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A queda do liberalismo

Eric Hobsbawn. Era dos extremos: o breve século XX. 1914-1991. p. 113-131. Adaptado
Regimes liberais: (...) De fato, as instituições da democracia liberal haviam avançado politicamente, e a erupção de
barbarismo em 1914-8 aparentemente apenas apressou esse avanço. Com exceção da Rússia soviética, todos os regimes
que emergiam da Primeira Guerra Mundial, novos e velhos, eram basicamente regimes parlamentares representativos
eleitos, mesmo a Turquia. A Europa, a Oeste da fronteira soviética, consistia inteiramente nesses Estados em 1920. Na
verdade, as instituições básicas do governo liberal constitucional, eleições para assembleias representativas e/ou
presidentes, eram quase universais no mundo de países independentes nessa época, embora devamos lembrar que os
cerca de 65 Estados independentes do período entreguerras tinham sido um fenômeno basicamente europeu e americano:
um terço da população do mundo vivia sob domínio colonial.
Não se está sugerindo, claro, que a simples existência ou freqüência de eleições prove mais que isso. Nem o Irã,
que teve seis eleições depois de 1930, nem o Iraque, que teve três, podiam, mesmo então, ser considerados bastiões da
democracia.
Mesmo assim, os regimes eleitorais representativos eram bastante freqüentes. E no entanto, os 23 anos entre a
chamada “Marcha sobre Roma” de Mussolini e o auge do sucesso do Eixo na Segunda Guerra Mundial viram uma retirada
acelerada e cada vez mais catastrófica das instituições políticas liberais. Em 1918-20, assembléias legislativas foram
dissolvidas ou se tornaram ineficazes em dois Estados europeus, na década de 1920 em seis, na de 1930 em nove,
enquanto a ocupação alemã destruía o poder constitucional em outros cinco durante a Segunda Guerra Mundial. Em suma,
os únicos países europeus com instituições políticas adequadamente democráticas que funcionaram sem interrupção
durante todo o período entreguerras foram a Grã-Bretanha, a Finlândia (minimamente), o Estado Livre Irlandês, a Suécia
e a Suíça.
Nas Américas, a outra região de Estados independentes, a situação era mais confusa, mas não chegava a sugerir
um avanço geral das instituições democráticas. A lista de Estados consistentemente constitucionais e não autoritários no
hemisfério ocidental era curta: Canadá, Colômbia, Costa Rica, os EUA e a hoje esquecida “Suíça da América Latina” e
sua única democracia verdadeira, o Uruguai.
Quanto ao resto do globo, grande parte do qual consistia em colônias, e portanto não liberais por definição, afastou-
se das constituições liberais, na medida em que algum dia as tinham tido. No Japão, um regime liberal moderado deu lugar
a um nacionalista-militarista em 1930-1.
Em resumo, o liberalismo fez uma retirada durante toda a Era da Catástrofe, movimento que se acelerou
acentuadamente depois que Adolf Hitler se tornou chanceler da Alemanha em 1933. Tomando-se o mundo como um todo,
havia talvez 35 ou mais governos constitucionais e leitos em 1920 (dependendo de onde situamos algumas repúblicas
latino-americanas). Até 1938, havia talvez dezessete desses Estados, em 1944 talvez doze, de um total global de 65. A
tendência mundial parecia clara.
Talvez valha a pena lembrar que nesse período a ameaça às instituições liberais vinha apenas da direita política,
já que entre 1945 e 1989 se supôs, quase como coisa indiscutível, que vinha essencialmente do comunismo. Até então, o
termo “totalitarismo”, inicialmente inventado como uma descrição ou autodescrição do fascismo italiano, era aplicado quase
só a esses regimes. A Rússia soviética (a partir de 1922 URSS) estava isolada, e não podia e nem queria, após a ascensão
de Stalin, ampliar o comunismo. A revolução social sob a liderança leninista (ou qualquer outra) deixou de espalhar-se
depois que a onda inicial do pós-guerra refluiu. Os movimentos social-democratas (marxistas) tornaram-se mais forças
mantenedoras do Estado que forças subversivas, e não se questionava seu compromisso com a democracia. Nos
movimentos trabalhistas da maioria dos países os comunistas eram minorias, e onde eram fortes, na maior parte dos casos
foram, ou tinham sido, ou iriam ser suprimidos.
(...) Sobre os fascismos na explicação da queda do liberalismo: (relevante e insuficiente). Insuficiente porque de
modo algum todas as forças que derrubavam os regimes liberais eram fascistas. E relevante porque o fascismo, primeiro
em sua forma original italiana, depois na forma alemã do nacional-socialismo, inspirou outras forças antiliberais, apoiou-
as e deu à direita internacional um senso de confiança histórica: na década de 1930, parecia a onda do futuro.
As forças que derrubavam os regimes liberal-democráticos eram de três tipos.
Todos eram contra a revolução social, e na verdade uma reação contra a subversão da velha ordem social em
1917-20 estava na raiz de todos elss. Todos eram autoritários e hostis às instituições políticas liberais, embora às vezes
mais por motivos pragmáticos do que por princípio. Reacionários anacrônicos podiam proibir alguns partidos,
especialmente o comunista, mas não todos.
