduzindo ainda mais o
numero de "atrações", para garantir um controle
maior do trabalho do ator, a ponto de chegar ao
extremo de tornar expressivos até mesmo um piscar
de olhos ou o ranger dos dentes.
Para os espectadores de hoje, que não tiveram o
privilégio de viver aquelas experiências excêntricas
do começo do século, o primeiro filme longo de
Eisenstein, A Greve, apresenta um material farto à
disposição, verdadeira antologia dos procedimentos
cênicos çonstrutivistas. No grosso, predominavam as
atrações no sentido primitivo que lhe deu o
cineasta: ação insólita geradora de impacto. Particu­
larmente sugestiva nesse sentido é a sequência de
apresentação do lumpemproletariado (escória
miserável habitante da periferia, convocada pela
polícia para infiltrar-se entre os grevistas e promover
desordens para justificar a repressão). A sequência é
uma verdadeira pantomima de circo, bizarra e aluci­
nante. O "rei" do cortiço, um canastrão maltrapilho
é anunciado por seu "escudeiro" anão, que o lava
veste e penteia como se fosse um monarca de verdade'
Depois, os dois pulam para dentro de um "automó­
vel - carcaça enferrujada, sem rodas e cercada de
iíxo - e fingem dirigir-se para o "reino". Após esse
K>go caricatural, o "rei" dá um assobio, no momento
EISENSTEIN 39 . ,

mesmo em que a câmera descobre uma fantástica e


Extravagante paisagem lunar: um campo semesco de
cavidades, como um queijo suíço, de onde emerge
qma tropa de indigentes, atendendo de pronto ao
Chamado do "monarca". Gatos enforcados pendem
0 cordas de ferro; uma prostituta-palhaço dança um
excêntrico balé mecânico. No final, embriagados e
histéricos, morrerão chamuscados pelo fogo que eies
.mesmos atearam. Na base dessa bizarria toda está a
recuperação de um dos traços essenciais da cultura
popular: a inversão carnavalesca das verdades supe­
riores. A pantomima vivida por esse lumpesinato
■iruanesco é uma espécie de espelho que devolve à
ordem capitalista a sua imagem invertida: o poder
tzarista tem no seu arremedo bufão a sua legitimidade
desmistificada. .
- Por ocasião da realização de A Greve, Eisenstein
andava ainda embevecido de construtivismo, exta­
siado pelas soluções cênicas que o tornaram conhe­
cido. No entanto, era preciso começar a superar-se,
para passar a fazer cinema. A Greve é portanto uma
obra de transição; nela Eisenstein percebeu que para
-evoluir do teatro para o cinema era preciso repensar
t^ua "montagem de atrações". No cinema, as formas
;-da cultura popular não penetram eo vivo, são apenas
representadas no jogo ilusionista de luzes e sombras
de que é composta a imagem. Por mais que o cinema
i busque aproximar-se dos meios populares de expres­
são, ele próprio não é circo, nem teatro de variedades,
í-mas inscrição química e mecânica, e isso muda tudo,
Fazer simplesmente com que os atores-acrobatas
& ENTRE A RAZÃO E A PAIXAO

representem suas pantomimas diante das câmeras


acaba por soar falso, e o resultado, por mais eloquen­
te que seja, não vai além do teatro filmado Na
tentativa de resolver esse impasse, Eisenstein dá um
passo importantíssimo, que repercutirá em sua obra
tnteira: no cinema, a "atração" não é mais o estímulo
agressivo em si, mas a confrontação de dois estímulos
diversos reunidos no ato da montagem. Explicando
melhor: no teatro íconstrutivista, é claro), se quero
indicar que determinada personagem é espiã da
polfcia, faço-a entrar em cena espalhafatosamente
fantasiada como uma ave de rapina. No cinema,
entretanto, essa mesma idéia se obtém associando uní
plano da personagem espiã a outro da imagem de um
animal agourento, através de uma montagem simples.
Foi exatamente o que fez Eisenstein em seu primeiro
filme longo: cada um dos quatro dedos-duros, intro­
duzidos pela polícia entre os operários para identifi­
car os cabeças do movimento paredista, é revelado
sempre através da associação com sua besta corres­
pondente: a raposa, a coruja, o buldogue e o macaco.
Muitos anos mais tarde, quando o cineasta estender o
conceito de montagem a todas as etapas de constru­
ção do filme, identificando, inclusive, uma montagem
no interior do piano (a composição entendida como
montagem), ele novamente "desenhará", através da
maquiiagem e da iluminação, o perfil dé uma coruja
no rosto de Eufrosínia Starítskaia, chefe da conspi­
ração contra o trono do tzar Ivan.
. A passagem de Eisenstein do teatro para o cinema
significou õ. salto da cottage de fragmentos autônomos
eisenstein ■ 41

/ oara os primeiros esboços de conceituaçao da mon-


íí rapem propriamente dita, entendida como um sistema
de relações entre dois planos capaz de produzir
fe^ntidos. Essa conceituaçao sofrerá desdobramentos
'oosteriores, até resultar no projeto mais ambicioso
do cineasta: o cinema conceituai. Por ora, entretanto,
v vejamos como se dá essa passagem da "atraçao
Wisimples para a "atração" associativa de A Greve.
W Evidentemente, eia não ocorre de forma tranquila.
próprio Eisenstein vai criticar-se mais tarde por
B aigumas associações meramente catárticas ao longo
fé desse filme, fruto de um envolvimento ainda muito
fé-intenso com o estímulo-choque em si, que todavia e
B estranho ao princípio da montagem cinematogratica,
è£ o que ocorre na sequência final do filme, em que o
cineasta faz um paralelo entre o massacre dos opera-
Mrios grevistas e a matança de bois num matadouro.
B Se essa sequência produz um choque no espectador
!<íi ~ e ela reaimente é cruel - isso se dá por razões de
fé mera purgação, pois não acrescenta nada à nossa
fé compreensão a não ser o sentimento óbvio de que o
fé massacre é desumano. Sentimento também relativo,
I porque se exibirmos a fita a um trabalhador do
k matadouro público, ou mesmo a um camponês
fé acostumado a gerar os seus próprios meios de subsis-
fé tência, eles não verão sentido na associaçao.
M - Outro é o caso do paralelo entre o coquetel dos
fé acionistas da fábrica paralisada e o pisoteamento dos
fé grevistas pela cavalaria. Aqui, a relação é mais com-
fé olexa: não se tratava simplesmente de dizer que
énquanto os operários eram reprimidos a burguesia
42 entre a razão e a paixão

■’£ST!' mas de estabeJecer uma ligação


, ■ •metafóricaMe causa e efeito entre os dois antago­
nistas da açao. Havia uma relação formal, unindo os
dois planos: cada vez que o patrão esmagava o limão
em seu coquetel, o torniquete "se transformava", no
piano seguinte, nas patas dos cavalos sobre as cabeças
indefesas, e o suco do limão "virava" sangue operário.
Note-se que os dois planos nem sequer eram contem-
crono.,o9‘camente; os operários estavam
elaborando a lista de reivindicações ,e os patrões
estavam reunidos para discuti-la; a ligação era portan­
to geradora de sentido, buscava a origem da repressão.
Su SiS’*8 fl0 ■"■«* "ora *»Ihe

Até então, ninguém ousara if tão longe numa


concepção de montagem. É çertoqüe Griffith estimu-
+S° ^nat,vo da seja pára imprimir
Sâ° f°S ac°ntecinlentosj oupara resolver
stuações complexas (como pára sugerir eventos
simultâneos, por exemplo). Mas as soluções de Griffith
apenas visavam aperfeiçoar a narrativa linear tradicio-
’S2nSte‘"' ®ntant0- a montagem era o
instrumento de articulaçao do sentido, graças ao qual
° cinema podia "raciocinar" e construir associações
intelectuais de alta elaboração. Nem é preciso dizer
que tal concepção foi alvo de crfticas esmagadoras
cujos ecos tardios ainda hoje se fazem ouvir. Segundo
essas crfticas, Eisensteín teria transformado a monta­
gem numa técnica de "manipulação" e de "dirigismo"
da consciência. De fato, as associações que eie forjava
eram ; fechadas , no sentido de que davam corpo a
EISENSTEIN . <

.uma intenção ideológica inequívoca. Mas a verdade é


■/que as articulações de imagens construídas através cs
< montagem não podiam escravizar o espectador, <
& -exatamente porque eram articulações que se faziam,
Msue nasciam diante de seus olhos. Em outras palavras,
^•a verdade (venha ela de onde vier) não era dada
Bpronta à inércia do público (isso é o que faz o cinema
f’;?àarrativo tradicional), mas se construía a vista do
feèspecfador, exigindo, inclusive, o concurso de sua
^Efetividade e de seu raciocínio. Era preciso que o
& público refizesse o percurso do autor, para que as
articulações se completassem e fizessem sentido,
f Por essa razão, o espectador de Eisenstein nao é
K receptáculo vazio de ideologias alheias, mas é sujeito
■ ativo (se não for, não entenderá nada) e por isso
mesmo intelectual mente livre para aceitar ou rejeitar.
. £ o próprio Eisenstein quem, para justificar o seu
método cinematográfico, recorre às palavras de Marx:
"O meio faz parte da verdade, da mesma forma como
: o resultado. E preciso que a procura da verdade seja
■ êla própria, também, verdadeira; a procura verdadeira
: é a verdade desdobrada, cujos membros esparsos se
reúnem no resultado".
O príncipe Kurbski
tenta seduzir a
tzarína Anastácia,
mas o olho
"divino" do tzar.a
observa por trás
{fotogravura da
7? parte de
Ivan-o-Terrível)
Capítulo
3 A dialética no cinema
■Assir
ísim raciocinava Bisenstein- tnhm
^adoTsob™ i"— *

pXíeípenasT^1^ & SeqÜência dispô.|os°?


seguindo o fio d™"™ tatriga-™^ Iinearmente'
cinema narrativo vuloar mJ3' 880 é 0 que faz 0
criativos da clnematoarafi»M? momen,<» Mis
essas Plani »mb 'X Mber 8r,i<!ular

==is=;s=s
EISENSTEIN .4$

deamento de conflitos. Por exempla: se num piano


temos uma mulher de roupa clara cercada de dois
homens de roupa escura, o plano seguinte nos deveria
mostrar um barco de vela escura cercado dos dois
lados pela água clara do mar; é como se um piano
fosse o "negativo" exato do outro.
Existe um dispositivo no cinema narrativo tradicio­
nal que se chama eixo da câmera: é uma espécie de
regra básica que determina a margem de deslocamen­
tos da câmera no espaço, capaz de preservar a conti-
nuidade dos movimentos. Se num determinado plano
mostro um trem se deslocando da esquerda para a
direita do quadro, todos os demais planos da seqüên-
ííçia devem necessariamente manter esse sentido,
inclusive aqueles tomados no interior do vefculo.
Mas se eu colocar a câmera no lado oposto àquele
í sob o qual foi feita a tomada anterior, a direção do
j trem vai aparecer invertida na tela, e isso irá desorien­
tar o-espectador viciado na linearidade do cinema
dominante. Tal espectador provavelmente traduzirá
essa inversão para o seu repertório tradicional e
pensará que o piano invertido mostra outro trem, que
V -vem na direção contrária ao primeiro. Pois bem:
Encouraçado Potemkin, fita na qual Eisenstein
^radicaliza sua concepção de montagem, quebra
programaticamente o eixo da câmera, gerando uma
complexa descontinuidade na evolução do filme,
v Quando os manifestantes de Odessa saem para ãs
í ruas em solidariedade aos insurretos do Potemkin,
: , Eisenstein inverte o fluxo da multidão ora para um
lado, ora para o lado oposto. Não satisfeito com isso,
Diagrama da montagem da sequência dos barcos, desenhada'
por Eisenstein para 0 Encouraçado Potemkrn,
'.ele joga com direções contrárias na composição de
tim mesmo plano: se a multidão que passa debaixo da
ponte caminha para teste, a que passa por cima
caminha para oeste. Mas não é só. Na sequência dos
/barcos que ievam mantimentos aos marinheiros
'ísarhotinados, a montagem efetua também um eston­
teante conflito de direções. Numa primeira tomada,
vemos os barcos, em diagonal ao quadro, navegando
no sentido da esquerda para a direita; na tomada
^■seguinte,- os barcos dirigem-se da direita para a
■^‘esquerda e na terceira tomada vemos barcos navegan-
• do em direções opostas, cruzando-se no centro do
; -quadro. Mas como poderíam eies navegar em
direções opostas se todos estão indo em direção ao
I.Éotemkin? Ocorre que Eisenstein não estava inte-
ressado na verossimilhança dos eventos: interpretar a
f - história era para ele mais importante do quesimples-
;vrriente reconstituf-ia. Da mesma forma, quando os
• marinheiros do Potemkin se preparam para a batalha
..final, vemo-los correndo em todas as direções ao
■.Çjmesmo tempo, numa tal vertigem de deslocamentos
..que o resultado final é uma irradiação de linhas para
todos os lados. Assim, os marinheiros que se encon­
tram no ponto A, por exemplo, se dirigem ao canhão
do ponto B, enquanto os que estão no ponto B se
/'/dirigem ao canhão do ponto A: o que não deixa de
\iser um absurdo do ponto de vista da estratégia
militar, embora seja perfeitamente coerente do ponto
de vista da produção de sentido.
< Esse procedimento contrasta com a representação
do inimigo, os soldados do tzar. Na sequência das
A DIALÉTICA NO CINEMA |

