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Faculdades Integradas de Itararé – FAFIT-FACIC REVISTA ELETRÔNICA

Itararé – SP – Brasil
v. 03, n. 02, jul./dez. 2012, p. 59-69. FAFIT/FACIC

Um olhar sobre a Dança Contemporânea e a sua relação com o self

A look at contemporary dance and its relationship with the self


Bárbara Machuca Thon
Faculdades Integradas de Itararé – FAFIT-FACIC – Itararé – Brasil
barbarathon_4@hotmail.com

José Roberto Herrera Cantorani


Faculdades Integradas de Itararé – FAFIT-FACIC – Itararé – Brasil
cantorani@yahoo.com.br

Resumo
Dançar é arte de traduzir-se em movimentos. É a expressão particular do ser. A Dança
Contemporânea é um mover-se de dentro para fora. É se perceber e entregar-se à mais
profunda essência. Praticar a Dança Contemporânea pode ser um caminho para a saúde
integral. Aliando o dançar com o processo criativo, sob um olhar bioenergético é possível
alcançar vida vibrante e cheia de prazer. Este artigo traz uma investigação sobre como é
possível Dança Contemporânea e Bioenergética habitarem o mesmo espaço terapêutico,
na busca pela entrega ao verdadeiro self. Nesta investigação, concordando com Pina
Bausch (1975) quando diz “Eu não investigo como as pessoas se movem, mas o que as
move”, além dos referenciais teóricos sobre ambos os temas, foram realizadas entrevistas
com praticantes: alunos, professores e intérpretes-criadores da Dança Contemporânea.
Palavras-chave: Autoexpressão. Criatividade. Dança Contemporânea.

Abstract
Dancing is art translate into movements. It is a particular expression of being.
Contemporary dance is a move from the inside out. It is to realize and surrender to the
deepest essence. Contemporary Dance Practice can be a path to full health. Combining
the dance with the creative process, looking under a bioenergy is possible to achieve
vibrant life and full of pleasure. This article presents an investigation into how it is possible
Contemporary Dance and Bioenergetics inhabit the same therapeutic area, searching for
delivering the true self. In this investigation, agreeing with Pina Bausch (1975) when he
says "I did not investigate how people move, but what moves them" beyond the theoretical
references about both topics, interviews were conducted with practitioners: students,
teachers and interpreters creators of Contemporary Dance.
Keywords: self-expression. Bioenergy. Creativity. Contemporary Dance.

1. Introdução

A dança é uma linguagem que oferece, através de provocações, olhares diferentes


sobre o mundo. Possibilita desconstruir, conhecer, refletir e agir sobre o cotidiano, com
base nas relações que vão sendo construídas dentro da aula, nos exercícios e processos
investigativos/criativos.
Dançar é a arte de traduzir-se em movimentos, que há muito tempo vem sendo
experimentada e à qual vem sendo dado um novo significado. É experimentada na busca
pelo entendimento mútuo entre os indivíduos e seus movimentos, no entendimento das
relações entre o eu e o outro, do espaço e tempo, do corpo e o ritmo. É a percepção da
sensação de cada gesto e sua intenção.
Na prática, e intenção de muitas danças, a aquisição de habilidades físicas
corresponde ao anseio em dar uma resposta ao modelo que é proposto socialmente
(RODRIGUES, 2005. p. 23). Em outras palavras, o sujeito dançante busca adequar seu
corpo e sua personalidade a proposta social de perfeição. Entendendo essa perfeição
como estereótipos de magreza, leveza, beleza, alegria, bondade e assim por diante.
A dança é sim um ato de alegria, relacionada à saúde do corpo, e por conta disso,
as pessoas que dançam às vezes se enquadram nessas máscaras de alegria,
movimentos perfeitos e bonitos. Porém, nem sempre a pessoa que dança se identifica ou
reconhece em si o que é proposto por uma dança socialmente concebida. O que acontece
é o abandono da possibilidade de uma verdadeira alegria de viver, e também do seu
verdadeiro eu, o self.
Lowen (1997) fala que o dançar pode ser para um adulto o mais próximo de um
estado natural de alegria e excitação de que as crianças desfrutam. Diferente dos adultos,
as crianças são receptivas ao sentimento de alegria e expressam isso pulando e
dançando naturalmente. Para os adultos é incomum esta auto expressão espontânea,
seja de alegria ou de outros estados emocionais. Então surge a necessidade dos adultos
reaprenderem este ato de expressão. E um caminho para reencontrar isso pode ser a
dança. E assim, a dança também pode se tornar uma expressão verdadeira e não
simplesmente uma “repetição” qualquer de movimentos.
Para que a dança realmente seja uma verdadeira expressão de uma emoção ou
sensação é preciso que o ser que dança consiga reconhecer isto. Usando como exemplo
ainda a alegria, citada por Lowen (1997), percebe-se que para sentir-se alegre é preciso
sentir-se inteiro, presente e entregue. Entregar-se, na perspectiva de Lowen (1997.p.29),
significa “deixar o corpo tornar-se plenamente vivo e alegre”. Significa “permitir total
liberdade de ação aos processos involuntários do corpo, como a respiração, deixando de
controlá-lo”.
Este estado de entrega nasce do permitir-se ouvir o corpo, e parar de controlar os
processos involuntários. Ou, como diz Lowen (1997), fazer o que o corpo pede.

