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O admirável Mundo Novo

Belém Operário e aprendiz trabalhando nas


figuras de gesso do Padrão dos Descobrimentos
no ateliê de Leopoldo de Almeida na Avenida da
Índia Mário Novais/Biblioteca de Arte — Fundação
Calouste Gulbenkian

No verão de 1940, com a Europa mergulhada


numa terrível guerra, inaugurava-se a Exposição
do Mundo Português, junto aos Jerónimos.
Ocupando uma área de cerca de 560 mil metros
quadrados e construída em 15 meses, seria uma
das grandes obras de propaganda do Estado Novo

texto Margarida de Magalhães Ramalho


Investigadora do Instituto de História
Contemporânea

A 23 de junho de 1940, abria, em Belém, a


Exposição do Mundo Português (EMP). A ideia
partira do embaixador Alberto de Oliveira, que,
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em 1929, incitara o governo a comemorar, com
uma exposição histórica, o duplo centenário da
Restauração (1640) e da Nacionalidade. No caso
desta última, a data escolhida pelo diplomata não
era a do Tratado de Zamora (1143) — no qual o
rei de Leão reconhecia a independência
portuguesa —, mas a de 1140, altura em que
Afonso Henriques começara a assinar como Rex.

Nos moldes em que foi realizada, a Exposição do


Mundo Português ficou a dever-se, sobretudo, a
dois homens, António Ferro, que desde 1933
dirigia o Secretariado de Propaganda Nacional
(SPN), e Duarte Pacheco, ministro das Obras
Públicas. Qualquer dos dois estava apostado em
modernizar o país e tinha ascendente suficiente
sobre Salazar para o levar a “abrir os cordões à
bolsa”.

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Obras Demolição de um armazém fronteiro aos
Jerónimos Horácio Novais/Biblioteca de Arte —
Fundação Calouste Gulbenkian

Num país onde tanto havia ainda para fazer, a


efeméride foi para Duarte Pacheco um excelente
pretexto para acrescentar novas obras ao que já
estava a ser feito no campo das obras públicas. É
neste âmbito que são construídas as chamadas
escolas dos centenários, as primeiras pousadas
que vinham colmatar a carência de unidades
hoteleiras, o Aeroporto da Portela — para
substituir o da Granja do Marquês, em Sintra —,
o Estádio Nacional, que ficaria ligado a Lisboa pelo
caminho de ferro e pelo primeiro troço de
autoestrada em território nacional, o viaduto
sobre o vale de Alcântara (hoje Viaduto Duarte
Pacheco), a Estrada Marginal, o Parque Florestal
de Monsanto, as gares marítimas de Alcântara e
da Rocha do Conde de Óbidos, a gare fluvial e a
monumentalização da Assembleia Nacional.
Simultaneamente, a Direção-Geral dos Edifícios e
Monumentos Nacionais (DGEMN) levava a cabo,
em todo o país, uma campanha de restauro —
com critérios discutíveis — de monumentos de
valor histórico. Serão desse período a construção
quase de raiz do Paço dos Duques de Bragança em
Guimarães, e do Castelo de São Jorge, em Lisboa.
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Por outro lado, o Museu de Arte Antiga e o Teatro
de São Carlos eram, respetivamente, ampliado e
restaurado. O plano urbanístico de Étienne de
Groër para Lisboa era posto em prática e a capital
ganhava os seus mais importantes edifícios
modernistas: Casa da Moeda e Liceu D. Filipa de
Lencastre (Jorge Segurado), Fonte Luminosa
(Carlos e Guilherme Rebello de Andrade), Hospital
de Santa Maria (Hermann Distel), Pavilhão do
Rádio no IPO (Carlos Ramos) e de Porfírio Pardal
Monteiro o Instituto Superior Técnico, Instituto
Nacional de Estatística e a Cidade Universitária.

Obras públicas à parte, o programa das


comemorações era mais lato, incluindo exposições
de arte, um congresso histórico internacional,
concertos, bailados, um cortejo histórico e, como
ponto alto, a Exposição do Mundo Português. Com
ela pretendia-se mostrar senão ao mundo, pelo
menos à Europa, as glórias passadas e a
“capacidade realizadora de Portugal”.

