Você está na página 1de 13

DANÇAR E NÃO VER1 –

Se a consciência pode viajar no interior do corpo, é com o fim de


construir um mapa desse espaço interno. Não como um espelho que
reflete uma paisagem, mas como uma topografia dos trajetos e dos
lugares da energia. Só esse mapa permite ao bailarino orientar os
seus movimentos sem ter de os vigiar do exterior (como na
aprendizagem do ballet, diante do espelho), como eles se
orientassem por si próprios. Assim, o bailarino tem necessidade de
ter mais do que uma consciência exterior do seu corpo; tem dele
uma consciência “do interior”.
JOSÉ GIL

Seria possível pensar em um espaço interno do corpo, tal qual nos sugere José Gil?
Podemos pensá-lo como um espaço ficcional? Existe uma fronteira entre o
movimento conscientemente percebido e o movimento imaginado? De que modo
tornar possível a criação de uma “dança de dentro”, oculta e que percorre trajetos
imaginários, tal qual uma viagem dentro do próprio corpo? De que modo produzir
uma dança em que a visão não seja mais o guia, tendo a escuta como símbolo, dadas
as suas características de receptividade e direcionalidade irrestritas? Podemos pensar
em uma escuta corporal?

Mais do que tentar responder a essas perguntas acendendo luzes sobre o que está
oculto, o desejo aqui é o de investigar processos que levam à formulação de uma
imagem interna do movimento. A busca pressupõe, necessariamente, a possibilidade
de um movimento dançado que prescinda da autorização ou validação de um olhar de
fora, “como na aprendizagem do ballet, diante do espelho” (GIL, 2001, pg. 132). O
interesse ao propor essa reflexão é o de trazer motivações para que o movimento
dançado seja pensado sem a necessidade de identificação com uma imagem externa,
que lhe sirva de modelo. Trata-se de pensar uma dança que não esteja subordinada ao
olhar externo como desencadeador da produção do movimento mas “traçando um
caminho de dentro para fora2, em sintonia com o de fora para dentro e com o de
dentro para dentro, criando, assim, uma rede de percepções”. (MILLER, 2007, pg.18).
Neste caso, o sentido da visão é colocado em questão para que os outros sentidos

1
Esse artigo é parte da minha dissertação de mestrado intitulada “O Corpo Imginado: em busca de uma
cartografia do espaço interior”. A pesquisa que se deu na interface da dança com as artes visuais foi
desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (PPGAV/EBA/UFRJ) entre 2012 e
2014 sob a orientação de Angela Leite Lopes.
2
No corpo, tal como formulado nesse texto, já não se poderia falar propriamente de um dentro e de um
fora dicotômicos, senão como um paradoxo.
corporais sejam iluminados no movimento dançado, o que dispara uma mudança de
paradigma do corpo, como no trabalho inaugurado por Angel, Klauss e Rainer Vianna
– Escola Vianna3. No legado dos “Vianna” é difundido o conceito de consciência pelo
movimento de forma ímpar com o estudo do corpo que parte da sua percepção
interna, das estruturas que o integram e irradia na direção de sua inserção no mundo
que o cerca. O corpo não é mais moldado mas moldante, com o movimento
emancipando-se de sua própria origem. Pode-se dizer que esse processo de construção
do movimento no corpo pela perspectiva metodológica dos “Vianna” contêm
múltiplas dimensões, linhas elásticas em uma espacialidade que não é dada por uma
arquitetura rígida, análogo ao que se refere o filósofo francês Jules Michelet quando
descreve a construção do ninho do pássaro:
A casa construída pelo corpo, para o corpo, assumindo sua forma
pelo interior, como uma concha, em uma intimidade que trabalha
fisicamente. É o interior do ninho que impõe a sua forma. No
interior, o instrumento que impõe ao ninho a forma circular não é
senão o corpo do pássaro. (MICHELET apud BACHELARD,
2008, p.113)
Do mesmo modo, conforme proposto por Jussara Miller, corpo e espaço
constituem-se nas três instâncias em sua relação entre o dentro e o fora. Em uma
tentativa de fabular o espaço interno do corpo por trajetos nunca trilhados, sugiro uma
outra modalidade do olhar: um olhar para dentro. A partir desses outros modos do
olhar, “olhar com o cotovelo”, “olhar com as costas”, “olhar com o pé”, podemos
pensar que o corpo registra, ou melhor, memoriza o movimento sem,
necessariamente, precisar vê-lo. Para tratar esse olhar, que se expande para o corpo
inteiro, me apoio, portanto, nas instâncias referidas por Miller relacionando-as à
noções da educação somática e da dança: dança de dentro para dentro com a
propriocepção; de dentro para fora com a imaginação do movimento; de fora para
dentro, com o conceito de olhar cego.

