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O texto “A busca de um corpo inteligente” foi extraído da dissertação de mestrado

de Luzia Carion Braz, realizada na Escola de Comunicações e Artes da


Universidade de São Paulo, em 2004, intitulada “A Iniciação ao Treinamento do
Ator através da Técnica Corporal desenvolvida por Klauss Vianna”.

A Técnica do Movimento Consciente

A busca de um corpo inteligente


Klauss Vianna, estimulado por sua insatisfação com relação à metodologia aplicada
na formação do bailarino e também nos processos criativos, desenvolveu suas
pesquisas teórico-práticas sobre o movimento partindo de seus conhecimentos sobre
uma técnica de representação codificada - o balé clássico - visando tornar
inteligente o corpo do intérprete, capaz de produzir obras e manifestações
verdadeiramente artísticas.

Concebia a técnica não em função de um pressuposto ideal estético, mas como um


meio eficaz e em plena sintonia com os fins que um artista se propõe. Caminhando
na direção oposta da criação de um novo código ou de um melhor desempenho na
cópia de modelos, Klauss associava a capacidade criativa a um processo de
autoconhecimento. É a partir de sua individualidade que o intérprete desencadeia seu
processo criativo, (...) através do qual os elementos adquiridos podem ser
codificados e, em seguida representados. (VIANNA e CARVALHO, 1990, p.104)
Klauss afirmava que devemos ter sempre em mente, durante todo o processo de
trabalho, que a verdadeira origem e motor do movimento é a relação mundo-eu e
que da dinâmica desse relacionamento é que emerge a singularidade que faz de cada
pessoa um ser único e diferenciado.
A descoberta do eu interno, de um ser único, individual e criativo, é indispensável ao exercício da
dança, se quisermos que ela se torne uma forma de expressão da comunidade humana. Desde o
nascimento somos submetidos a uma série de condicionamentos sociais, antes mesmo de vivermos
os processos de educação formal, o que acaba resultando em procedimentos mecânicos e
repetitivos, dos quais não temos percepção ou consciência.
Se isso, de um lado, facilita a nossa existência cotidiana, por outro afasta e dificulta o processo de
autoconhecimento. Em outras palavras, a memória robotizada pode produzir formas já catalogadas e
conhecidas, mas dificilmente criar movimentos novos e ricos em expressão. (VIANNA e
CARVALHO, 1990, p.101)

O ponto de partida desse processo é um trabalho de conscientização por parte do


intérprete da sua relação com o mundo exterior, através da observação. É proposto
ao aluno que direcione a atenção ao uso de seu corpo no cotidiano. A percepção da
postura, do andar, de como são mecânicos e repetitivos os gestos, de como os
sentidos, principalmente a visão, a audição e o tato estão adormecidos, são
referências fundamentais para o aluno. A constatação clara dos limites é
indispensável para a conscientização da necessidade de um trabalho e como
referência para posteriores avaliações dos resultados desse e de outros processos. A
verificação do quanto é pobre o vocabulário gestual no cotidiano, principalmente em
decorrência das tensões musculares, é conduzida pela execução de seqüências de
movimentos simples, como andar, agachar, sentar, deitar e levantar. Klauss afirmava
que essa experiência deveria ultrapassar os limites da sala de aula e ser vivenciada
no cotidiano: quanto mais rapidamente o aluno conseguisse converter gestos comuns
em atitudes mais ou menos conscientes, mais facilmente poderia avançar em
direção à liberdade, à autonomia para a composição de um repertório mais amplo e
eficiente.

O conhecimento das habilidades motoras e sensoriais de que todo ser humano dispõe
é o caminho para a identificação mais precisa dos limites pessoais e o início de sua
superação. Além das primeiras percepções das alterações na qualidade expressiva
através do uso efetivo dos sentidos em suas atuações (ativas e receptivas) em ações
simples, os alunos iniciam um processo de aprendizagem consciente sobre a
estrutura óssea, muscular e seus funcionamentos. Aprendem a reconhecer e a
explorar os movimentos possíveis de serem realizados pelas articulações, os
princípios mecânicos como peso (reconhecimento da força da gravidade), apoios,
alavancas e equilíbrio (relação de forças) e, principalmente, os direcionamentos
ósseos, que através das oposições geram o aumento dos espaços articulares e da
flexibilidade do tônus muscular. Também são propostos exercícios para que
aprendam a explorar o espaço (direções, planos e ritmos), a realizar o desenho
preciso do movimento no espaço (começo, meio e fim), a experimentar outras
qualidades de movimentos, através de combinações diferentes de ritmo, tônus
muscular e desenho do movimento no espaço.

Uma outra abordagem que Klauss fazia sobre a importância do movimento


consciente era sua relação com a energia vital, produzida pela atividade biológica
de cada pessoa. Quanto mais o intérprete estiver presente em si mesmo, quanto mais
atento a cada gesto ou deslocamento, procurando manter os espaços internos, maior
será a sua produção e concentração de energia vital.

Dessa forma, Klauss buscava propiciar ao intérprete os meios para alcançar uma das
primeiras qualidades exigidas em sua atuação: a presença cênica. Trabalhando
conscientemente sua relação com o mundo exterior – espaço, outros intérpretes e
público – através do uso ideal de seus sentidos e dos elementos técnicos, poderia
alcançar a atenção, a prontidão e o tônus necessários para realizar seus movimentos
com a clareza e a objetividade desejadas ao jogo cênico. A criatividade e a verdade
cênica do movimento viriam da sensibilização estimulada pela técnica. Propunha
aos alunos a percepção das reações – movimentos e sensações - provocadas pelos
mais diferentes estímulos internos e externos, das alterações das sensações na
execução do mesmo movimento (ou parte dele) a partir da experimentação de novas
combinações de seus fatores. Propunha também que os movimentos não fossem
gratuitos (mover por mover) mas respostas conscientes aos estímulos do mundo
exterior sem obsessão ou intelectualização. Além da ampliação do vocabulário, o
processo permite o aprofundamento de suas qualidades, podendo tornar o corpo do
intérprete plenamente expressivo. Klauss afirmava que

É difícil manifestar um sentimento, uma emoção, uma intenção, se me oriento mais por formas
condicionadas e conceitos preestabelecidos do que pela verdade do meu gesto. O que confere
autenticidade e expressão a um dado movimento coreográfico é precisamente o poder que ele tem
de traduzir certas emoções, sentimentos ou sensações, de tal forma que seria impossível traduzi-los
de outra forma ou através do recurso de outra linguagem. (VIANNA e CARVALHO, 1990, p. 102 e
103)

2. Klauss e os grandes mestres

É possível estabelecer muitos pontos comuns entre as propostas de Klauss Vianna e


dos grandes mestres que desenvolveram estudos sobre a arte do ator, como
Stanislávski, Meyerhold, Artaud, Grotóvski e Barba.