2. Conceituações a partir da Dança Contemporânea

Contemporâneo é o novo, atual, dos dias de hoje. Já há algum tempo, uma nova
visão da dança vem sendo praticada, conhecida como Dança Contemporânea. A “Dança
Contemporânea”, neste caso, trata-se de um modo de dançar inserido no tempo atual,
que habita o presente de quem está dançando, o tempo presente de cada um, entendido
como a sua realidade pessoal.
Hoje, a Dança Contemporânea é uma das grandes vertentes da dança. Apresenta
diversas formas particulares de prática, que variam de acordo com o que o praticante
propõe, ou escolhe, partindo do seu olhar na dança. O olhar é uma escolha, como cita
Velloso (2011), escolha da qual traz-se aquilo que é visto como no âmbito do alcance,
mesmo que não necessariamente ao alcance do tato. Dentre diversos olhares, foi
escolhido neste artigo tratar da Dança Contemporânea. O olhar, neste caso, é o do
pesquisador, não sendo ele exclusivo. No contexto geral, também não se exclui a
possibilidade de que existam outros meios de se dançar contemporaneamente. E,
conforme Machado e Siedler (2012, p. 02), “se há muitos jeitos de se fazer dança, um
diverso complexo de modos, há também a possibilidade de se identificar famílias desse
fazer(...)”.
Um dos pontos importantes desta família da dança é a quebra do padrão de
rejeição do próprio corpo, que é um fato que está muito presente na sociedade como um

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todo. Isso se dá, pois, trata-se de um caminho de dançar que leva o sujeito, dentro de sua
trajetória corporal, à um olhar mais profundo sobre suas experimentações.
A meta é o experimentar, sem preocupação com o resultado. Pois o objetivo já está
no caminho percorrido. Então, na Dança Contemporânea, “o olhar e a organicidade do
movimento passaram a ser um referencial incorporado, independente do caminho que
viessem a seguir” (RODRIGUES, 2005.p.24). O olhar como uma percepção e a
organicidade como a mais pura expressão do ser são os caminhos/objetivos que norteiam
esta Dança Contemporânea.
Dentre as diversas perspectivas que influenciaram nesta visão da dança é
destacado a bioenergética. Ao estudar e buscar compreender o movimento humano,
Laban (1978) o faz sob a perspectiva de dois aspectos: as suas multifaces e a sua
bioenergética. Entende o movimento como multifacetado, pois, possui qualidades,
tamanhos, volumes, profundidades, pesos, e diversos outros elementos, que podem
envolver um só movimento ou uma pausa. A bioenergética, por sua vez, entra nestes
elementos como a energia que o corpo utiliza e gera em determinados tipos de
movimentos.
Ao longo de seu trabalho, através de experimentações com diversos tipos de
movimentos, Laban (1978) desenvolveu a labanotation, ou coreologia. Ou seja, um estudo
de movimentos que busca compreender e transportar elementos do cotidiano para a
composição cênica, baseando-se na crença de que movimento e emoção, forma e
conteúdo, corpo e mente são unidades indivisíveis.
Ao longo do século XX, até os dias do hoje, este estudioso do movimento serviu
de inspiração para diversas áreas de pesquisa humana, dentre elas a terapia corporal.
Laban interligou todos os tipos de movimentos: os simbólicos, comportamentais,
funcionais e expressivos (SCIALOM, 2009). Sua atenção era para com à intenção,
independente de sua execução. Pois não se deve separar a prática do pensamento, e
assim transcender a simples “reprodução” de movimentos. Esta nova possibilidade
lançada por Laban (1978) inunda a Dança Contemporânea com a busca pela autonomia
de movimentos, o encontro com a autossuficiência, bastando-se em si mesmo, no próprio
corpo.
Existe uma capacidade de escolha para a pessoa mover-se, mesmo que nem
sempre seja consciente ou voluntária. Ocorre uma seleção de movimentos apropriados à
diversas situações, o que caracteriza a autossuficiência no corpo, que é o perceber das
opções possíveis ao movimento, deixando as forças naturais do corpo operarem
(LABAN,1978).
Para isso, há a necessidade de ter consciência do corpo: do tamanho, do peso,
do ritmo, e também dos padrões e conflitos deste corpo. A este respeito, Lomba (2009)
faz referência à Rengel (2003), pois este último explana com propriedade sobre a
intenção do trabalho de Laban com os elementos da dança que possibilitam a descoberta
da autossuficiência:

O tempo para Laban é a velocidade em que se realiza o movimento; o espaço é a


relação existente entre a pessoa que dança e o espaço utilizado, assim como as
direções para onde se move; a energia é a mola propulsora do movimento. É a
base de tudo e suas fontes essenciais são costas e bacia; fluência é o fator que
une o gesto ao outro sem interrupção. Esse movimento permite um envolvimento
livre com as articulações do corpo, propiciando a riqueza do movimento. O corpo
em branco é preenchido com discursos e emblemas, levando tempo para adquirir
e implementar novos movimentos e ter consciência que o corpo não é um
recipiente onde tudo é enfiado sem processamento. É preciso estimular a visão
crítica saudável ao invés de repetir movimentos que não têm relação com si
mesmo. (RENGEL, 2003 apud LOMBA, 2009, p.208)

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O que Rengel (2003) mostra é uma conexão prática entre a Dança Contemporânea
e a Bioenergética. A qual começa com o tempo, que é o ritmo que a pessoa realiza seu
movimento, ou seja, seu próprio ritmo. Lowen (1984), por sua vez, cita a ligação do fazer
algo e o prazer, quando se encontra e aprecia o ritmo corporal. Justifica, a este respeito,
que qualquer atividade pode demonstrar o ritmo ecoando em nossos corpos: respirar,
criar, trabalhar, dançar, limpar a casa, ou caminhar. Quando há identificação com o prazer
existe um ritmo contínuo e agradável, um fluxo. Em um contraponto, quando há desprazer
os movimentos podem acontecer de forma frenética e dolorosa, pois não há identificação
com a pulsação particular.
Internamente o corpo tem um “pulso” O coração, a circulação sanguínea, a
respiração, estão sempre fluindo continuamente. São atividades involuntárias dotadas de
um ritmo que responde à excitação do organismo. Ou seja, quando se faz uma atividade
prazerosa, que gera excitação ao corpo, o ritmo é prazeroso. Caso contrário, o fluxo
corporal é perturbado.
Ter consciência do ritmo pessoal faz com que o espaço possa se tornar uma
extensão do próprio ser, do que ele é, pois é assumido como uma escolha feita pela
própria pessoa. O ser dançante tem múltiplas possibilidades espaciais para mover-se, e
vai escolher o espaço que mais lhe é interessante, sendo na localização propriamente dita
ou no tamanho. Um exemplo disso é a preferência que algumas pessoas têm por
movimentos de chão, que é um espaço baixo e inicial da vida de todos, onde os primeiros
movimentos ativos surgem. Talvez o mover-se em excesso neste espaço seja uma forma
de permanecer, ou tentar resgatar algo dos movimentos iniciais. O mesmo pode ser
observado quando a pessoa executa movimentos sempre pequenos, ou grandes, que
sejam destoantes do seu tamanho corporal real. É como uma dificuldade de perceber a
quantidade de espaço à volta que pode ser preenchido pelo seu corpo.
Esta questão espacial de preenchimento e ocupação está também conectada com
a energia do corpo, a bioenergia, que é o que gera e é gerada pelo movimento. Por isso,
é destacada a importância da tomada de consciência e a mobilização desta bioenergia.
Quando a pessoa que dança toma consciência do tanto de energia disponível para
realizar um tipo de movimento, ela se permite, com mais intensidade, realmente usar toda
essa energia, não cortando o fluxo em algum momento. Por exemplo, quando se está
realizando um movimento deitado com o corpo esparramado no chão, braços e pernas
abertos, porém com a energia “focada” no centro do corpo, a tendência é que a energia
não chegue às extremidades do corpo. É bastante comum que os dedos fiquem
encolhidos e as pernas tensas. Porém, quando se há consciência da bioenergia, e ela
circula em um fluxo contínuo da cabeça aos pés, a energia não fica estagnada no centro,
e neste caso sim, chega até a ponta dos dedos como que no desejo de ocupar o espaço
além do que se pode.
Esta percepção da bioenergia está relacionada com a pulsação interna, e com o
espaço, como uma forma de escuta do corpo. Quando o indivíduo se permite ouvir o seu
corpo, o que ele sente vontade de mover, ele move, e a bioenergia está sempre em fluxo.
É o que Laban (1978) chamou de fluência.
Esses conceitos de ritmo interno, espaço/corpo, fluência da bioenergia, podem ser
estreitamente associados com o grounding que Lowen (1997) trabalha, tanto no
entendimento teórico como na prática:

