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Revolução Outubro 1917


32 - 40 minutes

Escrito por Domingos Abrantes


Nov-2007
A questão, nos exactos termos em que está formulada, colocou-se a
partir do momento em que a superação revolucionária do capitalismo
entrou no campo das opções práticas e, desde então - apesar de
decorridos que são 90 anos desde que o proletariado russo, sob a
direcção de Lénine e do Partido Bolchevique, se lançou ao «assalto do
céu» e o triunfo da revolução ter dado uma resposta inequívoca à
questão colocada - o problema jamais deixou de estar no centro dos
debates político-ideológicos que se prendem com o papel da classe
operária e dos partidos revolucionários, com a natureza do capitalismo
e as vias para o socialismo, com as questões da estratégia e da táctica
revolucionárias relativas à necessidade da revolução ou não, para a
superação do capitalismo.
1. A história regista ao longo dos tempos vários casos de revoluções
que influenciaram de forma determinante a vida dos povos e a marcha
do mundo, mas nenhuma se iguala, pelos seus efeitos globais, à
Revolução Socialista de Outubro, a primeira revolução que, elevando
a classe operária à condição de classe dominante, abriu caminho à
construção duma sociedade de um novo tipo, inscreveu como
objectivo supremo a liquidação de todas as formas de exploração e
opressão social e nacional e proclamou a paz e a amizade entre os
povos como normas que deviam reger as relações entre Estados.
A Revolução de Outubro introduziu uma nova dinâmica nos processos
de desenvolvimento social e humano. Como resultado da acção
criadora da classe operária, logo nos primeiros anos do poder
soviético as estruturas socio-económicas sofreram profundas
alterações com a liquidação da propriedade privada dos latifundiários
e dos grandes capitalistas. Milhões de hectares de terras foram
distribuídas pelos camponeses pobres. Em poucos anos, apesar das
ruínas colossais resultantes do envolvimento da Rússia na I Guerra
Mundial, da guerra civil e das agressões imperialistas ao Estado
soviético, a produção industrial foi ultrapassada em várias vezes
quando comparada com a época pré-revolucionária, bem como a
elevação dos níveis de vida e culturais das massas populares.
É uma verdade histórica que os operários e os camponeses pobres
alcançaram com a revolução a possibilidade real de exercer direitos e
liberdades democráticas e de participar na gestão da vida económica e
social, como jamais havia sido conseguido em país algum! O
analfabetismo foi erradicado num muito curto espaço de tempo, apesar
do carácter gigantesco da tarefa. Estabeleceram-se amplos serviços de
apoio às populações e à infância. Foram abolidas todas as leis que
consagravam a discriminação das mulheres e a maternidade foi pela
primeira vez no mundo considerada uma função iminentemente social.
Foi sob o impulso da Revolução Socialista de Outubro que milhares
de seres humanos dos países coloniais e dependentes despertaram para
a luta libertadora, passando pela primeira vez a pesar na evolução da
política mundial. No plano geral, o triunfo da revolução proletária
impulsionou o desenvolvimento da luta internacional da classe
operária, inaugurando uma nova era, uma era de viragem na história
da humanidade, a era da passagem do capitalismo ao socialismo.
Era natural que a burguesia mundial, temerosa com o rumo das coisas,
se mobilizasse, como aliás já o havia feito aquando da Comuna de
Paris, numa «santa» cruzada para esmagar a «hidra» comunista. Nesta
cruzada, a burguesia encontrou importantes aliados em toda uma casta
de oportunistas de matizes diversos que enxameavam a maioria dos
partidos sociais-democratas (assim se chamavam os partidos marxistas
organizados na II Internacional), partidos que, tendo renunciado à
revolução e ao socialismo, se empenharam, no plano teórico e mesmo
no plano da repressão pelas armas, na condenação da Revolução
Socialista de Outubro e do desenvolvimento do processo
revolucionário.
Desde então que os oportunistas no seio do movimento operário
continuam a funcionar como poderoso instrumento de apoio à
dominação burguesa, problema tanto mais sério quanto é sabido que a
sua acção se desenvolve hipocritamente a coberto do manto da luta
pela liberdade, a democracia, o socialismo e mesmo o «marxismo
autêntico».