Como Stanlislavski, Klauss iniciou suas pesquisas em busca de novos caminhos na


capacitação do intérprete em seus desempenhos de forma criativa, partindo da
constatação, entre outras coisas, dos limites impostos pela atuação no cotidiano.
Estimulou os alunos à percepção da interdependência entre processos internos e
externos (ação psicofísica).

Como Meyerhold, focou suas investigações no estudo do movimento em si e na sua


relação com a música, a palavra, o espaço, os objetos, a luz... A valorização do
movimento no sistema biomecânico em detrimento da palavra, por sua relação
pouco producente com o lado racional, não significava a desqualificação do aspecto
intelectivo no processo criativo. Ao contrário, Meyerhold valorizava muito o aspecto
consciente, indispensável na aprendizagem de como desenvolver, usufruir e
controlar os meios expressivos em diferentes processos.
Como Artaud, ressaltou a importância da respiração na execução de um
movimento/ação física, estabelecendo sua relação com as sensações, as emoções e a
vida.

A respiração acompanha o sentimento e pode-se penetrar no sentimento pela respiração, sob a


condição de saber discriminar, entre as respirações, aquela que convém a esse sentimento.
(ARTAUD, 1984, pp.166-167)

Como Grotóvski, vinculou a inteligência do ator ao controle de suas habilidades


físicas e ampliou o significado do conceito e da prática de um treinamento.

Desde Grotowski, a palavra ‘treinamento’ tornou-se parte integral do vocabulário do teatro


ocidental e não se refere somente à preparação física ou profissional. A finalidade do treinamento é
tanto a preparação física do ator quanto seu crescimento pessoal acima e além do nível profissional.
Ele lhe dá um modo de controlar seu corpo e dirigi-lo com confiança, a fim de adquirir inteligência
física.(BARBA e SAVARESE, 1995, p. 250)

Grotóvski denominava sua técnica de via negativa, acreditando que a pergunta como
se pode fazer isso? só deveria ser feita uma vez na vida.

(...) tão logo entramos nos detalhes, ela não deve mais ser feita, pois – no momento mesmo de
formulá-la – começamos a criar estereótipos e clichês. Então devemos fazer a pergunta: ‘Que é que
não devo fazer?’... devemos perguntar ao ator: ‘Quais são os obstáculos que lhe impedem de
realizar o ato total, que deve engajar todos os seus recursos psicofísicos, do mais instintivo ao mais
racional?’ Devemos descobrir o que atrapalha na respiração, no movimento e – isto é o mais
importante de tudo – no contato humano. Que resistências existem? Como podem ser eliminadas?
Eu quero eliminar, tirar do ator tudo que seja fonte de distúrbio. Que só permaneça dentro dele o
que for criativo. Trata-se de uma liberação. Se nada permanecer é que ele não era um ser criativo.
(GROTÓVSKI, 1992, pp.178)

Como Eugênio Barba, direcionou seus estudos pedagógicos no sentido de


disponibilizar o corpo do ator/bailarino na obtenção das qualidades indispensáveis às
suas atuações cênicas: a atenção, a prontidão, a clareza e a objetividade na execução
de seus movimentos (ações físicas). Mas, ao contrário de Barba, que pesquisou e
identificou os princípios comuns em técnicas artísticas codificadas, Klauss,
insatisfeito com o estudo comparativo de diferentes técnicas (balé clássico, pintura,
escultura, yoga, capoeira), passou a estudar anatomia, mecânica (dos movimentos) e
cinesiologia para entender o funcionamento do corpo humano. É possível verificar
que mesmo ao pesquisarem fontes distintas e se apropriarem de terminologias, às
vezes, diversas, Klauss e Barba detectaram princípios comuns que passaram a
adotar, como o peso, o equilíbrio, as oposições, a resistência, os impulsos
(movimentos internos), o uso efetivo dos sentidos, o desenho preciso dos
movimentos e a exploração de ritmos e planos.

Mesmo identificando objetivos e conteúdos semelhantes nas obras dos dois


pesquisadores, é na abordagem didática desses princípios que encontrei as
diferenças entre eles, podendo inferir o mesmo raciocínio em suas visões
pedagógicas sobre o processo de aprendizagem.

No treinamento direcionado à obtenção de qualidades pré-expressivas do ator,


defendido por Barba, pode-se observar, em vários aspectos, o caráter fragmentário
no processo de aprendizagem. Por meio da reprodução de um modelo, os alunos são
introduzidos a prática de exercícios que exigem habilidades físicas especiais, como
na acrobacia, que estão vinculados à obtenção de um corpo forte, seguro e decidido.
A constatação e a superação dos limites individuais, desvinculadas da observação da
atuação do ator no cotidiano, podem dificultar a ampliação de sua função além do
nível profissional (ator x cidadão). Não são estabelecidas (ou, não são estimuladas)
relações entre movimento/ação e sensações/emoções e intenções. Portanto, o
movimento durante o treinamento não é, necessariamente, associado a sua função
sígnica, podendo estabelecer um hiato entre o treinamento e o processo criativo.