O local escolhido, Belém, era consensual e não


poderia ser mais simbólico. Dos seus areais
tinham partido Vasco da Gama, Álvares Cabral e
todas as caravelas em busca de novos mundos.
Aqui se encontravam também os dois principais
monumentos desse período: A Torre de São

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Vicente e o Mosteiro de Santa Maria de Belém.
Pelas mesmas razões, seria daqui que partiriam,
a 30 de março de 1922, Gago Coutinho e
Sacadura Cabral para realizarem a primeira
travessia aérea do Atlântico Sul.

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Miradouro indiano. Secção Colonial Coleção


Medeiros e Almeida

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Horácio Novais/Biblioteca de Arte — Fundação


Calouste Gulbenkian

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Inauguração da Exposição do Mundo Português


Horácio Novais/Biblioteca de Arte — Fundação
Calouste Gulbenkian

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4/5

Praça do Império e Pavilhão de Honra e de Lisboa


Mário Novais/Biblioteca de Arte — Fundação
Calouste Gulbenkian

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Padrão em construção Mário Novais/Biblioteca de


Arte — Fundação Calouste Gulbenkian

Periférico, o bairro de Belém estava há muito


esquecido. Aqui, pouco mais havia do que campos
de cultivo, algumas indústrias, bairros operários e
pequeno comércio. O abandono a que fora votado
permitira, no final do século XIX — contra a
opinião da rainha D. Amélia e de alguns
intelectuais — a construção de um gasómetro a
escassos metros da Torre de Belém. Sobre este
atentado patrimonial escreveria, na época,
Ramalho Ortigão “[Agora] a Torre de Belém
emparceira-se com a chaminé do mais vil e
sórdido barracão, a qual sacrilegamente a
cuspinha e enodoa com salivadas de um fumo
espesso, gorduroso e indelével, como se a
incomparável joia, desse mármore, que o sol
português sobredourara pelos afagos de três
séculos, houvesse sido tão subtilmente cinzelada
pelos artistas manuelinos para escarrador de
mariolas”, em “O Culto da Arte em Portugal”.

Duarte Pacheco ainda tentara a remoção do


gasómetro a tempo da exposição. Dificuldades de
várias ordens não a permitiram. A morte, em
1943, do ministro, num acidente de viação, levou
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a que a Torre de Belém só fosse desafrontada em
1950.

A Comissão Nacional para as Comemorações seria


presidida por Alberto de Oliveira e secretariada
por António Ferro. Este era bastante contestado
no interior do regime pelo apoio dado aos
modernistas e pelas suas amizades politicamente
duvidosas, como se infere de um relatório da
Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE) de
1940, “aos quais [colaboradores] se atribui falta
de virtudes pessoais que os imponham à
consideração pública”. Para contrabalançar a
escolha do diretor do SPN, Salazar dava a
presidência da Comissão Executiva ao escritor
Júlio Dantas. Os dois homens não podiam ser mais
diferentes. Dantas, um “ceroulas de malha” como
Almada Negreiros, em 1915, o apelidara no seu
“Manifesto Anti-Dantas”. O outro, era o autor de
“A Idade do Jazz-Band”... A convivência entre o
antiquado comissário e a equipa de António Ferro
não ia ser, por isso, fácil. Em maio de 1939, ainda
em Nova Iorque, Ferro receberia cartas
desesperadas de Leitão de Barros: “A sua ação é
indispensável. Só você, pela situação especial que
tem, pode impor um mínimo de bom senso ao
Dantas, cuja mentalidade, cuja cultura, cuja
educação, cujo carácter são contraindicados para
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levar a bom termo este ‘par de botas’ que o
governo tem de descalçar. Você não calcula o que
esse homem tem feito de complicações, de
burocracias, de gaffes, de possidonismo, de
‘ceroulas de malha’! É um sarilho cada hora.”
[Fundação António Quadros PT-FAC-AFC-
001.0051-0003].

