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O PROCESSO CRIATIVO IMPROVISACIONAL EM DANÇA CONTEMPORÂNEA

E A EX-ISTÊNCIA DO CORPO/INDIVÍDUO QUE DANÇA.

Jussara Braga Bastos

RESUMO: A partir dos estudos do Organon da representação de Bartes (1990 apud Lima 2012) e seus
desdobramentos acerca do corpo/indivíduo e, mais especificamente, do corpo/indivíduo em estado de
criação, propõe-se dialogar o processo criativo improvisacional em dança contemporânea como
experiência possivelmente potente de acesso às questões que ex-istem ao sujeito que dança. Cassiano
Quilici (2015) discute e aponta as artes performáticas enquanto campo produtor de um saber muito
singular sobre corpo-mente, modos de pensar, modos de percepção, encontros e comunicação, capaz de
possibilitar uma forma de poder ao corpo através de modos de sensibilidade sutil, de percepção e de
construção do próprio corpo/indivíduo, imprimindo às artes da cena um lugar não convencional cotidiano.
Assim, busca-se problematizar a improvisação em dança – quando configurada como experiência
consumatória (DEWEY, 2010) – como campo possível de trabalho e conhecimento de si, como proposto
por Quilici (2015).

PALAVRAS-CHAVE: Dança, Processos Criativo Improvisacional, Organon da Representação, Ex-


istência.

Partindo da compreensão de dança enquanto campo de experiência do indivíduo


no ambiente através de sua corporeidade, defende-se que esta é espaço de
desenvolvimento cognitivo singular. O tema experiência tem sido amplamente discutido
em diferentes campos do saber e com finalidades distintas. Aqui, assumo o conceito de
experiência como proposto por John Dewey, que afirma que esta é resultante necessária
da interação do sujeito com o meio, considerando que essa interação “[...] acarreta algo
com potência cognitiva, pode-se conceituar experiência como sendo a sedimentação
corpórea da interação sujeito-ambiência que impulsiona novas ações” (PIMENTEL, p.
92, 2015). Pimentel (2015) afirma que o fenômeno da experiência pressupõe a
completude, o indivíduo envolto por completo na ação e isso não se difere quando
analisamos a experiência artística, seja ela pelo ato da criação ou de fruição. Portanto, a
experiência de vida está sempre registrada na ação criativa e artística em dança e estas
se manifestam enquanto formas de ser e estar no mundo, enquanto modos de vida
(RIBEIRO, 2012).
Diferentes modos de fazer em dança contemporânea abarcam diferentes
procedimentos de criação que se dão sob o mesmo viés de entendimento da experiência
apresentado acima, como a improvisação, contato-improvisação, criação compartilhada,

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intérprete-criador, laboratório de investigação, entre outros1. O Brain Diving se insere
nessa relação de fazeres em dança que parte das vivências corporificadas do dançarino.
Fernando Martins, dançarino, coreógrafo e pesquisador do Brain Diving,
apresenta esse trabalho como uma pesquisa de observação e reflexão provocadas dentro
do processo prático corporal que leva o indivíduo a mapear o corpo, percebendo quais
partes não recebem conscientemente informação/movimento. O pensamento em Brain
Diving pode ser comparado a uma teia de aranha por sua forma interligada e conectada,
fazendo com que a informação chegue a todos os espaços corporais quase que
instantaneamente, assumindo uma totalidade do corpo/indivíduo. A partir dessa
proposta têm-se acesso a uma qualidade de movimento específica que expõe a textura
de um corpo provocado, entrelaçado dentro de uma grande rede conectora do processo
criativo, dando forma e singularidade dentro desse mergulho corporal conector de
consciência e ambiente durante o movimento. O trabalho corporal em Brain Diving se
propõe enquanto linha de fuga para o corpo condicionado contemporâneo,
proporcionando a pesquisa e a busca atenta e presente a questões relacionadas a travas,
hábitos e automatismos adquiridos e corporificados, muitas vezes imperceptíveis e
ainda desconhecidos pelo próprio indivíduo que dança. Surge, portanto, o despertar de
um físico cuja amplitude traz à tona um estado de presença em cena e propõe desafios
que levam os indivíduos a lugares não óbvios2.
É importante ressaltar que o pesquisador enfatiza que o pensamento da pesquisa
não constrói uma técnica específica, mas sim a reflexão do movimento consciente, e
ainda classifica a abordagem como uma ideia, oferecendo possibilidades e descobertas
sobre o próprio corpo em cena, colocando-o em um estado singular de presença cênica,
aproximando o dançarino de suas referências pessoais. Fernando afirma ainda que o ego
é o primeiro inimigo do Brain Diving pela sua capacidade inerente de isolar o intérprete
do processo de criação e que a prática trata do extremo oposto3.
Por ser uma prática que visa a revisitação ao próprio corpo, não-bailarinos ou
artistas de outras áreas também são público alvo dos workshops de Brain Diving e

