O comunismo chinês não pode ser encarado simplesmente como
uma subvariedade do comunismo soviético, e menos ainda como parte do sistema de satélites soviético. Antes de tudo, triunfou num país com uma população muito maior que a da URSS, ou, aliás, de qualquer outro Estado. Mesmo descontando-se as incertezas da demografia chinesa, alguma coisa em torno de um em cada cinco seres humanos era um chinês vivendo na China continental. (Havia também uma substancial diáspora chinesa no leste e sudeste da Ásia.) Além disso, a China era não só muito mais nacionalmente homogênea que a maioria dos outros países — cerca de 94% da população era de chineses han —, mas formara uma unidade política única, embora intermitentemente perturbada, provavelmente por um período de no mínimo 2 mil anos. (p.355) Mais objetivamente ainda, durante a maior parte desses dois milênios o império chinês, e presumivelmente a maioria de seus habitantes que tinham opinião sobre essas questões, havia considerado a China o centro e modelo da civilização mundial. Com raras exceções, todos os demais países onde triunfaram regimes comunistas, da URSS em diante, eram e viam-se como culturalmente atrasados e marginais, em relação a algum centro avançado e paradigmático de civilização. A própria estridência com que a URSS insistia, nos anos de Stalin, em sua não-dependência intelectual e tecnológica do Ocidente e na origem interna de todas as grandes invenções, do telefone aos aviões, era um sintoma denunciador desse senso de inferioridade. (p.356) O mesmo não se dava com a China, que, muito corretamente, via sua civilização, arte, escrita e sistema de valores sociais clássicos como a reconhecida inspiração e modelo para outros — não menos o próprio Japão. Certamente não tinha nenhum senso de qualquer inferioridade cultural e intelectual, coletivo ou individual, em comparação com qualquer outro povo. O fato mesmo de a China não ter Estados vizinhos que pudessem mesmo levemente ameaçá-la, e, graças à adoção de armas de fogo, não ter qualquer dificuldade de repelir os bárbaros em sua fronteira, confirmava o senso de superioridade, embora deixasse o Império despreparado para a expansão imperial do Ocidente. A inferioridade cultural da China, que se tornou demasiado evidente no século XIX, não se deveu a alguma incapacidade técnica ou educacional, mas ao próprio senso de auto-suficiência e autoconfiança da civilização chinesa tradicional. Isso a fez relutar em fazer o que fizeram os japoneses após a Restauração Meiji, em 1868: mergulhar na “modernização”, adotando no atacado modelos europeus. Isso só poderia ser feito e só o seria sobre as ruínas do antigo império chinês, guardião da antiga civilização, e pela revolução social, que foi ao mesmo tempo uma revolução cultural contra o sistema confuciano.(p.356) O comunismo chinês, portanto, era ao mesmo tempo social e, se assim se pode dizer, nacional. O explosivo social que alimentou a revolução comunista foi a extraordinária pobreza e opressão do povo chinês, inicialmente das massas trabalhadoras nas grandes cidades costeiras do centro e do sul da China, que formavam enclaves sob controle imperialista estrangeiro e, às vezes, da própria indústria moderna — Xangai, Cantão, Hong Kong —, e, depois, do campesinato, que formava 90% da vasta população do país. Sua condição era muito pior até mesmo que a da população urbana chinesa, cujo consumo, per capita, era qualquer coisa tipo duas vezes e meia maior. (p.356)
Contudo, claro, os comunistas eram mas que o Império revivido,
embora sem dúvida se beneficiassem das enormes continuidades da história chinesa, que estabelecia tanto o modo como o chinês comum esperava relacionar-se com qualquer governo que desfrutasse o “mandato do céu” quanto o modo como os que administravam a China esperaram pensar sobre suas tarefas. Em nenhum outro país os debates políticos dentro de um sistema comunista se realizariam com referência ao que um mandarim leal dissera ao imperador Chia-ching, da dinastia Ming, no século XVI. A isso se referia um inflexível observador da China — o correspondente do Times de Londres — na década de 1950, ao afirmar, chocando os que o ouviram na época, como este autor, que não restaria comunismo algum no século XXI a não ser na China, onde sobreviveria como a ideologia nacional. Para a maioria dos chineses, tratava-se de uma revolução que era basicamente uma restauração: de ordem e paz; de bem- estar; de um sistema de governo cujos funcionários públicos se viam apelando para precedentes da dinastia T’ang; da grandeza de um excelso império e civilização. (p.357) E, nos primeiros anos, era isso que a maioria