Estar embasado (grounded) significa sentir os próprios pés no chão. Para sentir o
chão a pessoa precisa ter pés e pernas energeticamente carregados. Devem ser
vivos e ágeis, ou seja, mostrar algum movimento espontâneo e involuntário, como
uma vibração. (...) Quando os pés de uma pessoa parecem sem vida e suas
pernas parecem imóveis e paralisadas, sabemos que ela não tem contato sensível
com o chão. Quando as pernas e pés de uma pessoa estão plenamente vivos, ela
consegue sentir uma corrente de excitação fluindo através deles, excitando-os,
aquecendo-os e vibrando-os. (...) O grounding é um processo energético em que

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há um fluxo de excitação através do corpo, da cabeça aos pés. Quando esse fluxo
é forte e pleno, a pessoa sente seu corpo, sua sexualidade e o chão sobre o qual
se apoia. Está em contato com a realidade. (LOWEN, 1997. p. 36)

Seguindo o pensamento de Lowen (1997) estar grounded é estar embasado em


sua própria realidade, em seu próprio corpo. A base de um corpo são os pés e pernas,
assim como a pelve e a coluna vertebral são a estrutura sustentadora deste corpo, e a
cabeça se liga à esta estrutura através do pescoço, assim como os braços são uma
extensão da coluna (BOADELLA, 1992). O trabalho com grounding mobiliza a bioenergia
como um todo, podendo ter a atenção especial em partes de maior necessidade para
quem pratica, porém haverá sempre o ressoar em todo o corpo.
Existe na prática de Dança Contemporânea uma consciência anatômica de
movimentos que relaciona cabeça e cóccix. Esta é uma relação proposta na
movimentação do corpo, para que se alcance uma organicidade e fluência. Ao se
comparar isto com o gronding, pode-se perceber que ao se conectar cabeça e cóccix na
posição ereta: a coluna é colocada em sua linha natural (estrutura); o pescoço ficará
relaxado como uma ponte de ligação entre cabeça e coluna; a pelve permanecerá solta,
fluida para baixo; e os pés apoiados no chão na linha dos quadris. Ou seja, o corpo está
grounded. Para qualquer movimentação deve-se buscar manter estar relação cabeça-
cóccix. Por exemplo, se há um movimento de soltar a cabeça para baixo, enrolando a
coluna, o cóccix segue essa linha, cedendo também para baixo. Então, mesmo que o
corpo não esteja mais ereto, com os pés no chão, o corpo ainda poderá estar grounded.
Outra relação importante que há se notar entre o grounding e a relação cabeça-
cóccix é a relação pensamento-sensação. Lowen (1980) fala da pelve e abdômen como
sendo a localização das emoções e a sexualidade:

O primeiro pensamento que se tem é que a barriga é o lócus de certas sensações.