1Estes modos possíveis de se criar em dança contemporânea podem ser utilizados tanto como estratégias de criação e
elaboração de uma obra ou podem se configurar como a obra em si, não sendo esse um foco de análise e discussão
dessa pesquisa. Propõe-se entender esses e outros tantos modos criativos, muitas vezes híbridos, trabalhados em
simultaneidade ou elaborados especificamente para uma obra em questão, como ambientes potentes de formação e de
negociações de informações corporais através da relação indivíduo e processo criativo.
2Informações compiladas de sites, folders, entrevistas e escritos de Fernando Martins.
3Conteúdo extraído da fala de Fernando Martins à revista Dança Brasil em 2016, disponível em

http://dancabrasil.com.br/workshop-gratuito-em-s%C3%A3o-paulo.

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processos criativos dirigidos por Fernando, uma vez que o objetivo é mostrar ao
indivíduo a possibilidade de elaborar movimento e dança a partir do que se é, do que se
percebe, se assumindo enquanto corpo poroso e singular.
O contexto de criação possibilitado pelo Brain Diving sugere pressupor a
necessidade da escuta ativa, como proposto por Mariana Muniz (2004) a partir do
conceito de escuta elaborado por Layton (2011), que se refere à capacidade do indivíduo
de estar atento e poroso para acessar o que vem de “fora”, o que vem do outro e se
afetar a eventuais proposições. Para a autora, a escuta ativa disponibiliza uma imersão
profunda na experiência dançada e possibilita que o indivíduo se coloque para o
processo ao qual está inserido, elaborando reações contextuais (MUNIZ apud RIBEIRO
e QUEIROZ, 2019). No trabalho do Brain Diving não apenas esses procedimentos de
entrega e imersão parecem de extrema necessidade, como também a manutenção destas
propriedades ao longo de toda a pesquisa corporal, tanto por parte do intérprete-criador,
quanto por parte do diretor. Torna-se evidente, portanto, a conexão possível entre os
processos criativos em Brain Diving enquanto processos formativos do indivíduo.
São muitas as pesquisas que relacionam processos de criação em dança com
processos de formação e se valem de diferentes focos e proposições de acordo com seus
interesses e estratégias de investigação.
Mônica Ribeiro e Dayane Queiroz (2019) propõem entender o processo de
criação como metodologia e dialogam com Lúcia Pimentel (2015), que apresenta os
processos artísticos como metodologia de pesquisa. As autoras compreendem que
metodologia é um caminho construído pelo pesquisador a fim de atender seus objetivos
de pesquisa e que esta pressupõe uma abertura ao inusitado e ao acaso propostos pelo
próprio processo, que, por sua vez, os assumem enquanto percurso. Ribeiro e Queiroz
reiteram a importância do processo criativo ser errante e flexível à experiência em
tempo real a partir da escuta ativa. Essas características são inerentes a processos de
formação do sujeito, seja no âmbito artístico ou educacional, o que evidencia
entrelaçamentos dança-sujeito, arte-vida, criação-formação.
Estes entrelaçamentos são evidenciados também na proposta de cultivo de si,
elaborado por Cassiano Quilici (2015), tendo como base o entendimento shugyo
(cultivo) proposto pelo filósofo japonês, Yasuo Yuasa, e de técnicas de si, de Michel
Foucault. Cassiano discute e aponta as artes performáticas enquanto campo produtor de
um saber muito singular sobre corpo-mente, modos de pensar, modos de percepção,
encontros e comunicação, capaz de possibilitar uma forma de poder ao corpo através de

