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Seria possível pensar em um espaço interno do corpo, tal qual nos sugere José Gil?
Podemos pensá-lo como um espaço ficcional? Existe uma fronteira entre o
movimento conscientemente percebido e o movimento imaginado? De que modo
tornar possível a criação de uma “dança de dentro”, oculta e que percorre trajetos
imaginários, tal qual uma viagem dentro do próprio corpo? De que modo produzir
uma dança em que a visão não seja mais o guia, tendo a escuta como símbolo, dadas
as suas características de receptividade e direcionalidade irrestritas? Podemos pensar
em uma escuta corporal?
Mais do que tentar responder a essas perguntas acendendo luzes sobre o que está
oculto, o desejo aqui é o de investigar processos que levam à formulação de uma
imagem interna do movimento. A busca pressupõe, necessariamente, a possibilidade
de um movimento dançado que prescinda da autorização ou validação de um olhar de
fora, “como na aprendizagem do ballet, diante do espelho” (GIL, 2001, pg. 132). O
interesse ao propor essa reflexão é o de trazer motivações para que o movimento
dançado seja pensado sem a necessidade de identificação com uma imagem externa,
que lhe sirva de modelo. Trata-se de pensar uma dança que não esteja subordinada ao
olhar externo como desencadeador da produção do movimento mas “traçando um
caminho de dentro para fora2, em sintonia com o de fora para dentro e com o de
dentro para dentro, criando, assim, uma rede de percepções”. (MILLER, 2007, pg.18).
Neste caso, o sentido da visão é colocado em questão para que os outros sentidos
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Esse artigo é parte da minha dissertação de mestrado intitulada “O Corpo Imginado: em busca de uma
cartografia do espaço interior”. A pesquisa que se deu na interface da dança com as artes visuais foi
desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (PPGAV/EBA/UFRJ) entre 2012 e
2014 sob a orientação de Angela Leite Lopes.
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No corpo, tal como formulado nesse texto, já não se poderia falar propriamente de um dentro e de um
fora dicotômicos, senão como um paradoxo.
corporais sejam iluminados no movimento dançado, o que dispara uma mudança de
paradigma do corpo, como no trabalho inaugurado por Angel, Klauss e Rainer Vianna
– Escola Vianna3. No legado dos “Vianna” é difundido o conceito de consciência pelo
movimento de forma ímpar com o estudo do corpo que parte da sua percepção
interna, das estruturas que o integram e irradia na direção de sua inserção no mundo
que o cerca. O corpo não é mais moldado mas moldante, com o movimento
emancipando-se de sua própria origem. Pode-se dizer que esse processo de construção
do movimento no corpo pela perspectiva metodológica dos “Vianna” contêm
múltiplas dimensões, linhas elásticas em uma espacialidade que não é dada por uma
arquitetura rígida, análogo ao que se refere o filósofo francês Jules Michelet quando
descreve a construção do ninho do pássaro:
A casa construída pelo corpo, para o corpo, assumindo sua forma
pelo interior, como uma concha, em uma intimidade que trabalha
fisicamente. É o interior do ninho que impõe a sua forma. No
interior, o instrumento que impõe ao ninho a forma circular não é
senão o corpo do pássaro. (MICHELET apud BACHELARD,
2008, p.113)
Do mesmo modo, conforme proposto por Jussara Miller, corpo e espaço
constituem-se nas três instâncias em sua relação entre o dentro e o fora. Em uma
tentativa de fabular o espaço interno do corpo por trajetos nunca trilhados, sugiro uma
outra modalidade do olhar: um olhar para dentro. A partir desses outros modos do
olhar, “olhar com o cotovelo”, “olhar com as costas”, “olhar com o pé”, podemos
pensar que o corpo registra, ou melhor, memoriza o movimento sem,
necessariamente, precisar vê-lo. Para tratar esse olhar, que se expande para o corpo
inteiro, me apoio, portanto, nas instâncias referidas por Miller relacionando-as à
noções da educação somática e da dança: dança de dentro para dentro com a
propriocepção; de dentro para fora com a imaginação do movimento; de fora para
dentro, com o conceito de olhar cego.