3. Um novo olhar sobre o treinamento


Klauss afirmava que suas reflexões estavam baseadas não apenas em informações
técnicas e científicas, mas também em suas experiências práticas. Portanto, seus
ensinamentos, sua concepção sobre a formação do artista, traduzem, desde sua
origem, uma visão não fragmentada do homem, de sua atuação em qualquer
atividade. A partir do vínculo entre a capacidade criativa e a singularidade de todo
homem como a resultante da relação dinâmica do indivíduo com o mundo, parece-
me clara sua intenção, via autoconhecimento, de capacitar o aluno no processo de
reconhecimento de suas potencialidades motoras, sensoriais e cognitivas de forma
integrada. Através do estudo do movimento consciente, o aluno pode compreender e
ser habilitado a reconhecer e explorar praticamente as relações entre essas
capacidades. É fundamental que o aluno reconheça as conexões entre movimentos e
sensações, sentimentos, imagens, palavras e vice-versa, em qualquer situação vivida.
Portanto, a adoção de ações cotidianas simples em sala de aula e a extensão da
experimentação além desses limites, justificam-se plenamente se o objetivo é
também valorizar o aspecto singular do ator.

Em diferentes campos de conhecimento acadêmico pode-se encontrar contribuições


analíticas significativas a partir de processos de aprendizagem baseados no
autoconhecimento.

Segundo a historiadora Agnes Heller, todas as capacidades sensoriais, motoras e


cognitivas estão envolvidas na atuação do homem na vida cotidiana, de forma ativa
e receptiva, em combinações e intensidades diversas. Os diferentes tipos de
atividades nela contidas - organização do trabalho e da vida privada, os lazeres e o
descanso, a atividade social sistematizada, o intercâmbio e a purificação
(HELLER, 1974, p.18) - organizam-se de forma orgânica, graças ao caráter
heterogêneo e hierárquico de seus conteúdos e significações. Na atuação do
indivíduo, podemos identificar simultaneamente ser particular e ser genérico. A
particularidade pode ser fundamentada basicamente na unicidade e irrepetibilidade.
Todo homem passa a reconhecê-la, a partir do processo de conscientização das
necessidades físicas e psicológicas do “EU”. Já seu desempenho como ser genérico
pode ser identificado pelo fato de compartilhar emoções, exercer atividades comuns
a todo ser humano, apesar de manter sua particularidade manifesta na forma de
expressar essas emoções e motivações pessoais para o desenvolvimento da
atividade. A construção de um padrão no comportamento e no pensamento faz-se
necessário para que o homem possa viver suas atividades cotidianas (cotidianidade),
mas sua cristalização pode resultar na alienação em face de possibilidades concretas
de desenvolvimento genérico da humanidade. (HELLER, 1974, p.37) É a partir da
individualidade consciente que o homem poderá recuperar seu caráter singular e a
capacidade de orientação da própria vida, combatendo a desagregação e
fragmentação nos seus diversos papéis, no “ser e essência”, aparentemente naturais
no cotidiano. Ainda segundo Heller:

Condução da vida, portanto, não significa abolição da hierarquia espontânea da cotidianidade, mas
tão-somente que a ‘muda’ coexistência da particularidade e da generacidade é substituída pela
relação consciente do indivíduo com o humano genérico e que essa atitude – que é, ao mesmo
tempo, um ‘engagement moral, de concepção do mundo, e uma aspiração à auto-realização e à
autofruição da personalidade – ‘ordena’ as várias e heterogêneas atividades da vida. A condução da
vida supõe, para cada um, uma vida própria, embora mantendo-se a estrutura cotidiana; cada qual
deverá apropriar-se a seu modo da realidade e impor a ela a marca de sua personalidade. É claro
que a condução da vida é sempre apenas uma tendência de realização mais ou menos perfeita. E é
condução da vida porque sua perfeição é função da individualidade do homem e não de um dom
particular ou de uma capacidade especial. (HELLER, 1974, p.40)

Podemos identificar na margem de movimentação disponível, além dos limites da


padronização, o espaço da liberdade, do distanciamento que permite a escolha
consciente, do reconhecimento, da valorização da singularidade e da genericidade
humana, e da escolha de sua própria comunidade e seu próprio modo de vida no
interior das possibilidades dadas. (HELLER, 1974, p.22)

A importância do estudo sobre a atuação do homem no cotidiano pode ser melhor


compreendida através das recentes pesquisas realizadas no campo das ciências
cognitivas. Neide Neves, utilizando essa abordagem científica sobre o trabalho
desenvolvido por Klauss Vianna, fala, em sua dissertação de mestrado, dos
problemas decorrentes da falta de consciência do padrão de movimentos repetitivos
e limitados, que dificultam nossa capacidade de transformação, desenvolvimento e
expressão criativa. A adoção de um padrão pessoal encontra suas raízes em nossa
carga genética, passando pelas experiências pessoais, leis e crenças pré-
estabelecidas, decorrentes da aceitação social e da tentativa de construção e
reconhecimento de uma individualidade. Mas, na busca da satisfação das
necessidades de amor, segurança e estabilidade, o indivíduo pode estar abdicando do
uso do espaço de movimento disponível, como afirma Agnes Heller, e da capacidade
de se desenvolver de forma plástica e integrada, segundo Neide Neves.

A idéia da não fragmentação corpo-mente, consciência-experência, cotidiano-


extracotidiano (mesmo para fins de pesquisa analítica e trabalho técnico) é bastante
clara na concepção pedagógica proposta por Klauss, de desenvolvimento de um
corpo inteligente. O estudo do movimento a partir das ações cotidianas almejava,
além da conscientização dos limites quantitativos e qualitativos, a percepção das
relações que podem ser estabelecidas entre os processos motor, sensorial e
cognitivo. Essa é a teoria defendida por uma corrente das ciências cognitivas na
atualidade: a teoria da enação.

(...) a corrente mais recente das ciências cognitivas, a teoria da enação, propõe que a cognição não é
a reconstituição de um mundo externo pré-dado, nem uma projeção de um mundo interno pré-dado.
A cognição é uma ação encarnada. Com o uso do termo enação, sublinha que os processos
sensoriais e motores, a percepção e a ação são fundamentalmente inseparáveis na cognição vivida.
Eles não estão associados nos indivíduos por simples contingência, mas porque evoluíram juntos.
Pela palavra encarnada, ressalta dois pontos: primeiro, a cognição depende dos tipos de experiência
que decorrem do fato de se ter um corpo dotado de diversas capacidades sensório-motoras; em
segundo lugar, estas capacidades individuais sensório-motoras se inscrevem elas mesmas em um
contexto biológico, psicológico e cultural mais amplo. (NEVES, 2000, p. 8)
O estímulo da percepção através da atenção voltada para as ações do cotidiano pode
conduzir à descoberta da plasticidade, da fluidez de nosso sistema nervoso e,
conseqüentemente, de nossa capacidade de transformação na atuação (ativa e
receptiva) com o meio externo. A partir de um estudo, que não se restringe à sala de
aula, sobre sua atuação em ações simples e rotineiras, o aluno poderá desenvolver o
processo prático da “reflexão encarnada”:

(...) Se a prática da atenção/consciência deve ter como resultado trazer a pessoa para mais perto da
sua experiência comum, e não para mais longe dela, qual pode ser o papel da reflexão? ... Essa
pergunta nos traz para o cerne metodológico da interação entre a meditação da atenção/consciência,
a fenomenologia e as ciências cognitivas. O que estamos sugerindo é uma mudança na natureza da
reflexão de uma atividade abstrata desincorporada para uma reflexão incorporada (atenta) aberta.
Por incorporada queremos nos referir à reflexão na qual o corpo e mente foram unidos. O que essa
formulação pretende veicular é que a reflexão não é apenas sobre a experiência, mas ela própria é
uma forma de experiência – e a forma reflexiva de experiência pode ser desempenhada com
atenção/consciência. Quando a reflexão é feita dessa forma, ela pode interromper a cadeia de
padrões de pensamentos habituais e preconcepções, de forma a ser uma reflexão aberta – aberta a
possibilidades diferentes daquelas contidas nas representações comuns que uma pessoa tem do
espaço de vida. Nós denominamos essa forma de reflexão de reflexão atenta, aberta. (VARELA,
THOMPSON, ROSCH, 1993, p. 43)

Tais estudos parecem confirmar a valorização do autoconhecimento defendida por


Béatrice Picon-Vallin e Monique Borie em suas análises sobre a pedagogia do teatro.
A necessidade de manutenção do diálogo entre mestre e alunos, estimulado pela
valorização da singularidade do aluno-ator, da iniciativa e do trabalho pessoal, e não
pelo aprendizado de um modelo. Em algumas metodologias, apesar de se constatar
teoricamente os limites psicofísicos dos atores, não é dado ao aluno o tempo e os
meios para o reconhecimento de seus limites, então o processo de aprendizagem
parece focado na aquisição, via imitação, de um novo padrão de movimentos.
Acredito que esse processo apenas substitui um modelo por outro, aceito
artisticamente, indicando os mesmos caminhos, independentemente das
individualidades. Provavelmente, nesse caso, muitos padrões, que não foram
reconhecidos anteriormente, serão mantidos ou adaptados na reprodução do novo
comportamento.
Ao analisar as obras de Stanislávski, Vakhangov e Meyerhold, Picon-Vallin
identifica a interdependência entre a arte e a vida, o ensino/aprendizagem teatral
como educação do homem completo. A pedagogia para a cena é enfim pedagogia
para a vida. Uma não vai sem a outra(...) Se o aluno não consegue identificar sua
padronização de comportamentos no processo artístico, provavelmente não
entenderá que age da mesma forma também no cotidiano, dificultando a
transformação do ator também como cidadão.

Nessa visão pedagógica também são considerados indispensáveis alguns


procedimentos, como, a pesquisa e a verificação de um saber construído sob a
observação, experimentação e estudo de fontes bibliográficas .Sob esse aspecto,
destaco um procedimento didático adotado no ensino da Técnica do Movimento
Consciente que considero essencial para que o ator possa alcançar sua autonomia: o
observador de si mesmo.

A busca para alcançar maior consciência sobre as atividades realizadas (técnicas ou


criativas) - um dos pilares da técnica desenvolvida por Klauss – viabiliza um papel
importante na autonomia do ator: o de observador de si mesmo. Além da atenção
indispensável, Klauss adotava na composição dos procedimentos, referenciais claros
para instrumentalizar o aluno: dados para a realização da auto-observação inicial,
para o reconhecimento dos princípios adotados em cada exercício e para a
constatação das alterações obtidas ou não no final de cada proposta.

A autonomia do ator depende de sua habilitação em realizar avaliações críticas sobre


a adoção de determinadas práticas corporais, em reconhecer os ganhos e perdas
durante o processo contínuo de aprendizagem. Klauss afirmava que aprender a
questionar objetivamente e a observar a si mesmo são as melhores formas de
aprendizado. (VIANNA e CARVALHO, 1990, p. 81)
Para finalizar, é preciso destacar e esclarecer outros dois pontos significativos da
abordagem dos princípios técnicos defendida por Klauss na fundamentação de sua
aplicação na iniciação ao treinamento do ator.

O primeiro está relacionado a um processo de aprendizagem que prescinde de


habilidades psicomotoras especiais. A adoção da exploração do repertório pessoal de
movimentos do aluno pode não só facilitar a assimilação dos objetivos, do conteúdo
e dos procedimentos que compõem um treinamento, como também, evitar lesões
físicas e mentais.

O outro ponto a ser esclarecido refere-se à conquista gradativa de um repertório


mais amplo e sofisticado. É a partir do aprendizado e exploração dos princípios
técnicos em movimentos/ações simples que o aluno é estimulado a pesquisar
diferentes possibilidades de realizar uma mesma ação. Na exploração do uso
consciente das articulações, do peso do corpo, das oposições, gerando a ampliação
dos espaços internos, os alunos poderão atingir o condicionamento necessário
(elasticidade, flexibilidade e força muscular) para poder experimentar movimentos
mais sofisticados, durante períodos mais longos, sem correr riscos desnecessários de
provocar lesões, muitas vezes irreversíveis.

É a partir dessa linha de raciocínio e prática que se baseia fundamentalmente minha


hipótese sobre o desenvolvimento da autonomia do aluno para compor seu próprio
treinamento, para avaliar criteriosamente outras práticas corporais antes da sua
adoção, baseado nas suas necessidades pessoais e na valorização de seu caráter
singular. Poderá também, iniciar o processo de aprendizado e aprofundamento
contínuo indispensáveis ao desenvolvimento de um corpo inteligente, um corpo-
pensante. Só então seria plausível afirmar como Eugenio Barba que (...) o objetivo
da situação pedagógica (...) é construir o processo de formação para a criatividade,
de aprender a sabedoria de ter conhecimentos e possibilidades de escolher o que
aprender. (BARBA e SAVARESE, 1995, p.27)
1. A busca de um corpo inteligente

Klauss Vianna, estimulado por sua insatisfação com relação à metodologia aplicada
na formação do bailarino e também nos processos criativos, desenvolveu suas
pesquisas teórico-práticas sobre o movimento partindo de seus conhecimentos sobre
uma técnica de representação codificada - o balé clássico - visando tornar
inteligente o corpo do intérprete, capaz de produzir obras e manifestações
verdadeiramente artísticas.