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modos de sensibilidade sutil, de percepção e de construção do próprio corpo/indivíduo,
imprimindo às artes da cena um lugar não convencional cotidiano. É, portanto, através
desse contexto de possibilidade artística que o indivíduo acessa sua subjetividade de
forma mais profunda e é capaz de conhecê-la e reelaborá-la a partir de práticas artísticas
que extrapolam o universo da cena e passam a compor modos de vida (QUILICI, 2015).
Analisar as artes da cena, em especial a dança, por esse viés de proposição,
possibilita a elaboração de um diálogo íntimo com práticas e trabalhos específicos em
dança contemporânea que caminham e elaboram seus modos de existir neste mesmo
sentido, como é o caso do Brain Diving.
A partir da disciplina “Corpo e ato nas artes da cena: perspectivas críticas acerca
do trabalho sobre si na contemporaneidade” ministrada pela professora Carla Andrea,
pude me aproximar do conceito de Organon da Representação, proposto por Barthes.
Ele nos propõe a compreender que a cena teatral se trata de um recorte do olhar que se
faz “[...] a partir de uma escolha/recorte/identificação o que o autor chamará a Lei do
Sentido.” (LIMA, 2012, p. 68). O organon da representação nos indica que a cena está
inscrita sob um recorte perceptivo unitário do modo de olhar e pressupõe uma soberania
desse recorte. Sabemos, portanto que todo recorte define bordas e elabora espaços
dentro e fora. A cena teatral se localiza, segundo Barthes (apud LIMA 2012), nesse
espaço recortado do dentro, um espaço de percepções sobre o modo de olhar que,
necessariamente exclui aspectos que se localizam fora dele, sugerindo um olhar
alienante do real que se reitera dentro do espaço da borda. O sujeito que percebe se
localiza apartado daquilo que é olhado, se colocando como externo à cena e numa
relação de não atravessamento/afetação do que é percebido.

Com Miller (2009), somos convocados a refletir sobre o modo como o sujeito
da percepção, ao se situar e recortar um espaço “sem esconderijo” e sustentar,
a partir desse jogo, uma posição em que ele se torna o centro de suas
percepções e representações, o faz sob o preço de se colocar não situado, fora
da cena, exterior ao percebido. É esse o modelo perceptivo questionado por
Miller, o modelo que exclui o sujeito do quadro.
Retomemos o duplo fundamento que sustenta o Organon da Representação, a
saber: a soberania do recorte e a unidade daquele que recorta. Seguindo essa
trilha, o teatro, concomitantemente à sua definição de “prática que calcula o
lugar olhado das coisas”, deve também ser problematizado como prática que
institui um campo de experiências que coloca em operação investigações
poéticas sobre o sujeito, o corpo e o ato se interrogando sobre os modos de
percepção de si e do mundo, conjuntamente com as políticas de invenção e
assujeitamento que daí advêm na relação com o Outro.

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É interessante lembrarmos aqui que a ciência, bem como outras áreas do saber,
foi elaborada por muitos anos também sob essa compreensão de sujeito externo ao
mundo, externo ao que se vê, o que se modificou num tempo muito recente frente a
complexidade dos fenômenos que nos cercam, passando a compreender o indivíduo
imbricado no mundo.

Durante muito tempo, a ciência ocidental entendeu o mundo como autômato.


Uma racionalidade universal garantia a certeza e a completude do
conhecimento. Foi a enorme complexidade com a qual nos defrontamos hoje,
e que foi descoberta na própria natureza, que produziu um outro
entendimento de mundo físico. Nossa inclusão nele mudou: de observadores
de fora, passamos à posição de nele implicados. A extraterritorialidade se
inviabilizou. O velho Universo foi redesenhado para hospedar um homem
capaz de perceber que fazia parte do que observava. Para compreender que
não olhava para o mundo como se existisse uma janela o separando dele. O
mundo da ordem, da causalidade, da organização, se ampliou para abrigar a
espontaneidade, a probabilidade, a degradação, o acaso. Antigos opostos
estabeleceram uma nova aliança (KATZ, 2005. p. 41-42).