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O conceito de consciência corporal é utilizado por diversas técnicas de educação somática como:
Feldenkrais, Eutonia, Ginástica Holística, entre outras. Klauss e Angel Vianna criaram e
desenvolveram os conceitos de consciência e expressão corporal de forma pioneira no Brasil, em
ambientes pedagógicos com os quais tive o privilégio de conviver nos últimos 20 anos. Essa forma de
pensar o corpo, tem reverberado em diversos campos relacionados à corporeidade. Sua abrangência
inclui desde pesquisas artísticas e teóricas no teatro e na dança, até trabalhos de natureza somática, no
âmbito da terapia e da recuperação motora.
para um determinado gesto otimizando, assim, o movimento corporal. Na perspectiva
da consciência corporal desenvolvida pela Escola Vianna, o corpo fabrica o
movimento de uma maneira em que exterior e interior se fundem e é isso que Klauss
Vianna atribui o equilíbrio do corpo em harmonia com o espaço que o cerca:
Existe um espaço interior, emocional, mental, psicológico, e um
espaço exterior, que é onde se manifesta a dinâmica do corpo. A
sensação de equilíbrio corresponde ao momento ou aos momentos
em que descobrimos uma maneira harmônica de utilização do
espaço, em que equilíbrio interior e exterior não se diferenciam
mais. (VIANNA, 1990, p.106)
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Um dos conceitos da consciência pelo movimento tal como formulada pela Escola Vianna.
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Cabe ressaltar que a palavra controle na Eutonia está associada a um grau de consciência da força e
do relaxamento do músculo.
Angel Vianna também se utiliza do conceito de equilíbrio do tônus muscular em
seu trabalho quando propõe “baixar o grau de tensão até o ponto ótimo de equilíbrio
do tônus, para depois começar a movimentação” (RAMOS, 2007, pg. 27). Angel
costuma iniciar suas aulas sugerindo que seus alunos deitem no chão, favorecendo
assim, a soltura das tensões que se cristalizam nos músculos, muitas vezes
ocasionadas por estresse do dia-a-dia ou por excesso de atividades de certos
grupamentos musculares. Através de objetos como bolinha, bambu e espuma, Angel
propõe o contato das partes do corpo nos materiais a fim de dissolver tensões. Ao
colocar um toco de bambu em um dos lados das costas, precisamente entre a escápula
e a coluna, por alguns minutos, na tentativa de entrega do peso do corpo ao objeto, a
musculatura naturalmente relaxa. Desse modo, o músculo das costas se reequilibra e o
corpo se equaliza em sua conexão com o espaço. A relação da pele com o objeto ou
com o solo é favorecida em um processo de relaxamento do músculo que podemos
atribuir à expansão do nível perceptivo que o corpo pode alcançar. Nesse sentido, o
equilíbrio do tônus ressalta a percepção dos volumes internos e externos à pele do
corpo provocando uma maior sensibilização de toda arquitetura móvel, que é o
próprio esqueleto e suas articulações. A ossatura, nesse caso, não é considerada
matéria inanimada, inerte, subordinada à ação protagonista da musculatura mas
instância do pensamento geradora do movimento.
Os modos como o pensamento de Angel opera sobre o corpo são abrangentes no
que dizem respeito à sensibilização do corpo em uma busca explorativa da
consciência do movimento e do seu devir único, acolhendo os seus limites e suas
virtudes sem distinção, aliadas à plena receptividade e porosidade ao mundo que o
cerca. Essa investigação se expande para além do corpo orgânico, em linhas de força
que o atravessam e se irradiam do seu movimento. Klauss Vianna ressalta que “o
esqueleto é um triunfo mecânico da natureza: as linhas de força atravessam os ossos e
a sensação está neles. A máquina viva anda.” (VIANNA, 1990, pg 95) Klauss afirma
assim a potência do esqueleto como uma arquitetura móvel e pensante. A partir da
emergência do movimento, dos acionamentos invisíveis que o preparam, surge uma
dança onde a forma externa do movimento é consequência de uma espacialização do
interno, o corpo já não é mais suporte da dança mas ele a faz passar.
Como adentrar o espaço interno do corpo dançando? A pergunta sugere um
paradoxo próprio dessa investigação do corpo: tratar de uma permeabilidade entre o
espaço interno e externo no momento da dança. Adentrar o espaço interior no instante
da dança aponta, portanto, para além dos limites perceptivos, em uma jornada pelo
corpo imaginado, flanando em seus trajetos internos, suas paisagens, topografias, por
um “espaço de dentro”, sem latitude nem longitude, ultrapassando a fronteira do que
se pode perceber na direção do que se pode imaginar.