escadarias de Odessa, a multidão que foge dos cossa- 1


eos o faz da forma mais desorganizada possível 1
alguns cruzando com os outros no sentido transversal 1
e muitos deles não respeitando sequer o leito da (
escada, escapando pelos corrimãos e terrenos laterais, (
enquanto os soldados, pelo contrário, aparecem
dispostos de forma perfeitamente geométrica, com os
fuzis voltados para a mesma direção, atirando todos
ao mesmo tempo e com as botas marcando um <
compasso rígido e exato. £ que o movimento que
comanda as botas dos soldados do tzar não é o
resultado da soma das selvagerias individuais, mas o
efeito de uma ordem (social e política), ela própria
monolítica, hierárquica, autoritária. 0 que esse jogo
de formas nos ensina é uma coisa desconcertante j
sobretudo se levarmos em consideração as condições )
políticas em que se produziu: a liberdade é plural 1
contraditória e vive da tensão dos contrários; em j
contrapartida, a opressão é monotônica, linear e
unídirecional. O Encouraçado inteiro está construído |
sobre esse conflito entre o uniforme e o poliforme. |
Quando a mulher, carregando nos braços o filho I
fuzilado pela polícia, caminha capengando no sentido |
inverso ao dos soldados, temos condensado num só .1
plano o conflito básico do filme entre a ordem 1
inflexível do poder e a desordem libertária das
massas. Contra aqueles que querem impor a razão -I
unídirecional do desfile, a massa popular responde 1
com a folia indomesticável da festa. |
Isso foi nos anos 20. Na década de 30, em plena '3
euforia do "realismo socialista", esse mesmo conflito |
' EISENSTEIN ' . / ' .

B básico entre o maniquefsmo opressor e a poHcr0mí^


- libertária ressurge nesse filme estranho e sofrido que
Alexandre Nevski. Muitos estudiosos da obra dq; '
i^feisenstein, seguindo uma indicação do próprtó?-;,
B cineasta, enfatizaram o papel jogado pelo branco e o.
^fcpreto na separação dos campos ideológicos antagô-
nicos: os invasores teutônicos, sanguinários em sua
tgBmblção colonialista, vestem-se inteiramente de
^branco, enquanto os defensores da soberania russa
^aparecem trajados de preto. Muito se comentou a
Êdrespeito dessa curiosa inversão da simbologia das
Ifeqores: o lado positivo é preto e o negativo é branco!
entanto, essa distinção não se sustenta diante de
sfeüm exame mais minucioso do filme. Há alguns
^ligurantes inteiramente vestidos de negro no lado
fíVãlemão, como é o caso dos acólitos religiosos. Por
B outro lado, não é certo que a indumentária dos russos
'í seja preta, mas sim uma variedade imensa de tons de
■ cinza. Na, verdade, o conflito cromático que existe
* no fiime é um pouco mais complexo. Os invasores
í aparecem trajados o tempo todo em cores monocro-
.. . máticas: ou estão inteiramente de branco, ou irneíra-
mente de preto; não existem atenuantes cinza, nem
^mistura de cores. Já no lado russo se dá o contrário:
. nenhum soldado está trajado com cores puras; a
B indumentária do exército é uma miscelânea de tons
£ cs mais variados e sem a menor uniformidade. Tal
< como no Potemkin, há uma recorrência do tema
eisensteiniano das formas monovalentes ligadas ao
Binimigo opressor e das formas plurfvocas ligadas às
fc£-f.órças libertárias.
A DIALÉTICA NO CINEMA

Mas não é só. E preciso notar ainda o rigoroso


ordenamento plástico nos deslocamentos do exército
teu tônico. As lanças espetadas para a frente, o alinha­
mento dos capacetes, o trote sincronizado dos cava­
los, tudo concorre para a composição de rígidas
formas geométricas. Belas simetrias, magníficos
efeitos de linhas de fuga regulares; o inimigo aparece
como uma máquina bélica, bem preparada para o
confronto. No entanto, todo esse espírito de parada
nao está ali senão para esconder a falta de motivações
interiores, o vazio ideológico que corrói essas carcaças
de soldados, treinados apenas para obedecer cega­
mente às ordens baixadas de cima. Outro é o caso dos
soldados russos: nenhuma habilidade guerreira
nenhuma vocação para o desfile militar, absoluta
negligência para as formações geométricas. E apesar
de toda essa diversidade, ou justamente por causa
dela, motiva-os o ódio ao opressor, a energia vital de
quem tem razões para o combate: essa é a força a "es­
tratégia" que lhes dá a vitória.
O inimigo é um sistema, é uma ordem social rígida
e perene e por isso Eisenstein evita personalizá-lo
retira-lhe os traços distintivos que lhe dão contempo-
raneidade: os soldados que fuzilam as massas nas
escadas de Odessa não têm rosto; deles só vemos as
botas, os fuzis e uma ou outra silhueta furtiva. Esse
procedimento mostra-se tanto mais intenso quando se
sabe que o Encouraçado é um filme que enfatiza o
primeiro plano fisionômico; aliás, grande parte do
efeito dramático do filme está ligado ao seu retalha-
mento em primeiros pianos de rostos populares trans-
eisenstein - . “

P ;figurados de expressão. No Alexandre Nevski,


' Eisenstein é ainda mais incisivo:: nesse filme, os
soldados inimigos não apenas estão massificados
K: numa ordem monotônica, mas aparecem ainda defini-
S-çitívamente despersonalízadospelos capacetes que lhes
^ encobrem inteiramente o rosto. WuHo mais que
Jhíarmadura defensiva, essas máscaras que homoge-
Pmeízam o exército teutônico funcionam como inscri-
&ão ideológica: nos cilindros lisos e opacos, que
^■apagam as fisionomias humanas e seus traços distinti-
* vos, a única entrada de ar e de !uz é um rasga em
fc^forma de cruz (sfmbolo cristão), de onde escapa a
pontinha do nariz, dando à figura um aspecto vaga-
" mente obsceno ... Essa abstração da fisionomia do
g inimigo nos parece uma das formas mais eloqüentes
f- de pintura do Poder como força cega à vontade dos
subjugados, mas também é um mecanismo gerador de;
ambiguidade, que torna o opressor generalizável para
■ contextos outros que não o circunscrito pelo fume,
Não cremos que Eisenstein estivesse consciente de:
• todas as implicações de seus filmes a nfvel ideológico,,
> mas como artista sensfvel às forças vitais de sua época
<'■' ter-lhe-ia sido diffcii passará margem das contradições
1' reais do meio em que atuava. De qualquer maneira,
no momento mesmo em que se dá o crescimento do
monolitismo ideológico do partido e Stáim vai
■ impondo sua política gradativa descentralização total
X do poder, os filmes de Eisenstein aparecem como
objetos estranhos, que perfuram o conceito de
< revolução como sufocamento da vontade, da dtver-
gência e da independência de cada um. Evidente-
Despersonaiização da fisionomia do inimigo
em 0 Encouraçado Potemkin {acima} e
Alexandre Nevski [abaixo].
EISENSTEIN .55;

pmente, nada disso ficava claro aos aparelhos culturais


de Stálin. E como a causa do mal estar não chegava
i a ser detectada, os burocratas traduziam o descdn-
; forto para o seu repertório, acusando Eisenstein de
resistir à linha da narração realista pela qual os
£ artistas todos da União Soviética já haviam optado.
• Ao que o cineasta respondia: "Eu não sou realista;
ç sou materialista, acredito que a matéria provoca em
p nós sensações!" No fundo, os confrontos que se vão
sucedera partir de Outubro entre os comissários da cul-
p. tura e Eisenstein podem ser definidos como o choque
pf entre uma concepção ingênua e oportunista de "realis-
p mo" e a visão do cinema como produção de sentido.
Havíamos colocado logo atrás que a montagem
< para Eisenstein era um mecanismo ativador de
conflitos, que ela jogava um plano contra o outro,
r que eia quebrava a continuidade dos eventos, impon-
do portanto uma visão multifacetada do fenômeno.
Conflito de direções, conflito de cores ou tonalidades,
. conflito de jogos de iluminação, de volumes, de
> velocidades, de formas em geral: o que importava
para Eisenstein não era a reprodução naturalista do
mundo sensível, mas a articulação de imagens entre
si, de modo que a sua contraposição ultrapassasse a
mera evidência dos fatos, gerando sentido. A monta­
gem, para ele, tinha por função destruir as aparências
do mundo visível, para em seguida poder reconstituí-lo
sob uma ótica nova e mais penetrante. Opondo-se
furiosamente às concepções lineares e orgânicas de
montagem, Eisenstein queria que o corte transgre­
disse o acontecimento, forçando a emergência do
. ' 58'. A DIALÉTICA NO CINEMA

sentido: "A montagem ~ dizia eíe - faz nascer uma


idéia a partir do choque de dois elementos opostos".
Muitos analistas viram nessa concepção de monta­
gem uma transposição mecânica da dialética de Hegel
e condenaram em Eisenstein a assimilação grosseira
da trfade tese-antftese-sfntese, que eie teria reduzido
a esquemas meramente formais. Mas os crfticos que
assim agiram apenas demonstram que não entenderam
nada. Era no cinema que se dava o combate de
Eisenstein: era af que a mfstica do "realismo" se
instalara com toda sua inocência, obrigando o
cineasta a enfrentá-la com a radica!idade de sua
montagem "dialética". O cinema narrativo linear e
bem comportado, esse cinema com o qual estamos
acostumados, apóia-se nas técnicas de contar uma
estória com tal "naturalidade" que o espectador é
capaz de jurar que aquilo tudo está de fato aconte­
cendo diante de seus olhos. Tal cinema busca ocultar
do espectador a manipulação, os cortes, as cesuras, a
reconstrução, a interpretação que estão na base de
toda representação. Em troca, eie quer simular a
integridade do "mundo real", apagar de cena todo
choque, todo conflito, toda violência técnica que
possa denunciar a mão de um operador interferindo
sobre as tomadas; ele quer, enfim, que os aconteci­
mentos pareçam "estar lá", independente da câmera
que os captou e dos homens que os manipularam.
Muito pelo contrário, as intervenções abruptas e
violentas da montagem eisensteiniana quebram essa
"objetividade" simulada, comprometendo portanto
.. a ilusão de "realidade": a técnica aparece, os recursos
EISENSTEIN 57

se mostram abertamente, o cinema se exibe como


produção de sentido. Essa é a marca principal que
distingue o cinema de Eisenstein de seus congêneres
burgueses aparentemente tão próximos (como
Griffith, por exemplo): enquanto estes procuram
-esconder a manipulação ideológica, fazendo-se passar
por uma universalidade transparente ("a vida como
. ela é"), aquele recusa a mistificação e revela o que
toda representação é: um ponto de vista de classe.
Em O Encoúraçado Potemkin, os soldados que
.descem as escadarias de Odessa, fuzilando os mani­
festantes, não chegam jamais à base da escada; os
cortes, ao invés de resolverem o confüto, indicando
o seu fim, reciclam-no novamente, devolvendo os
- soldados ao topo da escada e recomeçando a fuzilaria.
Ào invés dê ajudar a descrever o acontecimento, a
montagem multiplica-o, dilata-o, u!trapassa-o, redu­
zindo a hedionda selvageria dos cossacos à sua
essência repressiva. O mesmo acontece durante a
; abertura da ponte, em Outubro, para impedir que os
operários dos bairros atingissem o centro de Retro­
grado: sem alterar a velocidade normal do movimento
da ponte, Eisenstein dilata a sua duração, através da
repetição do mesmo motivo sob ânguios os mais
■ diversos. Dessa forma, a duração da ação se prolonga
para além do tempo, "natural" e o acontecimento
; resulta decomposto e dissecado por uma espécie de
"câmera lenta" artificialmente produzida pela monta­
gem. O mesmo procedimento vamos ainda encontrar
na abertura de Ivan-o-Ternvel, ocasião em que as
^moedas com que.é banhado o monarca parecem cair
- : ' 58 A DIALÉTICA NO CINEMA