Chorar e rir tem origem na barriga. Quando rimos ou choramos desde a barriga,
temos uma experiência profunda. Descrevemos experiências assim tão intensas
como “sensações viscerais”. A mais importante das sensações viscerais é a
sensação sexual, que se experimenta na barriga como algo que derrete, aquece e
brilha. Da barriga, a excitação flui até os genitais, órgãos de descarga. A sensação
sexual relaciona-se com o movimento do sangue para dentro da região pélvica e
do aparelho genital. (LOWEN, 1980, p. 94)

Quando há a intenção no corpo, em forma de conexão entre estas duas partes do


corpo: cabeça-cóxis/pelve, é realizada a conexão entre sensação-pensamento. Pois se
está trabalhando com o pensar no mover e o sentir o mover, e esta relação é muito rica
para o corpo, como o chorar ou rir, que gera uma experiência profunda de si.
Pensando em todos estes conceitos que podem ser propostos na prática de Dança
Contemporânea, implícita ou explicitamente, fica claro que esta propõem de forma
simples a investigação do próprio corpo, tendo uma identidade de laboratório, onde o
dançarino é o sujeito de pesquisa dele mesmo. A estrutura física se expande para um
corpo-sentido, criando associações com relações cotidianas pessoais, que provocam
sensações, as quais são o lugar de destino da atenção do experimentador desta dança
(RODRIGUES, 2005.p.147).
Então a Dança Contemporânea vem proporcionando a libertação do corpo e da
dança de um estilo idealizado. Estimula a conexão com o próprio corpo, a criação, a
tomada de consciência, o imprevisível, o estar disponível e a organicidade dos
movimentos. Tem a constante elaboração de uma dança que possa ser vivenciada
integralmente, com presença e clareza.
Dançar não precisa fixar-se no ato de reproduzir movimentos pré-estabelecidos
que busca o aprimoramento físico e/ou estético, e sim proporcionar o reconhecimento do
corpo da pessoa como dançante. Só assim a dança se torna um elemento transformador,

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que faz com que o ser compreenda-se e se aceite na sua mais profunda essência,
integrado e integrante do mundo e de si mesmo.
Neste contexto, cria-se a possibilidade de sentir o que se vive, criar através de
suas experiências, e com isso estabelecer conexões entre sua individualidade e o meio
coletivo, como esclarece Rodrigues (2005):

[...] A força que o movimento coletivo apresenta não está na uniformidade e sim
na individualidade através da qual cada dançante recebe o movimento em seu
corpo. Podemos dizer que a linguagem coletiva é uma matriz que se mantém viva
devido às peculiaridades e aos significados que cada pessoa imprime ao
movimento. (RODRIGUES, 2005.p.31)

Assim, o sujeito dançante torna-se autor no mundo, pelo reconhecimento de sua


expressão, e da importância de estar inserido no meio com sua autoexpressão bem
embasada. Pertencer ao meio coletivo, estar habilitado às relações de forma prazerosa
pede um contato mais intimo com a própria individualidade. A Dança Contemporânea, sob
o olhar bioenergético, pode ser uma fonte deste contato intimo, se for permitido ao sujeito
dançante o sentir e viver plenamente sua autoexpressão. Lowen (1980) fala sobre como o
foco de uma atividade pode interferir nos aspectos de autoexpressão da pessoa: quando
o foco é dirigido ao que está acontecendo no interior da pessoa, às sensações que a
pessoa vive durante a prática, esta atividade pertence ao “ser”, quando está voltada
simplesmente ao “fazer” não é uma atividade do “ser” da pessoa. O fazer não substitui o
ser, apesar de muitas vezes haver a tentativa disto.

Existe um ultimo aspecto da antítese entre o ser e o fazer que necessita um pouco
de discussão. Se temos medo de ser, ou medo da vida, podemos mascarar esse
medo aumentando nosso fazer. Quanto mais ocupados ficarmos, menos tempo
teremos disponível para sentirmos, sermos e vivermos. Podemos até ludibriar,
acreditando que fazer é ser e viver. Podemos mensurar nossa vida pelo que
realizamos, ao invés de pela riqueza e pela plenitude de nossas experiências. Em
minha opinião, o ritmo frenético e ardente da vida moderna é um nítido sinal do
medo que sentimos de sermos e vivermos. E, enquanto persistir esse medo no
inconsciente da pessoa, ela correrá cada vez mais rápido e fará cada vez mais
coisas, a fim de não sentir seu medo. Especificamente, qual é o medo da vida,
qual é o medo de ser? (LOWEN, 1980, p.114)

Então, para que o “ser” predomine nesta Dança Contemporânea é preciso


abandonar o “fazer” e mergulhar no sentir-se, pois o excesso do fazer pode distanciar o
indivíduo do ser.