De dentro para dentro – A propriocepção

O significado habitual do termo propriocepção, é o conhecimento


que temos dos movimentos de nosso próprio corpo no contexto. Eu
o traduzo por "sentimento de si" pois sem essa sensibilidade
particular os outros sentidos não poderiam funcionar em referência
a um si constante. Como para o trem que se põe em movimento em
3
Atualmente esse pensamento já é referido como Escola Vianna pela própria Angel, no prefácio do
livro “Qual é o corpo que dança” de Jussara Miller.
frente ao nosso, não conseguimos saber se é o contexto ou nós
mesmos o que se move.
HUBERT GODARD

Se estou de olhos fechados e percebo a tensão do meu ombro direito consigo


relaxá-lo, liberando a sua musculatura. Somos, portanto, capazes de localizar essa
tensão e em seguida dissolvê-la desprovidos da necessidade do olhar. Isso só é
possível porque construímos uma imagem corporal própria, formulada à partir de uma
percepção do que é interno. O que define inicialmente a percepção interna do corpo é
a propriocepção. A propriocepção é o termo utilizado por Charles Sherrington para
definir a capacidade de reconhecer a localização espacial do corpo, a sua posição e a
sua orientação, a força exercida pelos músculos e a posição de cada parte do corpo em
relação às demais, sem o auxílio da visão. O estudo que parte da auto observação, da
disponibilidade de “escutar” e perceber o próprio corpo proprioceptivamente, define
inicialmente o que chamamos de consciência corporal4. Esse trabalho cria no
bailarino um estado de vigilância constante sem que haja uma preocupação com a
forma externa do que ele vai produzir. José Gil afirma que “A consciência de si deve
deixar de ver o corpo do exterior, e tornar-se uma consciência do corpo” (GIL, 2001,
p. 159). Klauss Vianna, refletindo acerca da forma do movimento no corpo do
dançarino, acrescenta:
Observei, de início, a posição do dedo anular nas pinturas
renascentistas e fiquei fascinado com a relação entre esses
desenhos e a postura exigida para as mãos no balé: em ambos os
casos, a certeza de que o movimento parte de dentro e não pode,
jamais, ser apenas forma. Vejamos: quando você aperta o dedo
anular para dentro sente todo o braço reagir e é por isso que a mão
tem essa postura no bale clássico. O problema é que professores e
bailarinos repetem apenas a forma e isso não leva a nada. O
processo deveria ser o oposto: a forma surgir como consequência
do trabalho. (VIANNA apud NEVES, 2008, pg. 49)

A consciência do corpo visa, através da percepção do alinhamento e


direcionamento ósseo, das articulações pensadas como dobraduras, dos espaços
articulares, suas mobilidades e alavancas, o acionamento das musculaturas necessárias

4
O conceito de consciência corporal é utilizado por diversas técnicas de educação somática como:
Feldenkrais, Eutonia, Ginástica Holística, entre outras. Klauss e Angel Vianna criaram e
desenvolveram os conceitos de consciência e expressão corporal de forma pioneira no Brasil, em
ambientes pedagógicos com os quais tive o privilégio de conviver nos últimos 20 anos. Essa forma de
pensar o corpo, tem reverberado em diversos campos relacionados à corporeidade. Sua abrangência
inclui desde pesquisas artísticas e teóricas no teatro e na dança, até trabalhos de natureza somática, no
âmbito da terapia e da recuperação motora.
para um determinado gesto otimizando, assim, o movimento corporal. Na perspectiva
da consciência corporal desenvolvida pela Escola Vianna, o corpo fabrica o
movimento de uma maneira em que exterior e interior se fundem e é isso que Klauss
Vianna atribui o equilíbrio do corpo em harmonia com o espaço que o cerca:
Existe um espaço interior, emocional, mental, psicológico, e um
espaço exterior, que é onde se manifesta a dinâmica do corpo. A
sensação de equilíbrio corresponde ao momento ou aos momentos
em que descobrimos uma maneira harmônica de utilização do
espaço, em que equilíbrio interior e exterior não se diferenciam
mais. (VIANNA, 1990, p.106)