Ao longo de anos acumularam um vasto arsenal de argumentos
teóricos arremessados contra a Revolução de Outubro, argumentos
que vão desde a revolução ter constituído um «acto voluntarista», «um
erro trágico», «uma violação das leis naturais do desenvolvimento
social», de ter elevado «a violência à categoria de princípio», até à
acusação de ter a revolução «nascido no sítio errado» devido à
«imaturidade económica da Rússia», tese bastante glosada pelos
«marxistas legais», kaustskitas, bernstinianos e outros tais.
O pânico causado pelo impulso dado à luta revolucionária
internacional pela Revolução de Outubro desencadeou toda uma onda
de ataques aos bolcheviques, acusados de recorrerem a métodos
putchistas, de quererem impor a experiência russa «como regra de
acção necessária e universal», quando não passaria duma «experiência
particular e local», portanto não repetível noutras partes do mundo.
O fio condutor das suas «descobertas» teóricas foi, e continua a ser,
pregar a renúncia à Revolução Socialista, conter o movimento
operário nos limites da democracia burguesa e garantir a estabilidade
do capitalismo, verdade que podemos comprovar pela nossa própria e
bem recente experiência.
Com o rumo degenerativo imprimido à «perestroika» e a natureza
anti-socialista que assumiu, o dogmatismo deu lugar ao mais grosseiro
revisionismo e com ele o retomar das «fundamentações» teóricas
sobre «a vitalidade do capitalismo», «o carácter prematuro do
socialismo», a defesa da democracia burguesa como expressão do
«processo natural do desenvolvimento social» (1) , fundamentações
que serviram de base às exigências da liquidação da implantação do
socialismo na URSS, sociedade que teria constituído uma violação das
leis objectivas naturais. Iakovlev em nome do «marxismo autêntico»
chegou a afirmar ter a revolução constituído um erro tremendo por
quanto não se pode «acelerar a história» (2) e que a tragédia da Rússia
foi a Fevereiro (a revolução democrática burguesa) ter-se seguido
Outubro (a revolução socialista), opinião aliás coincidente com certa
historiografia burguesa que considerava ter sido um grande erro a
Rússia, país atrasado, não se ter lançado na via do desenvolvimento
capitalista.
Os ecos desta discussão apareceram reflectidos num artigo de
Gorbatchov publicado no Pravda a 26 de Novembro de 1989, no qual
afirmava que a «Revolução de Outubro não foi um erro - e não só
porque a alternativa real que se colocava não era, nem de longe, uma
república democrática burguesa (...) mas um motim anárquico e uma
sangrenta ditadura militar, a implantação de um regime reaccionário e
antipopular».
Para além da falsificação quanto às opções que se teriam colocado em
1917, não certamente por distracção ou incompetência, Gorbatchov só
aparentemente defendia a Revolução de Outubro das arremetidas dos
inimigos do socialismo na medida em que não respondia, como era
sua obrigação fazê-lo, à questão de fundo: qual devia ter sido a
decisão de Lénine e do Partido Bolchevique se a opção fosse entre
democracia socialista ou democracia burguesa?
Essa clarificação fê-la mais tarde, quando renegou completamente os
ideais do socialismo, mas não podem restar dúvidas quanto à que era
já nessa altura a sua posição, tanto mais que nesse mesmo artigo
acusava Marx de ter «subestimado a capacidade de auto-
desenvolvimento do capitalismo», fazendo desse modo coro com
todos os revisionistas que, retomando teses de Kaustky, afirmavam
que a «vitalidade demonstrada pela propriedade privada e pelo
capitalismo demonstrou que era muito cedo para os enterrar» (3) ,
negando assim a necessidade e a possibilidade da Revolução
Socialista de Outubro.
Coube porém a P. H. Krassine apresentar de forma mais elaborada,
«marxista», as razões demonstrativas do erro de se querer «acelerar a
história» forçando prematuramente a liquidação do capitalismo e,
consequentemente, reparar esse erro liquidando o socialismo.
Invocando de forma abusiva a tese de Marx segundo a qual nenhuma
formação social dá lugar a outra enquanto ela não tiver esgotado as
suas possibilidades de desenvolvimento das forças produtivas da
sociedade, Krassine concluiu não ter «o capitalismo claramente
esgotado as suas possibilidades» o que obrigaria a rever algumas
noções simplistas «sobre a passagem da sociedade humana do
capitalismo ao socialismo». (4) E assim, com recurso a Marx, se
justificava o rumo anti-socialista da «perestroika», dizemos nós,
fazendo reintegrar a URSS «no curso natural da história», no «sistema
sócio-económico comum» (capitalista), diziam eles.