3. A expressão e suas implicações sobre o self

A palavra self significa “si mesmo”, e é utilizada para definir a individualidade


completa de uma pessoa. Segundo Lowen (1980), a expressão self não é objetiva, nem
subjetiva, nem ativa, nem passiva. Fazendo uma comparação com “mim” e o “eu”, relata
que o “mim” é um estado passivo do ser, e o “eu” um estado ativo. Um exemplo disso é a
utilização gramatical desses pronomes: “Para mim” o sujeito está na posição de
observador; “Eu faço” o ser está posição de sujeito da ação; Já o “eu mesmo” coloca o ser
como objeto de sua própria consciência. O conceito de self (si mesmo), portanto, é
sofisticado. E desta forma, “desenvolve-se quando o ego atingiu o estágio de poder
observar o que está acontecendo no corpo e de refletir sobre isso” (LOWEN, 1980, p.93).
Entregar-se à si mesmo, ao self, é o momento em que o ego se dissolve e dá lugar
para sensação de si mesmo. Essa é uma consciência que não surge do eu observador,
como explica Lowen (1980), mas sim no experimentar à si mesmo.

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Sobre o conceito de Lowen (1980) sobre o self e o ego, Weigand (2002) explica
que o self é um fenômeno biológico, e o ego uma organização mental que se desenvolve.
O ego é a parte da personalidade que percebe o self. Por exemplo: eu (ego) sinto que
estou alegre é o mesmo que “o ego percebe que o self está alegre”.
Para que se possa viver a entrega ao self é preciso saber que entrega ao self e
autoexpressão são duas experiências interligadas. Uma necessita da outra para ser
vivida. É preciso inicialmente reconhecer a expressão particular, assim, quando uma
pessoa encontrar a verdadeira identidade, mais espontânea se tornará, e cada vez mais
verdadeiramente expressará quem é ao mundo.
Este reconhecimento e entrega pode acontecer de diversas maneiras, porém neste
estudo o foco são os exercícios bioenergéticos dentro da Dança Contemporânea. Da
mesma forma as práticas da Dança Contemporânea são como alicerces na Bionergética.
A Bioenergética é um estudo e uma prática terapêutica, que combina o trabalho
com corpo e mente para ajudar as pessoas a resolverem suas questões emocionais,
terem uma vida mais saudável, podendo reconhecer, assim, seu potencial para viverem
mais expressivamente. Podendo sentir prazer e lidar mais saudavelmente com situações
de desprazer.
A prática bioenergética conecta as pessoas com suas sensações e emoções,
trazendo à tona expressões particulares que se iniciam dentro do ser. Esta conexão é um
encontro consigo mesmo. Como explica Lowen (1985):

A bioenergética, como outras terapias, pretende ajudar a pessoa a desenvolver


um melhor senso do eu, isto é, a ser mais ela própria. O eu, entretanto, não é uma
qualidade abstrata, mas a totalidade do funcionamento desta pessoa. O eu não
pode ser separado da autoexpressão, porque é nas atividades expressivas que
nós o percebemos. Todavia, ao contrário do que muita gente pensa, não é
necessária a via consciente para tentar expressar este eu. A maior e mais
importante parte de nossa autoexpressão é inconsciente. Um movimento gracioso,
um brilho nos olhos de alguém, o tom de voz, uma vivacidade e vibrações gerais,
expressam mais o que somos, do que palavras ou ações. Entretanto, estas
qualidades não podem ser cultivadas deliberadamente pelas pessoas. São
manifestações de saúde física e emocional. (LOWEN,1985.p.20)

