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SEMANÁRIO#2587 - 27/5/22

Sumário

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Henrique Raposo

Crónica

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Todos nós temos um estendal de culpas à espera de


redenção, à espera do momento em que a ferida deixa
a carne e ascende aos céus já fumo e cinza. Uma das
minhas falhas, que só agora começa a ser cinza
ascendente, foi ou é a incompreensão da dor da minha
mãe. Como tantas outras mulheres, a minha mãe sofreu
e sofre de dor crónica. Além de outras mazelas, tem
fibromialgia, uma doença que só agora começa a ser
reconhecida. Era difícil compreender a sua dor devido a
este desconhecimento médico, mas também devido ao
seu carácter. Recusou sempre a figura da enferma do
queixume; apesar da dor crónica, foi sempre e continua

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a ser a mulher mais ativa. Vista de fora, parece
“normal”; aliás, parece excecional, é uma avó rara, faz
da sua quinta um oásis acolhedor. É como se
conseguisse transformar a dor crónica numa energia
extra.

Tal como a minha mãe, uma das minhas filhas parece


“normal”, mas não é. É autista. Vista de fora, parece
neurotípica, mas lá dentro é neurodivergente, e aquela
“normalidade” já é fruto do trabalho dela própria, da
irmã, a grande heroína desta saga, dos pais, da
professora e de todas as pessoas da escola, das
profissionais que a acompanham. Maio é o mês da saúde
mental e, neste sentido, neste maio de 2022, eu e a
minha mulher tomámos a decisão de começar a falar em
público sobre autismo. Não é um passo fácil, mas é o
passo necessário. É preciso iluminar e desdramatizar o
tema. É preciso criar uma sociedade onde as meninas
autistas não conheçam a dor da minha mãe: ter o
diagnóstico certo só aos 60 anos. É preciso apanhá-las
aos 6 para que os 16 sejam mais fáceis e para que aos
26 sejam adultas funcionais. Há demasiada ignorância e
tabus sobre estes temas. Há um longo caminho a fazer
e, nesse sentido, os pais têm de sair do armário. O
autismo não é doença. O autismo não se cura. Há que
aceitá-lo, percebê-lo e, através de trabalho e terapia,
transformá-lo numa bênção para eles e para nós.

O autismo não é doença. O autismo não se cura. Há que


aceitá-lo, percebê-lo e, através de trabalho e terapia,
transformá-lo numa bênção para eles e para nós

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É impossível descrever em 3000 caracteres o que é ter
uma filha autista. Estou agora a finalizar um romance
que reflete sobre coisas que vivi há 30 anos. Talvez
daqui a 20 anos consiga escrever um romance sobre
esta aventura, parte sacrifício, parte bênção. Mas, para
usar a primeira ideia desta crónica, a dor crónica, abriria
o tema da seguinte forma: criar filhos implica sentir dor
de vez em quando; criar um filho autista é sofrer uma
espécie de dor crónica, uma preocupação crónica; basta
pensar que a empregabilidade dos autistas é baixíssima.
Só que esta preocupação crónica, se for bem canalizada,
é de facto uma bênção. As pessoas dizem-me que aos
43 estou mais novo do que aos 33. Ter de acompanhar
o autismo rejuvenesceu-me, até porque estou
desconfiado que o paraíso não é um spa onde somos
servidos, é um local onde servimos os outros.

O que desejo com tudo isto? Daqui a 20 anos, quero ver


a minha filha a entrar num mercado de trabalho e numa
sociedade já conscientes, já com outra tolerância.
Quero? Não. Sei que vai ser assim. E sei que, tal como
a avó, ela sofrerá de dores crónicas que serão invisíveis
aos outros, mas, tal como a avó, será uma mulher
energética, dinâmica, “normal”. “Normal”? Não.
Excecional.

P.S. — Sei que há muitos pais confusos desse lado


sobretudo depois de uma pandemia tão difícil para
famílias neurodivergentes; mandam-me um mail que eu
ajudo; pelo menos, posso ouvir.

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