Mas onde e quando é que os revolucionários, e em particular Lénine,
consideraram de forma simplista a passagem do capitalismo ao
socialismo, sabendo-se que sempre a consideraram como tarefa de
grande complexidade?
E não é verdade ter Lénine salientado muitas vezes que a construção
do socialismo na Rússia teria, precisamente pelo seu baixo nível de
desenvolvimento, dificuldades acrescidas? É difícil acreditar que
Krassine, pela sua formação e responsabilidades no PCUS, o
desconhecesse, como não podia desconhecer que já no Manifesto
Comunista se fala nas tentativas falhadas de emancipação do
proletariado por não existirem, à época, as condições materiais a essa
emancipação e que, depois da morte de Marx, Engels escrevera que a
revolução de 1848 e a Comuna de Paris tinham mostrado que o
desenvolvimento económico dos países europeus estava longe de
atingir a maturidade necessária ao derrubamento revolucionário do
capitalismo, ideia secundada por Lénine que, em 1915, na sua obra «O
Socialismo e a Guerra», escreveu que a Comuna havia mostrado não
estarem ainda criadas as condições objectivas e subjectivas para o
triunfo da classe operária, mas que passado meio século,
desaparecidas as condições que enfraqueciam a revolução, era
imperdoável não actuar no espírito dos comunardos. (5)
Ao sobrevalorizarem o factor objectivo para a revolução (a maturidade
do desenvolvimento das forças produtivas), escamoteiam a
necessidade do factor subjectivo, a organização e determinação das
massas se lançarem «ao assalto do céu», sem as quais nenhuma
revolução pode triunfar.
A tese da «violência elevada à categoria de princípio» supostamente
imposta pela violação do «desenvolvimento natural da sociedade»,
constitui uma grosseira falsificação da teoria e da prática comunistas e
clara absolvição dos crimes do capitalismo.
Considerando embora que se trataria de uma possibilidade rara e que
tudo dependeria da atitude das classes dominantes, os fundadores do
marxismo sempre defenderam como mais desejável a forma pacífica
da revolução proletária, sem guerra civil. Lénine na esteira de Marx,
em 1899 («Uma Tendência Regressiva na Social-Democracia
Russa»), em diferentes momentos e sobretudo ao longo do ano de
1917 (nas Teses de «Abril» e em outros trabalhos) colocou com toda a
ênfase a questão da via pacífica que em diferentes momentos, entre
Fevereiro e Outubro, se tornou uma possibilidade bem real e como
seria criminoso desperdiçá-la.
É sabido como as classes dominantes sempre responderam às
aspirações libertadoras da classe operária. A história do domínio da
burguesia está envolta em rios transbordados de sangue, mas os
oportunistas, indignando-se com o recurso à violência pela classe
operária para defender a revolução da violência das classes
dominantes, passam como gato por brasas quando se trata dos crimes
da burguesia, cuja utilização das armas «contra o proletariado é um
dos factores mais importantes, mais fundamentais, mais essenciais da
sociedade capitalista moderna» (6) , classe que deu mostras de não
olhar a meios para defender os seus interesses, a começar desde logo
pela violência que foi a guerra imperialista de 1914-18, na qual foram
sacrificadas mais de 10 milhões de vidas e mais de 20 milhões de
estropiados, para assegurar o domínio do grande capital sobre os
destinos do mundo.
De igual modo, não perdem muito tempo, ou não perdem mesmo
tempo algum, a analisar a luta de Lénine e dos bolcheviques para
travar o desencadear da guerra, para que se pusesse fim à carnificina
depois de ela se ter iniciado, a analisar as condições objectivas e
subjectivas que, em consequência da guerra imperialista, tinham
tornado a revolução socialista não só uma necessidade, mas também
uma possibilidade imediata.
2

A Revolução de Outubro não foi nenhum erro, nem fruto do acaso,


mas o resultado lógico do desenvolvimento social, uma opção
revolucionária determinada pela análise das premissas objectivas e
subjectivas e pelo dever que têm os revolucionários de tudo fazer para
levar as massas a pôr fim às situações de opressão.