A pessoa que se expressa livremente, está entregue à si mesma, está inteira e


mais saudável. Isto fica transparente pela autoexpressão, que através dos movimentos se
torna a parte visível do inconsciente humano, e também um processo natural do corpo.
Lowen (1984) colocou isso em prática em seu trabalho com a Bioenergética, associando a
personalidade ao corpo, deixando claro que não se pode dividir o ser em mente e corpo.
O corpo conta sobre a personalidade na postura, no olhar, na voz, na espontaneidade ou
não dos movimentos. Nos fala quem é a pessoa e como ela está vivendo sua vida.
As formas e a postura do corpo são também as formas e postura do sujeito diante
da vida, provam quanta disponibilidade para viver se tem. Estar disponível para mover-se,
brincar, sentir, estar presente, estabelecer contato com o outro, é uma projeção da
energia interna para o mundo, é a autoexpressão do ser.
Juntamente com a autoexpressão caminha a autopercepção. E perceber-se gera
disponibilidade para a vida. Autopercepção é a capacidade de estar consciente de si
mesmo, de perceber-se sem vendas, estando presente dentro de si mesmo. Estar
presente é estar em contato com tudo que é captado pelos sentidos, estar atento ao que
está acontecendo no corpo e ao redor. Desta forma,

A autopercepção é uma função do sentir. É a soma de todas as sensações do


corpo de uma só vez. Através de sua autopercepção a pessoa descobre que é.
Está atenta ao que acontece em todas as partes do seu corpo; em outras
palavras, está em contato consigo mesma. (LOWEN, 1984.p.48)

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Para se autoperceber basta que se tenha o desejo de estar presente, dar atenção
às sensações, observá-las e degustá-las. Dançar abre um caminho para o “atentar-se” à
esta percepção. No momento de criar movimentos em um improviso, reproduzir uma
sequência, investigar o próprio corpo, é possível encontrar uma forma natural e particular
de se mover. Esta forma individual de movimento é a identidade de cada sujeito que
dança e vive, é uma entrega à sua verdadeira essência, que acontece quando o sujeito
permite deixar de lado certas tendências do corpo, descobrindo novas maneiras de se
mover.
Por isso uma das grandes ferramentas da Dança Contemporânea é a
improvisação. O criar, com base em inúmeras possibilidades do corpo, tempo e espaço. A
gênese do processo criativo “[...] está no corpo, tem sua motivação na busca do prazer e
sua inspiração no inconsciente (LOWEN,1984, p.93)”. Esta busca pelo prazer começa
com uma excitação de uma nova ideia, uma inspiração, um novo olhar, que gera uma
construção, uma nova criação onde acontece o ápice pela descarga de tensão gerada
pela excitação. Desde o inicio o processo criativo está ligado ao prazer.
Improvisar dentro da dança é mergulhar em um processo criativo que exige que se
escute o corpo, se perceba qual é a sensação particular que cada movimento pode gerar.
Uma pequena ideia provocativa, uma questão, uma imagem, ou qualquer estímulo interno
ou externo que mova algo dentro de quem vai dançar, é o foco do improviso. É uma
espécie de desorientação, com a qual, quem recebe o estímulo não sabe exatamente o
que “deve fazer”, porém, simplesmente vive aquele momento. O tempo, o espaço e as
relações que acontecem em um improviso ficam fora do controle mental, mas ao mesmo
tempo podem ser aceitas, como uma retomada de controle do corpo, uma entrega a si
mesmo.
Assim,

Ao dançar, o corpo experiencia a incerteza dos processos e a sensação de um


contínuo estado de construção. O corpo lida com as circunstâncias de dado
momento e por isso a incerteza faz parte das suas ocorrências: não há a
possibilidade de controle absoluto do que pode ocorrer. Não há uma previsão
determinística sobre os fatos e possíveis transformações ao longo do tempo.
(MACHADO; SIEDLER, 2012,p.3)

Como Machado e Siedler (2012) explicam, o corpo exercita um estado de prontidão


e disposição para lidar com o imprevisível, e a pratir daí cada ação corporal dá vazão a
experiência pela autonomia. O improvisar e o criar acontecem através das relações que
nascem em tempo real e não podem ser antecipadas.
Todo ato criativo é a formação de algo novo, que não existia anteriormente na
mente e corpo de quem o pratica. Quando se aceita que não se conhece ainda as
respostas, e que existem inúmeras possibilidades a serem exploradas em um processo
criativo, o caminho estará aberto (LOWEN, 1984). Pois assim, se é permitido
experimentar, brincar, criar através do corpo e de quem realmente se é.
Para acessar este corpo, é preciso

[...] esvaziar-se de todos os corpos-ruídos, corpos-clichês, corpos-cotidianos que


lhe impedem o livre fluxo da composição imediata da dança. É preciso, então,
minimizar a pregnância do vivido sobre o presente da experiência a fim de vivê-la
sempre como uma primeira vez. (GOUVÊA, 2012.p.161)

