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VALÉRIO ARCARY
Em 1895, pouco antes de sua morte, Engels reuniu sob o título de "As lutas de classe em
França" os artigos que Marx tinha redigido sobre a revolução francesa de 1848, e
escreveu a famosa Introdução que ficou conhecida como o seu testamento político: um
texto que associa um balanço de 1848 ao balanço da derrota da Comuna de Paris e se
encerra com uma reflexão sobre as possibilidades e perigos da experiência de cinco
anos de trabalho e atividade legal do SPD alemão. Nele, Engels retoma as apreciações
críticas que Marx tinha formulado no calor dos acontecimentos da Comuna sobre os
problemas da estratégia de luta pelo poder e apresenta algumas hipóteses novas.
A comemoração dos 130 anos da Comuna nos convida a refletir sobre o seu significado
histórico e sobre as lições que a primeira revolução operária que conquistou o poder,
ainda que de forma efêmera, nos legou, recuperando as conclusões que Marx e Engels
nos deixaram, mas recolocando, também, na perspectiva da História, o tema da
atualidade ou vigência do programa da revolução social anti-capitalista na aurora do
século XXI. A derrota dramática da Comuna teve, a seu tempo, incontornáveis
conseqüências para o movimento operário francês e para a vida da Associação
Internacional dos Trabalhadores (AIT) - a I Internacional – porque, como sempre, as
derrotas históricas não passam impunemente: geram desânimo, desesperança e muita
dispersão e confusão. Mas das cinzas do massacre aos Comunnards, ao longo de um
intervalo de menos de duas décadas, nasceu e se reorganizou um novo movimento e a
corrente internacionalista, animada pela influência das idéias de Marx, viu a sua força
política se multiplicar por dezenas de países e o programa da revolução socialista veio a
ser assumido pela II Internacional e pelo mais influente partido no seu interior, o SPD
alemão.
Há que dizer, em primeiro lugar, que encontramos na teoria da revolução de Marx uma
reflexão histórica sobre o modelo da grande revolução francesa que teria revelado que
existem tendências internas à dinâmica dos processos revolucionários, que se
desenvolvem em permanência, conclusão que se traduzirá no Adresse de 1850 à Liga
dos comunistas, na defesa da necessária radicalização ininterrupta da revolução
democrática em revolução proletária, isto é, a perspectiva da revolução permanente:
"The bourgeoisie refuses "to do its duty". We have seen with what
assurance Marx and Engels had predicted that the bourgeoisie had no
alternative to carrying through a political revolution that would put it in
power and introduce a constitutional-liberal regime. We have seen that
they were quite aware of how fainthearted this bourgeoisie was and how
much it feared the threat of the proletariat behind it; but this did not yet
lead them to conclude that the bourgeoisie might refuse to carry out its
historical task. It did suggest to them that the initial task of the
proletariat (or ''the people") might be to push the bourgeoisie from
behind. But one way or the other, the outcome was going to be "not what
the bourgeoisie merely want but rather what they must do. ''It was only
in the course of the revolution itself that they found out that the
bourgeoisie did not recognize the "must." (grifo nosso)
Ou seja, pelo menos durante os anos da revolução em 1848, alimentavam duas
perspectivas que estavam articuladas entre si: (a) a compreensão de que a luta contra o
absolutismo e pela democracia só poderia triunfar com métodos revolucionários, isto é,
a necessidade de uma revolução pela democracia que é analisada no Adresse, como a
ante-sala da revolução proletária, do que se deve concluir um programa de luta por duas
revoluções, ainda que com um intervalo abreviado entre ambas; (b) a compreensão de
que existia um desafio histórico a ser vencido: a construção da independência política
de classe, condição sine qua non, para que a engrenagem de radicalização que, grosso
modo, poderia ser qualificada como a "fórmula jacobina", não resulte em um
estrangulamento da revolução proletária, ou seja, em um novo thermidor, e ao contrário,
garanta a mobilização contínua dos trabalhadores pelas suas reivindicações e antecipe e
abrevie o intervalo entre as duas revoluções.