A profunda crise económica, política e social que atingia a
generalidade dos países, em consequência da guerra imperialista,
assumia na Rússia uma dimensão sem precedentes, uma crise que
havia posto em movimento grandes massas - operários, camponeses, e
soldados - sujeitas a uma situação insuportável, uma situação que
colocava na ordem do dia «não a aplicação de certas "teorias", mas
medidas mais extremas, práticas e realizáveis, porque sem essas
medidas extremas era a «morte pela fome, a morte imediata e
intolerável de milhões de seres humanos».
A Rússia era, dizem, um «país atrasado», «economicamente imaturo»,
logo a Revolução Socialista nasceu «no sítio errado». Mas o que não
dizem é qual era, nas condições concretas da época, o sítio certo, se
para além do «amadurecimento do nível de desenvolvimento das
forças produtivas» se exigia, no mínimo, a existência de um partido
revolucionário, profundamente ligado às massas, dispondo de um
programa cientificamente fundamentado e a determinação das massas
para tudo fazerem para conseguir libertar-se e esses requisitos
existiam na Rússia e não nos países ditos «avançados», «civilizados»,
«cultos», onde além do mais os dirigentes dos partidos sociais
democratas se tinham bandeado com a burguesia dos seus países e o
imperialismo internacional para prosseguirem a carnificina que
representava a guerra e esmagar as insurreições operárias.
No passado os oportunistas rejeitaram a Revolução Socialista pelo
facto do capitalismo ainda não ter esgotado as suas potencialidades,
hoje rejeitam-no igualmente por considerarem o capitalismo o melhor
dos mundos possíveis.
As teses de que a revolução socialista constitui uma «violação das leis
objectivas, naturais», ou um grave erro porquanto «não se pode
acelerar a história» (os socialistas de hoje dizem ser
«antidemocrático»), têm servido de justificação aos oportunistas para
os seus conluios com a burguesia e o imperialismo e tiveram, ainda
nos tempos de Lénine, a devida resposta.
Depois de ter refutado, no artigo «Sobre a Cooperação», as frequentes
acusações de se ter empreendido «uma obra insensata ao implantar o
socialismo num país de insuficiente cultura» (7) , Lénine no seu artigo
«Sobre A Nossa Revolução», verberando o pedantismo dos
democratas pequeno-burgueses e dos «heróis da Segunda
Internacional», que embora dizendo-se marxistas eram incapazes de
compreender a dialéctica revolucionária como aquilo que é decisivo
no marxismo, afirmava que «...não pode ser mais estereotipada a
argumentação por eles usada (...) que consiste no facto de nós não
estarmos maduros para o socialismo, de que não existem no nosso
país, segundo as expressões de vários «doutos» senhores dentre eles,
as premissas económicas objectivas para o socialismo. E não passa
pela cabeça de nenhum deles perguntar: não podia um povo que se
encontrou numa situação revolucionária como a que se criou durante a
primeira guerra imperialista, não podia ele, sob a influência da sua
situação sem saída, lançar-se numa luta que lhe abrisse pelo menos
algumas possibilidades de conquistar para si, condições que não são
de todo habituais para o crescimento ulterior da civilização?». (8)
Foi partindo da avaliação desta situação concreta, que perguntava aos
falsos marxistas - e desse modo estabelecia toda a diferença entre o
ser-se revolucionário e o ser-se oportunista - o que se devia fazer
quando se lhes abria a «possibilidade de passar de maneira diferente
de todos os outros países da Europa Ocidental à criação das premissas
fundamentais da civilização?» (9) .
Invectivando os que se refugiavam nas «condições civilizacionais»
para encobrir o abandono das opções revolucionárias, perguntava:
«Para criar o socialismo, dizeis, é necessário civilização: Muito bem.
Mas então, por que não havíamos de criar primeiro, no nosso país,
premissas de civilização com a expulsão dos capitalistas russos e
depois iniciar um movimento pró-socialismo? Em que livros leste que
semelhantes alterações de ordem histórica habitual são inadmissíveis
ou impossíveis»? (10)
Para as correntes oportunistas sociais-democratas desde a II
Internacional aos nossos dias, «correr com os capitalistas», expropriá-
los da sagrada propriedade privada dos meios de produção, é anti-
democrático e anti-natural.