O local escolhido era consensual e não poderia ser


mais simbólico. Dos seus areais tinham partido
Vasco da Gama, Álvares Cabral e todas as
caravelas em busca de novos mundos

Felizmente, a exposição tinha autonomia e um


comissariado próprio. Augusto de Castro, ex-
embaixador e diretor do “Diário de Notícias”, na
presidência, Manuel Sá e Melo, engenheiro-chefe,
e José Cottinelli Telmo, arquiteto-chefe. Este
último era um homem dos sete ofícios. Além da
sua profissão que exercia no Estado, fora diretor
do primeiro jornal infantil, o “Abc-zinho”, criara a
famosa personagem de banda desenhada “O
Pirilau que vendia balões” e, em 1933, depois de
uma aposta com o seu cunhado Leitão de Barros
tornar-se-ia cineasta, realizando a primeira longa-
metragem sonora portuguesa, “A Canção de
Lisboa”, ainda hoje considerada, justamente, a
melhor comédia do seu tempo.

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Num manuscrito incompleto publicado por João
Paulo Martins, em 1995, Cottinelli refere vários
acontecimentos relacionados com a EMP, alguns
dos quais citaremos aqui. Comecemos pela forma
como foi convidado.

“António Ferro telefona-me em ar misterioso...

— Olha lá... Que dirias tu se te escolhessem para


arquiteto-chefe da exposição?...

Do lado de cá, franzo o sobrolho e tombo a


cabeça, como se não tivesse ouvido bem; desfaço
o movimento e, num segundo, decomponho o
futuro em dezenas de parcelas de que dou uma
amostra: — Dirigir uma exposição! Arquitetura,
decoração, escultura, cartazes, ideias, luzes,
água, música, o fiasco de certas exposições
estrangeiras, o descrédito, a alegria de me
entregar exclusivamente a uma coisa que sendo
para fazer depressa, depressa se lhe gozam os
resultados, a glória, o movimento, o fracasso...
Junto os prós e os contras, numa salada mexida
entre claridades de sonho e sombras de receio e
respondo prontamente:

— Ficava encantado!...

— Era o que eu esperava! Depois falamos...”

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Dias depois, o ministro Duarte Pacheco apareceria
em sua casa sem avisar.

“O ministro entra sem se fazer rogado e... faz uma


busca à casa, mostrando-se satisfeito com a ideia
de eu não estar!... Não há livro para que não olhe,
que não folheie, pergunta que não faça a minha
mãe — ele que me conhecia já como arquiteto,
quer-me conhecer como... arquiteto-chefe da
exposição!... Quer ver como eu sou por dentro,
quer fazer um juízo pessoal da minha vida
particular, maneira de tirar informações diretas,
positivas, sem intervenção de mais ninguém.
Ministro e... polícia de informação! Ministro e
psicólogo experimental!...”

A equipa escolhida, a visibilidade previsível da


exposição e o orçamento de 35 mil contos
acendeu o despeito dos artistas, que se viam
agora afastados desta apetecível ribalta. Os
protestos mais violentos seriam encabeçados pelo
presidente da Sociedade Nacional de Belas Artes,
coronel Ressano Garcia, que em duas
conferências, em abril de 1939, atacaria vio-
lentamente os eleitos, apelidando-os de
“revolucionários sociais, sem ideal, sem Deus e
sem moral”, influenciados por judeus e
comunistas, e que Adolf Hitler fizera bem quando

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“varreu os museus de todas as imundices
artísticas”.

Outras críticas menos ferozes, mas seguramente


muito portuguesas, relacionavam-se com as
questões financeiras, como se pode ler no mesmo
relatório da PVDE de 1940 “(...) Quanto à
Exposição do Mundo Português, as pessoas de
bom senso não discordam da sua realização, mas
censuram que ela não se execute
economicamente, porquanto, dizem, que se paga
exageradamente a pessoas que acumulam as
suas funções oficiais com as de delegados à
Comissão (...) Assim, comenta-se, dizendo que há
dinheiro para a exposição, mas não o há para
quartéis e hospitais.” [ANTT AOS/CO/IN88].

Durante um ano e meio estava garantido um


salário a cinco mil operários, 17 arquitetos, 15
engenheiros, 43 pintores decoradores, 129
auxiliares e mil modeladores, para não falar
daqueles que, posteriormente, iriam trabalhar no
recinto

Dias depois da sua nomeação, Cottinelli


apresentava a Duarte Pacheco um primeiro plano
para a exposição tendo como núcleo central, de
onde tudo derivaria, a grande Praça do Império,
proposta tempos antes pelo arquiteto Lacerda
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Marques. Era, porém, segundo o próprio Telmo
um plano tímido e pouco ambicioso. Duarte
Pacheco quis, obviamente mais, como se pode ler
no manuscrito citado: “Arremeteu, decidido,
contra aquilo que a nós, comissariado da
exposição, se apresentava como obstáculo
irremovível...