Desde o nascimento, incluído o momento do parto, o bebê busca a forma mais


direta e energeticamente adequada de se mover. Desse modo, muitos métodos
corporais difundidos na educação somática utilizam-se do movimento do bebê e da
criança para a elaboração de seus fundamentos básicos. No crescimento e
desenvolvimento motor, diminuímos consideravelmente a forma otimizada de nos
movermos, em função de medos, traumas, vícios posturais e de outros aspectos
opressivos da vida cotidiana. Na vida adulta precisamos, então, reaprender esses
modos, de tal maneira a podermos nos reequilibrar energeticamente, com mobilidades
inerentes ao nosso próprio corpo. É exatamente nesse lugar, da ativação da
consciência do movimento, que o corpo aciona mecanismos proprioceptivos de auto
escuta e cria uma relação permeável com a escuta externa, do corpo em conexão com
o espaço supostamente exterior, formando uma rede de percepções, sem distinção
entre o externo e o interno. Como diz Klauss: “a forma, repito, é consequência: são
espaços internos que devem criar o movimento de cada um” (VIANNA apud NEVES,
2008, pg. 50).
Ação proprioceptiva tem menor parentesco com a visão do que com a escuta por
suas características de receptividade e direcionalidade irrestritas. Escuta corporal se
aproxima, também, do sentido do tato. O ato de escutar pode ser pensado como uma
espécie de tato, na medida em que a pele registra e se flexiona pela ação de uma
pressão, da mesma forma que o som do mundo pressiona a delicada película do
tímpano. O tato da escuta corporal nutre-se do deslize da pele sobre ossos, músculos,
ligamentos e órgãos e, simultaneamente, do espaço ao redor do corpo.
É importante lembrar que o sentido pelo qual recebemos as
sensações de contato e de pressão não se reduzem às mãos, mas sim
ao corpo todo, despertando a pele do corpo todo – distinguindo
também o contato dos diferentes tecidos da roupa, a pressão dos
elásticos, e, assim a atenção se amplia para o corpo inteiro com
sua tridimensionalidade. A pele ganha vida. (MILLER, 2007, pg.
60)
Apreender o movimento no corpo não parece ser atributo do sentido da visão,
apesar de termos, instintivamente, a necessidade de ver para, só então, confiarmos
nesta compreensão. O trabalho de conscientização do movimento pressupõe que a
investigação do corpo não inicia-se necessariamente de olhos abertos, o que indica
que o entendimento do corpo passa por uma percepção mais abrangente. Tanto na
dança quanto nas disciplinas da educação somática é utilizado o conceito de
propriocepção, referido acima, como aprofundamento das potencialidades e das
limitações do corpo, que podem subsidiar não só o movimento dançado como também
os processos de reabilitação motora. Em uma perspectiva proprioceptiva, a supressão
do sentido da visão aguça a percepção pelos demais sentidos do corpo, contribuindo
para uma assimilação mais profunda do movimento. O simples ato de deitar no chão
de forma consciente e relaxada, perceber os apoios5, os pontos do corpo que tocam o
solo, também o esqueleto e suas dobraduras, os músculos e suas tensões já nos
possibilita o trânsito por espaços do corpo normalmente não visitados. Se
pressionamos a cabeça contra o chão por alguns segundos e em seguida, relaxamos,
depois pressionamos o meio das costas no mesmo procedimento, depois o sacro,
depois os cotovelos e, assim por diante, percebemos, após algum tempo, a diferença
em nossos apoios. Nesse momento a percepção de cada parte estará mais aguçada e
assim será possível localizá-las, uma a uma, através de sua “visualização interna”. O
refinamento da percepção interna favorece um maior controle6 do próprio tônus
muscular. O tônus muscular é o estado de tensão elástica de um músculo em repouso
que possibilita o corpo mantêr-se em pé na posição vertical, independente do
movimento que se faça. Pode-se ter maior ou menor tônus em cada músculo do corpo.
A Eutonia é uma técnica de educação somática criada por Gerda Alexander que se
aprofunda na questão do equilíbrio do tônus muscular, na equalização harmônica das
diversas tensões que existem no corpo. Para Gerda: “a ação sobre o tônus se obtém, a
princípio, dirigindo a atenção para determinadas partes do corpo, para seu volume,
seu espaço interior, para a pele, os tecidos, os órgãos, o esqueleto e o espaço interior
dos ossos.” (ALEXANDER, 1983, pg. 14).

