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DOI: 10.1590/s0103-4014.2023.37107.

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De Lenin a Stalin: permanências e rupturas


Lincoln Secco I

P gama tãosãoampla
oucos os livros que reúnem uma Essa é uma história por demais conhe-
de informações com cida. No entanto, quando aqueles líderes
um estilo elegante. Angela Mendes de estavam no poder, no auge de sua popu-
Almeida iniciou suas pesquisas no exílio laridade, eles também exerceram uma di-
na França e defendeu sua tese em Ciên- tadura com elementos que anteciparam
cia Política em 1981, a qual compõe a o stalinismo. Afinal, antes que eles mes-
primeira parte de sua obra Do Partido mos fossem vitimados, anarquistas como
Único ao Stalinismo (Almeida, 2021). Emma Goldman e socialistas internacio-
Sua investigação prosseguiu nos decê- nalistas como Angelica Balabanova já ha-
nios seguintes e foi beneficiada pelo im- viam se desiludido há muito com a Revo-
pacto do fim do socialismo real na docu- lução e abandonado a Rússia Soviética.
mentação.1 Em 1918 Zinoviev declarou que era
Não apenas houve uma abertura par- preciso eliminar 10 milhões de “contrar-
cial de antigos arquivos soviéticos, mas revolucionários” (Aleksiévitch, 2016,
vários militantes e espiões dos serviços de p.22.); Tukhatchevsky esmagou impie-
informação comunistas publicaram me- dosamente a rebelião de Kronstadt e
mórias, forneceram entrevistas ou reve- Trotsky ameaçou usar armas químicas se
lações por meio de terceiros. Uma nova a resistência continuasse (Avrich, 2006,
historiografia, biografias e até romances p.209); Bukharin advogou o terrorismo
serviram de fonte para Angela. Ela pode de Estado; e na guerra civil houve o uso
situar o stalinismo como um problema de familiares de inimigos como reféns.
histórico e não como derivação de algum Decerto, ninguém desconhece as cir-
conceito apriorístico ou um raio em céu cunstâncias que explicam essas atitudes
azul, inesperado e sem passado. e nem se trata de julgá-las a posteriori.
Quando os processos de Moscou exi- Elas apenas nos indagam sobre o quan-
biram ao mundo grandes nomes da Re- to há de ruptura e continuidade entre
volução de Outubro de 1917 como cri- aqueles dirigentes que tomaram o poder
minosos, agentes da Gestapo e traidores em outubro de 1917 e o stalinismo que
da União Soviética, a intelectualidade os esmagou. E esse é o problema que a
progressista (os companheiros de via- historiadora Angela Mendes de Almeida
gem) e os próprios comunistas ficaram enfrentou.
estarrecidos. Bolcheviques como Kame- Claro que nenhum daqueles líderes
nev e Zinoviev, Bukharin e Tukatchevsky supracitados imaginava eliminar fisi-
confessaram crimes e foram fuzilados. camente o outro. O terror deveria ser
O terror stalinista ainda atingiu inter- dirigido para fora do partido. Também
nacionalistas como Karl Radek e Willi nenhum deles propôs seriamente um
Münzenberg e tantos outros, homens e massacre na escala de Nikolai Iejov ou
mulheres devotados à causa socialista. O Lavrenty Beria, chefes posteriores da
próprio Trotsky foi alcançado pelos agen- polícia política soviética. Pode-se até ar-
tes soviéticos no México e assassinado. gumentar que a declaração de Zinoviev