3

A construção do socialismo na Rússia revelou-se porventura mais


complexa do que teriam imaginado Lénine e os revolucionários em
1917 ao terem de dar resposta a uma situação bem peculiar que foi,
num Estado «não civilizado», arruinado em resultado da guerra
imperialista, da agudização das contradições de classes, de um
extraordinário activismo de intervenção das massas, de uma ampla
base social de apoio constituída pela aliança operária e camponesa,
haver um partido decidido a realizar a revolução, se terem criado as
condições para a sua eclosão, pelo que não há coisa mais sem
fundamento do que a acusação de que a decisão dos bolcheviques se
lançarem à conquista do poder se deveu a um acto voluntarista.
Naturalmente que a decisão de tomar de assalto o «Palácio de
Inverno» não podia deixar de comportar riscos e incertezas quanto ao
desfecho final da revolução, mas a questão de sempre estava e está em
saber se os explorados se devem deixar explorar mansamente e
eternamente, ou se reunidas certas condições devem tentar a sua sorte.
Marx, numa carta a Kugelmann, a propósito das dificuldades da luta
travada no período da Comuna, salientava que «a história mundial
seria na realidade muito fácil de fazer-se se a luta fosse empreendida
apenas em condições nas quais as possibilidades fossem
infalivelmente favoráveis». (11)
Acusando a social-democracia de menosprezar como factor histórico
«a decisão, a firmeza e a inflexibilidade revolucionária do
proletariado», Lénine salientava que o espírito inquebrantável do
proletariado «disposto a realizar a palavra de ordem: Mais vale
perecer que render-se», não era só um factor histórico, «mas
igualmente um factor decisivo, um factor de vitória». (12)
Não menos significativa é a falsa tese sobre a pretensa correlação
estabelecida entre a decisão do assalto ao poder na Rússia e a crença
de Lénine no eclodir a curto prazo de revoluções proletárias em vários
países.
No período da «perestroika», figuras gradas do PCUS chegaram
mesmo a afirmar que a não concretização desta premissa constituíra
um grande drama pessoal para Lénine.
O objectivo da falsificação, que não encontra qualquer suporte na obra
teórica de Lénine nem na acção prática dos bolcheviques, é claro:
demonstrar o carácter irresponsável e aventureiro de Lénine e dos
bolcheviques, negar a importância da Revolução de Outubro e,
consequentemente, absolver as agressões imperialistas contra o Estado
proletário.
É um facto que Lénine e os bolcheviques, avaliando o nível das
contradições entre imperialistas, o enorme descontentamento que
varria toda a Europa, a crescente combatividade das massas populares
na luta contra a guerra e por profundas transformações
socioeconómicas e políticas, defendiam que os marxistas deviam
contar com a revolução europeia, revolução que se lhes afigurava
possível, a curto prazo, na Alemanha e em outros países da Europa
Ocidental.
Em Novembro de 1918, Lénine, respondendo a Kautksy - que com
outros oportunistas tudo fizera para salvar a burguesia, neutralizando
as disposições revolucionárias das massas - assumiu claramente que
os bolcheviques estavam seguros efectivamente da revolução
europeia, mas que em vésperas da grande guerra mundial a espera de
tal situação na Europa não foi «um arrebatamento dos bolcheviques,
mas a opinião geral de todos os marxistas». (13)
A sua confiança no desenvolvimento do rumo revolucionário era tão
grande que, a 1 de Outubro de 1918, em carta a Sverdlov, afirmava
que a «revolução internacional se aproximou numa semana a uma
distância tal que há que considerá-la como um acontecimento dos
próximos dias». (14)
Optimismo excessivo? Erro de cálculo? De modo nenhum. A
confiança no eclodir da revolução internacional baseava-se em factos
concretos que tornavam essa possibilidade bem real, visão muito
generalizada, aliás, nos círculos socialistas da Europa e no seio da
própria burguesia.
E como não pensar assim quando o capitalismo estava mergulhado
numa profunda crise, se vivia uma crise revolucionária, base de
eventuais acções revolucionárias, por todo o lado tinham lugar
poderosas acções de massas, massas que se encontravam armadas
exigindo profundas alterações no estado das coisas, e o domínio da
burguesia se revelava extremamente precário?
O exemplo da Rússia soviética ameaçava contagiar a Europa. Nos
anos de 1918-19 tiveram lugar revoluções na Finlândia, na Áustria, na
Alemanha e na Hungria, onde foi instaurada a República dos
Conselhos.