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Grifo meu.
sempre em novos modos de construção, (des)construção e (re)construção do
movimento. A imaginação como instância deflagradora da mobilidade do corpo e da
sua perspectiva do espaço. Uma mobilidade incessante das imagens própria da ação
imaginante: “uma imagem estável e acabada corta as asas à imaginação. Faz-nos
decair dessa imaginação sonhadora que não se deixa aprisionar em nenhuma imagem
e que por isso mesmo poderíamos chamar de imaginação sem imagens8” (Idem, p. 2)
ou ainda, “uma imaginação que encontra seu gozo, sua vida ‘apagando as imagens’ ”
(Idem, pg. 171). Do não aprisionamento das imagens para um não aprisionamento do
gesto. Esse movimento sem direção pré-definida é também o movimento do
pensamento, concomitante ao próprio movimento dançado. Os trajetos de um espaço
imaginado que extravasam para o espaço circundante, exterior, traçam portanto, uma
escrita coreográfica de natureza cartográfica. O espaço exterior e o interior
extravasam-se e dispersam-se um no outro, na iminência de se tornarem um só. No
momento em que o corpo dança, esse espaço imaginal extravasa-se pelo
irrompimento do movimento, inventando o espaço, efêmero, borrando qualquer
fronteira que possa separar interior e exterior.
É o espaço que é o reino da atividade real do bailarino, que lhe
pertence porque ele próprio o cria. Não é o espaço tangível,
limitado e limitador da realidade concreta, mas o espaço
imaginário, irracional da dimensão dançada, esse espaço que
parece apagar as fronteiras da corporeidade e pode transformar o
gesto que irrompe numa imagem de um aparente infinito, perdendo-
se numa completa identidade como raios luminosos, regatos, como
a própria respiração. (WIGMAN apud GIL, 2001, pg. 15)
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Bailarino e coreógrafo experimental, nascido em 1939 no Arizona, foi criador da técnica de Contato
Improvisação (Contact Improvisation).
clássico, possibilita ao bailarino não só a criação do seu gesto, muitas vezes associado
à sua própria história pessoal11, como também do esgarçamento da escrita
coreográfica e dos vazios que dela emergem. O dançarino torna-se produtor e não
mais reprodutor do movimento, “colorindo”, “texturizando” e redimensionando o
gesto dançado no instante preciso em que ele o coloca no espaço, mesmo que se tenha
uma escrita prévia delineada.
Pela primeira vez descobri uma realidade nova não em mim, mas
no mundo. Encontrei um “Caminhando”, um itinerário interior
fora de mim. Percebo a totalidade do mundo como um ritmo único,
global, que se estende de Mozart até os gestos do futebol na praia.
Lygia Clark
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Como foi o caso da coreógrafa alemã Pina Bausch que, no inicio de seus processos de criação,
costumava fazer perguntas aos seus dançarinos para a construção de suas “danças”. Pina influenciou
gerações e gerações de coreógrafos na dança contemporânea desde a década de 80 até os dias atuais.
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Nome dado pela neurofisiologia para pessoas que em decorrência de um acidente haviam perdido
uma parte do olhar objetivo.
aproxima do exemplo trazido por Godard a respeito de pacientes que sofreram a perda
da visão objetiva: “Então é surpreendente porque se colocarmos uma cadeira diante
deles e lhes pedirmos para descrever o objeto, nomeá-lo, eles dirão que não vêem
nada. E se pedirmos que andem, irão evitar a cadeira”. (GODARD, 2006, pg. 1).
Godard afirma o movimento do trabalho de Lygia rumo a um olhar cego “como uma
tentativa de modificar essa posição do olhar, de refazer um mergulho num olhar
subjetivo onde há uma perda das noções gravitacionais e outras, permitindo atingir
um olhar talvez mais primeiro ou menos manchado de linguagem” (Idem). Essa
aproximação se dá pelo aprofundamento que o trabalho de Lygia Clark teve em suas
proposições sensoriais, o que implica na fusão do indivíduo no coletivo, ou seja, em
uma busca pela dissolução entre obra e espectador, entre sujeito e objeto.
O espaço arquitetural me transforma. Pintar um quadro ou fazer
uma escultura é tão diferente de viver em termos de arquitetura.