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foi uma das suas conhecidas bravatas e A autora demonstra como a criação da
que as demais ameaças eram um recur- Terceira Internacional refletiu o otimis-
so retórico de intelectuais. Ainda assim, mo revolucionário do final da Guerra. A
todos eles apoiaram um sistema repres- Europa parecia mergulhada numa con-
sivo que já existia antes do stalinismo e vulsão social com motins militares, gre-
que levou ao fechamento da Assembleia ves, ocupações de fábrica e insurreições
Constituinte, à repressão de conselhis- populares. Finlândia, Alemanha, Hun-
tas, anarquistas, socialistas revolucioná- gria, Itália e Polônia pareciam caminhar
rios e mencheviques. rumo ao socialismo. No mundo inteiro,
Não se trata de condenar a Revolu- do Brasil à Índia, da Argentina à China,
ção, nem muito menos de não entender registraram-se protestos numa onda que
as justificativas históricas dos bolchevi- se estendeu por alguns anos.
ques, como veremos. O terror dos anos O otimismo leninista afastou de iní-
1930 não foi um produto direto da Re- cio os partidos socialistas que apoiavam
volução. Nem foi programado. Respon- a Rússia Soviética mas não aceitavam a
deu às condições objetivas do país que rigidez das 21 condições para o ingresso
os bolcheviques herdaram. Mas não era na organização. Para os bolcheviques, o
inevitável. Houve disputas, houve esco- partido revolucionário deveria ser fruto
lhas, muitas delas feitas pelos vitoriosos, de uma cisão, e não de uma demorada
mas também pelos futuros derrotados disputa pelas bases socialistas que levas-
que não previram e nem desejaram a di- se ao isolamento dos líderes reformistas,
tadura que se abateu sobre o movimento como constatou a autora.
comunista mundial. O livro percorre com detalhes os de-
Muitos historiadores reconheceram bates da Internacional Comunista, a tá-
elementos de ruptura entre o período tica de frente única, a trajetória peculiar
de Lenin e o de Stalin ao lado das per- dos comunistas italianos, a bolcheviza-
manências. Michel Löwy (no excelente ção imposta aos partidos, as consequ-
prefácio do livro de Angela Mendes de ências do chamado “terceiro período”,
Almeida) critica a posição da autora, à entre as quais a divisão da esquerda ale-
qual sugeriria uma simples continuidade mã e a ascensão do nazismo, até o giro
entre o partido único bolchevique e o estratégico que levou à Frente Popular
stalinismo.2 No entanto, a tese é mais na França (1934-1939) e na Espanha
complexa. A continuidade é estudada (1936-1939).
num processo contraditório de tradi- A autora tem um conhecimento de
ções revolucionárias conflitivas, como fontes e bibliografia notável, além de
as de Rosa Luxemburg e Lenin. Não há dar um fino trato metodológico à do-
linearidade, e sim um conjunto de con- cumentação. Toda a história que ela
dições objetivas como a Primeira Guerra percorre até os anos 1930 é ricamente
Mundial e o que a autora chamou de “as ilustrada por uma pesquisa exaustiva.
grandes escolhas do comunismo”. Entretanto, a maior contribuição de sua
O modelo de partido único, logo obra e a mais sujeita a debate está nos
imposto ao movimento comunista inter- dois últimos capítulos. Neles, ela analisa
nacional, sintetiza uma série de práticas o significado histórico do stalinismo, a
que nos anos 1930 seriam exacerbadas. emergência de um aparato policial po-

