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Itararé – SP – Brasil
v. 03, n. 02, jul./dez. 2012, p. 59-69. FAFIT/FACIC
Resumo
Dançar é arte de traduzir-se em movimentos. É a expressão particular do ser. A Dança
Contemporânea é um mover-se de dentro para fora. É se perceber e entregar-se à mais
profunda essência. Praticar a Dança Contemporânea pode ser um caminho para a saúde
integral. Aliando o dançar com o processo criativo, sob um olhar bioenergético é possível
alcançar vida vibrante e cheia de prazer. Este artigo traz uma investigação sobre como é
possível Dança Contemporânea e Bioenergética habitarem o mesmo espaço terapêutico,
na busca pela entrega ao verdadeiro self. Nesta investigação, concordando com Pina
Bausch (1975) quando diz “Eu não investigo como as pessoas se movem, mas o que as
move”, além dos referenciais teóricos sobre ambos os temas, foram realizadas entrevistas
com praticantes: alunos, professores e intérpretes-criadores da Dança Contemporânea.
Palavras-chave: Autoexpressão. Criatividade. Dança Contemporânea.
Abstract
Dancing is art translate into movements. It is a particular expression of being.
Contemporary dance is a move from the inside out. It is to realize and surrender to the
deepest essence. Contemporary Dance Practice can be a path to full health. Combining
the dance with the creative process, looking under a bioenergy is possible to achieve
vibrant life and full of pleasure. This article presents an investigation into how it is possible
Contemporary Dance and Bioenergetics inhabit the same therapeutic area, searching for
delivering the true self. In this investigation, agreeing with Pina Bausch (1975) when he
says "I did not investigate how people move, but what moves them" beyond the theoretical
references about both topics, interviews were conducted with practitioners: students,
teachers and interpreters creators of Contemporary Dance.
Keywords: self-expression. Bioenergy. Creativity. Contemporary Dance.
1. Introdução
Contemporâneo é o novo, atual, dos dias de hoje. Já há algum tempo, uma nova
visão da dança vem sendo praticada, conhecida como Dança Contemporânea. A “Dança
Contemporânea”, neste caso, trata-se de um modo de dançar inserido no tempo atual,
que habita o presente de quem está dançando, o tempo presente de cada um, entendido
como a sua realidade pessoal.
Hoje, a Dança Contemporânea é uma das grandes vertentes da dança. Apresenta
diversas formas particulares de prática, que variam de acordo com o que o praticante
propõe, ou escolhe, partindo do seu olhar na dança. O olhar é uma escolha, como cita
Velloso (2011), escolha da qual traz-se aquilo que é visto como no âmbito do alcance,
mesmo que não necessariamente ao alcance do tato. Dentre diversos olhares, foi
escolhido neste artigo tratar da Dança Contemporânea. O olhar, neste caso, é o do
pesquisador, não sendo ele exclusivo. No contexto geral, também não se exclui a
possibilidade de que existam outros meios de se dançar contemporaneamente. E,
conforme Machado e Siedler (2012, p. 02), “se há muitos jeitos de se fazer dança, um
diverso complexo de modos, há também a possibilidade de se identificar famílias desse
fazer(...)”.
Um dos pontos importantes desta família da dança é a quebra do padrão de
rejeição do próprio corpo, que é um fato que está muito presente na sociedade como um
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todo. Isso se dá, pois, trata-se de um caminho de dançar que leva o sujeito, dentro de sua
trajetória corporal, à um olhar mais profundo sobre suas experimentações.
A meta é o experimentar, sem preocupação com o resultado. Pois o objetivo já está
no caminho percorrido. Então, na Dança Contemporânea, “o olhar e a organicidade do
movimento passaram a ser um referencial incorporado, independente do caminho que
viessem a seguir” (RODRIGUES, 2005.p.24). O olhar como uma percepção e a
organicidade como a mais pura expressão do ser são os caminhos/objetivos que norteiam
esta Dança Contemporânea.
Dentre as diversas perspectivas que influenciaram nesta visão da dança é
destacado a bioenergética. Ao estudar e buscar compreender o movimento humano,
Laban (1978) o faz sob a perspectiva de dois aspectos: as suas multifaces e a sua
bioenergética. Entende o movimento como multifacetado, pois, possui qualidades,
tamanhos, volumes, profundidades, pesos, e diversos outros elementos, que podem
envolver um só movimento ou uma pausa. A bioenergética, por sua vez, entra nestes
elementos como a energia que o corpo utiliza e gera em determinados tipos de
movimentos.
Ao longo de seu trabalho, através de experimentações com diversos tipos de
movimentos, Laban (1978) desenvolveu a labanotation, ou coreologia. Ou seja, um estudo
de movimentos que busca compreender e transportar elementos do cotidiano para a
composição cênica, baseando-se na crença de que movimento e emoção, forma e
conteúdo, corpo e mente são unidades indivisíveis.