< infinitamente do cesto, multiplicadas pela montagem


i; reiterativa. Nesses exemplos todos, a evolução do
acontecimento é distendida a partir de um critério
não naturalista, de modo que o evento se deixa
desintegrar num espaço-tempo descontínuo, que
para Eisenstein é intelectual, pois coloca a nu a
ossatura significante dos fenômenos.
Eisenstein, todo mundo o sabe, fez basicamente
filmes de propaganda. Os nazistas também o fizeram,
os americanos de ontem e de hoje também o fazém.
A grande diferença, porém, é que enquanto a propa­
ganda convencional se faz reconfortante e positiva, a
serviço-de forças monolíticas, os filmes de Eisenstein
resultam demasiado perturbadores e escorregadios
para os interesses de qualquer sistema centralizado
de poder. Mesmo num filme tão vigiado como
Alexandre Nevski, a inquieta transgressão da normali­
dade narrativa acaba por corroer a sua eficácia doutri­
nária. Entre outras coisas, a quebra incessante do eixo
da câmera durante a batalha no geio produz um
angustiante desnorteamento no espectador, porque a
partir de um certo ponto torna-se difícil saber quem
está de que lado, sob qual bandeira se bate cada
troço guerreiro. O embaralhamento é tão grande que
não é de se surpreender que, num determinado plano,
o soldado russo Vassiii apareça travestido de alemão
e infiltrado no exército inimigo para combatê-lo por
dentro. Eisenstein soube perfurar de forma tão
contundente a prática do cinema que a oontradição
acaba por se impor sobre o dogma, transformando a
propaganda em perversão e paródia.
Capítulo
4 o visível eo invisível

f No final dos anos 20, Eisenstein escandaliza a

sagrada família soviética, ao tornar pública sua


< intenção de filmar O Capital de Kari Marx. A notícia
c se alastrou rápido, provocando desconfiança e riso
' por toda parte; até mesmo Stálin, em conversa
•S privada com Eisenstein e seu assistente Alexandrov,
V teria condenado a "leviandade" com que "certos
;/ cineastas" tratam o pai do marxTsmo. A idéia, toda­
via, não deveria causar espanto a quem estivesse
mais familiarizado com a evolução do trabalho desse
; irrequieto bolchevique. Se o leitor ainda está lembra­
do, dizíamos, algumas páginas atrás, que Eisenstein
experimentara nas "atrações" de A Greve as suas
, primeiras associações intelectuais. Mas a possibilidade
se lhe afigurou melhor por ocasião da famosa metá­
fora do "despertar do leão" em O Encouraçado
> Potemktn, em que uma sucessão de três estátuas de
leões (o primeiro dormindo, o segundo levantando-se
; e o último em pé, rugindo) simbolizava o despertar
(60 O VISÍVEL E O ÍNVtSÍVEL |

da consciência operária na rebelião de 1905. No |


manejo dessas "atrações" associativas começou ete a 1
- avaliar a possibilidade de se colocar em filme
i conceitos intelectuais diretamente produzidos, sem a
fí mediação de uma fábula, de personagens ou de
quaisquer outras ligações narrativas. A novidade do %
1 projeto estava na descoberta de que a potencialidade j
1 crítica e analítica do cinema não se limitava às |
jí "lições" que se podia tirar de uma estória particular, -Í
jí mas residia também nos conceitos teóricos que se j
$ podia construir dirçtamente a partir das formas F
V cinematográficas. Isso queria dizer que o cinema não ?
estava necessariamente condenado â narração ou á
jh reportagem, mas podia pretender também o ensaio
v científico. Daí para O Capita! bastava um passo.
| Os princípios de seu cinema conceitua! ou intelec-
tua/, Eisenstein os foi buscar no modelo da escrita
pictórica das línguas orientais. Seu primeiro contato
i com essa escrita se deu ainda durante a guerra civil,
s Um companheiro de caserna ensinava japonês, e
F Eisenstein, que a esse tempo já era poiigiota, decidiu
aprender, mesmo sem saber bem a que lhe serviría.
Nos anos 20, ele escreve vários artigos relacionando
F a língua e a cultura japonesas com o cinema, dos
i- quais o mais célebre — O Princípio Cinematográfico e
o ideograma — era um prefácio a um íivro sobre o
cinema japonês. Os seus experimentos mais ousados
k com o cinema conceituai são contemporâneos desses
artigos. Na década de 30, entretanto, ele entra em
contato com a obra clássica de Marcei Granet O Pensa-
• . mento Chinês, e muda substancial mente suas opiniões.
EISENSTEIN 61

0 Japão passa a ser considerado apenas uma vulgariza­


ção da China, o seu lado mais mecânico e superficial,
enquanto o pensamento chinês é muito mais difuso,
não-racional, ou como diriamos hoje, mais icônico.
Aí é que estava o problema, para Eisenstein: se a
língua chinesa não tem nenhum rigor, se ela é desti-
tu ida de flexão gramatical, sê oferece tantã resistência
para anotar o conceito abstrato, como pôde, entre­
tanto, construir uma civilização tão prodigiosa?
A resposta está no mesmo processo empregado por
todos os povos antigos para construir seu pensamento,
ou seja, no uso das metáforas (imagens materiais
articuladas de forma a sugerir relações í matéria is) e
das metonfmias (uso da parte para designar o todo}.
Nas línguas ocidentais, as palavras designam direta­
mente os conceitos abstratos; no chinês, entretanto,
pode-se chegar ao conceito por uma via inteiramente
outra: operando combinações de sinais pictográficos,
de forma a estabelecer uma reíaçao entre eles. Por
exemplo: para anotar o conceito de "amizade", a
língua chinesa combina os pictogramas de "cão"
(símbolo da fidelidade) e de "mão direita" (com a
qual se cumprimenta o amigo). Cada um desses sinais
isoladamente se refere apenas a uma "amizade"
particular; a combinação dos dois, entretanto, abstrai
esses aspectos particulares, fazendo com que o sígno
resultante designe a "amizade" em geral:

SE
à cão + mão direita =
X
"amizade"
EISENSTEIN 63

f Evidentemente, esse não é o único princfpio de


^construção dos caracteres chinesés, mas apenas um
dos quatro principais, justamente aquele que inte-
ressou mais de perto a Eisenstein. Juntem-se dois
pictogramas para sugerir uma nova relação não
presente nos elementos isolados; e assim, através da
associação de caracteres, chega-se ao conceito âbstra-
to e "invisfvel", Esse é, justamente, o ponto de
^partida do cinema intelectual de Eisenstein: um
cinema que, partindo do primitivo pensamento por
; imagens, consiga articular conceitos com base no puro
jogo poético das metáforas e das metonfmias. Inspi-
rado nos ideogramas, Eisenstein acreditava na
possibilidade de se construir conceitos abstratos por
; intermédio apenas dos recursos cinematográficos, de
forma que o cinema pudesse atingir diretamente o
ensaio, sem passar pela narração.
Vejamos um exemplo bem simples. Suponhamos
•fique Eisenstein quisesse condensar numa imagem esse
"conceito" complexo e resistente à anotação através
de imagens: a greve, entendida como uma atitude
operária que afeta proposital mente a produção. Mas
; não quisesse mostrar isso de forma proiixa, a partir
de uma longa narrativa ilustrando o tema. A solução
ele a dá em seu filme A Greve: superpõe o piano de
três operrios cruzando os braços ao plano de uma
engrenagem industrial parando de funcionar. Esse
exemplo mostra como uma generalização nasce a
partir da pura materialidade dos caracteres brutos
1 particulares: a ínterpenetração de duas representações
singelas produz uma imagem general izadora que
64 0 VISÍVEL E O INVfSÍVEL

ultrapassa as particularidades individuais de seus


constituintes. Em quase todos os exemplos de A
Greve, Eisenstein utilizou-se do recurso da sobrepo­
sição para relacionar dois planos; em Outubro, ele
simplesmente os faria sucederem-se um depois do
outro, através de um corte simples. Já em /van, a
relação se dava de forma mais sutil, no interior do
mesmo plano. Por exemplo, quando Ivan está conce­
bendo a estratégia que poderia levá-lo a vencer o
cerco inimigo e restabelecer o comércio com seus
aliados ingleses, os efeitos de iluminação fazem
projetar na grande parede do castelo as sombras
fundidas da cabeça do tzar e do globo terrestre que
estava sobre sua mesa: uma cabeça que contém o
mundo — eis aí, em toda sua eloquência, um "ideo­
grama'' de pensamento.
Como Márx e toda legítima tradição marxista,
Eisenstein queria perfurar a aparência exterior das
coisas para descobrir nas suas entranhas invisfveis a
essência significante dos fenômenos. No seu Outubro,
por exemplo, a tendência geral era operar uma
espécie de síntese da realidade, para eliminar aos
poucos os vínculos imediatos com os dados sensíveis
do mundo visível. Assim, a "realidade" imediata, a
presença pura e simples de homens e objetos no
mundo, as funções de mera "mostração" enfro-
nhadas nas figuras cedem íugar progressívamente a
uma produção simbólica ininterrupta. No início do
filme, uma multidão entrelaça e amarra com cordas a
estátua do tzar Alexandre III. Espera-se que, em
seguida, esses mesmos braços populares puxem as
EISENSTEIN 65

cordas para derrubar a estátua do déspota. Quando a


estátua começa a cair e ruir-se em pedaços, porém,
: notamos que já não existem cordas e que ninguém a
está derrubando. Procurando ultrapassar o nfveí da
representação realista imediata; Eisenstein eliminou
. as "personagens" da ação, para dizer que o império
tzarista cafa graças a um conjunto de forças invisíveis,
■' cuja natureza de classe cabia ao filme demonstrar,
Essa mesma estátua do tzar Alexandre III aparecería
mais tarde "reconstituindo-se" a partir de seus peda­
ços (graças à montagem invertida) quando a revolução
se vê ameaçada peia tentativa de golpe do general
direitista Kornilov. O mesmo processo é utilizado
para representar os ministros do governo provisório,
que em algumas cenas não aparecem encarnados por
atores, mas apenas representados pelos trajes que os
caracterizam: costumes escuros, chapéus e bengalas
;• confortavelmente "acomodados" em suas cadeiras
junto â mesa de reuniões; fica claro que Eisenstein
não se estava referindo a nenhum ministro "singular",
mas à instituição democrático-burguesa como um
todo.
Ao projetar levar O Capite! para a tela, Eisenstein
não se interessava tanto em enfocar os diversos temas
abordados nessa obra quanto em retomar o método
marxista de investigação: a dialética. Ao invés de
ilustrar mecanicamente os conteúdos materiais que
Marx articula em sua obra, Eisenstein — segundo as
centenas de notas que deixou sobre o assunto —
pretendia colocar em imagem o próprio percurso
:• intelectual, o método dialético de operar sobre os
O VISÍVEL E O INVISÍVEL