Concebia a técnica não em função de um pressuposto ideal estético, mas como um


meio eficaz e em plena sintonia com os fins que um artista se propõe. Caminhando
na direção oposta da criação de um novo código ou de um melhor desempenho na
cópia de modelos, Klauss associava a capacidade criativa a um processo de
autoconhecimento. É a partir de sua individualidade que o intérprete desencadeia seu
processo criativo, (...) através do qual os elementos adquiridos podem ser
codificados e, em seguida representados. (VIANNA e CARVALHO, 1990, p.104)
Klauss afirmava que devemos ter sempre em mente, durante todo o processo de
trabalho, que a verdadeira origem e motor do movimento é a relação mundo-eu e
que da dinâmica desse relacionamento é que emerge a singularidade que faz de cada
pessoa um ser único e diferenciado.

A descoberta do eu interno, de um ser único, individual e criativo, é indispensável ao exercício da


dança, se quisermos que ela se torne uma forma de expressão da comunidade humana. Desde o
nascimento somos submetidos a uma série de condicionamentos sociais, antes mesmo de vivermos
os processos de educação formal, o que acaba resultando em procedimentos mecânicos e
repetitivos, dos quais não temos percepção ou consciência.
Se isso, de um lado, facilita a nossa existência cotidiana, por outro afasta e dificulta o processo de
autoconhecimento. Em outras palavras, a memória robotizada pode produzir formas já catalogadas e
conhecidas, mas dificilmente criar movimentos novos e ricos em expressão. (VIANNA e
CARVALHO, 1990, p.101)
O ponto de partida desse processo é um trabalho de conscientização por parte do
intérprete da sua relação com o mundo exterior, através da observação. É proposto
ao aluno que direcione a atenção ao uso de seu corpo no cotidiano. A percepção da
postura, do andar, de como são mecânicos e repetitivos os gestos, de como os
sentidos, principalmente a visão, a audição e o tato estão adormecidos, são
referências fundamentais para o aluno. A constatação clara dos limites é
indispensável para a conscientização da necessidade de um trabalho e como
referência para posteriores avaliações dos resultados desse e de outros processos. A
verificação do quanto é pobre o vocabulário gestual no cotidiano, principalmente em
decorrência das tensões musculares, é conduzida pela execução de seqüências de
movimentos simples, como andar, agachar, sentar, deitar e levantar. Klauss afirmava
que essa experiência deveria ultrapassar os limites da sala de aula e ser vivenciada
no cotidiano: quanto mais rapidamente o aluno conseguisse converter gestos comuns
em atitudes mais ou menos conscientes, mais facilmente poderia avançar em
direção à liberdade, à autonomia para a composição de um repertório mais amplo e
eficiente.

O conhecimento das habilidades motoras e sensoriais de que todo ser humano dispõe
é o caminho para a identificação mais precisa dos limites pessoais e o início de sua
superação. Além das primeiras percepções das alterações na qualidade expressiva
através do uso efetivo dos sentidos em suas atuações (ativas e receptivas) em ações
simples, os alunos iniciam um processo de aprendizagem consciente sobre a
estrutura óssea, muscular e seus funcionamentos. Aprendem a reconhecer e a
explorar os movimentos possíveis de serem realizados pelas articulações, os
princípios mecânicos como peso (reconhecimento da força da gravidade), apoios,
alavancas e equilíbrio (relação de forças) e, principalmente, os direcionamentos
ósseos, que através das oposições geram o aumento dos espaços articulares e da
flexibilidade do tônus muscular. Também são propostos exercícios para que
aprendam a explorar o espaço (direções, planos e ritmos), a realizar o desenho
preciso do movimento no espaço (começo, meio e fim), a experimentar outras
qualidades de movimentos, através de combinações diferentes de ritmo, tônus
muscular e desenho do movimento no espaço.

Uma outra abordagem que Klauss fazia sobre a importância do movimento


consciente era sua relação com a energia vital, produzida pela atividade biológica
de cada pessoa. Quanto mais o intérprete estiver presente em si mesmo, quanto mais
atento a cada gesto ou deslocamento, procurando manter os espaços internos, maior
será a sua produção e concentração de energia vital.

Dessa forma, Klauss buscava propiciar ao intérprete os meios para alcançar uma das
primeiras qualidades exigidas em sua atuação: a presença cênica. Trabalhando
conscientemente sua relação com o mundo exterior – espaço, outros intérpretes e
público – através do uso ideal de seus sentidos e dos elementos técnicos, poderia
alcançar a atenção, a prontidão e o tônus necessários para realizar seus movimentos
com a clareza e a objetividade desejadas ao jogo cênico. A criatividade e a verdade
cênica do movimento viriam da sensibilização estimulada pela técnica. Propunha
aos alunos a percepção das reações – movimentos e sensações - provocadas pelos
mais diferentes estímulos internos e externos, das alterações das sensações na
execução do mesmo movimento (ou parte dele) a partir da experimentação de novas
combinações de seus fatores. Propunha também que os movimentos não fossem
gratuitos (mover por mover) mas respostas conscientes aos estímulos do mundo
exterior sem obsessão ou intelectualização. Além da ampliação do vocabulário, o
processo permite o aprofundamento de suas qualidades, podendo tornar o corpo do
intérprete plenamente expressivo. Klauss afirmava que

É difícil manifestar um sentimento, uma emoção, uma intenção, se me oriento mais por formas
condicionadas e conceitos preestabelecidos do que pela verdade do meu gesto. O que confere
autenticidade e expressão a um dado movimento coreográfico é precisamente o poder que ele tem
de traduzir certas emoções, sentimentos ou sensações, de tal forma que seria impossível traduzi-los
de outra forma ou através do recurso de outra linguagem. (VIANNA e CARVALHO, 1990, p. 102 e
103)

2. Klauss e os grandes mestres

É possível estabelecer muitos pontos comuns entre as propostas de Klauss Vianna e


dos grandes mestres que desenvolveram estudos sobre a arte do ator, como
Stanislávski, Meyerhold, Artaud, Grotóvski e Barba.