5
Um dos conceitos da consciência pelo movimento tal como formulada pela Escola Vianna.
6
Cabe ressaltar que a palavra controle na Eutonia está associada a um grau de consciência da força e
do relaxamento do músculo.
Angel Vianna também se utiliza do conceito de equilíbrio do tônus muscular em
seu trabalho quando propõe “baixar o grau de tensão até o ponto ótimo de equilíbrio
do tônus, para depois começar a movimentação” (RAMOS, 2007, pg. 27). Angel
costuma iniciar suas aulas sugerindo que seus alunos deitem no chão, favorecendo
assim, a soltura das tensões que se cristalizam nos músculos, muitas vezes
ocasionadas por estresse do dia-a-dia ou por excesso de atividades de certos
grupamentos musculares. Através de objetos como bolinha, bambu e espuma, Angel
propõe o contato das partes do corpo nos materiais a fim de dissolver tensões. Ao
colocar um toco de bambu em um dos lados das costas, precisamente entre a escápula
e a coluna, por alguns minutos, na tentativa de entrega do peso do corpo ao objeto, a
musculatura naturalmente relaxa. Desse modo, o músculo das costas se reequilibra e o
corpo se equaliza em sua conexão com o espaço. A relação da pele com o objeto ou
com o solo é favorecida em um processo de relaxamento do músculo que podemos
atribuir à expansão do nível perceptivo que o corpo pode alcançar. Nesse sentido, o
equilíbrio do tônus ressalta a percepção dos volumes internos e externos à pele do
corpo provocando uma maior sensibilização de toda arquitetura móvel, que é o
próprio esqueleto e suas articulações. A ossatura, nesse caso, não é considerada
matéria inanimada, inerte, subordinada à ação protagonista da musculatura mas
instância do pensamento geradora do movimento.
Os modos como o pensamento de Angel opera sobre o corpo são abrangentes no
que dizem respeito à sensibilização do corpo em uma busca explorativa da
consciência do movimento e do seu devir único, acolhendo os seus limites e suas
virtudes sem distinção, aliadas à plena receptividade e porosidade ao mundo que o
cerca. Essa investigação se expande para além do corpo orgânico, em linhas de força
que o atravessam e se irradiam do seu movimento. Klauss Vianna ressalta que “o
esqueleto é um triunfo mecânico da natureza: as linhas de força atravessam os ossos e
a sensação está neles. A máquina viva anda.” (VIANNA, 1990, pg 95) Klauss afirma
assim a potência do esqueleto como uma arquitetura móvel e pensante. A partir da
emergência do movimento, dos acionamentos invisíveis que o preparam, surge uma
dança onde a forma externa do movimento é consequência de uma espacialização do
interno, o corpo já não é mais suporte da dança mas ele a faz passar.
Como adentrar o espaço interno do corpo dançando? A pergunta sugere um
paradoxo próprio dessa investigação do corpo: tratar de uma permeabilidade entre o
espaço interno e externo no momento da dança. Adentrar o espaço interior no instante
da dança aponta, portanto, para além dos limites perceptivos, em uma jornada pelo
corpo imaginado, flanando em seus trajetos internos, suas paisagens, topografias, por
um “espaço de dentro”, sem latitude nem longitude, ultrapassando a fronteira do que
se pode perceber na direção do que se pode imaginar.