dados da realidade. Portanto, nada de exótico havia


no seu projeto; ele era apenas uma continuidade
natural de seu trabalho. Mas, se 0 Capita/ não chegou
a tomar corpo, o que nos privou do que podería ser
talvez uma obra-chave do cinema, restou-nos o seu
preâmbulo, personificado nos admiráveis Outubro e
O Velho e o Novo, duas obras essenciais para se
medir a vitalidade do cinema conceituai.
Outubro, longe de ser um mero relato histórico
romanceado, uma simples "reconstituição" dos
acontecimentos que marcaram a, revolução bolchevi­
que de 1917, é quase um ensaio teórico sobre essa
revolução, onde a mobilização das classes na luta pelo
poder é analisada em todos os seus ângulos e desen­
volvimentos. Em um manifesto escrito em 1929,
Eisenstein reconhecia nesse fiime os passos iniciais
de um rompimento radical com toda a tradição
cinematográfica herdada do ocidente. A fragmentação
da narrativa histórica para nela inserir comentários
visuais é aí de tal proporção que não se admite
concessões âs normas clássicas de continuidade.
Responsável principal por essa verdadeira pulveriza­
ção da narrativa é o jogo incessante das metáforas e
das metonímias: de associação em associação, saltan­
do de um orador menchevique para um harpista
clássico, Eisenstein conduz o raciocínio no sentido
de um desenvolvimento intelectual cada vez mais
livre das conexões fantasmagóricas da "realidade"
imediata. A escalada de Kerenski rumo ao poder, por
exemplo, aparece como uma ascensão absurda rumo
a parte alguma. Logo após a revolução democrático-
EISENSTEIN 67

burguesa de fevereiro de 1917, Kerenski é coroado


"bonaparte" (em terminologia marxista quer dizer:
conciliador das classes beligerantes) e ocupa o imenso
e barroco Palácio de Inverno dos tzares. Numa das
sequências dessa ocupação, Eisenstein nos mostra o
ditador subindo as escadarias do palácio, porém
repete esse mesmo plano ao infinito, apenas mudando
o ângulo de tomada. Como esses planos repetidos
estavam intercalados com "letreiros" que especifica­
vam os sucessivos tftulos e postos do "bonaparte"
(Ministro da Guerra e da Marinha, Primeiro-Ministro,
Chefe Supremo, Ditador e assim por diante ...), o
comportamento da personagem resulta ironizado, já
que â progressão dos "letreiros" não correspondia
nenhuma progressão a nível visual: o candidato a
ditador não saía nunca do mesmo lugar, por mais que
galgasse os aitos postos da instituição governamental.
O "bonapartismo" de Kerenski é ainda visualizado
no filme através de uma metáfora surpreendente: na
tentativa desesperada de se sobrepor às classes em
conflito, Kerenski tenta juntar as quatro partes de
uma garrafa de licor, fixando-as com uma réplica de
sua coroa imperial. Da mesma forma, a impossibili­
dade de uma saída burguesa para a crise do regime
"democrático" russo toma a forma de uma solução
absolutamente intelectual: os sete copos de café dos
ministros em reunião se dispõem sobre a mesa nas
mais diversas formações geométricas, ora em fila
indiana, depois em círculo, novamente em linha reta,
em forma de triângulo, etc. Arrancados do mundo
visível e articulados através de procedimentos sintáti­
58 0 VISÍVEL E 0 INVISÍVEL

cos, as representações particulares ganham conexões


de sentido.
Alguém já afirmou ironicamente que, assistindo a
Outubro, tem-se a impressão de que foram as estátuas
de Petrogrado que fizeram a revolução bolchevique.
Essa seria a conclusão mais óbvia de quem praticasse
uma "leitura” tradicional, de moldes naturalistas. De
fato, as estátuas e monumentos desempenham nesse
filme um papel central; mesmo os homens de carne e
osso parecem tender para a imobilidade de pedra da
escultura. As estátuas interessam a Eisenstein porque
são signos de sentido cristalizado e exigem o concurso
da montagem para animar-se e articular valores.
Dinamizando as estátuas, o cineasta nega o sentido
que está neias petrificado e as obriga a configurar um
sentido novo e mais complexo; A célebre sequência
"dos deuses” é o melhor exemplo eisensteiniano de
como um sentido generaiizante pode ser obtido
através da montagem de tomadas fixas e singelas.
A marcha de Kornílov sobre Petrogrado foi realizada
sob a bandeira Em Nome de Deus e da Pátria. A partir
dessa expressão Em Nome de Deus, Eisenstein faz
desfilar diante de nossos olhos uma série de imagens
de fdolos religiosos, desde o Cristo barroco de ouro
até o tosco deus de madeira de um povo da Sibéria.
A sucessão das várias divindades diferentes produz o
conceito geral de "deus", enquanto que a ordenação
das imagens, da mais rica e complexa até a mais pobre
e simples, pratica um verdadeiro "desnudamento"
desse conceito, de tai forma que "deus” se reduz a
um simples produto da imaginação humana. Ainda
EISENSTEIN 69

digno de notar nesse exemplo é que a "desconstrução"


dos deuses se dá também no enquadramento: as
primeiras tomadas enquadram o "alto sublime" das
divindades (cabeça e auréola) enquanto as últimas
enquadram os pés e toda a parte "baixa" do corpo,
onde estão as -funções vegetativas depreciadas social­
mente. Isso equivale a um verdadeiro destronamento
de "deus" — o trono sagrado vira bacia sanitária.
Já em O Velho e o Novo, Eisensteín procurou dar
ao seu cinema conceituai um tratamento mais didá­
tico, cuidando de sua inteligibifidade para uma massa
maior de espectadores. Outubro havia sido muito
criticado e acusado de "elitista" por causa de suas
arrojadas articulações formais, e o cineasta queria
provar que o cinema intelectual não era necessaria­
mente um cinema para intelectuais. Por essa razão, as
associações de 0 Velho e o Novo parecem resultar
mais simples, embora não menos inteligentes. Veja­
mos o exemplo do sonho de fecund idade de Marfa
Lapkina, sequência muito apreciada sobretudo pelas
suas metáforas sexuais (do erotismo desse filme
trataremos no quinto capítulo). Deitada sobre a
caixa de economias da cooperativa, onde estavam
algumas parcas moedas, Marfa dorme e sonha. Ao seu
lado está a desnatadeira recém-adquirida, que exige
matéria-prima (leite) para funcionar. Mas os latões
estão vazios. No sonho vemos um rebanho pastando
e, acima dele, o céu cheio de nuvens. Uma das nuvens
"transforma-se" na imagem de um grande touro
reprodutor, graças ao recurso da fusão. A nuvem/
touro "derrama-se" em chuva/esperma, caindo aos
70 O VISÍVEL E O INVISÍVEL

borbotões sobre o rebanho de vacas. No chão, forma-


se uma grande enchurrada... de leite! A torrente
leitosa é finalmente canalizada e dirigida por meio
de aparelhos até chegar aos recipientes que a irão
armazenar. O mesmo processo de associação continua
na sequência dos animais. Uma porca amamenta seus
porquinhos recém-nascidos. Da idéia de multiplicação
passa-se para a incubadora artificiai, de onde nascem
milhares de pintinhos. Os pintinhos multiplicam-se e
vão para o abatedouro: lá já são enormes bois.
Quando Marfa desperta de seu sonho, percebe t)ue
nele estava esquematizado o projeto de socialização
do campo na URSS.
Outro é o tom da sequência que se passa no interior
do gabinete dos burocratas do crédito agrfcola, para
onde vai ter a delegação conduzida por Marfa, na
esperança de obter crédito para um trator. Aqui
Eisenstein é mordaz e também corajoso, pois trabalha
com os signos petrificados pelo próprio regime polí­
tico. A sequência começa por uma imensa boca de
canhão apontada para a câmera e que logo revela ser
o carro de uma gigantesca máquina de escrever,
deformada sob efeito de uma lente grande angular
(que exagera a perspectiva). Na repartição, os parasi­
tas do regime desfrutam de sua mordomia: a velha
secretária retoca a pintura e brinca com o colar de
pérolas, enquanto o gordo burocrata desenha pregui-
çosamente no papel uma colossal rubrica cheia de
arabescos. Terminada a rubrica, o burocrata enxuga
a pena num busto de Lênin e em seguida retira dele
dois selos de correio que estavam colados sobre seu
EISENSTEIN 71

bronze. Enquanto as mãos obesas cofam os seios no


|t;- envelope, o busto de Lênin "se transforma" na efígie
de Nicolau II, o tzar derrubado pelos bolcheviques!

I A ironia é óbvia e dispensa comentários; mas não é


só. Logo a seguir, uma panorâmica faz a câmera
descer de um retrato de Lênin na parede até a face do
burocrata lendo o Pravda {órgão oficial do partido) e

■ ao retornar novamente para cima vê-se que o funcio-


nário público tomou o lugar de Lênin no retrato!
Ainda nessa repartição, vamos ver aparecer uma
miniatura da desnatadeíra, a mesma desnatadeira que.
Marfa e seus amigos lutavam para impor aos rudes e
seculares camponeses. Triste ironia: aquilo que para
Marfa deveria ser o símbolo de uma era de progresso
no campo, reduz-se nas mãos dos burocratas do
' partido a uma efígie morta, protótipo oco de uma
revolução que se esvaziou.
Ao longo de suas experiências com o cinema
conceituai, Eisenstein buscou compreender, antes dé
tudo, como a sintaxe do cinema, ou seja, as suas
"regras" de combinação de planos, torna-se produção
ideológica. Críticos e opositores do cineasta, que
condenaram tanto a sua concepção ideogrâfica de
; cinema quanto a sua ênfase na montagem, não
; fizeram o mais das vezes senão tentar enquadrá-lo
em discussões acadêmicas. Mas Eisenstein politiza o
debate, leva a discussão para a arena viva da luta de
72 O VISlVEL E O INVISÍVEL

potencial crítico do cinema, de modo a torná-lo


apto a penetrar na essência dos fenômenos, para
revelar as suas estruturas significantes "invisíveis".

Eisenstein e o esqueleto
de açúcar utilizado em
Qus Viva Méxicol
Ume camponesa "santificada” pelas vestes sacerdotais
e pela auréola em 0 Prado de Bejin.
Capítulo
5 Totens animados

lOurante os anos que esteve no México rodando seu

grande mural asteca, uma desconfiança começou a


assaltar Eisenstein. Quanto mais o cineasta penetrava
no universo dos fcones e mitos da antiga civilização
mexicana, tanto mais ia percebendo que esse mundo
que eíe tomava como ingrediente de base não era de
forma alguma uma coleção de materiais brutos ou
indiferentes à significação. Mais que isso, o contato
com a mitoiogia arcaica mexicana revelava ao cineasta
um conjunto de procedimentos simbólicos que
reproduzia minuciosamente o seu próprio método das
associações intelectuais. Vimos, algumas páginas atrás,
que o modelo de seu cinema conceituai Eisenstein o
havia buscado na escrita pictográfica da China mile­
nar. Reconhecendo a mesma estratégia também na
cultura indígena do México, Eisenstein se põe a
perguntar se esse método associativo, baseado no jogo
simbólico das metáforas e metonfmias, não seria o
caminho que percorre o pensamento "primitivo" em
74 TOTENS ANIMADOS

geral para construir as suas representações do mundo.