Como Stanlislavski, Klauss iniciou suas pesquisas em busca de novos caminhos na


capacitação do intérprete em seus desempenhos de forma criativa, partindo da
constatação, entre outras coisas, dos limites impostos pela atuação no cotidiano.
Estimulou os alunos à percepção da interdependência entre processos internos e
externos (ação psicofísica).

Como Meyerhold, focou suas investigações no estudo do movimento em si e na sua


relação com a música, a palavra, o espaço, os objetos, a luz... A valorização do
movimento no sistema biomecânico em detrimento da palavra, por sua relação
pouco producente com o lado racional, não significava a desqualificação do aspecto
intelectivo no processo criativo. Ao contrário, Meyerhold valorizava muito o aspecto
consciente, indispensável na aprendizagem de como desenvolver, usufruir e
controlar os meios expressivos em diferentes processos.

Como Artaud, ressaltou a importância da respiração na execução de um


movimento/ação física, estabelecendo sua relação com as sensações, as emoções e a
vida.
A respiração acompanha o sentimento e pode-se penetrar no sentimento pela respiração, sob a
condição de saber discriminar, entre as respirações, aquela que convém a esse sentimento.
(ARTAUD, 1984, pp.166-167)

Como Grotóvski, vinculou a inteligência do ator ao controle de suas habilidades


físicas e ampliou o significado do conceito e da prática de um treinamento.

Desde Grotowski, a palavra ‘treinamento’ tornou-se parte integral do vocabulário do teatro


ocidental e não se refere somente à preparação física ou profissional. A finalidade do treinamento é
tanto a preparação física do ator quanto seu crescimento pessoal acima e além do nível profissional.
Ele lhe dá um modo de controlar seu corpo e dirigi-lo com confiança, a fim de adquirir inteligência
física.(BARBA e SAVARESE, 1995, p. 250)

Grotóvski denominava sua técnica de via negativa, acreditando que a pergunta como
se pode fazer isso? só deveria ser feita uma vez na vida.

(...) tão logo entramos nos detalhes, ela não deve mais ser feita, pois – no momento mesmo de
formulá-la – começamos a criar estereótipos e clichês. Então devemos fazer a pergunta: ‘Que é que
não devo fazer?’... devemos perguntar ao ator: ‘Quais são os obstáculos que lhe impedem de
realizar o ato total, que deve engajar todos os seus recursos psicofísicos, do mais instintivo ao mais
racional?’ Devemos descobrir o que atrapalha na respiração, no movimento e – isto é o mais
importante de tudo – no contato humano. Que resistências existem? Como podem ser eliminadas?
Eu quero eliminar, tirar do ator tudo que seja fonte de distúrbio. Que só permaneça dentro dele o
que for criativo. Trata-se de uma liberação. Se nada permanecer é que ele não era um ser criativo.
(GROTÓVSKI, 1992, pp.178)

Como Eugênio Barba, direcionou seus estudos pedagógicos no sentido de


disponibilizar o corpo do ator/bailarino na obtenção das qualidades indispensáveis às
suas atuações cênicas: a atenção, a prontidão, a clareza e a objetividade na execução
de seus movimentos (ações físicas). Mas, ao contrário de Barba, que pesquisou e
identificou os princípios comuns em técnicas artísticas codificadas, Klauss,
insatisfeito com o estudo comparativo de diferentes técnicas (balé clássico, pintura,
escultura, yoga, capoeira), passou a estudar anatomia, mecânica (dos movimentos) e
cinesiologia para entender o funcionamento do corpo humano. É possível verificar
que mesmo ao pesquisarem fontes distintas e se apropriarem de terminologias, às
vezes, diversas, Klauss e Barba detectaram princípios comuns que passaram a
adotar, como o peso, o equilíbrio, as oposições, a resistência, os impulsos
(movimentos internos), o uso efetivo dos sentidos, o desenho preciso dos
movimentos e a exploração de ritmos e planos.

Mesmo identificando objetivos e conteúdos semelhantes nas obras dos dois


pesquisadores, é na abordagem didática desses princípios que encontrei as
diferenças entre eles, podendo inferir o mesmo raciocínio em suas visões
pedagógicas sobre o processo de aprendizagem.

No treinamento direcionado à obtenção de qualidades pré-expressivas do ator,


defendido por Barba, pode-se observar, em vários aspectos, o caráter fragmentário
no processo de aprendizagem. Por meio da reprodução de um modelo, os alunos são
introduzidos a prática de exercícios que exigem habilidades físicas especiais, como
na acrobacia, que estão vinculados à obtenção de um corpo forte, seguro e decidido.
A constatação e a superação dos limites individuais, desvinculadas da observação da
atuação do ator no cotidiano, podem dificultar a ampliação de sua função além do
nível profissional (ator x cidadão). Não são estabelecidas (ou, não são estimuladas)
relações entre movimento/ação e sensações/emoções e intenções. Portanto, o
movimento durante o treinamento não é, necessariamente, associado a sua função
sígnica, podendo estabelecer um hiato entre o treinamento e o processo criativo.

3. Um novo olhar sobre o treinamento

Klauss afirmava que suas reflexões estavam baseadas não apenas em informações
técnicas e científicas, mas também em suas experiências práticas. Portanto, seus
ensinamentos, sua concepção sobre a formação do artista, traduzem, desde sua
origem, uma visão não fragmentada do homem, de sua atuação em qualquer
atividade. A partir do vínculo entre a capacidade criativa e a singularidade de todo
homem como a resultante da relação dinâmica do indivíduo com o mundo, parece-
me clara sua intenção, via autoconhecimento, de capacitar o aluno no processo de
reconhecimento de suas potencialidades motoras, sensoriais e cognitivas de forma
integrada. Através do estudo do movimento consciente, o aluno pode compreender e
ser habilitado a reconhecer e explorar praticamente as relações entre essas
capacidades. É fundamental que o aluno reconheça as conexões entre movimentos e
sensações, sentimentos, imagens, palavras e vice-versa, em qualquer situação vivida.
Portanto, a adoção de ações cotidianas simples em sala de aula e a extensão da
experimentação além desses limites, justificam-se plenamente se o objetivo é
também valorizar o aspecto singular do ator.