Ao longo do século XX, até os dias do hoje, este estudioso do movimento serviu
de inspiração para diversas áreas de pesquisa humana, dentre elas a terapia corporal.
Laban interligou todos os tipos de movimentos: os simbólicos, comportamentais,
funcionais e expressivos (SCIALOM, 2009). Sua atenção era para com à intenção,
independente de sua execução. Pois não se deve separar a prática do pensamento, e
assim transcender a simples “reprodução” de movimentos. Esta nova possibilidade
lançada por Laban (1978) inunda a Dança Contemporânea com a busca pela autonomia
de movimentos, o encontro com a autossuficiência, bastando-se em si mesmo, no próprio
corpo.
Existe uma capacidade de escolha para a pessoa mover-se, mesmo que nem
sempre seja consciente ou voluntária. Ocorre uma seleção de movimentos apropriados à
diversas situações, o que caracteriza a autossuficiência no corpo, que é o perceber das
opções possíveis ao movimento, deixando as forças naturais do corpo operarem
(LABAN,1978).
Para isso, há a necessidade de ter consciência do corpo: do tamanho, do peso,
do ritmo, e também dos padrões e conflitos deste corpo. A este respeito, Lomba (2009)
faz referência à Rengel (2003), pois este último explana com propriedade sobre a
intenção do trabalho de Laban com os elementos da dança que possibilitam a descoberta
da autossuficiência:
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O que Rengel (2003) mostra é uma conexão prática entre a Dança Contemporânea
e a Bioenergética. A qual começa com o tempo, que é o ritmo que a pessoa realiza seu
movimento, ou seja, seu próprio ritmo. Lowen (1984), por sua vez, cita a ligação do fazer
algo e o prazer, quando se encontra e aprecia o ritmo corporal. Justifica, a este respeito,
que qualquer atividade pode demonstrar o ritmo ecoando em nossos corpos: respirar,
criar, trabalhar, dançar, limpar a casa, ou caminhar. Quando há identificação com o prazer
existe um ritmo contínuo e agradável, um fluxo. Em um contraponto, quando há desprazer
os movimentos podem acontecer de forma frenética e dolorosa, pois não há identificação
com a pulsação particular.
Internamente o corpo tem um “pulso” O coração, a circulação sanguínea, a
respiração, estão sempre fluindo continuamente. São atividades involuntárias dotadas de
um ritmo que responde à excitação do organismo. Ou seja, quando se faz uma atividade
prazerosa, que gera excitação ao corpo, o ritmo é prazeroso. Caso contrário, o fluxo
corporal é perturbado.
Ter consciência do ritmo pessoal faz com que o espaço possa se tornar uma
extensão do próprio ser, do que ele é, pois é assumido como uma escolha feita pela
própria pessoa. O ser dançante tem múltiplas possibilidades espaciais para mover-se, e
vai escolher o espaço que mais lhe é interessante, sendo na localização propriamente dita
ou no tamanho. Um exemplo disso é a preferência que algumas pessoas têm por
movimentos de chão, que é um espaço baixo e inicial da vida de todos, onde os primeiros
movimentos ativos surgem. Talvez o mover-se em excesso neste espaço seja uma forma
de permanecer, ou tentar resgatar algo dos movimentos iniciais. O mesmo pode ser
observado quando a pessoa executa movimentos sempre pequenos, ou grandes, que
sejam destoantes do seu tamanho corporal real. É como uma dificuldade de perceber a
quantidade de espaço à volta que pode ser preenchido pelo seu corpo.
Esta questão espacial de preenchimento e ocupação está também conectada com
a energia do corpo, a bioenergia, que é o que gera e é gerada pelo movimento. Por isso,
é destacada a importância da tomada de consciência e a mobilização desta bioenergia.
Quando a pessoa que dança toma consciência do tanto de energia disponível para
realizar um tipo de movimento, ela se permite, com mais intensidade, realmente usar toda
essa energia, não cortando o fluxo em algum momento. Por exemplo, quando se está
realizando um movimento deitado com o corpo esparramado no chão, braços e pernas
abertos, porém com a energia “focada” no centro do corpo, a tendência é que a energia
não chegue às extremidades do corpo. É bastante comum que os dedos fiquem
encolhidos e as pernas tensas. Porém, quando se há consciência da bioenergia, e ela
circula em um fluxo contínuo da cabeça aos pés, a energia não fica estagnada no centro,
e neste caso sim, chega até a ponta dos dedos como que no desejo de ocupar o espaço
além do que se pode.