Para responder a essa questão, Eisenstein ocupou
todo seu tempo vago, nos intervalos das filmagens de
Que Viva México!, travando conhecimento direto
com as tribos do México, com as religiões e a arte
nativa da América Central. Ao mesmo tempo,
dedicou-se a uma intensa atividade de leitura das
obras dos mais destacados antropólogos da época,
sobretudo daqueles que enfrentaram de perto o
problema da representação simbólica entre as civiliza­
ções arcaicas: Frazer, Cushing, Granet, etc. A leitura
que mais o marcou nessa ocasião foi uma série de
escritos de Lucien Levy-Brühl sobre o pensamento
“pré-lógico" dos povos ditos "primitivos": "pré-
lógico" porque correspondia a uma modalidade de
raciocfnio anterior à formulação lógica,
A abordagem do "primitivo" por Levy-Brühl foi
severamente contestada peia antropologia moderna,
sobretudo por Lévi-Strauss, que via nessa distinção
entre o pensamento "pré-lógico" dos indígenas e o
pensamento lógico e complexo dos "civilizados" o
embrião de uma atitude colonialista. O próprio
Levy-Brühl reconheceu, em suas obras mais maduras
do final da vida, a estreiteza e o mecanicismo de tal
distinção, atenuando-a enormemente até reconhecer
que não existe um estágio anterior da inteligência
{"pré-lógico"), nem um progresso posterior (pensa­
mento racional) e que a estrutura lógica do espírito
humano é a mesma em qualquer lugar; o que muda
são apenas as estratégias com que se ataca os fenôme­
nos. Eisenstein tinha inteira convicção das limitações
EISENSTEIN 75

da dicotomia de Levy-8rühl,e chegou mesmo-a temer


o perigo que tais convicções representariam na mente
da burguesia colonizadora da América e da Europa.
Porém, eie conservaria os termos da distinção, para
efeito de separação de duas diferentes estratégias ope­
rativas. Ademais, negar qualquer diferença entre o pen­
samento mftico das civilizações antigas eo pensamento
racional moderno significava, para ele, negar um dos
princípios do matérialismo histórico, segundo o qual
modos de produção diferentes determinam diferentes
sistemas culturais. De qualquer forma, Eisenstein não
verta nenhuma hierarquia em tal distinção, nenhuma
superioridade de uma estratégia sobre outra*, ciência e
magia deveríam ser colocadas em paralelo, como duas
formas de conhecimento. Além disso, a expressão
"pré-lógico" não tinha qualquer conotação de inferio­
ridade em relação às elaborações lógicas modernas, mas
apenas indicava uma diferença, um estilo de operação
que prescindia das regras da lógica formal.
À medida que se aprofundava nos estudos antropo­
lógicos, Eisenstein começava a perceber que esse
"recuo" da inteligência e da sensibilidade a formas de
consciência outras, não racionais e não lógicas, não
era apenas uma marca do seu cinema conceituai, mas
também o traço de base de todo e qualquer fenômeno
artístico. £ a partir desse momento que o cineasta
começa a se desgarrar de suas raízes construtivistas e
a encarar a arte, tal como qualquer ritual mágico da
cultura indígena, como uma espécie de síntese da
magia e da ciência, uma "regressão" do espírito
racional às formas da religiosidade "primitiva" ou ao
76 TOTENS ANIMADOS

pensamento "pré-lógico" e concreto das civilizações


milenares. Aquilo que para os indígenas ou para os
povos antigos representava o conjunto das normas de
comportamento, das cerimônias, dos discursos e
narrativas, enfim, a mitologia da raça, para os povos
modernos correspondería aos métodos artísticos, que
não seriam senão técnicas de "encarnação" do mito.
Curiosamente, essa concepção de arte como "tensão"
entre o pensamento "primitivo" e as formas de
conhecimento racional contemporâneas coincide
rígorosamente com a concepção moderna de Lévi-
Strauss, para quem a arte introduz o homem a meio
caminho entre a metodologia científica e o pensa­
mento mágico ou místico.
O pensamento "pré-lógico" - também chamado
por Eisenstein de pensamento "sensorial", porque
representava a convergência da inteligência do espí­
rito com os ritmos e pulsações do corpo — difere do
pensamento lógico por juntar, misturar, dissolver tudo
aquilo que este último distingue, separa, classifica. No
pensamento "pré-tógico" o todo e a parte constituem
uma só e mesma realidade; o subjetivo e o objetivo não
são separados; as cores têm musicalidade e os sons se
manifestam sob forma visual; a palavra se confunde
com aquilo que ela designa. A atividade distintiva é
sempre obra do raciocínio lógico, enquanto o pensa­
mento "sensorial" é indiferenciador edifuso. Levando
isso às últimas consequências, Eisenstein vem mesmo a
afirmar que o álcool eas drogas psicotrópicas, da mes­
ma forma que a magia e a religião "primitiva", agem
como inibidores da atividade diferenciadora dos lóbu-
EISENSTEIN

Jos, fazendo o indivíduo "regredir" ao estágio dasTa*


presentações difusas que caracterizam o pensamento
•. "sensorial". Não é por acaso que grande parte dos artis-
:■ tas busca "inspiração" no álcool e nas drogas: tais subs-
-. tânçias ajudam a sensibilidade a desgarrar-se da camisa-

I de-força da lógica formai, podendo portanto conceber


ligações outras que não as previstas no código da razão,
No final dos anos 20, quando Eisenstein ainda
concebia o seu cinema conceituai, ele toma contato
com um romance que iria virar-fhe a cabeça e em
. defesa do qual compraria sérias brigas com a buro-
cracia inquisitora: trata-se do Ulisses de James Joyce,
';’ Eisenstein viria pouco depois a encõntrar-se pessoal­

I mente com Joyce, ocasião em quei lhe segredou a


í.. sua intenção de filmar essa obra controvertida.
Joyce lhe respondeu que só havia duas pessoas a
(• quem ele confiaria uma versão cinematográfica do
§^Ulisses: o alemão Walter Ruttmann (autor de Berlim,
Sinfonia de Uma Metrópole) e ele próprio, Eisenstein.
Infelizmente, porém, seu romance só viria às telas
muito depois de sua morte, através das mãos de um
inexpressivo Joseph Strick. Mas o que mais marcou
Eisenstein na teitura desse livro foi o último capítulo,
escrito inteiramente como um monólogo interior.
Para o cineasta, esse monólogo não exteriorizado
.constituía a sobrevivência mais poderosa do pensa-
;-mento "sensorial", porque era um discurso que não

B • havia sido ainda disciplinado pelo sistema lógico.


( Nessa falação interna, em que muitos psicanalistas
íf ouvirão a própria voz do inconsciente, as conexões
í íógicas não são respeitadas e a sintaxe é continua-
78 TOTENS ANIMADOS

mente subvertida em benefíõio do livre fluxo da


consciência. Joyce seria, portanto, a expressão
máxima desse espírito indiferenciador que acredita
na força intelectual do pensamento por imagens.
Só que, para Eisenstein, esse discurso interior não
seria composto apenas de palavras, mas por um
complexo de imagens, sons, movimento, formas
geométricas, sentimentos, paladares e sensualismo.
Isso quer dizer que o cinema — o cinema sonoro
principalmente — seria o veículo por excelência do
monólogo interior, pois apenas ele podería reconsti­
tuir todos os seus elementos formadores. Para azar
nosso, o único roteiro de Eisenstein construído
sobre essa técnica - Uma Tragédia Americana,
baseado em Theodore Dreiser — foi recusado pela
Paramount e não chegou a virar filme.
Essas preocupações todas vieram à tona sobretudo
durante a rodagem de Que Viva Méxicof Esse filme
deveria ser uma ampia sinfonia sobre o México, uma
epopéia em seis atos que envolvesse, numa só tape­
çaria, o passado e o presente, a realidade contempo­
rânea e a extraordinária civilização dos ancestrais,
passando pelas fases intermediárias da colonização
espanhola e das guerras revolucionárias pela emanci­
pação. Não haveria ordem cronológica, nem geográ­
fica: o fiime seria um painel único e amplo, como as
inscrições ideográficas dos astecas ou as suas escul­
turas totêmicas esparramadas por Yucatan ou Teoti-
huacan. Para Eisenstein, Que Viva México! seria uma
experiência com arte sincrétíca, entendendo-se por
sincretismo a fusão de elementos culturais diferentes
EISENSTEÍN

-ou até mesmo antagônicos num único todo; ou, para


usar a expressão do próprio cineasta: "a fusão de tudo
com tudo". Essa percepção global e indiferenciaria,
própria do pensamento "sensorial", deveria permitir
; ao filme atuar sincronizadamente com a estratégia
' operativa do próprio povo enfocado e, dessa maneira,
/mergulhar mais fundo em sua essência. Assim, ao
/ invés de "contaminar" a realidade com o espírito
■ classificatório do "civilizado", Eisensteín fazia o
/■percurso inverso, juntando ou aproximando elemem
■■■ tos heterogêneos, como forma de ordenar e dar
sentido aos seres e objetos do mundo. Por exemplo:
í- num único plano, ele faz "irem" juntos uma pirâmide
ancestral e um peão modernó; ou então ele faz
- "ecoar" a face de pedra de um deus asteca no perfil
' idêntico de um nativo contemporâneo. Esse agrupa­
mento de seres e coisas, esses "totens animados",
.-/ como os chamava Eisenstein, é a maneira de o pensa-
mento "sensorial" introduzir um princípio de ordem
no universo.
Na perseguição de tais objetivos, Eisenstein efetua
um novo desdobramento em sua concepção de
montagem. A partir de então, montagem não designa­
ria apenas a combinação de planos entre si, mas
também toda e qualquer associação de elementos
^770 interior do mesmo piano. Se o papel do pensa-
mento "sensorial" é tornar o mundo inteligível,
; através da aproximação de elementos díspares,
^ introduzindo ou revelando neles uma familiaridade, o
^quadro — espaço da película a ser preenchido de
. .Imagens - seria o local de tal reunião. 0 que quer
80 TOTENS ANIMADOS

dizer que a composição do plano, o preenchimento


do quadro, o enquadramento no seu sentido amplo
tornam-se também montagem. Dessa forma, o quadro
torna-se célula organizadora, que faz com que coisas
diferentes estejam juntas, compondo com elas um
discurso e introduzindo através deías um sentido no
mundo. £ a partir de Que Viva Méxicol que os planos
de Eisenstein parecem visar a densidade da pintura:
cada elemento colocado dentro do quadro — homem,
objeto, paisagem — é rigorosamente estudado,
composto, combinado, ritmado, de modo que nada
escape ao controle e todo acaso seja domado. Talvez
seja por essa razão que o filme mexicano de Eisens­
tein tenha conservado seu encanto mesmo depois de
ter sido manipulado por outros: é que a sua força
agora estava inscrita dentro do plano e, por mais que
mãos estranhas mutilassem o material, o quadro
"falava" mais alto que a mediocridade das versões.
A sequência mais eloquente de Que Viva México!
é reconhecidamente aquela que no projeto original
correspondería ao epílogo: trata-se da comemoração
do Dia dos Mortos no México, onde Eisenstein
recupera todo o significado cultural das raízes carna­
valescas dessa festa. Sabe-se que, em suas origens
antigas e medievais, o carnaval era um rito genuina­
mente popular, que operava uma inversão dos valores
impostos pela aristocracia dominante. Nesses dias, o
príncipe era literalmente deposto de seu trono,
despojado de suas vestes reais e constrangido a beijar
os pés de um escravo eleito Rei Momo. As pessoas
cobriam o rosto com máscaras, travestiam-se no
EISENSTEIN

sexo ou classe oposta e passavam a viver uma outra -—


vida, uma vida âs avessas, fora de qualquer controle :
L ou legislação. Todos os valores sagrados, tais como o
/ temor a Deus, o respeito aos mortos, a submissão
á hierarquia dirigente, tudo isso era "carnaval izado",
ou seja, invertido, satirizado, negado. Estudos recen-
tes Icomo os de Mikhail Sakhtin, por exemplo)
■ demonstram que as formas carnavalescas podem ser
? encontradas em quase todas as culturas de povos ou
classes oprimidos, e constituem uma forma de repre-
sentar o mundo "às avessas", parodiando a cultura
dominante. Só que essa postura crítica não toma
corpo em idéias abstratas, mas é vivida em rituais
concreto-sensoriais.
Pois bem; a obra inteira de Eisenstein está repleta
; de formas carnavalescas. Já vimos, entre outros, os
: exemplos da pantomima do lumpesinato em A Greve
; e o "destronamento" dos deuses em Outubro. Na
segunda parte de Ivan, igualmente, a carnavaiização
< seria praticada tanto na dança de Fedor Basmanov
travestido em máscara feminina como na troca de
r papéis entre o tzar e seu súdito Viadimir Staritski,
como ainda no "Mistério dos Caldeus", encenado pelos
boiardós para satirizar a política repressiva de Ivan.
Mas é no epílogo de Que Viva México! que esse proce­
dimento da cultura popular seria praticado na forma
mais brilhante. Os mexicanos comemoram o dia dos
. Finados com um verdadeiro carnaval, desmistificando
a gravidade da morte com danças ecomilanças sobre os
; túmulos. Eisenstein transforma esse festim diabólico
num curioso jogo de simbologias: garotos brincam
82 TOTENS ANIMADOS