dos chineses parecia estar obtendo. Os camponeses elevaram sua produção de grãos em mais de 70% entre 1949 e 1956 supostamente porque ainda não se interferia muito com eles, e embora a intervenção da China na Guerra da Coréia de 1950-2 criasse um sério pânico, a capacidade do exército chinês de primeiro derrotar e depois manter a distância os poderosos EUA dificilmente deixaria de impressionar. O planejamento do desenvolvimento industrial e educacional começou no início da década de 1950. Contudo, muito em breve a nova República Popular, sob o agora incontestado e incontestável Mao, começou a entrar em duas décadas de catástrofes em grande parte arbitrárias provocadas pelo grande timoneiro. A partir de 1956, as relações em rápida deterioração com a URSS, que terminaram no clamoroso racha entre as duas potências comunistas em 1960, levaram à retirada da importante ajuda material e de outras, vindas de Moscou. Contudo, isso mais complicou que causou o calvário do povo chinês, assinalado por três estações principais da cruz: a ultra-rápida coletivização da agricultura camponesa em 1955-7; o “Grande Salto Avante” da indústria em 1958, seguido pela grande fome de 1959-61, provavelmente a maior do século XX e os dez anos de Revolução Cultural, que acabaram com a morte de Mao, em 1976.(p.357) Concorda-se em geral que esses mergulhos cataclísmicos se deveram, em grande parte, ao próprio Mao, cujas políticas eram muitas vezes recebidas com relutância na liderança do partido, e às vezes — mais notadamente no caso do “grande salto avante” — com franca oposição, que ele só superou lançando a Revolução Cultural. Contudo, não podem ser entendidas sem um senso das peculiaridades do comunismo chinês, do qual Mao se fez o porta-voz. Ao contrário do comunismo russo, o chinês praticamente não tinha relação direta com Marx e o marxismo. Foi um movimento pós-Outubro, que chegou a Marx via Lenin, ou, mais precisamente, via o “marxismo-leninismo” de Stalin. O conhecimento de teoria marxista do próprio Mao parece ter derivado quase inteiramente da História do PCUS [b]: breve curso, de 1939. E no entanto, por baixo da cobertura marxista-leninista havia — e isso é bastante evidente no caso de Mao, que nunca viajou para fora da China até tornar-se chefe de Estado, e cuja formação intelectual era inteiramente nacional — um utopismo muito chinês. Este, naturalmente, tinha pontos de contato com o marxismo: todas as utopias social- revolucionárias têm alguma coisa em comum, e Mao, sem dúvida com toda a sinceridade, pegou os aspectos de Marx e Lenin que se encaixavam em sua visão e usou- os para justificá- la. Contudo, essa visão de sociedade ideal unida por um consenso total, e na qual, já se disse, “a total abnegação do indivíduo e a total imersão na coletividade (são) bens últimos [...] uma espécie de misticismo coletivista”, é o oposto do marxismo clássico, que, pelo menos em teoria e como objetivo último, previa a completa liberação e auto-realização do indivíduo (Schwartz, 1966). A ênfase característica no poder de transformação espiritual para se conseguir isso, remodelando o homem, embora recorra à crença de Lenin e depois de Stalin, na consciência e no voluntarismo, foi muito além dela. (p.358) Em poucos meses, diante da resistência passiva, abandonaram-se os aspectos mais extremos do sistema, embora não antes de ele ter se (como a coletivização de Stalin) combinado com a natureza para produzir a fome de 1960-1. Num aspecto, essa crença na capacidade de transformar pela vontade se apoiava numa crença maoísta mais específica no “povo”, disposto a ser transformado e portanto a participar, criativamente e com toda a inteligência e engenhosidade tradicionais chinesas, na grande marcha avante. Era a visão essencialmente romântica de um artista, embora, segundo depreendemos por aqueles que podem julgar a poesia e caligrafia que ele gostava de praticar, não um artista muito bom. (“Não tão ruim quanto a pintura de Hitler, mas não tão boa quanto a de Churchill”, na opinião do orientalista britânico Arthur Waley, usando a pintura como uma analogia para a poesia.) Isso o levou, contra os céticos e a opinião realista de outros líderes chineses, a convocar intelectuais da velha elite a contribuir com seus talentos para a campanha das “Cem Flores” de 1956-7, na suposição de que a revolução, e talvez ele próprio, já os tivesse transformado. (“Que desabrochem cem flores, que disputem cem escolas de pensamento.”) Quando, como camaradas menos inspirados haviam previsto, essa explosão de livre-pensamento se mostrou deficiente em entusiasmo unânime pela nova ordem, confirmou- se a desconfiança inata