Autoritários ou conservadores anacrônicos — o almirante Horthy, o marechal Mannerheim, vencedor da guerra
civil de brancos versus vermelhos na recém-independente Finlândia; o coronel, depois marechal Pilsudski, libertador da
Polônia; o rei Alexandre, antes da Sérvia, agora da recém-unida Iugoslávia; e o general Francisco Franco da Espanha —
não tinham qualquer programa ideológico particular, além do anticomunismo e dos preconceitos tradicionais de sua classe.
Podiam descobrir-se aliados à Alemanha de Hitler e a movimentos fascistas em seus países, mas só porque na conjuntura
entreguerras a aliança “natural” era a feita por todos os setores da direita política.
Um segundo tipo da direita produziu o que se tem chamado de “estatismo orgânico” (Linz, 1975, pp. 277, 306-
13), ou regimes conservadores, não tanto defendendo a ordem tradicional, mas deliberadamente recriando seus princípios
como uma forma de resistir ao individualismo liberal e à ameaça do trabalhismo e do socialismo. Por trás disso havia uma
nostalgia ideológica de uma imaginada Idade Média ou sociedade feudal, em que se reconhecia a existência de classes
ou grupos econômicos, mas a terrível perspectiva da luta de classes era mantida a distância pela aceitação voluntária de
uma hierarquia social, pelo reconhecimento de que cada grupo social ou “estamento” tinha seu papel a desempenhar
numa sociedade orgânica composta por todos.
Igreja: O que ligava a Igreja não só a reacionários anacrônicos mas aos fascistas era um ódio comum pelo
Iluminismo do século XVIII, pela Revolução Francesa e por tudo o que na sua opinião dela derivava: democracia,
liberalismo e, claro, mais marcadamente, o “comunismo ateu”.
Os regimes fascistas
Embora Benito Mussolini tenha sido o criador do fenômeno...
Sem o triunfo de Hitler na Alemanha no início de 1933, o fascismo não teria se tornado um movimento geral. Na
verdade, todos os movimentos fascistas com algum peso fora da Itália foram fundados após sua chegada ao poder,
notadamente a Cruz em Seta húngara, que arrebanhou 25% dos votos na primeira eleição secreta realizada na Hungria
(1939), e a Guarda de Ferro romena, cujo apoio real era ainda maior.
Mais que isso, sem o triunfo de Hitler na Alemanha, a idéia do fascismo como um movimento universal, uma
espécie de equivalente direitista do comunismo internacional tendo Berlim como sua Moscou, não teria se desenvolvido.
o fascismo não pode ser identificado com uma determinada forma de organização do Estado, como o Estado corporativista
— a Alemanha perdeu logo o interesse por tais idéias, tanto mais porque elas conflitavam com a idéia de uma única,
indivisa e total Volksgemeinschaft, ou Comunidade Popular.
Apelo popular: A grande diferença entre a direita fascista e não fascista era que o fascismo existia mobilizando massas
de baixo para cima. Pertencia essencialmente à era da política democrática e popular que os reacionários tradicionais
deploravam, e que os defensores do “Estado orgânico” tentavam contornar.
Os fascistas eram os revolucionários da contra-revolução: em sua retórica, em seu apelo aos que se consideravam
vítimas da sociedade, em sua convocação a uma total transformação da sociedade, e até mesmo em sua deliberada
adaptação dos símbolos e nomes dos revolucionários sociais, tão óbvia no Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores
de Hitler, com sua bandeira vermelha (modificada) e sua imediata instituição do Primeiro de Maio dos comunistas como
feriado oficial em 1933. Os fascistas denunciavam a emancipação liberal — as mulheres deviam ficar em casa e ter muitos
filhos — e desconfiavam da corrosiva influência da cultura moderna, sobretudo das artes modernistas, que os nacional-
socialistas alemães descreviam como “bolchevismo cultural” e degeneradas.
Racismo: Homens e mulheres migravam não apenas para o outro lado de oceanos e fronteiras internacionais, mas do
campo para a cidade; de uma região do mesmo país para outra — em suma, de “casa” para a terra de estrangeiros e,
virando-se a moeda, como estranhos em casa alheia. Quase quinze em cada cem poloneses saíram de seu país para
não voltar, e mais meio milhão por ano como migrantes sazonais — em sua grande maioria para juntar-se às classes
trabalhadoras dos países que os recebiam. Antecipando o fim do século XX, o fim do século XIX introduziu a xenofobia
de massa, da qual o racismo — a proteção da cepa local pura contra a contaminação, e até mesmo a submersão, pelas
hordas invasoras subumanas — tornou-se a expressão comum.
Classe média: A militância de classe média e de classe média baixa deu uma virada para a direita radical sobretudo em
países onde as ideologias de democracia e liberalismo não eram dominantes, ou entre classes que não se identificavam
com elas, ou seja, em países que não haviam passado por uma Revolução Francesa ou seu equivalente.
Conclusão: Em suma, a “natureza” da aliança da direita entre as guerras ia dos conservadores tradicionais, passando
pelos reacionários da velha escola, até os extremos da patologia fascista. As hostes tradicionais do conservadorismo e
da contra-revolução eram fortes, mas muitas vezes inertes. O fascismo forneceu-lhes a dinâmica e, talvez mais
importante ainda, o exemplo de vitória sobre as forças da desordem.

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