com esqueletos de plástico, devoram crânios de açúcar


e fantasiam o rosto com máscaras mortuárias. Esses
esqueletos, esses "mortos", que se deixam identificar
pelas suas vestes como generais, bispos e banqueiros,
são personificações da ideologia da devoção, da peni­
tência, da submissão e do medo imposta pelo conquis­
tador. O riso, a festa, oorgasmo popular são a resposta
e o desafio do oprimido às representações sinistras e
ameaçadoras com que o poder político o quer subjugar.
Se for possível crer nas fotos que sobraram de
O Prado de Bejin, os métodos carnavalescos parecem
ter também ecoado nesse filme. Comparando as fotos
com a sinopse original do filme, podemos concluir
que a sequência que mostraria a transformação da
igreja em clube era uma perfeita inversão carnavalesca
nos moldes da cultura popular. Os kolkhozianos
(lavradores das fazendas coletivas) invadem a igreja
ortodoxa e promovem uma verdadeira farra dionisía­
ca com os ornamentos religiosos e as vestes sacerdo­
tais. O oenário religioso vira cenário profano, a missa
e a orgia passam a coexistir sincreticamente, os
homens ocupam os lugares dos deuses, tal como no
filme mexicano. Um grande Cristo crucificado projeta
a sombra de seu perfil aquiiino junto a uma velha
kolkhoziana e esta parece "velar" pela sua agonia,
como uma Virgem Maria plebéia e pagã. Faces campo­
nesas se introduzem diante do altar barroco e se
deixam aureolar pelos sóis de ouro radiantes dos
ícones sagrados. Associando elementos heterogêneos,
aproximando o que a ordem política distancia, o
sincretismo carnavalesco, manejado com o poder
84 TOTENS ANIMADOS

indiferenciador do pensamento "sensoriaI", permite


lançar um olhar novo sobre o mundo, sentir que
todos os valores são relativos e que, por conseqüência,
uma ordem inteiramente nova é possível.
Curioso observar em Que Viva México/ é a recor­
rência do tema plástico do triângulo ao longo de todo
o filme, E como se houvesse um módulo ou uma
forma arquetípica ditando a composição de cada
plano. Homens e coisas, seres brutos ou animados,
tudo no filme se agrupa em três (três peões suplicia-
dos, três penitentes na cruz, três esqueletos no
parque de diversões! ou se constrói em forma triádíca
(a pirâmide, o vulcão, o manto com qüe os peões se
cobrem), ou ainda lembra linhas de força ternárias
(o enquadramento oblíquo da câmera, os corpos
humanos torcidos ou pendentes para a frente). Esses
triângulos que preenchem todo o filme são explicados
por Eisenstein como projeções simbólicas da forma
do eterno triângulo de Teotíhuacan, a grande pirâ­
mide do Sol, próxima à cidade do México.
EISENSTEÍN

O mesmo tema plástico, ligeiramente mecfifíàaeís^-


iria reaparecer novamente em ívan-o-Terrívei. Em /
grande parte dos ícones medievais russos existia um"
arquétipo, composto de um olho inscrito dentro de
um triângulo (o "olhar de Deus"), com o qual se
representava a divindade. Esse mesmo arquétipo
prolifera ao longo das duas partes de Ivan, mas aqui
ele se torna o sfmbolo do poder absoluto (portanto,
da "divindade") do tzar. Quando Ivan recebe a
extrema-unção, com o livro dos Salmos aberto e
deitado sobre sua cabeça, ele abre um olho e observa
os boiardos que conspiram ao seu redor: o olho real
aparece brilhando dentro do triângulo formado pelo
livro. Esse mesmo olho "divino", pintado nas paredes
do castelo, aparece ainda várias vezes nos locais onde
se conspira contra o monarca e, a partir de certo
momento, encarna-se na personagem de Maliuta,
espião designado por Ivan para localizar os focos de
rebelião entre os boiardos e, por isso mesmo, chama­
do "o olho do tzar". A proliferação desse antigo
símbolo da divindade tem em Ivan-o-Terríveí a
função de enfatizar a imagem de um tzar onipresente,
onipotente e onisciente, responsável pelo primeiro
governo de força na Rússia medieval.
Em 1940, ainda em plena euforia de sua fase
"antropológica", Eisensteín recebe convite para
encenar a ópera de Wagner A Valqufría, e não deixa
escapar essa oportunidade de aprofundar seus
mergulhos no pensamento "sensorial". Wagner já
vinha atraindo o cineasta desde muito tempo. Entre
outras coisas, interessavam a Eisensteín as opiniões do
TOTENS ANIMADOS

compositor alemão sobre o espetáculo síncrético:


Wagner buscou em sua obra atingir a perfeita unidade
da imagem (teatral) com o som, e esse problema era
vital para quem estava enfrentando as primeiras
experiências com o cinema sonoro, Além disso, as
formas de representação concreto-sensoriais da
mitologia popular interessavam iguaimente aos dois
artistas. De acordo com Lévi-Strauss, Wagner teria
sido o primeiro "antropólogo" no sentido moderno,
pois em sua obra ete logrou realizar uma espécie de
análise estrutural do mito; só que o fez em termos
plástico-musicais e não em termos verbais. Exata­
mente o que Eisensteín queria fazer, através dos
recursos áudio-visuais do cinema. Vê-se que o encon­
tro dos dois gigantes era quase inevitávei.
Na encenação de A Va/qui'ria, uma das coisas que
mais preocupou Eisensteín foi descobrir o equivalente
visual da música: ele queria que os volumes sonoros
concebidos na partitura de Wagner se convertessem
num banho de cores no palco. Esse problema não
era novo para o cineasta: desde os anos 20, ele vinha
acompanhando com assombro os espetáculos de
teatro kabuki do Japão e da ópera chinesa de Pequim,
interessado sobretudo em verificar como o gesto e o
som se combinavam af com perfeição, de modo que
seria impossível pensar um sem o outro. Entre outras
coisas, observou Eisensteín que o som no teatro
oriental não era redundante em relação aos movi­
mentos cênicos, nem tinha uma mera função natura­
lista; ele formava com os elementos visuais uma
unidade indecomponfvel. A sua Vaiqufría deveria, da

EISENSTEIN S7 '

mesma forma, integrar num espetáculo sincréttcv


música, cenários, personagens, movimento, luzes, de
modo a obrigar o espectador a participar desse ritual
com todos os sentidos atentos, Um mal de nossa civi­
lização racional — pensava Eisenstein — é desmembrar
os sentidos e forjar uma modalidade de espetáculo
para cada um deles: a pintura para os olhos, a música
para os ouvidos, o perfume para o olfato e assim por
diante. Mas quem trabalha com a "indiferenciação”
do pensamento "sensoriaI" deve imaginar um ritual
mágico capaz de sincronizar estímulos para o con­
junto de todos os sentidos a um só tempo, fazendo o
espectador "ver" sons e "ouvir" cores (fenômeno
conhecido como sinestesia), como em certas visões
lisérgicas. Algo aparentemente muito semelhante à
"sinfonia dos cinco sentidos" de que fala Lévi-Strauss
em seu livro O cru e o cozido, a propósito da arte
dos índios bororos do Brasil.
Os primeiros anos da década de 30 foram decisivos
para Eisenstein, porque correspondiam ao momento
das grandes novidades técnicas no cinema. O som
sincronizado e logo depois a cor pareciam ameaçar de
imediato todas as conquistas do cinema mudo, de que
ele era, ao lado de Griffith, um dos representantes
mais ilustres. Eisenstein sentiu que precisava evoluir
para não ser atropelado pelos acontecimentos, mas
discordava inteiramente da utilização medíocre dessas
novidades, sobretudo pelos americanos. Na sua prática
convencional, o som e a cor eram introduzidos no
filme apenas para reforçar o seu efeito de realismo: a
imagem mostrava um homem andando, o som rêpro-
I 88 TOTENS ANIMADOS
£
í duzia o ruído de seus passos e as cores simplesmente
j copiavam os matizes da natureza. Para o cineasta,
'I esse naturalismo era grosseiro e abominável. Ele
I queria que as cores e os sons fossem autônomos em
í relação aos objetos a que se referissem, de forma que
| o seu vínculo com estes se desse num nível superior,
lí Em 1928, ele assina, juntamente com Pudovkin e
í Alexandrov, um manifesto contra o naturalismo
j do "cinema falado” e em prol de uma utilização
| contrapontual do som com a imagem. Num dos
V inúmeros escritos que deixou sobre o assunto, ele
} dizia: "Assim como o ranger deve ser destacado da
| bota que range, para tornar-se elemento expressivo,
também o conceito de verme Iho-a Ia ranjado deve
; separar-se do colorido da tangerina, para que a cor
j possa ser inscrita num sistema de expressões inteira-
■ mente controlado".
Eisenstein experimentaria largamente o som
sincronizado nos seus quatro filmes sonoros: O Prado
de Bejin, Alexandre Nevskí e as duas partes de Ivan.
Quanto à cor, ele apenas pôde praticá-la numa única
sequência da segunda parte de Ivan, porém essa rápida
incursão na matéria permanece até hoje um dos mais
extrao rd i ná rios traba I hos do gênero. N esse episód io, a
cor é inteiramente independente dos objetos que
colore e está em constante mutação dentro do plano, íl
atendendo às necessidades dramáticas do tema. Num
determinado momento, por exemplo, quando Ivan 3
justifica sua afinidade com Vladimir porque tinha
"ligações de sangue" com esse conspirador (eram
parentes), seu fiel servo Basmanov lhe responde:
EISENSTEIN • . 89- •

"Não estamos nós ligados também por um cutra


sangue, o derramado?" — nesse momento, a cena é :
banhada por uma luz vermelha escura de forte im­
pacto, como que lembrando ao tzar os que morrersm
em sua defesa.
Quem se dispuser a remexer os papéis e notas de
filmagem de Eisenstein, conservados ainda hoje em
Moscou no seu apartamento-museu, vai descobrir as
imensas "partituras" cinematográficas de Alexandre
Nevski e Ivan-o-Terrfvel, onde está anotado, em
linhas horizontais, cada um dos elementos de que se
compõe o filme {composição plástica, sentido do
movimento, jogo cromático, música etc.) com as
respectivas sincronizações e correspondências traçadas
em linhas verticais. Ele chamava a isso "sincronização
de sentidos", e comparava o seu método de filmar a
uma escritura musical polifônica, onde diferentes
linhas de desenvolvimento "dialogassem" entre si em
complexos contrapontos. A tela, para ele, era vertical,
porque no interior de cada quadro horizontal inter-
vinha toda uma hierarquia de "quadros" constituin­
tes, paralelos à superfície da tela. Num imenso
ensaio chamado Montagem Vertical (1940), ele vem a
conceber um cinema de tal complexidade estruturai
que os vários componentes audiovisuais simultâneos
se combinariam em cada plano num colossal "diálo­
go" de formas. Essa arte total e cósmica, de alcance
quase místico, ele a colocaria em experimentação
prática nas duas partes deslumbrantes de seu Ivan-o-
Terrfvel.
"1

Capítulo 1
A
VJ Erotismo e prática do dxtase
Wj;
i
Até aqui, Eisenstein foi focalizado comointelectual |

e homem polftico: sua obra teórica e criativa apareceu,


ora como produção de conhecimento, ora como S
prática revolucionária. No entanto, o cineasta não foi ■|
avesso aos clamores do corpo, nem permitiu que a
atividade intelectual do espírito reprimisse as pulsa- í
ções do desejo. Já fizemos referência, no segundo $
capítulo, a essa marca de sua personalidade que ligava ;
sempre o rigor construtivo da razão com o fogo
irreprimível da paixão. Ao longo de toda sua trajetó- ?|
ria, Eisenstein atacou mais de uma vez uma certa
frieza calculista que sempre ameaçou congelar o *
cinema soviético: uma de suas vítimas prediletas era J
Dziga Vertov, cuja obra cinematográfica pareceu ao
cineasta excessivamente objetiva e assexuada. Não é %
por acaso que a obra eisensteiniana inteira se impõe f
— e esse é bem o segredo de seu impacto - pelo
entusiasmo que sacode as formas e pela paixão que j
incendeia as idéias: sua eletricidade mobiliza o espf- -
EtSENSTEIN 3"!

