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Terceira Civilização - Edição 598 - 16/06/2018 - pág.

28-38 - Série

Terceira Civilização - Série

Desvendando os mistérios da vida e da


morte
A parte inicial do capítulo 6 do livro Unlocking também buscaram examinar
the Mysteries of Birth and Death [Desvendando objetivamente funções como sensação,
os Mistérios da Vida e da Morte] de autoria do emoção, compreensão e memória em
Presidente da SGI, Dr. Daisaku Ikeda, publicado conexão com o funcio­namento do
em série pela TC, apresenta de forma prática o cérebro. O budismo, ao contrário, examina
conceito das nove consciências, com especial o que há de mais profundo em nossa vida
foco nas oito primeiras. Com grande clareza, de forma mais intuitiva. No entanto, o
explica a relação das seis primeiras consciências conceito budista das “nove consciências”
com o ambiente, a importância da sétima traz uma visão abrangente sobre as
consciência para se viver em sociedade e a mesmas áreas da condição humana
oitava consciência como o repositório cármico abordadas pelas principais hipóteses da
que influencia profundamente a vida de cada ciência e da medicina modernas.
um.
No budismo, “consciência” é a tradução do
Capítulo 6 termo sânscrito vijnana, que significa
“habilidade de discernimento,
"Nove consciências" compreensão ou percepção”. Shakyamuni
incluiu a função de vijnana entre os “cinco
O budismo explica que a percepção, a componentes”: forma, percepção,
concepção ou a consciência errônea são a concepção, volição e consciência. A
causa do sofrimento. O primeiro passo, por consciência geralmente é compreendida
exemplo, ao longo do oitavo caminho é como conhecimento consciente, a
possuir uma visão correta — perceber as capacidade de pensar ou um estado de
coisas como elas realmente são. Portanto, vigília. Neste capítulo, entretanto, a palavra
o budismo revela que a verdadeira “consciência” é empregada para significar
iluminação — substituir ilusões que algo diferente. No budismo, a consciência
distorcem a realidade pela sabedoria para implica a capacidade ou a energia que
perceber a verdadeira realidade — é a opera, estejamos ou não conscientes disso.
maneira de nos emanciparmos do
sofrimento. Essa noção é a base do A consciência opera em vários níveis. O
conceito das “nove consciências”. conceito das “nove consciências”,
desenvolvido em grande parte nas escolas
No Ocidente, foram feitas diversas Tiantai e Guirlanda de Flores da China do
tentativas para explorar os diferentes níveis século 6, analisa as várias camadas da
de consciência humana, principalmente consciência e, assim, esclarece as funções
por meio da psicanálise e psicologia da própria vida. Esse conceito é diferente
profunda. A neurologia e a neurofisiologia da noção de “dez mundos”. No

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ensinamento de Tiantai, porém, essas duas cinco sentidos: visão, audição, olfato,
teorias budistas se sobrepõem na medida paladar e tato. Elas são ativadas sempre
em que a nona consciência pode ser que nossos cinco órgãos sensoriais —
entendida como sinônimo de décimo olhos, orelhas, nariz, língua e pele —
mundo — estado de buda. Nichiren interagem com nosso ambiente. Os cinco
Daishonin não explicou o conceito das órgãos dos sentidos são como janelas, ou
“nove consciências”, mas adotou a talvez caminhos, pelos quais o mundo
conclusão final de que a nona consciência externo se conecta ao interno e funcionam
é igual ao estado de buda. de forma relativamente passiva.