A situação era de tal modo favorável à revolução que Lénine, em
1921, avaliando esse período, dizia que «o proletariado tinha podido
de um só golpe ajustar contas com os capitalistas» (15)
Não correram, porém, as coisas assim. Por acção conjugada de vários
factores - intervenção das potências imperialistas, traição dos
dirigentes sociais-democratas, quase ausência de partidos
revolucionários experimentados - a onda revolucionária foi sufocada,
as emergentes revoluções esmagadas, colocando a revolução soviética
na situação de ter de se defender sozinha.
Mas as esperanças e a necessidade da revolução em vários outros
países repousavam numa tese de uma grande importância,
maduramente reflectida e fundamentada, «o factor externo» da
revolução e que ainda hoje mantém toda a validade, nomeadamente a
ideia de que rompendo-se o «universo» capitalista num ou em alguns
países essa situação incitaria a burguesia dos outros países a esmagar a
revolução onde quer que ela tivesse irrompido.
Os oportunistas, deliberadamente, silenciam esta tese e o facto dela se
ter confirmado, com tudo o que ela significou de trágico para o jovem
Estado proletário, acossado por poderosos inimigos internos e
externos quando procurava sarar as feridas da guerra e iniciar a
construção da nova sociedade. Criou-se então uma situação
verdadeiramente contraditória. Por um lado, os bolcheviques gozando
de grande apoio das massas tinham não só conquistado o poder, mas
tinham igualmente conseguido defendê-lo. Por outro lado, a burguesia
internacional, terminada a guerra, podia ultrapassar as suas rivalidades
e conjugar esforços para esmagar a revolução socialista que, nos seus
desenvolvimentos, se tinha tornado na ameaça principal.
A solidariedade internacional ganhava, nestas condições, um novo
conteúdo ao tornar-se um elemento imprescindível da revolução, mas
é completamente falso que o desencadear da revolução como
objectivo estratégico e irrenunciável estivesse dependente do eclodir
da revolução mundial. A tese da superação do capitalismo pela via
revolucionária, a conquista do poder político pela classe operária
como condição para a passagem à sociedade socialista, primeiro com
Marx e Engels, depois com Lénine, tornou-se na fronteira divisória
entre a corrente revolucionária da social-democracia à época e as
correntes reformistas, fronteira que perdura até hoje.
Trata-se, portanto, duma questão teórica que define a essência da
estratégia marxista-leninista, assente na compreensão dos mecanismos
do desenvolvimento social na época do capitalismo, elaborada muito
antes da Revolução de Outubro.
O mérito de Lénine não foi ter defendido a necessidade da revolução,
foi, partindo da análise do desenvolvimento capitalista na época
imperialista, nomeadamente do comprovado princípio do
desenvolvimento económico e político extremamente desigual dos
países capitalistas, ter concluído, contrariamente a Marx e a Engels -
que na base da análise do capitalismo pré-monopolista haviam
concluído que a revolução proletária só poderia triunfar
simultaneamente em todos os países ou pelo menos em todos os países
mais desenvolvidos -, não poder o socialismo triunfar
simultaneamente em todos os países e que o mais provável seria o
socialismo triunfar primeiro num só ou em vários países.
A evolução do seu pensamento nesta matéria espelha de forma muito
nítida a natureza dialéctica, não dogmática, no processo da sua
elaboração teórica.
Se em Agosto de 1915, no artigo «Sobre a Palavra de Ordem dos
Estados Unidos da Europa», a «vitória do socialismo primeiramente
em poucos países ou mesmo num só país capitalista tomado por
separado» (16) é colocada como uma possibilidade, pouco mais de um
ano depois, no artigo «O Programa Militar da Revolução Proletária»,
baseando-se na análise mais aprofundada do capitalismo na sua fase
imperialista, cujo desenvolvimento reafirma não poder fazer-se de
outra forma que não seja a extrema desigualdade, o carácter dubitativo
da tese de 1915 dá lugar a «uma conclusão inelutável: o socialismo
não pode triunfar simultaneamente em todos os países. Ele triunfará
primeiramente num só país ou em vários países, enquanto que os
outros permanecerão durante um certo tempo, países burgueses ou
pré-burgueses». (17)
Esta conclusão, cuja justeza em todos os aspectos essenciais se
confirmou, revelou-se de importância extraordinária para o
desenvolvimento da luta revolucionária do proletariado em geral e da
Rússia em particular, mas os trabalhadores ao lançarem-se ao «assalto
do céu» deveriam saber que a sua conquista só poderia ser durável
desde que a burguesia mundial não estivesse em condições de esmagar
a revolução, aviso que não pode ser esquecido nos nossos dias, na
medida em que o imperialismo se arroga no direito de esmagar o
direito dos povos poderem decidir livremente dos seus destinos, o que
continua a dar à solidariedade internacionalista um valor de princípio.