Para esvaziar-se destes corpos tendência é necessário praticar a conexão e a


entrega à si mesmo, vivenciando experiências que tragam para o alcance um corpo-
presença, que se conhece, reconhece, reinventa. Dançar contemporaneamente sob o
olhar bioenergético pode ser um campo de experimentação deste corpo, basta que o

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propositor desta dança tenha como intenção promover este diálogo, inicialmente dentro
de si mesmo.
Este pensamento/sensação de Dança Contemporânea se constrói
significativamente nas palavras de Fiadeiro e Eugênio (2012):

E, talvez por isso, seja este o momento justo para estancar o desespero e reparar
no que há à volta. Suspender o regime da urgência, criando as condições para
uma abertura desarmada e responsável à emergência. Substituir a expectativa
pela espera, a certeza pela confiança, a queixa pelo empenho, a acusação pela
participação, a rigidez pelo rigor, o escape pela comparência, a competição pela
cooperação, a eficiência pela suficiência, o necessário pelo preciso, o
condicionamento pela condição, o poder pela força, o abuso pelo uso, a
manipulação pelo manuseamento e o descartar pelo reparar. Reparar no que se
tem, fazer com o que se tem. E acolher o que emerge com acontecimento.
Reencontrar, naquela matéria simples e quotidiana em relação à qual aprendemos
a nos insensibilizar – a matéria da secalharidade – reencontrar aí, nesse
comparecer recíproco, toda uma multiplicidade de vias contingentes para abrir
uma brecha. Uma breca para a re-existencia. (...) Isso só pode ser feito se
revogarmos os escudos protectores seja do sujeito seja do objecto e se largarmos
os contornos pre‐definidos do eu e do outro. Isso só pode ser feito senão
avançarmos de imediato com a vertigem do desvendamento ou com a tirania da
espontaneidade, encontrando tempo dentro do próprio tempo das coisas. Um
tempo que já está lá, entre o estímulo e a resposta, mas que desperdiçamos na
verocidade com que cedemos ao medo e recaímos no hábito, nas respostas
prontas ou numa reação impulsiva qualquer, apenas para saciar o desespero de
não saber. Isso só pode ser feito se abrirmos mão do protagonismo ,transferindo-o
para esse lugar “terceiro”, impuro e precário, que se instala a meio caminho no
cruzamento das inclinações recíprocas: o acontecimento. (FIADEIRO,
EUGÊNIO,2012, p.3-4)

É neste lugar, no meio do caminho, chamado de acontecimento, que habita a


preciosidade do ser. Se experimentar abrir mão do que é habitual por conta do correr
contra o tempo e do impulsionar um fazer apenas por não permitir-se sentir, poder-se-á
reencontrar uma forma ser, que já estava lá, mas ficou mascarada pelo “achar” cotidiano -
onde se ahava que se fazia dança de tal forma, achava-se que se era de tal forma. Assim,
é preciso abrir mão deste escudo protetor, como poeticamente citaram Fiadeiro e Eugênio
(2012), e reparar no que se tem dentro de si, no que verdadeiramente se é.

4. Considerações finais

Com esta pesquisa bibliográfica mostra-se factível a interpretação de que a Dança


Contemporânea estabelece um diálogo com a Terapia Bioenergética. O dançar pode
apresentar diversas capacidades habilitadas como auxiliadoras no método da
Bioenergética, assim como a Bioenergética pode apresentar muitos benefícios enquanto
aspécto da técnica da Dança Contemporânea.
Encontram-se diversas similaridades entre as duas práticas. E o trabalho pode ficar
mais profundo quando essas linhas similares são estreitadas. Este estreitamento pode ser
proposto simplesmente pela forma como se olha a prática de ambas as técnicas.
Dançar é um meio para que haja autopercepção e autoexpressão, um lugar onde o
indivíduo pode encontrar sua verdadeira essência, o self, e entregar-se à ela sem medo.
Aprofundando esta ideia com a Bioenergética, tornando consciente este processo, a
identificação pode realmente estar presente na vida da pessoa.
Desta forma, as práticas de dentro do estúdio podem ser levadas à vida cotidiana,
e os modos de relacionar, presentes neste contexto particular, podem ser também
transportados a outras relações sociais. Isto é uma forma de pertencer, e ser no mundo,
com uma identidade própria.

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