A fórmula semi-etapista de Marx não era, no entanto, uma leitura determinista simples
por duas razões fundamentais: (a) porque considerava a possibilidade de que a pequena
burguesia viesse a substituir no calor do processo a demissão burguesa; (b) porque
sugeria que o intervalo entre as duas revoluções poderia ser abreviado. Foi, todavia,
prisioneiro do seu tempo, e sendo conscientes desta armadilha histórica viveu as
angústias do presente, como um inexorável dilema:
"Nada peor puede ocurrirle al jefe de un partido extremo que encontrarse obligado a
tomar el poder en una época en que el movimiento no está todavía maduro para la
clase que representa y para la ejecución de las medidas que exige la dominación de
esa clase(...)Lo que puede hacer está en contradicción con toda su actitud anterior, los
principios y el interés inmediato de su partido; lo que debe hacer no podría ponerse en
práctica. En una palabra, está obligado a representar no a su partido y a su clase,
sino a la clase para cuya dominación el movimiento se encuentra precisamente
maduro"(grifo nosso)
As transições "tardias" encontraram uma alternativa histórica, pelo alto, para abrir um
caminho de deslocamento das relações pré-capitalistas e dos privilégios políticos
arcaicos, que só pode ser explicado, em última análise, pela vitalidade do crescimento
das forças produtivas em expansão, o que, em termos marxistas, caracteriza uma época
não revolucionária. Esse foi, por exemplo, o caso da Alemanha, entre outros: as
circunstâncias excepcionais da unificação nacional pelas mãos de Bismarck, na
seqüência da vitória sobre a aventura bonapartista do II Império, e sobre as ruínas da
Comuna de Paris, processo de transição burguesa que Lênin denominou a "via
prussiana".
"A história nos desmentiu, bem como a todos que pensavam de maneira
análoga. Ela demonstrou claramente que o estado de desenvolvimento
econômico no continente ainda estava muito longe do amadurecimento
necessário para a supressão da produção capitalista; demonstrou-o pela
revolução econômica que, a partir de 1848, apoderou-se de todo o continente
(...)tornando a Alemanha um país industrial de primeira ordem, tudo isso em
bases capitalistas, o que significa que essas bases tinham ainda, em 1848,
grande capacidade de expansão.(...)."(grifo nosso)
Neste artigo de Engels, sobre o balanço de junho de 48, a primeira revolução operária
da História, o tema é retomado. Engels se detém em uma comparação entre as duas
revoluções, fevereiro e junho, a ruptura da "unanimidade" frentista, as diferenças sociais
entre as duas vagas, o aprofundamento da disposição de luta. A sugestão se revelou na
verdade premonitória. A Comuna também conheceu as suas duas vagas: a primeira
republicana, na seqüência da derrota de Napoleão III, e a segunda, operária e socialista,
depois da resistência da Guarda Nacional a entregar os canhões de Montmartre.
Certamente toda a obra de Marx nos permite concluir que ele estava solidamente
convencido que os intervalos das transições históricas tinham uma tendência de
aceleração: a transição socialista seria mais breve do que foi a transição do feudalismo
ao capitalismo. Logo, a permanência da revolução pode ser entendida em uma dupla
dimensão, o abreviamento dos intervalos entre a revolução democrática e a revolução
dos trabalhadores mas, também, como uma extensão européia relativamente rápida.
Assim, se um processo de revolução social se iniciaria dentro de fronteiras nacionais,
inaugurado por uma revolução política, a conquista do poder pelo proletariado em um
país não seria senão o primeiro ato de um drama histórico, que se decidiria na arena
internacional. Mais importante, esta dimensão internacional assumida pela luta de
classes seria o fator chave para a análise sobre a aceleração dos tempos históricos.