Ao comemorar o 3.º aniversário da revolução, o povo soviético fazia-o
pela primeira vez em paz, ainda que precária. À custa de enormes
sacrifícios e de exemplos de heroísmo quase sobrehumanos, todas as
tentativas de esmagar o primeiro Estado proletário pela via armada,
tinham fracassado.
Por todo o mundo tinha-se erguido um movimento que, mobilizando
grandes massas de operários e sectores democráticos da pequena
burguesia, conseguiu paralisar as forças agressoras. Os destinos da
revolução russa tornaram-se decisivos para a evolução do mundo. A
solidariedade internacional ganhou uma nova eficácia e um novo
conteúdo.
O balanço e a generalização das experiências desses anos ficaram
registados em variadíssimos trabalhos e intervenções de Lénine, dos
quais salientamos os discursos na Conferência do PC(b)R da Região
de Moscovo (Novembro de 1920); no III Congresso da IC
(Julho/Julho de 1921) e no Informe ao IX Congresso dos Sovietes de
toda a Rússia (Dezembro de 1921).
E ainda que o rumo dos acontecimentos internacionais não se tivesse
desenvolvido como havia imaginado, Lénine, reivindicando a justeza
das análises e das decisões bolcheviques, defendeu que a revolução
soviética era o resultado da interacção dos heróicos esforços do povo
soviético e da luta da classe operária internacional, cuja «coesão se
revelou mais forte do que a coesão dos países capitalistas».
Os operários de todos os países ao apoiarem a revolução, disse,
«debilitaram o braço que se erguera contra nós, e ao fazê-lo ajudaram-
nos» (18) , tornando possível que no meio de tantas tormentas «o
inverosímel se tivesse tornado realidade: a república soviética no meio
do cerco capitalista».
As questões teóricas avançadas nos anos de 1915-1916 tinham tido
confirmação prática: a possibilidade da existência independente duma
república socialista, no meio do cerco capitalista, tornara-se realidade.
À laia de conclusão, importa salientar a questão essencial que se pôs
então e que vale como princípio irrenunciável para hoje e para
amanhã: nem tudo correu como o imaginado, é certo, «mas sem a
opção seguida não haveria república socialista», uma república que,
com a sua política e o seu exemplo, impulsionou o progresso social
dos trabalhadores e dos povos e influenciou a criação de partidos
comunistas por todo o mundo, entre os quais o PCP, partidos que se
tornaram na força mais determinante da luta pelo progresso social e
pela paz, pelo socialismo e pelo comunismo.
4

O movimento operário e comunista sofreu nos últimos anos pesadas


derrotas em consequência do desaparecimento da União Soviética,
cujo significado podemos melhor avaliar face à poderosa ofensiva
contra os trabalhadores e os povos desencadeada pelo imperialismo.
Os caminhos a percorrer para os novos e inevitáveis «assaltos do céu»
serão difíceis, mas os trabalhadores só têm uma opção que é o
desenvolvimento da luta revolucionária, de que a Revolução de
Outubro é parte inseparável. Nesta luta caberá papel insubstituível aos
comunistas.
A natureza revolucionária do marxismo-leninismo obriga que, para
além do combate a posições erróneas à luz da análise da generalização
e da experiência do desenvolvimento social, se responda aos novos
fenómenos com conclusões teóricas, políticas, sociais e ideológicas,
capazes de abrir caminho à ultrapassagem das dificuldades presentes,
à rectificação de erros cometidos e que sirvam de guia para a acção,
sem o que nenhuma transformação revolucionária terá lugar.
No complexo processo da construção da sociedade socialista,
agravado pelo facto de a URSS ter nascido e vivido durante décadas
no quadro do cerco imperialista, sempre pronto a esmagá-la, foram
cometidos graves erros, pervertidos ideais, dogmatizada a teoria, mas
nada disso pode anular o significado e o papel da Revolução de
Outubro.
Não pode igualmente ser esquecida a solidariedade da URSS à luta
revolucionária em todo o mundo, o seu papel no estímulo e no apoio à
luta libertadora dos povos colonizados, nem o povo soviético que,
com o seu o trabalho criativo e abnegado, rasgaram novos horizontes à
humanidade e que à custa de mais de 20 milhões de vidas libertaram o
mundo da barbárie nazi-fascista.