rito com a mesma intensidade com que arrebata o


corpo. Para Eisensteín, não existem formas inãftfe*
rentes na natureza, nem os produtos da ação social co
homem podem estar condenados à esterilidade: sua
obra será mesmo a demonstração de que a matéria
está atravessada de energia e a atividade humana
carregada de sexualidade. Um estudioso da obra de
Eisensteín — Pascal Bonitzer — chegou mesmo a
expressar-se assim no prefácio a um livro do cineasta:
"Já é tempo de começar a ler (seus textos, seus
filmes, seu trabalho teórico e prático sobre a mon­
tagem) não mais sob o único ângulo do sentido, mas
do entusiasmo e do erotismo".
Antes de mais nada, é bom recordar que Eisensteín
foi um leitor infatigável da psicanálise, particular­
mente de Freud. Em suas Memórias e em textos
teóricos diversos, há referência constante a obras
como Interpretação dos Sonhos, Uma Recordação de
Infância de Leonardo da Vinci e os Três Ensaios de
1920, além da biografia do pai da psicanálise escrita
por Stefan Zweig. Aliás, este último era amigo de
Eisensteín e esteve prestes a obter um encontro entre
os dois gigantes. Na verdade, não havia nada de muito
extraordinário nesse interesse pela psicanálise, se
considerarmos que durante os anos 20 Freud foi
intensamente divulgado e estudado na URSS. Mas,
mesmo a partir dos anos 30, quando a psicanálise foi
"desautorizada" pela burocracia stalinista, Eisensteín
permanecería sensível aos problemas do inconsciente
e da sexualidade e incluiría o estudo de Freud nos
seus cursos de criação cinematográfica. As idéias do
Um touro currado na crua.
Desenho de Eisenstein.
EISENSTEiN S3

pai da psicanálise tiveram uma repercussão imensa


na prática eisensteirtiana: existe mesmo uma análise?.
; biográfica, escrita por Dominique Fernancez, que
■ enfoca a obra inteira do mestre soviético como uma
espécie de "auto-análise" operada à luz de Freud.
Mas o contato de Eisenstein com a psicanálise não
foi isento de conflitos, pois o cineasta tinha uma
concepção bastante particular de erotismo que o afasta­
va da orientação freudiana. No seu modo de entender,
o mérito principal dos psicanalistas foi ter demons­
trado o papel do inconsciente na atividade produtiva
do homem, mas sua limitação básica, ao mesmo tem-
po, foi ter parado na "estação intermediária" do sexo.
■ Numa palavra, Eisenstein rejeitava a ênfase exagerada
: que a psicanálise dava ao sexo como algo restrito
aos órgãos genitais. Mais que isso: achava inaceitável
.que o ato puro e simples da penetração vaginal
pudesse ser tomado como fator determinante de
todas as manifestações comportamentais/psrcológicas.
0 erotismo, para ele, era uma energia vital que
percorria todas as formas vivas e todos os objetos
-animados pelo homem, razão pela qual não se podia
: esgotar no ato sexual propriamente dito, mas se
•estaria manifestando até mesmo fora de qualquer
espécie de contato sexual. Entre outros exemplos,
Eisenstein cita o caso do samurai japonês, cujos
instrumentos de guerra incluíam também um estojo
; com gravuras eróticas: momentos antes do combate, o
, guerreiro olhava para as imagens, excitava-se e partia
para o orgasmo na luta. Até mesmo o ato solitário e
■ fervoroso da oração cristã podería ser um transbor-
94 EROTISMO E PRÁTICA DO ÊXTASE

damento de sexualidade latente: aliás, é muito


comum o arrebatamento religioso se transformar
repentinamente em auto-satisfação sado-masoquista,
sob forma de sacrifícios e penitências aplicados ao
corpo. Ademais, os próprios psicanalistas não se >
vêem muitas vezes desconcertados com certos 3
"desvios" do padrão sexual absoiutamente inexpli­
cáveis? Por exemplo: por que certos condenados à ;
morte ejaculam na hora fatal?
Essa concepção, que poderiamos chamar de
"pansexual", que vê a sexualidade ocorrendo nas ;
ocasiões ê contextos os mais inesperados, Eisenstein
a defendeu nos mais variados contextos, mas ela
está mais claramente colocada numa correspondência í
que o cineasta trocou com o psicanalista alemão
Wilhelm Reich nos anos 30, após a exclusão deste da
Associação Internacional de Psicanálise e do Partido
Comunista Alemão. O rascunho dessa correspondên- ;
cia foi achado recentemente na biblioteca do
cineasta, no interior de um exemplar de A função do
Orgasmo de Reich. Nesse escrito, Eisenstein defende
que o orgasmo sexual não é senão a via mais fácil e
mais corrente de se obter o êxtase, mas este não se
restringe apenas ao prazer sexual, podendo ocorrer
até mesmo sob forma de ataque epiléptico ou obra de
arte. O conceito de êxtase é uma das chaves da obra­
do cineasta, mas é muito diffcil de precisá-lo, porque
é utilizado em acepções diferentes em cada contexto
particular: abrange o mais amplo campo semântico,
desde o pensamento "pré-lógico" até a histeria mís­
tica do transe religioso. O próprio percurso desse
EISENSTEIN

conceito é tortuoso: Eisenstein o enfrenta peía?


primeira vez ao definir o gênero de conhecimento -
(inflamado, dionisíaco, sensual} que deveria ser
praticado em seu cinema conceituai e termina por
reconhecê-lo até mesmo nos exercícios de Santo
Inácio de Loyola para atingir o transe divino. De
qualquer forma, ele parte sempre da etimologia da
palavra (do grego ex stas/s, "fora de seu estado")
para designar todas as situações de "transporte" ou
"arrebatamento", em que o indivíduo sai de si ou de
seu estado habitual, como é o caso do transe místico,
do fenômeno da histeria, do prazer estético e mesmo
: do orgasmo sexual. Para se ter idéia da amplitude
do conceito, basta dizer que até mesmo a objetiva
grande angular, utilizada em fotografia e cinema, ele
a considerava "extática”, porque deforma a norma-
; (idade ótica das imagens, fazendo-as "saltarem fora
de si".
O que tem isso a ver com a sua obra criativa
propriamente dita? Muito mais do que se possa
- imaginar. Se a sexualidade — expandida para a
acepção mais genérica de êxtase - está em tudo e
em todos, ela se põe a contaminar as próprias formas
e a inflamar até mesmo a mais árida exposição de
' economia política. Como conseqüência, o cinema
inteiro de Eisenstein se deixa penetrar pelo êxtase, e
até mesmo do seu cinema intelectual, que tinha
tudo para petrificar-se em dissertações teóricas
? frias e cerebrais, advém uma força entusiástica que
- incendeia as platéias. Fundamentalmente, esse cinema
é um esforço para "encarnar" a representação simbó-
36 EROTISMO E PRÁTICA DO ÊXTASE

lica, torná-la pulsação dos sentidos. Para Eisenstein,


o pensamento conceituai não exclui de forma ne-
nhuma os estímulos sensoriais, pelo simples motivo â
de que a razão humana não é algo que existe "no ar",
independente do corpo que lhe dá substância ou da
vida psfquica que é o seu meio natural. "Á arte nova
— dizia ele no seu manifesto pelo cinema intelectual
— deve dar fim ao dualismo das esferas do sentimento
e da razão. Fornecer sensualidade à ciência, sua
flama e sua paixão ao processo intelectual." Eisens-
tein recorda, a esse respeito, um velho professor de
matemática, que "por várias horas podería falar do
cálculo integral ou da análise infinitesimal com a
mesma flama com que Desmoulins, Danton, Gam-
betta ou Volodarski atacavam os inimigos do povo
e da revolução".
Se o cinema de Eisenstein está marcado por essa
busca do investimento Irbídínal e pela erotização da
práxis (política, artística, científica}, então não pode
restar dúvida de que a sua obra mais erótica é O
Velho e o Novo. Mas o erotismo desse fiime está $
inteiramente fora do terreno do amor: em nenhum
momento as relações da camponesa Marfa Lapkina 5^
com o jovem técnico de agricultura ou com os demais
camponeses do kolkhoz se reduzem a uma relação
sexual explícita. Fiei ao seu princípio do "pan-
sexualismo", Eisenstein faz a sexualidade explodir
a todo momento, até mesmo nas ações mais banais
do cotidiano, mas sempre fora da penetração vaginal e
suas variações genitais; o sonho de Marfa — como
vimos no quarto capítulo — está repleto de metáforas
EISENSTEIN

sexuais, o mecânico conserta o trator como se esti­


vesse fornicando com ele, a câmera passeia cofto vít
“voyeur" sobre as tetas da robusta secretária ou sobre
os braços da mulher do kulak. Mas acima de tudo, é
na seqüência da desnatadeira (aparelho de fabricar
manteiga que Marfa tenta introduzir perante os
$ incrédulos camponeses) que o erotismo se imporia de
forma irresistível. Observemo-la:
Do ponto de vista da anedota narrativa, a sequência
apresenta uma situação banal: Marfa põe a desnata­
deira para funcionar, enquanto os camponeses espe­
ram meio descrentes pelo "milagre" da conversão
automática do leite em manteiga. Mas, á medida que
o jogo da composição e da montagem vai "esquen­
tando", o evento e as gotas de creme começam a
surgir hesitantes, as faíscas do metal incandescente
se põem a piscar na escuridão, os olhos surpresos dos
camponeses brilham num lusco-fusco e os dentes
se põem à mostra em sorrisos cada vez mais abertos;
então a seqüência se vai deixando penetrar por um
fogo dionisíaco e parece transformar-se numa
verdadeira orgia extática. Marfa estende as mãos para
receber as chispas de creme e recebe uma borrifa da
na cara, como se fosse uma ejaculação. Com a face
salpicada de creme/esperma, ela é apossada por uma
alegria animal, contorce-se num espasmo sensual,
dir-se-ia que ela está prestes a rasgar as roupas (como
um dos manifestantes de Odessa, no Potemkin) z
rolar nua na lama, acometida por louca paixão.
O mais surpreendente nessa seqüência é que a sua
força extática se apóia quase que inteiramente no
98 EROTISMO E PRÁTICA DO ÊXTASE

manejo dos recursos fecno-expressivos e não na


interpretação dos atores ou no acirramento da tensão
a nível temático. Antes de surgir a primeira gota de
manteiga, o jogo contraditório de esperança e dúvida
que percorre os rostos dos camponeses é dado pela
contraposição de planos escuros (subexpostos) e
planos claros (superexpostos). A medida que a ação
evolui, os cortes se tornam cada vez mais rápidos, os
planos cada vez mais curtos e o ritmo cada vez mais
frenético, como numa dança ritual. Rápidas tomadas
dos discos rotativos, canos e engrenagens da desnata-
deíra vão sendo intercalados na sequência. À medida
que cresce a cadência, os discos aceleram sua veloci­
dade e o jogo de claro-escuro dos planos faz a tela
piscar. As primeiras gotas de creme começam a
pingar, outras se sucedem e daí a pouco a manteiga
começa a borrifar em jatos poderosos. De repente, a
metáfora faz irrupção no evento e o jorro de creme
se transforma no esguicho contínuo de uma fonte
luminosa mutticolorida, de forma que o pisca-pisca
claro-escuro se converte numa verdadeira pirotecnia
de cores cambiantes. O efeito colorido foi obtido
através da técnica das "viragens" monocromáticas,
uma vez que a fotografia em cores ainda não havia
sido inventada. Finalmente, as imagens perdem o
seu contorno figurativo e se transfiguram no puro
grafismo abstrato das faíscas brancas ziguezagueando
sobre o fundo preto. £ nesse instante, no paroxismo
do frenesi plástico, que essas formas abstratas se
convertem em conceitos pura mente intelectuais:
cifras numéricas (5-10-17-20-35), cujas dimensSes
EISENSTEIN

vão crescendo na tela, anunciando o número cresdsà-; •


te de camponeses que aderem à cooperativa lactk
cultora.
Para demonstrar que razão e paixão não eram
incompatíveis, mas correspondiam a duas modafk
dades da mesma estratégia operativa do homem, o
cineasta fez com que a intensificação do entusiasmo
hedonista resultasse em conceito abstrato. Assim, a
quantidade de pessoas que acorrem ao kolkhoz não
é expressa pela visualização da massa de figurantes,
nem é colocada em termos narrativos, mas sim
através da sucessão de uma série de algarismos, cuja
proporção no quadro cresce à medida que aumenta
a noção de valor neles expressa. "Não se pode esque­
cer - esclarece Eisenstein em seu livro A Natureza
Não-indiferente — que o jogo das dimensões crescen­
tes dos números, paralelamente ao crescimento de
sua significação quantitativa, fornece à noção
abstrata de quantidade uma dinâmica de pura sensibi­
lidade e estabelece assim um elo de transição entre as
imagens sensíveis precedentes e a abstração das
noções seguintes."
Para finalizar, uma palavrinha ainda sobre uma
faceta menos conhecida da produção eisensteiniana:
sua atividade gráfica. Eisenstein desenhou sem cessar
durante toda sua vida: em qualquer ocasião e a
qualquer pretexto, o cineasta era acometido conti­
nuamente por uma loucura gráfica irreprimível.
Sabe-se que ele desenhava pacientemente a compo­
sição de cada plano: no final de cada longa-metragem,
amontoavam-se pilhas imensas de desenhos, croquts e
100 EROTISMO E PRATICA DO ÊXTASE