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deroso na União Soviética, as suspeitas cionamento declarado pelas vítimas que
envolvendo o assassinato de Kirov e os guia a História e nega qualquer preten-
processos de Moscou que, em que pese são à neutralidade. Para a autora, não há
terem sido um instrumento político de equivalência entre a verdade das vítimas
afirmação de poder, espantaram o mun- e as alegações do opressor, como é re-
do pelo fato de os líderes da Revolução gra nos direitos humanos, segundo ela.
serem apresentados como espiões de A narrativa assemelha-se a um thriller e a
serviços de informação estrangeiros. leitura é plena de comoção.
Era algo tão inverossímil que, se le- Apresentam-se e se despedem inúme-
vado a sério, tornaria a própria tomada ras personagens revolucionárias que se
do poder de outubro de 1917 uma mera dedicaram a uma causa internacionalista
conspiração. A própria história do parti- e foram assassinadas sob as mais diver-
do teve que ser reescrita sob supervisão sas formas: trotskistas, socialistas, anar-
pessoal de Stalin, ocultando ou calunian- quistas, comunistas dissidentes, vítimas
do seus adversários. Ainda assim, muita casuais que sequer sabiam por que eram
gente se convenceu ou convenientemen- condenadas e até mesmo fiéis e con-
te se calou. Pesavam na balança a defesa victos membros do Partido Comunista
do primeiro Estado socialista, cercado executados sumariamente sem nenhuma
pelo imperialismo e a sobrevivência po- razão. O palco estabelecido pela autora
lítica, e, em muitos casos, mesmo física. foi além da União Soviética e abrangeu
Também a máquina de agitação e pro- a guerra civil na Espanha, a resistência
paganda cumpriu o seu papel a ponto francesa, as comunidades de exilados nos
do embaixador estadunidense na União Estados Unidos e outros países. Assisti-
Soviética se convencer plenamente da mos aos acertos de contas no interior
culpa de réus que tinham liderado a Re- dos partidos comunistas na França, na
volução (Davies, 1945). Itália e até no Brasil, e as operações de
Na década de 1930 a Internacional ocultamento, desinformação e calúnias
Comunista já era um simples instrumen- contra velhos combatentes de uma hora
to da política exterior soviética: uma ver- para outra caídos em desgraça.
dadeira Stalintern, nas palavras de um Essas trajetórias permitiram à autora
ex-comunista que escreveu suas memó- discutir algo que era pouco conhecido
rias sob pseudônimo (Ypsilon, 1948). na época, mas que iria transparecer ine-
Em 1943, Stalin dissolveu a Interna- vitavelmente com o tempo: uma extra-
cional Comunista supostamente porque ordinária experiência histórica que se
não queria assustar os seus aliados bur- revelou em atos de solidariedade e co-
gueses da coalizão antifascista.3 Afinal, vardia, lutas heroicas e crimes. A União
uma rede de informantes não necessitava Soviética salvou a humanidade do nazis-
mais do apelo à Revolução Mundial, na mo e construiu um modelo alternativo
qual poucos acreditavam. Aquela rede de organização social e econômica. Sta-
foi uma das bases do último capítulo do lin, qualquer que seja a apreciação sobre
livro de Angela, o mais impressionante a qualidade do seu comando na Segunda
da obra, pois recolhe inúmeros testemu- Guerra Mundial (e a da autora é intei-
nhos de vítimas do stalinismo. Há uma ramente negativa), foi erigido pelo par-
outra tese no seu interior: a de um posi- tido como símbolo do esforço do país

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na coletivização da agricultura, na in- YPSILON. Stalintern. Paris: La Table
dustrialização acelerada e na resistência Ronde, 1948.
ao nazismo. Mas em todos esses feitos
encontramos sua negação: os campos de
trabalho forçado e a eliminação de mi-
lhões de “inimigos do povo”.
O livro de Angela Mendes de Almei-
da é dotado de coragem intelectual, tan-
to para confrontar o stalinismo quanto
para questionar os princípios organizati-
vos que permitiram que uma ditadura de
um único partido se impusesse.

Notas
1 Angela Mendes de Almeida é doutora em
Ciências Políticas pela Universidade de
Paris VIII. Foi professora universitária em
Lisboa (ISCTE), na UFRRJ e na PUC
(SP).
2 Löwy conheceu a autora em Paris no
início dos anos 1970. Ela havia militado
no Brasil com seu companheiro, o estu-
dante de História da USP Luiz Eduardo
Merlino, no Partido Operário Comunista
(POC). Merlino foi assassinado pela dita-
dura em 1971. O Centro Acadêmico de
História tem o nome dele.
3 No entanto, os arquivos revelam hoje
que a decisão vinha sendo gestada antes
da Guerra (Wolikow, 2010, p.141).

Referências
ALEKSIÉVITCH, S. O fim do homem so- Lincoln Secco é professor livre-docente de
viético. São Paulo: Cia. das Letras, 2016. História Contemporânea da Faculdade de
ALMEIDA, A. M. Do Partido Único ao Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Stalinismo. São Paulo: Alameda, 2021. Universidade de São Paulo.
@ – lsecco@usp.br /
AVRICH, P. Kronstadt. Buenos Aires: https://orcid.org/0000-0002-0881-4274.
Anarres, 2006.
Recebido em 12.1.2022 e aceito em
DAVIES, J. Missão em Moscou. São Paulo:
10.3.2022.
Calvino, 1945.
WOLIKOW, S. L’Internationale Com- I
Universidade de São Paulo, Faculdade de
muniste. Paris: Les Éditions de L’Atelier, Filosofia, Letras e Ciências Humanas, São
2010. Paulo, Brasil.

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