Em diferentes campos de conhecimento acadêmico pode-se encontrar contribuições


analíticas significativas a partir de processos de aprendizagem baseados no
autoconhecimento.

Segundo a historiadora Agnes Heller, todas as capacidades sensoriais, motoras e


cognitivas estão envolvidas na atuação do homem na vida cotidiana, de forma ativa
e receptiva, em combinações e intensidades diversas. Os diferentes tipos de
atividades nela contidas - organização do trabalho e da vida privada, os lazeres e o
descanso, a atividade social sistematizada, o intercâmbio e a purificação
(HELLER, 1974, p.18) - organizam-se de forma orgânica, graças ao caráter
heterogêneo e hierárquico de seus conteúdos e significações. Na atuação do
indivíduo, podemos identificar simultaneamente ser particular e ser genérico. A
particularidade pode ser fundamentada basicamente na unicidade e irrepetibilidade.
Todo homem passa a reconhecê-la, a partir do processo de conscientização das
necessidades físicas e psicológicas do “EU”. Já seu desempenho como ser genérico
pode ser identificado pelo fato de compartilhar emoções, exercer atividades comuns
a todo ser humano, apesar de manter sua particularidade manifesta na forma de
expressar essas emoções e motivações pessoais para o desenvolvimento da
atividade. A construção de um padrão no comportamento e no pensamento faz-se
necessário para que o homem possa viver suas atividades cotidianas (cotidianidade),
mas sua cristalização pode resultar na alienação em face de possibilidades concretas
de desenvolvimento genérico da humanidade. (HELLER, 1974, p.37) É a partir da
individualidade consciente que o homem poderá recuperar seu caráter singular e a
capacidade de orientação da própria vida, combatendo a desagregação e
fragmentação nos seus diversos papéis, no “ser e essência”, aparentemente naturais
no cotidiano. Ainda segundo Heller:

Condução da vida, portanto, não significa abolição da hierarquia espontânea da cotidianidade, mas
tão-somente que a ‘muda’ coexistência da particularidade e da generacidade é substituída pela
relação consciente do indivíduo com o humano genérico e que essa atitude – que é, ao mesmo
tempo, um ‘engagement moral, de concepção do mundo, e uma aspiração à auto-realização e à
autofruição da personalidade – ‘ordena’ as várias e heterogêneas atividades da vida. A condução da
vida supõe, para cada um, uma vida própria, embora mantendo-se a estrutura cotidiana; cada qual
deverá apropriar-se a seu modo da realidade e impor a ela a marca de sua personalidade. É claro
que a condução da vida é sempre apenas uma tendência de realização mais ou menos perfeita. E é
condução da vida porque sua perfeição é função da individualidade do homem e não de um dom
particular ou de uma capacidade especial. (HELLER, 1974, p.40)

Podemos identificar na margem de movimentação disponível, além dos limites da


padronização, o espaço da liberdade, do distanciamento que permite a escolha
consciente, do reconhecimento, da valorização da singularidade e da genericidade
humana, e da escolha de sua própria comunidade e seu próprio modo de vida no
interior das possibilidades dadas. (HELLER, 1974, p.22)

A importância do estudo sobre a atuação do homem no cotidiano pode ser melhor


compreendida através das recentes pesquisas realizadas no campo das ciências
cognitivas. Neide Neves, utilizando essa abordagem científica sobre o trabalho
desenvolvido por Klauss Vianna, fala, em sua dissertação de mestrado, dos
problemas decorrentes da falta de consciência do padrão de movimentos repetitivos
e limitados, que dificultam nossa capacidade de transformação, desenvolvimento e
expressão criativa. A adoção de um padrão pessoal encontra suas raízes em nossa
carga genética, passando pelas experiências pessoais, leis e crenças pré-
estabelecidas, decorrentes da aceitação social e da tentativa de construção e
reconhecimento de uma individualidade. Mas, na busca da satisfação das
necessidades de amor, segurança e estabilidade, o indivíduo pode estar abdicando do
uso do espaço de movimento disponível, como afirma Agnes Heller, e da capacidade
de se desenvolver de forma plástica e integrada, segundo Neide Neves.

A idéia da não fragmentação corpo-mente, consciência-experência, cotidiano-


extracotidiano (mesmo para fins de pesquisa analítica e trabalho técnico) é bastante
clara na concepção pedagógica proposta por Klauss, de desenvolvimento de um
corpo inteligente. O estudo do movimento a partir das ações cotidianas almejava,
além da conscientização dos limites quantitativos e qualitativos, a percepção das
relações que podem ser estabelecidas entre os processos motor, sensorial e
cognitivo. Essa é a teoria defendida por uma corrente das ciências cognitivas na
atualidade: a teoria da enação.

(...) a corrente mais recente das ciências cognitivas, a teoria da enação, propõe que a cognição não é
a reconstituição de um mundo externo pré-dado, nem uma projeção de um mundo interno pré-dado.
A cognição é uma ação encarnada. Com o uso do termo enação, sublinha que os processos
sensoriais e motores, a percepção e a ação são fundamentalmente inseparáveis na cognição vivida.
Eles não estão associados nos indivíduos por simples contingência, mas porque evoluíram juntos.
Pela palavra encarnada, ressalta dois pontos: primeiro, a cognição depende dos tipos de experiência
que decorrem do fato de se ter um corpo dotado de diversas capacidades sensório-motoras; em
segundo lugar, estas capacidades individuais sensório-motoras se inscrevem elas mesmas em um
contexto biológico, psicológico e cultural mais amplo. (NEVES, 2000, p. 8)