esquemas, que dissecavam rigorosamente todos os


passos da filmagem. Mas mesmo quando não estava
filmando, sua produção gráfica não era menos intensa.
Só a título de exemplo, quando esteve bloqueado na
fronteira mexicana, em 1932, Eisenstein desenhou
numa única noite nada menos que duzentas gravuras,
e unicamente sobre o tema do Macbeth de Shakes-
peare. Segundo sua biógrafa Marie Seton, o cineasta
tería enviado a Upton Sinclair o resultado dessa
desenfreada produção gráfica no México: uma mala
repleta até a boca de desenhos e croquis de filmagem.
Parte desse material foi exposta no mesmo ano numa
mostra em Nova Yorque, provocando a ira da crítica
e do público americanos. £ que tais desenhos eram
diabólicos demais para os padrões morais americanos;
ora eles eram sangrentos e selvagens, ora blasfema­
tórios para com os dogmas da fé cristã.
Segundo interpretações modernas, essa atividade
gráfica funcionava como um esboço de auto-anáiise:
na verdade, os desenhos safam das mãos do cineasta
de forma quase automática, como se configurassem
um diário íntimo, povoado de fantasmas e pensa­
mentos secretos inexprimíveis, verdadeiros momentos
de afloramento do inconsciente, repletos de simbolo-
gia erótica. Mas eles tinham, pelo menos, uma vanta­
gem em relação aos filmes: neles, Eisenstein trabalha­
va praticamente livre da camisa-de-força da censura.
De fajto, enquanto em seus filmes a representação
do desejo estava ainda trabalhada pela ideologia
oficial e não podia ser exibida de forma demasiado
aberta, nos desenhos, pelo contrário, seu "pan-
EISENSTEIN ídt

sexualismo" podia explodir de forma verdadeíramen-


te incontrolável. Nestes últimos, ainda, a abundêneía
de símbolos fálicos parece confirmar um boato
corrente à época em que o cineasta viveu, segundo o
qual ele manteria um relacionamento homossexual
com seu assistente Alexandrov. Verdade ou não, esse
boato não explica, todavia, a sucessão de escândalos
amorosos de Eisenstein com a bailarina Maria
Pavlovna, ou com a atriz Anna Sten, ou com a atriz
Valeska Gert, ou com a escritora americana Marie
Seton, ou ainda com a sua secretária Pera Attacheva.
Acredita-se que o casamento do cineasta com esta
última se deu por pressão do partido, que queria frear 4
sua libertinagem amorosa. De qualquer forma, para 1
quem defendeu durante toda a vida a "pansexuali-
dade", nada mais coerente que adotar para si próprio
um comportamento sexual mais amplo que o tolerado
pela moralidade conservadora da Rússia stalinista.

1
Eisenstein fotografado
por Moholy-Nagy em 1932.

s
:’ÍW

í ■
I
Cronologia
íS

23/01/1898
— Eisenstein nasce em Riga, na Letônia.
09/05/1912
— Seus país, Mikhail O. Eisenstein e Jútia Eisens­
tein, se divorciam.
1915-1917
— Estudos de engenharia no instituto de Trabalhos
Públicos de Petrogrado.
26/02/1917
— Queda do regime tzarista. Formação do Governo
Provisório.
26/10/1917
— Queda do Governo Provisório e tomada do
poder pelos bolcheviques.
18/03/1918
— Eisenstein se alista como voluntário no Exército
Vermelho.
20/10/1920
— Eisenstein entra para o Protetkult como deco­
rador de cenários teatrais.
EISENSTEIN 103

í 13/09/1921
- Torna-se aluno de Meyerhold em direção teatral,
22/04/1923
í; — Estréia de O Sábio em Moscou.
Junho 1923
— Publicação do manifesto da "Montagem de
atrações".
07/11/1923
- Estréia de Escuta, Moscou?

- Estréia de Máscaras de Gás na periferia de


2 MOSCOU.
04/12/1924
i - Eisenstein abandona o Proletkuft.
> 28/03/1925
- Primeira exibição pública de A Greve em Mos­
cou.
C 21/12/1925
í’ — Estréia de O Encouraçado Potemkin em Moscou.
Mar.-abr. 1926
/ — Viagem de estudos a Berlim.
: 19/12/1927
— Stálin condena Trotsky à deportação,
ií 20/01/1928
í — Estréia de Outubro em Leningrado.
? 15/05/1928
— Eisenstein é nomeado professor do Instituto
de Cinema de Moscou.
19/08/1929
— Juntamente com Alexandrov e Tissé, parte em
uma viagem ao estrangeiro {Alemanha, Sufça,
104 CRONOLOGIA

Inglaterra, Franca, EUA, etc.).


07/10/1929
— Estréia de 0 Velho e o Novo em Moscou.
08/12/1930
— Eisenstein desembarca no México para rodar
Que Viva Méxicol
Jan. 1932
— Sinclair suspende as filmagens de Que Viva
México!
08/05/1932
- Eisenstein retorna a Moscou em companhia
de Bertold Brecht.
27/10/1934
— Eisenstein legaliza suas relações amorosas com
Pera Attacheva.
8-11/01/1935
- 1P Congresso dos Trabalhadores da Cinemato­
grafia Soviética.
17/03/1937
- Chumiatski suspende as filmagens de O Prado
de Bejin.
23/11/1938
— Estréia de Alexandre Nevski em Moscou.
01/02/1939
— Eisenstein é condecorado coma Ordem de Lênin.
21/11/1940
— Estréia de A Valquíria no Teatro Bolchói
de Moscou.
20/01/1945
— Estréia da 1? parte de Ivan-o-Terrível em Mos­
cou.
EISENSTEIN 105

04/09/1946
- O Comitê Central proíbe a 2? parte de Ivan.
11/02/1948
— Eisenstein 6 vitimado por um ataque cardíaco.
01/09/1958
- Liberada a 2? parte de Ivan. Estréia em Moscou.
Roteiro para
Ver/Ler
Eisenstein

0 espectador brasileiro encontrará sérias dificul­


dades para obter uma visão de conjunto da contribui­
ção de Eisenstein. Basta dizer que A Greve (Statchka]
e Outubro (Oktíabr}, embora realizados há quase
sessenta anos, não foram até hoje liberados pela
censura brasileira. Existem várias cópias desses filmes
circulando pelo país, mas qualquer projeção pública
assume necessariamente um caráter clandestino, pois
há sempre o risco de apreensão pela polícia federai.
O encouraçado Potemkin (Bronenocets Potíômkin],
por sua vez, havia sido proibido em 1964, após
uma controvertida exibição para os fuzileiros navais,
mas foi liberado dezesseis anos mais tarde; esta é a
sua situação no momento em que este livro é redigi­
do, mas pode haver nova proibição a qualquer
momento. A única cópia de O Ve/ho e o Novo
(Stároie /' nóvoie] de que se tem notícia hoje no
Brasil foi condenada pela Cinemateca Brasileira, pois
não oferece mais condições de projeção. Apenas
EISENSTEIN 107

Alexandre Nevski [Aleksandr Nevskii} e fvan-o-


Terrível {Ivan Groznii] não tiveram problemas coma
censura, mas o prof. Bóris Schnaiderman nos tembra,
em seu livro Projeções: Rússia/Brasil/ltália, que houve
um tempo no Brasil em que, para a exibição de
Alexandre Nevski, foi preciso substituir a palavra
“russos" por "eslavos" e evitar qualquer alusão à
procedência da película. Vê-se que a obra de
Eisenstein define bem a dimensão de nossa miséria
cultural, í
Quanto a Que Viva Méxicol, já foi dito que i
Eisenstein nunca pôde montar os negativos. Em i
compensação, os americanos extraíram vários filmes -
desse material. Sol Lesser montou, em 1933, Tempes- j
tade sobre o México e O dia dos Mortos e, seis anos i
depois, Marie Seton elaborou uma medíocre homena-
gem denominada Uma temporada no Sol. Em todos
esses filmes, o revolucionário estilo de montagem í
de Eisenstein foi substituído pela narrativa linear j
padronizada, de forma que o material mexicano *
acabou reduzido aos estereótipos da produção habi- $
tual de Hollywood. 0 mesmo destino teria também f
o material enviado â União Soviética e transformado 1
em filme em 1979 por Alexandrov. A Única versão |
decente que se conhece é a versão "científica" de f
Jay Leyda, realizada em 1957 e denominada O |
projeto mexicano de Eisenstein. Esse trabalho |
consiste simplesmente de uma collage das tomadas |
na ordem de filmagem, sem cortes ou qualquer sorte |
de manipulação, deixando o material "virgem” e f
desarticulado, tal como o cineasta o deixou. |
108 ROTEIRO PARA VER/LER EISENSTEIN

Mas a ti'tulo de curiosidade, é interessante ver


ainda a montagem dos fotogramas fixos de O Prado
de Bejin (Bejin Lug], realizada em 1967, em Moscou,
por N. Kleiman e S. Yutkevitch: é a única coisa que
nos resta hoje desse filme malogrado e perseguido.
A obra teórica de Eisenstein, por sua vez, foi
conhecida durante muito tempo no Ocidente através
de três antologias de textos organizadas nos EUA por
Jay Leyda; Film Form (1949), FffmSense (1963)
e Film Essays and a Lecture (1970), publicadas por
várias editoras, Ainda hoje esses livros são considera­
dos a bibliografia de base do cineasta. Os soviéticos
demoraram muito a reconhecer a importância dos
textos teóricos de Eisenstein e, por isso, só em 1956
é que sai o primeiro livro russo do cineasta -
Reflexões de Um Cineasta; mas era ainda uma antolo­
gia pouco expressiva, além de mutilada por cortes
e remontagens. A partir de 1964, porém, a União
Soviética se decide por uma atitude mais respeitosa
para com o seu maior cineasta e começa a publicar os
seis volumes gigantescos das Obras Selecionadas de
Eisenstein. Os franceses atualmente estão traduzindo
sistematicamente os textos da edição russa: já foram
editados até agora cinco volumes pela Union Générale
d'Editions: Au-Delà dos £toi/es, La Non-tndifférente
Nature (2 volumes) e as Mêmoires (2 volumes).
Já em Bruxelas, começa a aparecer uma nova coleção
— denominada Cinématisme (publicada pela Editora
Complexe) — dedicada exciusivamente a textos
inéditos do cineasta. Em português, pode-se encontrar
duas antologias razoáveis: Ref/exões de Um Cineasta
EISENSTEIN 109

(Ed. Zahar, Rio) e Da Revolução á Arte, da Arte à


Revolução (Ed. Presença, Lisboa). O célebre ensaio
"O princípio cinematográfico e o ideograma" está
publicado em português na antologia organizada
por Haroldo de Campos Ideograma: Lógica, Poesia,
Linguagem (Ed. Cultrix, S. Paulo).
Quanto â bibliografia sobre o cineasta, pode­
riamos citar, em primeiro lugar, as duas biografias
mais conhecidas: a de Marie Seton (publicada pela
Bodley Head, de Londres), medíocre em termos
analíticos mas abundante de informações, e a de
Dominique Fernandez (publicada pela Grasset, de
Paris), de linha mais freudiana. Dois trabalhos notá­
veis sobre o conjunto da obra e das idéias de
Eisenstein podem ser encontrados, de um lado, no
caderno de notas Lessons with Eisenstein (Allen
& Unwin, Londres) de Vladimir Nizhny, um aluno
de Eisenstein à época de seus cursos em Moscou
e, de outro, no volumoso ensaio de Barthélemy
Amengual, recentemente editado na Suíça sob o
nome Que Viva Eisenstein! (L'Age d'Homme,
Lausanne). Para um exame panorâmico da evolução
do cinema soviético, seria aconselhável a leitura do
mais importante trabalho sobre o assunto: Kiho: a
History of Russian and Soviet FHm (Allen & Unwin,
Londres) de Jay Leyda. Em português, há dois
volumes de teoria cinematográfica que examinam
em profundidade a obra de Eisenstein: O Discurso
Cinematográfico (Paz e Terra, Rio) de Ismail Xavier
e Signos e Significação no Cinema (Horizonte,
Lisboa) de Peter Woílen.

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