Esta percepção da bioenergia está relacionada com a pulsação interna, e com o
espaço, como uma forma de escuta do corpo. Quando o indivíduo se permite ouvir o seu
corpo, o que ele sente vontade de mover, ele move, e a bioenergia está sempre em fluxo.
É o que Laban (1978) chamou de fluência.
Esses conceitos de ritmo interno, espaço/corpo, fluência da bioenergia, podem ser
estreitamente associados com o grounding que Lowen (1997) trabalha, tanto no
entendimento teórico como na prática:
Estar embasado (grounded) significa sentir os próprios pés no chão. Para sentir o
chão a pessoa precisa ter pés e pernas energeticamente carregados. Devem ser
vivos e ágeis, ou seja, mostrar algum movimento espontâneo e involuntário, como
uma vibração. (...) Quando os pés de uma pessoa parecem sem vida e suas
pernas parecem imóveis e paralisadas, sabemos que ela não tem contato sensível
com o chão. Quando as pernas e pés de uma pessoa estão plenamente vivos, ela
consegue sentir uma corrente de excitação fluindo através deles, excitando-os,
aquecendo-os e vibrando-os. (...) O grounding é um processo energético em que
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há um fluxo de excitação através do corpo, da cabeça aos pés. Quando esse fluxo
é forte e pleno, a pessoa sente seu corpo, sua sexualidade e o chão sobre o qual
se apoia. Está em contato com a realidade. (LOWEN, 1997. p. 36)
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que faz com que o ser compreenda-se e se aceite na sua mais profunda essência,
integrado e integrante do mundo e de si mesmo.
Neste contexto, cria-se a possibilidade de sentir o que se vive, criar através de
suas experiências, e com isso estabelecer conexões entre sua individualidade e o meio
coletivo, como esclarece Rodrigues (2005):
[...] A força que o movimento coletivo apresenta não está na uniformidade e sim
na individualidade através da qual cada dançante recebe o movimento em seu
corpo. Podemos dizer que a linguagem coletiva é uma matriz que se mantém viva
devido às peculiaridades e aos significados que cada pessoa imprime ao
movimento. (RODRIGUES, 2005.p.31)
Existe um ultimo aspecto da antítese entre o ser e o fazer que necessita um pouco
de discussão. Se temos medo de ser, ou medo da vida, podemos mascarar esse
medo aumentando nosso fazer. Quanto mais ocupados ficarmos, menos tempo
teremos disponível para sentirmos, sermos e vivermos. Podemos até ludibriar,
acreditando que fazer é ser e viver. Podemos mensurar nossa vida pelo que
realizamos, ao invés de pela riqueza e pela plenitude de nossas experiências. Em
minha opinião, o ritmo frenético e ardente da vida moderna é um nítido sinal do
medo que sentimos de sermos e vivermos. E, enquanto persistir esse medo no
inconsciente da pessoa, ela correrá cada vez mais rápido e fará cada vez mais
coisas, a fim de não sentir seu medo. Especificamente, qual é o medo da vida,
qual é o medo de ser? (LOWEN, 1980, p.114)
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Sobre o conceito de Lowen (1980) sobre o self e o ego, Weigand (2002) explica
que o self é um fenômeno biológico, e o ego uma organização mental que se desenvolve.
O ego é a parte da personalidade que percebe o self. Por exemplo: eu (ego) sinto que
estou alegre é o mesmo que “o ego percebe que o self está alegre”.
Para que se possa viver a entrega ao self é preciso saber que entrega ao self e
autoexpressão são duas experiências interligadas. Uma necessita da outra para ser
vivida. É preciso inicialmente reconhecer a expressão particular, assim, quando uma
pessoa encontrar a verdadeira identidade, mais espontânea se tornará, e cada vez mais
verdadeiramente expressará quem é ao mundo.
Este reconhecimento e entrega pode acontecer de diversas maneiras, porém neste
estudo o foco são os exercícios bioenergéticos dentro da Dança Contemporânea. Da
mesma forma as práticas da Dança Contemporânea são como alicerces na Bionergética.
A Bioenergética é um estudo e uma prática terapêutica, que combina o trabalho
com corpo e mente para ajudar as pessoas a resolverem suas questões emocionais,
terem uma vida mais saudável, podendo reconhecer, assim, seu potencial para viverem
mais expressivamente. Podendo sentir prazer e lidar mais saudavelmente com situações
de desprazer.
A prática bioenergética conecta as pessoas com suas sensações e emoções,
trazendo à tona expressões particulares que se iniciam dentro do ser. Esta conexão é um
encontro consigo mesmo. Como explica Lowen (1985):
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Para se autoperceber basta que se tenha o desejo de estar presente, dar atenção
às sensações, observá-las e degustá-las. Dançar abre um caminho para o “atentar-se” à
esta percepção. No momento de criar movimentos em um improviso, reproduzir uma
sequência, investigar o próprio corpo, é possível encontrar uma forma natural e particular
de se mover. Esta forma individual de movimento é a identidade de cada sujeito que
dança e vive, é uma entrega à sua verdadeira essência, que acontece quando o sujeito
permite deixar de lado certas tendências do corpo, descobrindo novas maneiras de se
mover.