De dentro para fora – da propriocepção à imaginação


Se partirmos da consciência corporal como uma investigação de natureza
proprioceptiva que se direciona ao mapeamento e à exploração do território interno do
corpo, o cruzamento da fronteira do que é conscientemente percebido pode nos levar
rumo ao território da imaginação do movimento. Refletindo sobre a gênese da
imaginação Vilém Flusser, filósofo tcheco-brasileiro refere-se ao “gesto inaugural da
criação de imagens”. Como exemplo ele se utiliza das imagens de cavalo desenhadas
na gruta de Peche Merle, ressaltando o gesto de distanciamento, abstrato, na
configuração da imagem do cavalo, em um deslocamento do exterior para o interior:
Para fazer a imagem de um cavalo é preciso, de algum modo, que
se volte ao mesmo tempo para si mesmo.(...). Esse raro não
lugar7(Un-ort) em que se pisa, ali onde são criadas as imagens, na
tradição foi chamado de “subjetividade” ou “existência”. Em
outras palavras: “imaginação” é a singular capacidade de
distanciamento do mundo dos objetos e de recuo para a
subjetividade própria, é a capacidade de se tornar sujeito de um
mundo objetivo. Ou ainda, é a singular capacidade de ex-sistir em
vez de in-sistir. Esse gesto começa, digamos, com um movimento de
abstração, de afastamento-de-si, de recuo. (FLUSSER, 2007, p.
163)
Trata-se de uma busca para além do que se instaura no corpo físico,
proprioceptivo. No lugar de uma posição espacial com suas coordenadas geográficas,
um não lugar, como se refere Flusser. No lugar da ação, território da consciência e da
percepção presente, a imaginação, onde a consciência, chegando ao seu limite,
extravasa para o campo da “ação imaginante”, proposta por Gaston Bachelard em O
ar e os sonhos:
A imaginação é antes a faculdade de deformar as imagens
fornecidas pela percepção, e sobretudo a faculdade de libertar- nos
das imagens primeiras, de mudar as imagens. Se não há mudança
de imagens, união inesperada das imagens, não há imaginação,
não há ação imaginante. (BACHELARD,1990, p. 1)

O imaginário como instância de um caminho de exploração que se desdobra

7
Grifo meu.
sempre em novos modos de construção, (des)construção e (re)construção do
movimento. A imaginação como instância deflagradora da mobilidade do corpo e da
sua perspectiva do espaço. Uma mobilidade incessante das imagens própria da ação
imaginante: “uma imagem estável e acabada corta as asas à imaginação. Faz-nos
decair dessa imaginação sonhadora que não se deixa aprisionar em nenhuma imagem
e que por isso mesmo poderíamos chamar de imaginação sem imagens8” (Idem, p. 2)
ou ainda, “uma imaginação que encontra seu gozo, sua vida ‘apagando as imagens’ ”
(Idem, pg. 171). Do não aprisionamento das imagens para um não aprisionamento do
gesto. Esse movimento sem direção pré-definida é também o movimento do
pensamento, concomitante ao próprio movimento dançado. Os trajetos de um espaço
imaginado que extravasam para o espaço circundante, exterior, traçam portanto, uma
escrita coreográfica de natureza cartográfica. O espaço exterior e o interior
extravasam-se e dispersam-se um no outro, na iminência de se tornarem um só. No
momento em que o corpo dança, esse espaço imaginal extravasa-se pelo
irrompimento do movimento, inventando o espaço, efêmero, borrando qualquer
fronteira que possa separar interior e exterior.
É o espaço que é o reino da atividade real do bailarino, que lhe
pertence porque ele próprio o cria. Não é o espaço tangível,
limitado e limitador da realidade concreta, mas o espaço
imaginário, irracional da dimensão dançada, esse espaço que
parece apagar as fronteiras da corporeidade e pode transformar o
gesto que irrompe numa imagem de um aparente infinito, perdendo-
se numa completa identidade como raios luminosos, regatos, como
a própria respiração. (WIGMAN apud GIL, 2001, pg. 15)