Cada ser vivo capta a informação vinda do A sexta consciência integra a percepção
meio ambiente e se ajusta de acordo [com dos cinco sentidos em imagens mentais
ela]. A sobrevivência dos seres depende da coerentes e faz julgamentos sobre o
sua capacidade perceber e responder ao mundo externo. Se algum dos cinco
seu ambiente. Mesmo as plantas podem órgãos sensoriais não estiver funcionando
sentir a mudança das estações e se ajustar bem, a mente também pode ficar limitada
às diferenças climáticas do inverno e do em sua capacidade de perceber com
verão. No inverno, por exemplo, árvores precisão o mundo exterior. Por outro lado,
decíduas perdem suas grandes folhas para mesmo que uma das “janelas” esteja
se preservar da perda de umidade através embaçada, a mente ainda pode fazer
dessas folhas. julgamentos consistentes se os demais
sentidos estiverem funcionando bem. A
Da mesma forma, os seres humanos têm a sexta consciência também pode funcionar
capacidade de responder ao seu ambiente. independentemente dos cinco sentidos,
Por exemplo, podemos discernir o que é como nos sonhos ou usando a imaginação.
ou não comestível. Apenas olhando as
frutas dispostas numa tigela geralmente Na maioria das vezes, a função dos cinco
podemos dizer se são feitas de cera. Mas, sentidos é distorcida. As influências
mesmo que nossos sentidos do olfato ou negativas decorrentes da sexta, sétima e
do tato sejam enganados, poderíamos oitava consciências, como veremos,
tentar provar uma delas e assim distorcem a percepção mental a respeito
descobriríamos rapidamente que se mundo exterior. Nossas percepções são
tratava de imitação. O discernimento ou a influenciadas por nossas atitudes, pelos
percepção são necessários para que os efeitos do nosso carma e pelo
seres sobrevivam. funcionamento interno da consciência.
Para uma pessoa saudável, cheia de
As seis primeiras consciências: vitalidade, mesmo uma comida simples
será deliciosa, enquanto para alguém
percepção sensorial e integração imerso em sofrimentos até mesmo a festa
mais suntuosa será sem graça. Fenômenos
As cinco primeiras das “nove consciências” como esses são misteriosos, mas comuns.
correspondem à noção convencional dos

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Além disso, cada órgão sensorial possui pode ouvir Mozart na cacofonia dos gritos
uma consciência própria. Em termos de um bebê.
fisiológicos, os órgãos dos sentidos não
passam para o cérebro tudo o que eles Uma passagem do Sutra do Lótus diz: “Se
percebem. Em vez disso, selecionam e bons homens ou boas mulheres aceitam e
transmitem apenas as coisas “importantes”. mantém este Sutra do Lótus, se o lerem,
recitá-lo, explicá-lo e pregá-lo, ou
Então, quando falamos sobre a transcrevê-lo, essas pessoas obterão
consciência dos olhos, por exemplo, oitocentos benefícios dos olhos, doze mil
estamos nos referindo ao próprio poder benefícios dos ouvidos, oitocentos
dos olhos para discernir ou selecionar. benefícios do nariz, mil e duzentos
Digamos que estamos procurando benefícios da língua, oitocentos benefícios
desesperadamente nossa chave. Como de corporais e mil e duzentos benefícios
costume, ela está [na mesa] bem no centro mentais. Com esses benefícios, poderão
da sala de estar, mas ainda não a adornar seus seis órgãos dos sentidos,
enxergamos. Podemos procurar tornando todos puros”.1
freneticamente, mas a chave permanece
perdida porque nossos olhos Essa passagem menciona vários tipos de
“selecionaram” quais informações seriam prática, o que o budismo denomina “cinco
enviadas para o nosso cérebro — nós práticas”: abraçar e manter o Sutra do
supomos que a chave não poderia estar na Lótus, ler, recitar, expor ou pregar e copiar
mesa no meio da sala de estar. (Afinal, nós o Sutra do Lótus. No Budismo Nichiren, a
teríamos visto se ela estivesse lá!) Por prática de abraçar e manter a Lei do
causa de nossa crença fixa, a informação Nam-myoho-renge-kyo abarca as cinco
recolhida pelos nossos olhos — de que a práticas na sua totalidade. As seis primeiras
chave está na sala de estar — não é consciências são purificadas quando
transmitida ao nosso cérebro. abraçamos o Nam-myoho-renge-kyo e
nos esforçamos para superar nossas
Diz-se que a prática budista “purifica” os limitações, transformando o sofrimento em
sentidos e os outros níveis de consciência alegria.
para que possamos perceber todos os
fenômenos de forma clara e precisa. As pessoas surdas e cegas também
Novamente, os órgãos dos sentidos são a podem purificar seus sentidos. A falta de
interface entre o pequeno universo da certos sentidos não impede que
nossa vida e o cosmos. Purificar nossos percebamos a essência de todas as coisas
órgãos dos sentidos, então, significa da mesma forma que ter a visão ou a
harmonizar completamente a nossa vida audição perfeitas não nos garante
com o universo, “sintonizando” ao seu automaticamente uma perfeita percepção.
ritmo. Alguém que purificou o sentido da Independentemente das nossas limitações
visão encontrará até na cena mais físicas, por meio da prática budista
corriqueira um brilhante milagre da vida. E podemos desenvolver plenamente o
alguém que purificou o sentido da audição sentido do coração. Purificar os sentidos se

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refere, em parte, a compreender a


natureza de todos os fenômenos. A “sétima consciência”:

Como resultado dos avanços científicos, ego ou eu menor


nossos olhos e ouvidos se tornaram muito
mais poderosos; podemos admirar o As seis primeiras consciências são
espaço sideral e ouvir os sons das respostas aos fenômenos cotidianos do
profundezas do mar. Mas esse poder mundo exterior. Essas funções são
equivale à felicidade? Enquanto a ciência facilmente reconhecíveis à medida que
tende a direcionar suas investigações para operam na “superfície exterior” da mente —
o mundo externo, isso só produzirá ou seja, em nosso domínio consciente.
infortúnios se não houver crescimento e Guardadas exceções, como os sonhos, por
amadurecimento correspondentes no exemplo, nos quais a sexta consciência
âmbito interno da vida. opera sozinha, as seis primeiras
consciências respondem
Além disso, a ciência ainda não inventou ininterruptamente ao constante aporte de
um instrumento que nos possibilite ver o elementos vindos do que está ao nosso
que se passa dentro do coração de redor. Pelo fato de funcionarem
alguém. O budismo permite que continuamen-
percebamos nosso próprio coração e o
coração dos outros, para assim te, momento a momento, é natural supor
compreender de perto como eles que possuímos um eu imutável e que
funcionam. Podemos dizer que o budismo talvez este supervisione e controle as seis
é a ciência do espírito, o remédio do consciências.
coração. Em última análise, purificar o
coração — nossas percepções e intenções A função que nos leva a acreditar na
— é o fundamento para purificar nossos existência de um eu permanente é
órgãos sensoriais e nossa consciência. chamada “sétima consciência”. Esse sétimo
nível representa o mundo espiritual interno
Para Helen Keller, que triunfou sobre sua e é a fonte da identidade do eu, operando
incapacidade de ouvir, falar e enxergar, em nome da autopreservação e do
Mark Twain disse: “Helen, o mundo está crescimento. O que parece corresponder à
cheio de olhos que não enxergam, vazios, noção ocidental de ego.
estalados e sem alma”.2 Twain também
falou que os dois personagens mais Na realidade, o “eu” está em constante
interessantes do século 19 foram Napoleão movimento, mudando a cada instante,
e Helen Keller, observando que, enquanto assim como ocorre com o nosso corpo e
Napoleão tinha planejado conquistar o com todos os outros fenômenos. Pelo fato
mundo pela força e acabou fracassando, de estarmos instintivamente “unidos” ao
Helen Keller, ao suportar o peso de uma “eu” ou ao ego, sentimos que isso é
deficiência tripla, conseguiu superá-la por constante. Nós recordamos
meio de sua exuberante força espiritual.3 acontecimentos da nossa vida e

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construímos uma narrativa sobre quem pequena gaiola dentro da vastidão da vida,
somos. Sem essa capacidade, seria difícil e nossa fonte inerente de humanidade
viver no mundo. No entanto, estar “unido” a permanece inexplorada.
este eu fugaz se torna um problema
quando o confundimos com uma entidade Embora possa parecer que a palavra “eu”
imutável e, assim, deixamos de buscar o esteja sendo empregada negativamente,
que é verdadeiramente imutável e implicando comportamentos egoístas ou
profundo. egocêntricos, seu uso é o que o budismo
considera como “eu menor”. Como
A sétima consciência também é discutido em capítulos anteriores, há
caracterizada pela capacidade de se também um “eu maior”, o verdadeiro “eu”,
distinguir dos outros, estabelecer um limite que está adormecido nas profundezas da
entre o eu e o outro. E é a fonte do impulso vida. A filosofia budista em sua totalidade
para se preservar. Novamente, seria difícil se baseia na ideia de deixar a prisão do “eu
vivermos no mundo real se não tivéssemos menor” para revelar o verdadeiro “eu”
essa capacidade. infinitamente desenvolvido. O conceito das
nove consciências foi desenvolvido para
Em última análise, no entanto, esse atingir esse objetivo.
impulso ou desejo gera sofrimento.
Podemos ser profundamente controlados Assim, da mesma forma que o potencial
pela função da sétima consciência e pela benéfico da sétima consciência é inegável,
noção de si próprio que ela produz, seu potencial para criar as “gaiolas” do ego
acreditando que seja substancial quando, não pode ser ignorado.
na realidade, não é.
A “oitava consciência”:
O apego a este eu pode gerar arrogância e
egoísmo, bem como complexo de repositório cármico
inferioridade e insegurança. Entretanto, se
abandonarmos esse eu, podemos estar Todas as experiências da nossa presente
negando nossa existência; e então, nos vida e das anteriores se acumulam na
apegamos às histórias que contamos a nós “oitava consciência”, que se acredita ser o
mesmos sobre quem somos; e domínio sujeito ao ciclo de nascimento e
procuramos propagá-las, reforçando morte. A oitava [consciência] também é
nossas opiniões e crenças, nossos gostos e conhecida como consciência alaya — a
desgostos etc., como se estivéssemos palavra sânscrita alaya significa
protegendo o núcleo da nossa identidade. “repositório” ou “armazém”.
Desse modo, perdemos de vista o
verdadeiro eu, que se encontra num nível Essa consciência recebe os resultados de
mais profundo de consciência, e pensamentos, palavras e ações e os
permanecemos ignorantes sobre o nosso armazena como potenciais cármicos ou
verdadeiro potencial. Nosso apego ao eu “sementes”. Como as sementes cármicas
da sétima consciência nos confina numa são encontradas apenas num nível de vida