de Mao dos intelectuais como tais, que iria encontrar expressão espetacular nos dez anos da Grande Revolução Cultural, quando a educação superior praticamente parou e os intelectuais que já existiam foram regenerados em massa pelo trabalho braçal compulsório no campo. [150] Apesar disso, a crença de Mao nos camponeses, exortados a resolver todos os problemas de produção durante o “grande salto”, segundo o princípio de “que todas as escolas [isto é, de experiência local] disputem”, permaneceu inalterada. Pois — e esse era mais um aspecto do pensamento de Mao que encontrava apoio no que ele lia na dialética marxista — ele estava fundamentalmente convencido da importância da luta, do conflito e da alta tensão como algo não apenas essencial à vida, mas que também impedia a recaída da antiga sociedade chinesa em insistir na permanência e harmonia imutáveis, o que fora sua fraqueza. A revolução e o próprio comunismo só poderiam ser salvos de degenerar em estagnação por uma luta constantemente renovada. A revolução não podia acabar nunca. (p.360) . A diminuição no ritmo da economia soviética era palpável: a taxa de crescimento de quase tudo que nela contava, e podia ser contado, caiu constantemente de um período de cinco anos para outro após 1970: produto interno bruto, produção industrial, produção agrícola, investimento de capital, produtividade de trabalho, renda real per capita. Se não estava de fato em regressão, a economia avançava no passo de um boi cada vez mais cansado. Além disso, muito longe de se tornar um gigante do comércio mundial, a URSS parecia estar regredindo internacionalmente. Em 1960, suas grandes exportações eram maquinaria, equipamentos, meios de transporte e metais ou artigos de metal, mas em 1985 dependia basicamente para suas exportações (53%) de energia (isto é, petróleo e gás). Por outro lado, quase 60% de suas importações consistiam em máquinas, metais etc. e artigos de consumo industriais (SSSR, 1987, pp. 15-7, 32-3). Com exceção da Hungria, as tentativas sérias de reformar as economias socialistas na Europa tinham sido, na verdade, abandonadas em desespero após a Primavera de Praga. No tocante às tentativas ocasionais de reverter as velhas economias de comando, na forma stalinista (como na Romênia de Ceausescu) ou na forma maoísta, que substituía a economia por voluntarismo e suposto zelo moral (como Fidel Castro), quanto menos se falasse delas, melhor. Os anos Brejnev iriam ser chamados pelos reformadores de “era da estagnação”, essencialmente porque o regime parara de tentar fazer qualquer coisa séria em relação a uma economia em visível declínio. Comprar trigo no mercado mundial era mais fácil que tentar resolver a aparentemente crescente incapacidade da agricultura soviética de alimentar o povo da URSS. Lubrificar o enferrujado motor da economia com um sistema universal e onipresente de suborno e corrupção era mais fácil que limpá-lo e ressintonizá- lo, quanto mais substituí-lo. Quem sabia o que aconteceria a longo prazo? A curto, parecia mais importante manter os consumidores satisfeitos, ou, de qualquer forma, manter o descontentamento dentro de limites.(p.363) Politicamente, a Europa Oriental era o calcanhar de Aquiles do sistema soviético, e a Polônia (e também, em menor medida, a Hungria) seu ponto mais vulnerável. Após a Primavera de Praga, ficou claro, como vimos, que os regimes satélites comunistas haviam perdido legitimidade como tal na maior parte da região.[152] Tinham sua existência mantida por coerção do Estado, apoiado pela ameaça de intervenção soviética, ou, na melhor das hipóteses — como na Hungria —, dando aos cidadãos condições materiais e relativa liberdade muito superiores à média leste-européia, mas que a crise econômica tornava impossíveis de manter. Contudo, com uma exceção, nenhuma forma séria de oposição política organizada ou qualquer outra era possível. Na Polônia, a conjunção de três fatores produziu essa possibilidade. A opinião pública do país estava esmagadoramente unida não apenas pela antipatia ao regime, mas por um nacionalismo anti-russo (e antijudeu) e conscientemente católico romano; a Igreja retinha uma organização independente nacional; e a classe operária demonstrara seu poder político com greves maciças, em intervalos, desde meados da década de 1950. O regime há muito se resignara a uma tolerância tácita, ou mesmo à retirada — como quando as greves da década de 1970 forçaram a abdicação do então líder comunista —, enquanto a oposição estivesse desorganizada, embora seu espaço de manobra encolhesse perigosamente. (p.365) REFERÊNCIA:
Era dos Extremos: o Breve Século XX (1914-1991). São Paulo,