"Or ce qu'Engels nous dit en 1895, c'est que Marx et lui,(...) pensaient de
façon tout à fait illusoire, lorsqu'ils s'imaginaient en 1848, et non
seulement en 1848, mais plus de vingt ans plus tard, en 1871, que la
transformation révolutionnaire de la société bourgeoise en société
communiste était à l'ordre du jour.(...)Ce qui était alors à l'ordre du
jour, c'était la révolution industrielle capitaliste. En 1895, cette
révolution industrielle a déjà largement produit ses effets en Allemagne;
on peut donc y parler dorénavant de «la puissante armée du prolétariat
» et de la tactique qu'elle doit mettre en oeuvre. C'est l'occasion d'un
jugement rétrospéctif sur la tactique appliquée en 1848.La période qui
va du coup d'État de Louis Bonaparte à la victoire de Bismarck dans la
guerre franco-allemande de 1870, est celle où les révolutions par en-
haut succèdent aux révolutions d'en-bas.(...) Le type de jugement
rétrospectif qu'on trouve dans cette « Introduction» d'Engels implique
qu'on a changé d'époque et que celui qui parle a la capacité de
reconnaître qu'une page est tournée.(grifo nosso)
"This is the view that the movement for proletarian revolution should
not begin until there is a present possibility of victory, before which
time it is "utopian" and "unrealistic"(...) In any case, there is no way of
determining when the historical possibility of victory has arrived in this
sense: on s'engage et puis on verra. Anyone could see that proletarian
revolution was premature in 1848, if one waits a half century; and
when Engels wrote this opinion down in 1895 he was not under the
impression it was a great revelation. This (...)was for some- not Engels -
a condemnation of the Forty-eighters for failing to possess a crystal
ball."(grifo nosso)
O entusiasmo com o partido alemão, com sua vigorosa implantação social e sucessos
eleitorais, por um lado, e talvez o balanço histórico amargo da derrota da Comuna,
pareceriam indicar que o velho Engels (de quem se disse que nos anos 90 viveu uma
velhice feliz) acreditava que, pelo menos na Alemanha, a questão de poder se
enfrentava diante de novas e mais profundas possibilidades e dificuldades.
Possibilidades abertas pelo crescente peso social do proletariado e sua capacidade de
elevar a consciência de classe a novos patamares de auto-organização permanente
através de sindicatos que filiavam milhões, com a utilização hábil das margens
ampliadas de liberdade, a participação eleitoral, enfim a escola de aprendizagem
sindical-parlamentar. Dificuldades que resultavam do esgotamento histórico das
revoluções burguesas, da acomodação bastarda da burguesia com os regimes
bonapartistas ou semi-bonapartistas, do deslocamento e divisão inexorável das camadas
médias, ou seja, a ruptura da frente de "todo o povo pela democracia", tal como ocorreu
na primeira fase de fevereiro de 48.
Por último, dificuldades que nasciam das novas necessidades políticas subjetivas que
surgiam como obstáculos para o proletariado, que não podia contar com triunfos fáceis
nas barricadas. Por outro lado, ocorre que Engels sequer considerava o regime
bismarquista senil do Kaiser uma democracia. Ao contrário, considerava que as
limitadas liberdades estavam ameaçadas justamente pelo crescente peso do SPD, e por
isso, baralhava a hipótese de uma revolução em legítima defesa contra uma aventura
neo-bonapartista do regime, ou seja, uma revolução democrática defensiva, tendo como
sujeito social o proletariado, contra um golpe bonapartista. Assim explicava Engels as
suas conclusões sobre os novos desafios da experiência da tática alemã:
"O direito à revolução é o único "direito histórico" real, o único sobre o qual
repousam todos os Estados modernos sem exceção,(...) Mas, ocorra o que ocorrer nos
outros países, a social-democracia alemã tem uma situação particular e, em
decorrência pelo menos no momento, uma tarefa também particular. Com dois milhões
de eleitores que ela envia às urnas, neles incluídos os jovens e as mulheres que estão
por detrás dos sufragantes na qualidade de não eleitores, constituem a massa mais em
numerosa, mais compacta, a "força de choque" decisiva do exército proletário
internacional.(...)Ora, só há um meio de poder conter durante certo prazo o
crescimento continuo das forças combatentes socialistas na Alemanha, e mesmo de
fazê-las regredir momentaneamente: um choque de grande envergadura com as
tropas, uma sangria como a de 1871, em Paris."(grifo nosso)
Engels
Poder-se-ia, por último, afirmar que uma teoria dos tempos da revolução em Marx e
Engels, um pensamento sobre época, situação e crise revolucionária, com distintos
ritmos, desigualmente desenvolvidos, mas entrelaçados em circunstâncias históricas
únicas, foi-se construindo como expressão de uma dualidade tensionada de fatores.
No seu centro está uma ênfase na pulsação circular da crise econômica, como um tempo
de movimento e inércia do capital, que se desenvolve à escala do mercado mundial e
encontra refrações nacionais em cada país; e outro é o tempo das lutas de classes:
Esses dois tempos são distintos, mas estão articulados, em formas que são,
para o essencial, imprevisíveis, porque amadurecem em ritmos que lhes são
próprios, únicos e discordantes.