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muito profundo, elas não são afetadas pelo ‘Por que meu negócio está falindo, apesar
mundo externo. No entanto, existe uma de trabalhar o máximo que posso?’ As
influência recíproca entre as sementes respostas para todas essas questões se
depositadas nas profundezas da encontram em nossas existências
4
consciência alaya e os níveis superficiais passadas”.
da consciência, onde os três tipos de
comportamento — pensamentos, palavras Segundo a medicina, ao longo dos anos,
e ações — se sucedem. cada célula do nosso corpo, desde o
centro dos globos oculares até a nossa
Na prática, as sementes armazenadas na medula óssea, é renovada, continua Josei
consciência alaya influenciam o Toda. Nessa perspectiva, disse ele, você
funcionamento das nossas sete primeiras poderia argumentar que não é o
consciências; e o carma afeta todos os responsável por uma dívida de cinco anos
aspectos do corpo e da mente. As pessoas atrás — em certo sentido, era um “você”
reconhecem e respondem às mesmas fisicamente diferente que incorrera para
circunstâncias de diferentes maneiras, de contrair tal dívida. Ainda assim, seu credor
acordo com sua personalidade. Certos lhe cobrará sem falta. Da mesma forma,
atributos físicos, como a forma do corpo, não temos escolha senão assumirmos a
podem refletir o estilo de vida da pessoa, responsabilidade por nossas ações
seus hábitos alimentares, propriedades passadas e pelo carma que criamos.
biológicas e meio ambiente. A condição
espiritual reflete estilo de vida, bem como Não importam quais sejam nossas
sua experiên- circunstâncias agora, podemos nos
aprimorar amplamente por meio de
cia e seu conhecimento. Assim, pelo comportamentos que adotamos a partir
funcionamento do nosso carma, chegamos deste momento. Aparentar estar satisfeito
ao nosso estado atual de vida, físico e com a maneira como somos ou nos
espiritual. A recompensa ou retribuição do censurarmos por causa de nossas
carma se expressa principalmente na circunstâncias, afinal, não criam qualquer
forma do próprio estado de vida interior. valor. O budismo nos ensina a avançar para
Isso também reflete externamente, no criar valor e a cultivar sabedoria e
ambiente ou no âmbito social do indivíduo. compaixão profundas. Podemos cometer
erros no curso da vida, mas se refletimos
De acordo com Josei Toda [segundo sobre a nossa postura e o nosso
presidente da Soka Gakkai]: “Todas as comportamento no passado, podemos
nossas ações nas existências passadas usar nossas tristezas e percalços como um
estão contidas na sua totalidade em nossa trampolim para o nosso desenvolvimento.
vida... Embora digamos ‘O que fiz no
1. WATSON, Burton (tradução de). The Lotus Sutra [Sutra do Lótus]. Nova York: Columbia
passado é irrelevante; eu nasci como um
University Press, 1993. p. 251.
quadro em branco’, não podemos escapar 2. KELLER, Helen. Midstream: My Later Life [Midstream: Anos Posteriores]. Nova York:

do nosso passado com tanta facilidade. Doubleday, Doran Company, Inc., 1929. p. 49.

‘Por que nasci pobre?’; ‘Por que nasci tolo?’; 3. KELLER, Helen. The History of My Life [A História da Minha Vida] Nova York: Doubleday

Company, Inc., 1954. p. 254.

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4. Toda Josei Zenshu [Coletânea de Obras de Josei Toda]. Tóquio: Seikyo Shimbunsha, v.

5, p. 412, 1983.

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