Para Lacan, a dimensão do real se localiza “fora” da borda elaborada pelo


organon da representação. Já desdobrando o entendimento de que o “fora” na verdade
não existe, passamos a compreender que esse “fora” é na verdade um rasgo, um furo
nesse recorte, que revela a operação de um desdobramento não linear e não
bidimensional. Compreende-se, por tanto, que o que está “fora”, no rasgo, no furo é, na
verdade, o núcleo mais íntimo do sujeito: o seu contato com o real onde habita seu
inconsciente.
O recorte do organon define tudo que “existe” e compõe a percepção do sujeito
que elabora o recorte a partir do seu olhar. Já, o que habita no rasgo, no furo, no real,
que não é percebido pelo sujeito, é tudo que “ex-iste”. O termo ex-istir proposto por
Lacan (apud LIMA 2012)
Em sala, discutimos como diferentes experiências podem ter em si uma potência
de rasgar o organon e, mais especificamente, como as experiências artísticas podem o
fazer. Esse rasgo se dá na experiência e com a potência de acontecimento que, como tal,
não nos dá garantias ou pistas de como acontece, apenas nos acontece. Opera com o
acaso, com a incerteza e com a instabilidade e inaugura um “outro espaço perceptivo”,
desacomodando a percepção organizada previamente pelo organon através das
experiências vivenciadas. Evidencia-se, portanto, uma relação arte-vida.

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É com essa relação que me coloco a elaborar a proposta de pensar algumas
experiências no campo da dança já me proporcionaram rasgos e desacomodações no
meu organon e nos modos que percebo o mundo.
No caso de processos criativos direcionados pela abordagem em Brain Diving e
dirigidos por Fernando Martins, parece que algo resta desacomodado nos dançarinos
após as investigações corporais. Em 2013, o Grupo Êxtase de Dança foi dirigido pelo
artista para a criação da então obra “Entre Acasos” que contava com três momentos
distintos, sendo um dele dirigido por Fernando. Os dançarinos falavam com recorrência
como a passagem por esse processo criativo em dança modificou “algo” neles, tanto
como sujeito que dança quanto como sujeito que vive. Era como se algo tivesse sido
realmente inaugurado pelo fazer em dança que afetou todo um modo de vida dos
dançarinos. De formas muito peculiares, isso foi algo muito percebido e sentido por
alguns dançarinos do grupo que mergulharam mais a fundo nos laboratórios de criação.
Seria o processo criativo de “Entre Acasos” com a abordagem em Brain Diving
uma experiência em dança com potência de rasgo? Ou ainda, seria essa experiência um
acontecimento com deslizamento de significante para os dançarinos? Se é relatado com
tamanha percepção que algo se modificou num âmbito amplo e para além do corpo na
cena, seria o processo criativo em Brain Diving um processo com potência de
transformação de si, segundo o que propôs Cassiano Quilici?
Nessa escrita foi possível apresentar algumas perguntas que permeiam a minha
pesquisa e que, após o contato com a disciplina e os diálogos em sala, se ampliaram e
complexificaram, gerando ainda mais problematizações acerca do tema investigado. É
fato que a escrita desse artigo acabou por operar mais dúvidas em mim do que possíveis
apontamentos sobre determinadas relações levantadas ao longo do semestre o que,
inclusive, acredito ser de grande valia para a tarefa do pesquisador que ainda se
encontra no início da pesquisa. Sustentar dúvidas e pistas possíveis para ir permitindo
que novos estudos se tornem mais familiares e seja possível encontrar espaço para
elaborar diálogos.

REFERÊNCIAS BIBLOGRÁFICAS:

• DEWEY, John. Arte como experiência. Tradução de Vera Ribeiro. Editora Martins
Fonseca. São Paulo – SP, 2010.

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• LIMA, Carla Andrea Silva. Corpo, pulsão e vazio: uma poética da corporeidade.
Tese de Doutorado. Pós-Graduação em Artes da Escola de Belas da Universidade
Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2012.
• PIMENTEL, Lúcia Gouvêa. Processos artísticos como metodologia de pesquisa.
Ouvirouver. Uberlândia v. 11 n. 1 p. 88-98, 2015. Disponível em:
https://seer.ufu.br/index.php/ouvirouver/article/view/32707. Acesso em: 09 de junho
de 2022.
• RIBEIRO, Mônica Medeiros e QUEIROZ, Dayane Lacerda. O processo de criação
como metodologia: a sala de aula de estudos corporais para o ator. Repertório,
Salvador, ano 22, n. 33, p. 31-53, 2019.
• RIBEIRO, Mônica Medeiros. Corpo, afeto e cognição na Rítmica Corporal de
Ione de Medeiros - entrelaçamento entre ensino de arte e ciências cognitivas -. Tese
de Doutorado. Pós-Graduação em Artes da Escola de Belas da Universidade Federal
de Minas Gerais, 2012.

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