O pensamento de Mary Wigman9 aponta para a criação de um espaço virtual


construído no momento em que emerge o gesto dançado. Uma dança que nasce na
estrutura do corpo, flui em seus trajetos internos, virtuais, cria espaços na medida em
que flana pelo ar das articulações, pelos trilhos dos ossos, pelo fio imaginário que
costura uma unidade do corpo com outra, ainda que não sejam partes contíguas, que
escorre e ocupa o vazio dos poros, se irradia no solo e no ar em uma rede de linhas
que cruzam o corpo e o espaço. Em decorrência desse fluxo e refluxo entre imaginário
e movimento, emerge o movimento dançado em um trânsito entre o gesto percebido
proprioceptivamente e o gesto imaginado, “irracional” (Idem). Diferentemente da
“imaginação sonhadora” de Bachelard, o papel da imaginação, seu enlace com o gesto
8
Grifo meu.
9
Bailarina e coreógrafa alemã nascida em 1886, pioneira da dança expressionista, considerada uma das
figuras mais importantes da Dança Moderna.
dançado se aproxima mais do que Mary Wigman refere-se como “espaço imaginário,
irracional da dimensão dançada” (Idem). Como desdobramento desse espaço
imaginário proposto por Wigman, aproximo o pensamento do coreógrafo americano
Steve Paxton10: “dançar da maneira mais inconscientemente consciente possível”
(PAXTON apud GIL, 2001, pg. 158). Paxton propõe a ideia da consciência corporal
do bailarino como uma “consciência inconsciente”, que se dá em um movimento
paradoxal “a fim de deixar o mais livres e espontâneos possíveis os movimentos
corporais, o que uma consciência unicamente ‘consciente’ e separada não poderia
fazer” (Idem, pg. 132). O bailarino é tomado pelo fluxo do movimento e torna-o cada
vez mais consciente num “duplo movimento paradoxal da consciência” deixando-a
invadir pelo corpo. O fluxo do pensamento se mistura ao fluxo do movimento: o
pensamento do movimento se torna movimento do pensamento, como reflete José Gil
sobre o movimento da cambalhota:
A visão da cambalhota do ponto de vista do interior do corpo, quer
dizer da sua profundidade, é o “vivido” do espaço do corpo. Este
está para além do vivido da consciência (de um objeto) e, como
vivido de um corpo já não é sentido, mas está nas fronteiras entre o
sentido e o pensado. (...) Enquanto vivida, a cambalhota é todo o
corpo em movimento-tornado-pensamento. (Idem, pg. 164)

Em Angel Vianna - a pedagoga do corpo, Enamar Ramos também alude aos


entrelaçamentos entre pensamento e movimento aplicados à cena: “Todo o
pensamento tem movimento, afirma Angel, e este repercute no corpo diretamente. A
observação estritamente objetiva das sensações do corpo é o grande estímulo
desencadeado por Angel” (RAMOS, 2007, pg. 41).
Engendrar corpo e pensamento, movimento e imaginação de forma porosa, é
decorrência do borramento das fronteiras que por muito tempo delimitaram os
territórios de quem elaborava (escrevia) os passos de uma dança e de quem a
executava. Os limites entre o coreógrafo, como aquele que escreve uma partitura, e o
dançarino, como aquele que obedece e reproduz uma escrita prévia em movimentos
no espaço, são problematizados pelo embaralhamento destas funções. As delimitações
que antes eram nítidas em ambientes como do balé clássico e da dança moderna vão
sendo, efetivamente, dissolvidos a partir da dança pós-moderna e contemporânea. A
nova perspectiva, que implica em um modo de operação bastante distinto do modelo

10
Bailarino e coreógrafo experimental, nascido em 1939 no Arizona, foi criador da técnica de Contato
Improvisação (Contact Improvisation).
clássico, possibilita ao bailarino não só a criação do seu gesto, muitas vezes associado
à sua própria história pessoal11, como também do esgarçamento da escrita
coreográfica e dos vazios que dela emergem. O dançarino torna-se produtor e não
mais reprodutor do movimento, “colorindo”, “texturizando” e redimensionando o
gesto dançado no instante preciso em que ele o coloca no espaço, mesmo que se tenha
uma escrita prévia delineada.