Por isso uma das grandes ferramentas da Dança Contemporânea é a
improvisação. O criar, com base em inúmeras possibilidades do corpo, tempo e espaço. A
gênese do processo criativo “[...] está no corpo, tem sua motivação na busca do prazer e
sua inspiração no inconsciente (LOWEN,1984, p.93)”. Esta busca pelo prazer começa
com uma excitação de uma nova ideia, uma inspiração, um novo olhar, que gera uma
construção, uma nova criação onde acontece o ápice pela descarga de tensão gerada
pela excitação. Desde o inicio o processo criativo está ligado ao prazer.
Improvisar dentro da dança é mergulhar em um processo criativo que exige que se
escute o corpo, se perceba qual é a sensação particular que cada movimento pode gerar.
Uma pequena ideia provocativa, uma questão, uma imagem, ou qualquer estímulo interno
ou externo que mova algo dentro de quem vai dançar, é o foco do improviso. É uma
espécie de desorientação, com a qual, quem recebe o estímulo não sabe exatamente o
que “deve fazer”, porém, simplesmente vive aquele momento. O tempo, o espaço e as
relações que acontecem em um improviso ficam fora do controle mental, mas ao mesmo
tempo podem ser aceitas, como uma retomada de controle do corpo, uma entrega a si
mesmo.
Assim,
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propositor desta dança tenha como intenção promover este diálogo, inicialmente dentro
de si mesmo.
Este pensamento/sensação de Dança Contemporânea se constrói
significativamente nas palavras de Fiadeiro e Eugênio (2012):
E, talvez por isso, seja este o momento justo para estancar o desespero e reparar
no que há à volta. Suspender o regime da urgência, criando as condições para
uma abertura desarmada e responsável à emergência. Substituir a expectativa
pela espera, a certeza pela confiança, a queixa pelo empenho, a acusação pela
participação, a rigidez pelo rigor, o escape pela comparência, a competição pela
cooperação, a eficiência pela suficiência, o necessário pelo preciso, o
condicionamento pela condição, o poder pela força, o abuso pelo uso, a
manipulação pelo manuseamento e o descartar pelo reparar. Reparar no que se
tem, fazer com o que se tem. E acolher o que emerge com acontecimento.
Reencontrar, naquela matéria simples e quotidiana em relação à qual aprendemos
a nos insensibilizar – a matéria da secalharidade – reencontrar aí, nesse
comparecer recíproco, toda uma multiplicidade de vias contingentes para abrir
uma brecha. Uma breca para a re-existencia. (...) Isso só pode ser feito se
revogarmos os escudos protectores seja do sujeito seja do objecto e se largarmos
os contornos pre‐definidos do eu e do outro. Isso só pode ser feito senão
avançarmos de imediato com a vertigem do desvendamento ou com a tirania da
espontaneidade, encontrando tempo dentro do próprio tempo das coisas. Um
tempo que já está lá, entre o estímulo e a resposta, mas que desperdiçamos na
verocidade com que cedemos ao medo e recaímos no hábito, nas respostas
prontas ou numa reação impulsiva qualquer, apenas para saciar o desespero de
não saber. Isso só pode ser feito se abrirmos mão do protagonismo ,transferindo-o
para esse lugar “terceiro”, impuro e precário, que se instala a meio caminho no
cruzamento das inclinações recíprocas: o acontecimento. (FIADEIRO,
EUGÊNIO,2012, p.3-4)
4. Considerações finais
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REFERÊNCIAS
BOADELLA, David. Correntes da Vida: Uma introdução à Biossíntese. 4. ed. São Paulo:
Summus, 1997.
GIL, Antonio Carlos. Métodos e Técnicas de Pesquisa Social. São Paulo: Atlas, 1999
LABAN, Rudolf. ULLMANN, Lisa (Org.). Domínio do Movimento. 4.ed. São Paulo:
Summus, 1978.
VELLOSO, Marila. Modos de ver, ler e criar para estruturar um solo. In: Projeto Modos
de Ver, Ler e Criar Dança Contemplado como Prêmio Petrobrás Funarte Klauss Vianna.
Funarte, 2011. Contato: WWW.emove.com.br ; marilaemovimento@hotmail.com
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WEIGAND, Odila. A construção do self saudável como uma função do grounding. In:
Psicologia corporal, Org. José Henrique Volpi e Sandra Mara Volpi. Curitiba: Centro
Reichiano. v.2.p.73-79. 2002.
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