Agora, não estou mais só. Sou aspirada pelos outros. Percepção tão
impressionante que me sinto arrancada de minhas raízes. Instável
no espaço, parece que estou me desagregando. Viver a percepção,
ser a percepção... (CLARK, 1965)
O olhar cego se dá como um olhar tátil, que pode ser desenvolvido no corpo do
bailarino através de exercícios e práticas que privilegiam a conscientização do
movimento. Esse trabalho propõe outras maneiras de se perceber, tanto em sua
relação com o outro quanto com o espaço. Quando o corpo utiliza-se do peso
gravitacional e da entrega dos seus apoios em sua interligação com o outro e com o
espaço, são criadas relações vetoriais pelas linhas de força que surgem entre os corpos
e entre estes e o espaço, e não por relações psicologizadas. Os espaços do corpo,
muitas vezes ocultos para a percepção, vão sendo acessados atenuando a
preponderância do sentido da visão e aguçando os demais. Existem inúmeras técnicas
corporais que partem dessa abordagem para o desenvolvimento de suas práticas,
como é o caso do Contato Improvisação, criado por Steve Paxton na década de 70. A
técnica de Contato evolui no corpo a habilidade de tratar a pele, o contato das peles,
de maneira a criar uma maior maleabilidade nos apoios de um corpo em relação ao
outro, como em um mata-borrão. O corpo do outro torna-se uma continuidade do seu
próprio e a “intimidade entre peles”, que também pode se dar através do contato da
pele do corpo com a “pele do chão”, possibilita uma conexão ligada ao tato e não ao
“olho”. O olhar torna-se menos importante e a relação dos corpos, puramente tátil,
gera todo o movimento. Godard utiliza-se da técnica de Contato Improvisação para
falar da potência do olhar cego:
Na prática de Contato Improvisação surge uma espécie de
vigilância incrível, de clareza geográfica. Alguém pode saltar atrás
de nós, ou podemos ser trombados por alguém, e isso se torna
extremamente perigoso se estivermos na lentidão do olhar
objetivante. E o fato de escapar do olhar objetivo - e se faz todo um
trabalho neste sentido - induz a fulgurância do espaço. Isso permite
fazer ações extremamente perigosas, sem que haja risco. O ímpeto
da imagem do corpo e dos fantasmas diminui, o espaço é percebido
em 360°; é o olhar periférico, panorâmico. Portanto, há sempre
perigo, mas o perigo sou eu, ou seja, voltar para a história. E se
fico nessa vigilância pura que é o olhar cego e o tato cego, há uma
maneira de reencontrar o coletivo. (Idem, pg 3)
Essa modalidade do olhar permite um enlace do corpo com o que lhe toca, ou
rodeia, que ultrapassa a noção de percepção e adentra o lugar do que Godard chama
de “intra-sensorial”13. O olhar cego aciona, desse modo, uma forma de relação do
corpo com o espaço que rompe suas fronteiras, a perspectiva é ampliada ao ponto em
que o corpo pode sentir-se desagregando. “Viver a percepção, ser a percepção...”
(CLARK, 1965).
O bailarino é capaz de ter a medida do espaço em seu interior, por uma visulização
interna do movimento. Em geral, entende o espaço que o circunda por sua própria
estrutura corporal, prescindindo do olhar para cair, girar, saltar. Os modos recorrentes
no aprendizado em geral demonstram a preponderância da visão sobre os outros
sentidos corporais quando se trata da apreensão do “novo”. Ao não ter mais a visão
como guia, o corpo busca formas de abrir-se e virar-se ao avesso na tentativa de
revelar o seu infinito espaço interior, criando assim, paradoxalmente, a possibilidade
de um diálogo com o que o cerca.
Referências Bibliográficas:
ALEXANDER, Gerda. Eutonia: um caminho para a percepção corporal. Trad. José
Luis Mora Fuentes. São Paulo: Martins Fontes, 1983.
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Tradução de António de Pádua Danesi.
13
Tal como apresentado por Hubert Godard na entrevista “O olhar cego”, o intra-sensorial é a
capacidade de ir além da percepção.
São Paulo: Martins Fontes, 2008.
___________________. O Ar e os sonhos, Ensaios sobre a imaginação do
movimento. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
FLUSSER, Vilém. O mundo codificado por uma filosofia do design e da
comunicação. Trad. Raquel Abi-Sâmara. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
GIL, José. Movimento total: o corpo e a dança. Tradução: Miguel Serras Pereira.
Relógio D’Água Editores, 2001.
GODARD, Hubert. Gesto e percepção In: PEREIRA, R. e SOTER, S. (orgs.) Lições
de dança 2, Rio de Janeiro: UniverCidade, 2000. _______________. Olhar cego. In:
S. Rolnik & C. Diserens (Orgs.). Catálogo da exposição Lygia Clark: da obra ao
acontecimento. Somos o molde. A você cabe o sopro. São Paulo: Pinacoteca de São
Paulo / Musée des Beaux Arts de Nantes, 2006.
MILLER, Jussara Correa. A escuta do corpo: abordagem da sistematização da técnica
Klauss Vianna. Campinas, SP, 2005.
NEVES, Neide. Klauss Vianna: estudos para uma dramaturgia corporal. São Paulo:
Cortez, 2008.
RAMOS, Enamar. Angel Vianna: a pedagoga do corpo. Summus: São Paulo, 2007
VIANNA, Klauss; CARVALHO, Marco Antonio de. A dança. São Paulo: Siciliano,
1990.