De fora para dentro – o olhar cego

Pela primeira vez descobri uma realidade nova não em mim, mas
no mundo. Encontrei um “Caminhando”, um itinerário interior
fora de mim. Percebo a totalidade do mundo como um ritmo único,
global, que se estende de Mozart até os gestos do futebol na praia.
Lygia Clark

Hubert Godard, terapeuta corporal que trabalha na análise do movimento


aprofundada no pensamento e na percepção do gesto humano, se utiliza do conceito
de olhar cego12 para traçar um paralelo com a obra de Lygia Clark, especialmente no
momento em que ela desloca o foco da sua investigação da pintura e da escultura para
o corpo. Em uma entrevista feita por Suely Rolnik, Godard discorre acerca do
“Caminhando” de Clark e do olhar cego para tratar de um “olhar que está além do
olhar objetivo” (GODARD, 2006, pg. 1).
Essa abordagem pode auxiliar em uma prática corporal que não necessite
estritamente do olhar para o manejo do corpo no espaço. Godard define o olhar cego
um olhar “subjetivo”, sub-cortical. “É um olhar através do qual a pessoa se funde no
contexto, não há mais um sujeito e um objeto, mas uma participação no contexto
geral. Então esse olhar não é interpretado, não é carregado de sentido.(...) Um olhar
que não está ligado ao tempo” (Idem). O exemplo de alguém que, de olhos fechados,
percebe a presença do outro ou de um objeto perto e consegue desviar deste ou
daquele, ao mesmo tempo em que se movimenta no espaço, mostra como o corpo tem
a capacidade de se localizar no espaço de outras maneiras, por outros sentidos. Essa
habilidade é também desenvolvida em exercícios de consciência corporal e se

11
Como foi o caso da coreógrafa alemã Pina Bausch que, no inicio de seus processos de criação,
costumava fazer perguntas aos seus dançarinos para a construção de suas “danças”. Pina influenciou
gerações e gerações de coreógrafos na dança contemporânea desde a década de 80 até os dias atuais.
12
Nome dado pela neurofisiologia para pessoas que em decorrência de um acidente haviam perdido
uma parte do olhar objetivo.
aproxima do exemplo trazido por Godard a respeito de pacientes que sofreram a perda
da visão objetiva: “Então é surpreendente porque se colocarmos uma cadeira diante
deles e lhes pedirmos para descrever o objeto, nomeá-lo, eles dirão que não vêem
nada. E se pedirmos que andem, irão evitar a cadeira”. (GODARD, 2006, pg. 1).
Godard afirma o movimento do trabalho de Lygia rumo a um olhar cego “como uma
tentativa de modificar essa posição do olhar, de refazer um mergulho num olhar
subjetivo onde há uma perda das noções gravitacionais e outras, permitindo atingir
um olhar talvez mais primeiro ou menos manchado de linguagem” (Idem). Essa
aproximação se dá pelo aprofundamento que o trabalho de Lygia Clark teve em suas
proposições sensoriais, o que implica na fusão do indivíduo no coletivo, ou seja, em
uma busca pela dissolução entre obra e espectador, entre sujeito e objeto.
O espaço arquitetural me transforma. Pintar um quadro ou fazer
uma escultura é tão diferente de viver em termos de arquitetura.
Agora, não estou mais só. Sou aspirada pelos outros. Percepção tão
impressionante que me sinto arrancada de minhas raízes. Instável
no espaço, parece que estou me desagregando. Viver a percepção,
ser a percepção... (CLARK, 1965)