O estímulo da percepção através da atenção voltada para as ações do cotidiano pode


conduzir à descoberta da plasticidade, da fluidez de nosso sistema nervoso e,
conseqüentemente, de nossa capacidade de transformação na atuação (ativa e
receptiva) com o meio externo. A partir de um estudo, que não se restringe à sala de
aula, sobre sua atuação em ações simples e rotineiras, o aluno poderá desenvolver o
processo prático da “reflexão encarnada”:
(...) Se a prática da atenção/consciência deve ter como resultado trazer a pessoa para mais perto da
sua experiência comum, e não para mais longe dela, qual pode ser o papel da reflexão? ... Essa
pergunta nos traz para o cerne metodológico da interação entre a meditação da atenção/consciência,
a fenomenologia e as ciências cognitivas. O que estamos sugerindo é uma mudança na natureza da
reflexão de uma atividade abstrata desincorporada para uma reflexão incorporada (atenta) aberta.
Por incorporada queremos nos referir à reflexão na qual o corpo e mente foram unidos. O que essa
formulação pretende veicular é que a reflexão não é apenas sobre a experiência, mas ela própria é
uma forma de experiência – e a forma reflexiva de experiência pode ser desempenhada com
atenção/consciência. Quando a reflexão é feita dessa forma, ela pode interromper a cadeia de
padrões de pensamentos habituais e preconcepções, de forma a ser uma reflexão aberta – aberta a
possibilidades diferentes daquelas contidas nas representações comuns que uma pessoa tem do
espaço de vida. Nós denominamos essa forma de reflexão de reflexão atenta, aberta. (VARELA,
THOMPSON, ROSCH, 1993, p. 43)

Tais estudos parecem confirmar a valorização do autoconhecimento defendida por


Béatrice Picon-Vallin e Monique Borie em suas análises sobre a pedagogia do teatro.
A necessidade de manutenção do diálogo entre mestre e alunos, estimulado pela
valorização da singularidade do aluno-ator, da iniciativa e do trabalho pessoal, e não
pelo aprendizado de um modelo. Em algumas metodologias, apesar de se constatar
teoricamente os limites psicofísicos dos atores, não é dado ao aluno o tempo e os
meios para o reconhecimento de seus limites, então o processo de aprendizagem
parece focado na aquisição, via imitação, de um novo padrão de movimentos.
Acredito que esse processo apenas substitui um modelo por outro, aceito
artisticamente, indicando os mesmos caminhos, independentemente das
individualidades. Provavelmente, nesse caso, muitos padrões, que não foram
reconhecidos anteriormente, serão mantidos ou adaptados na reprodução do novo
comportamento.

Ao analisar as obras de Stanislávski, Vakhangov e Meyerhold, Picon-Vallin


identifica a interdependência entre a arte e a vida, o ensino/aprendizagem teatral
como educação do homem completo. A pedagogia para a cena é enfim pedagogia
para a vida. Uma não vai sem a outra(...) Se o aluno não consegue identificar sua
padronização de comportamentos no processo artístico, provavelmente não
entenderá que age da mesma forma também no cotidiano, dificultando a
transformação do ator também como cidadão.

Nessa visão pedagógica também são considerados indispensáveis alguns


procedimentos, como, a pesquisa e a verificação de um saber construído sob a
observação, experimentação e estudo de fontes bibliográficas .Sob esse aspecto,
destaco um procedimento didático adotado no ensino da Técnica do Movimento
Consciente que considero essencial para que o ator possa alcançar sua autonomia: o
observador de si mesmo.

A busca para alcançar maior consciência sobre as atividades realizadas (técnicas ou


criativas) - um dos pilares da técnica desenvolvida por Klauss – viabiliza um papel
importante na autonomia do ator: o de observador de si mesmo. Além da atenção
indispensável, Klauss adotava na composição dos procedimentos, referenciais claros
para instrumentalizar o aluno: dados para a realização da auto-observação inicial,
para o reconhecimento dos princípios adotados em cada exercício e para a
constatação das alterações obtidas ou não no final de cada proposta.

A autonomia do ator depende de sua habilitação em realizar avaliações críticas sobre


a adoção de determinadas práticas corporais, em reconhecer os ganhos e perdas
durante o processo contínuo de aprendizagem. Klauss afirmava que aprender a
questionar objetivamente e a observar a si mesmo são as melhores formas de
aprendizado. (VIANNA e CARVALHO, 1990, p. 81)

Para finalizar, é preciso destacar e esclarecer outros dois pontos significativos da


abordagem dos princípios técnicos defendida por Klauss na fundamentação de sua
aplicação na iniciação ao treinamento do ator.
O primeiro está relacionado a um processo de aprendizagem que prescinde de
habilidades psicomotoras especiais. A adoção da exploração do repertório pessoal de
movimentos do aluno pode não só facilitar a assimilação dos objetivos, do conteúdo
e dos procedimentos que compõem um treinamento, como também, evitar lesões
físicas e mentais.

O outro ponto a ser esclarecido refere-se à conquista gradativa de um repertório


mais amplo e sofisticado. É a partir do aprendizado e exploração dos princípios
técnicos em movimentos/ações simples que o aluno é estimulado a pesquisar
diferentes possibilidades de realizar uma mesma ação. Na exploração do uso
consciente das articulações, do peso do corpo, das oposições, gerando a ampliação
dos espaços internos, os alunos poderão atingir o condicionamento necessário
(elasticidade, flexibilidade e força muscular) para poder experimentar movimentos
mais sofisticados, durante períodos mais longos, sem correr riscos desnecessários de
provocar lesões, muitas vezes irreversíveis.

É a partir dessa linha de raciocínio e prática que se baseia fundamentalmente minha


hipótese sobre o desenvolvimento da autonomia do aluno para compor seu próprio
treinamento, para avaliar criteriosamente outras práticas corporais antes da sua
adoção, baseado nas suas necessidades pessoais e na valorização de seu caráter
singular. Poderá também, iniciar o processo de aprendizado e aprofundamento
contínuo indispensáveis ao desenvolvimento de um corpo inteligente, um corpo-
pensante. Só então seria plausível afirmar como Eugenio Barba que (...) o objetivo
da situação pedagógica (...) é construir o processo de formação para a criatividade,
de aprender a sabedoria de ter conhecimentos e possibilidades de escolher o que
aprender. (BARBA e SAVARESE, 1995, p.27)
O texto na íntegra pode ser encontrado na Biblioteca da Eca – Escola de
Comunicações e Artes da USP.
Para outras informações entre em contato com a autora no email
lucarion@uol.com.br

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