É à luz dos legados do projecto transformador da Revolução Socialista
de Outubro, acontecimento maior na história da humanidade, que os
comunistas portugueses comemoram o 90.º aniversário, sem que isso
signifique iludir o facto de que a obra principal de Outubro - o Estado
soviético, o primeiro Estado operário-camponês - já não existe.
O nosso apego aos valores e ao património de Outubro, fundamenta-se
no facto de que a análise dessa experiência, globalmente considerada,
nos conduz à conclusão de que, como salientou A. Cunhal «o que
fracassou e conduziu a União Soviética e outros países socialistas ao
desastre não foram os ideais e o proclamado projecto do comunismo,
relativos à construção de uma nova sociedade. Foram sim soluções,
orientações, decisões e critérios que conduziram à instauração de "um
modelo" de socialismo que, em alguns elementos fundamentais,
desmentiu e em certos aspectos perverteu o projecto comunista» (19) ,
acrescentando o camarada Cunhal, que a análise dos comunistas
portugueses à experiência da construção do socialismo na União
Soviética e em outros países socialistas, comporta «uma reflexão
crítica e correctora». Podemos, entretanto, salientar que essa reflexão
não comporta a negação do que a União Soviética representou para os
trabalhadores e os povos de todo o mundo, como suporte material,
político e ideológico na luta contra a exploração e a guerra. Não
comporta, nem pode comportar, o abandono da luta pelos ideais
comunistas, cuja validade a evolução do mundo não desmente, antes
os torna uma exigência civilizacional do nosso tempo.
O século XX não ficará assinalado como o século do fim do
comunismo, mas como o século do começo dessa perspectiva radiosa
pela qual continuam a lutar abnegadamente milhões de homens,
mulheres e jovens em todo o mundo.
Notas
(1) Akmed Iskenderov, «A revolução de Outubro e a Perestroika»,
pág. 6.
(2) A. Iakovlev, «Transformações na Europa Oriental: um olhar de
esquerda», Conferência Teórica realizada na Escola de Quadros (ICS).
(3) V. Stoupichinev, «Vida Internacional», n.º 7, ed. francesa, 1989.
(4) P. H. Krassine, «o movimento operário em busca de uma
alternativa democrática».
(5) Lénine, «O Socialismo e a Guerra», Obras Escolhidas em 6
volumes, Tomo 2, Edições «Avante!», pág. 243.
(6) Lénine, «O Programa Militar da Revolução Proletária», Obras
Completas, Tomo 23, Edições Sociais, pág. 88.
(7) Lénine, «Sobre a Cooperação», Obras Escolhidas em 6 volumes,
Tomo 5, Edições «Avante!», pág. 365.
(8) Lénine, «Sobre a Nossa Revolução», Obras Escolhidas em 6
volumes, Tomo 5, Edições «Avante!», pág. 367-368.
(9) Idem, pág. 368.
(10) Idem, pág. 369.
(11) Marx, Carta a Kugelmann, 17 de Abril de 1871.
(12) Lénine, «IX Congresso do PC(b)R», Obras Completas, Tomo 30,
Edições Sociais, pág. 467.
(13) Lénine, «A revolução proletária e o renegado Kautsky», Obras
Escolhidas em 6 volumes, Tomo 4, Edições «Avante!», pág. 62.
(14) Lénine, «Carta a Sverdlov», Obras Completas, Tomo 35, Edições
Sociais, pág. 371.
(15) Lénine, «Discurso no IV Congresso dos Operários da Confecção
da Rússia», Obras Completas, Tomo 32, Edições Sociais, pág. 115.
(16) Lénine, «Sobre a Palavra de Ordem dos Estados Unidos da
Europa», Obras Escolhidas em 6 volumes, Tomo 2, Edições
«Avante!», pág. 269.
(17) Lénine, «O Programa Militar da Revolução Proletária», Obras
Completas, Tomo 23, Edições Sociais, pág. 86.
(18) Lénine, «Conferência do PC(b)R da Região de Moscovo», 20/22
de Novembro 1920, Tomo 31, pág. 430.
(19) A. Cunhal, «No 150.º aniversário do Manifesto Comunista»,
Conferência na Faculdade de Direito de Universidade de Coimbra, 6
de Maio de 1998.

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