O olhar cego se dá como um olhar tátil, que pode ser desenvolvido no corpo do
bailarino através de exercícios e práticas que privilegiam a conscientização do
movimento. Esse trabalho propõe outras maneiras de se perceber, tanto em sua
relação com o outro quanto com o espaço. Quando o corpo utiliza-se do peso
gravitacional e da entrega dos seus apoios em sua interligação com o outro e com o
espaço, são criadas relações vetoriais pelas linhas de força que surgem entre os corpos
e entre estes e o espaço, e não por relações psicologizadas. Os espaços do corpo,
muitas vezes ocultos para a percepção, vão sendo acessados atenuando a
preponderância do sentido da visão e aguçando os demais. Existem inúmeras técnicas
corporais que partem dessa abordagem para o desenvolvimento de suas práticas,
como é o caso do Contato Improvisação, criado por Steve Paxton na década de 70. A
técnica de Contato evolui no corpo a habilidade de tratar a pele, o contato das peles,
de maneira a criar uma maior maleabilidade nos apoios de um corpo em relação ao
outro, como em um mata-borrão. O corpo do outro torna-se uma continuidade do seu
próprio e a “intimidade entre peles”, que também pode se dar através do contato da
pele do corpo com a “pele do chão”, possibilita uma conexão ligada ao tato e não ao
“olho”. O olhar torna-se menos importante e a relação dos corpos, puramente tátil,
gera todo o movimento. Godard utiliza-se da técnica de Contato Improvisação para
falar da potência do olhar cego:
Na prática de Contato Improvisação surge uma espécie de
vigilância incrível, de clareza geográfica. Alguém pode saltar atrás
de nós, ou podemos ser trombados por alguém, e isso se torna
extremamente perigoso se estivermos na lentidão do olhar
objetivante. E o fato de escapar do olhar objetivo - e se faz todo um
trabalho neste sentido - induz a fulgurância do espaço. Isso permite
fazer ações extremamente perigosas, sem que haja risco. O ímpeto
da imagem do corpo e dos fantasmas diminui, o espaço é percebido
em 360°; é o olhar periférico, panorâmico. Portanto, há sempre
perigo, mas o perigo sou eu, ou seja, voltar para a história. E se
fico nessa vigilância pura que é o olhar cego e o tato cego, há uma
maneira de reencontrar o coletivo. (Idem, pg 3)

Essa modalidade do olhar permite um enlace do corpo com o que lhe toca, ou
rodeia, que ultrapassa a noção de percepção e adentra o lugar do que Godard chama
de “intra-sensorial”13. O olhar cego aciona, desse modo, uma forma de relação do
corpo com o espaço que rompe suas fronteiras, a perspectiva é ampliada ao ponto em
que o corpo pode sentir-se desagregando. “Viver a percepção, ser a percepção...”
(CLARK, 1965).
O bailarino é capaz de ter a medida do espaço em seu interior, por uma visulização
interna do movimento. Em geral, entende o espaço que o circunda por sua própria
estrutura corporal, prescindindo do olhar para cair, girar, saltar. Os modos recorrentes
no aprendizado em geral demonstram a preponderância da visão sobre os outros
sentidos corporais quando se trata da apreensão do “novo”. Ao não ter mais a visão
como guia, o corpo busca formas de abrir-se e virar-se ao avesso na tentativa de
revelar o seu infinito espaço interior, criando assim, paradoxalmente, a possibilidade
de um diálogo com o que o cerca.

Referências Bibliográficas:
ALEXANDER, Gerda. Eutonia: um caminho para a percepção corporal. Trad. José
Luis Mora Fuentes. São Paulo: Martins Fontes, 1983.
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Tradução de António de Pádua Danesi.

13
Tal como apresentado por Hubert Godard na entrevista “O olhar cego”, o intra-sensorial é a
capacidade de ir além da percepção.
São Paulo: Martins Fontes, 2008.
___________________. O Ar e os sonhos, Ensaios sobre a imaginação do
movimento. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
FLUSSER, Vilém. O mundo codificado por uma filosofia do design e da
comunicação. Trad. Raquel Abi-Sâmara. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
GIL, José. Movimento total: o corpo e a dança. Tradução: Miguel Serras Pereira.
Relógio D’Água Editores, 2001.
GODARD, Hubert. Gesto e percepção In: PEREIRA, R. e SOTER, S. (orgs.) Lições
de dança 2, Rio de Janeiro: UniverCidade, 2000. _______________. Olhar cego. In:
S. Rolnik & C. Diserens (Orgs.). Catálogo da exposição Lygia Clark: da obra ao
acontecimento. Somos o molde. A você cabe o sopro. São Paulo: Pinacoteca de São
Paulo / Musée des Beaux Arts de Nantes, 2006.
MILLER, Jussara Correa. A escuta do corpo: abordagem da sistematização da técnica
Klauss Vianna. Campinas, SP, 2005.
NEVES, Neide. Klauss Vianna: estudos para uma dramaturgia corporal. São Paulo:
Cortez, 2008.

RAMOS, Enamar. Angel Vianna: a pedagoga do corpo. Summus: São Paulo, 2007

VIANNA, Klauss; CARVALHO, Marco Antonio de. A dança. São Paulo: Siciliano,
1990.

Você também pode gostar