— Mas isto?...

— Deita-se abaixo!...

— Mas... será possível?...

— Tudo é possível! Fora com isso, não se importe!

— Mas se não se chega a deitar abaixo... fica tudo


comprometido?!...”

Logo ele, com o seu olhar de revolta contra os


impossíveis e contra os que creem no impossível,
num gesto de liquidar tudo o que estorva, tão
simples de fazer, como de facto o foi de realizar,
varre tudo com a mão, na apologia de uma coisa
que “Você vai fazer, linda, verá!...”

Em São Bento, semanas depois, seria apresentado


a Salazar um plano já muito mais arrojado.
“Durante a exposição, o Presidente, muito atento,
não deixa de restabelecer o acerto das arestas dos

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cartões soltos que se deslocaram ligeiramente
com o apontar do dedo, a marcar o itinerário do
visitante ou a posição do pavilhão. Acabou-se...
Salazar levanta os olhos e lavra a sentença:

— Pois... acho muito bem, sim senhor. Acho muito


bem. Está muito bem...

Súbito, como se achasse que estava


perfeitamente esclarecido o caso pessoal
connosco, membros do Comissariado — volta-se
para Duarte Pacheco, irritado, fala de mania das
grandezas, de projetos irrealizáveis, e
orçamentos, do custo da Praça do Império, da
impossibilidade de remover os submersíveis, com
a mão atirada ao ar, em símbolo de descrença, de
caso liquidado, de necessidade de recomeçar, de
tempo perdido...”

Apesar do ataque de fúria do presidente do


Conselho, o plano avançaria com cortes e acertos.
No final de fevereiro, iniciavam-se as
terraplanagens e as demolições de muitos
edifícios, para desespero da maioria dos
belenenses, que viam, sem apelo nem agravo, as
suas casas e/ou comércios serem expropriados
por tuta e meia. O “Jornal Ecos de Belém” seria o
porta-voz dos descontentes até a censura o calar.
“Mas se alguns dos nossos comerciantes vão ser
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submetidos ao duro sacrifício de terem de acabar
com as suas casas e se gente pobre vai ser
obrigada a desalojar-se das suas moradias, para
eles pedimos os olhares misericordiosos de quem
quer que seja e com a mais religiosa Fé clamamos,
Piedade Senhores”.

Escultura Leopoldo de Almeida trabalhando no seu


ateliê na figura do infante D. Fernando Horácio
Novais/Biblioteca de Arte — Fundação Calouste
Gulbenkian

Mas a obra iria dar trabalho a milhares de pessoas.


Durante um ano e meio estava garantido um

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salário a cinco mil operários, 17 arquitetos, 15
engenheiros, 43 pintores decoradores, 129
auxiliares e mil modeladores, para não falar
daqueles que, posteriormente, iriam trabalhar no
recinto.

Entre os arquitetos encontravam-se toda uma


geração ligada ao modernismo, Pardal Monteiro,
Carlos Ramos, Cristino da Silva, Jorge Segurado,
Vasco Palmeiro, Lacerda Marques, Veloso Reis,
Paulo Cunha e João Simões, entre muitos outros.

Raul Lino também assinaria um pavilhão, o do


Brasil — o único país representado —, mas não
fazia parte da equipa nuclear, tendo sido escolhido
pelo comissário do pavilhão.

Além dos pintores e escultores que tinham


trabalhado com António Ferro nas Exposições de
Paris (1937) e de Nova Iorque (1939), muitos
outros foram — entre eles 12 mulheres —
chamados para esta empreitada. Na
impossibilidade de os referir a todos, citemos
alguns. Na escultura, Leopoldo de Almeida, autor
das figuras do Padrão dos Descobrimentos
(Cottinelli Telmo) e da estátua monumental da
Soberania que decorava a fachada do Pavilhão dos
Portugueses no Mundo (Cottinelli Telmo), Canto
da Maia, Barata Feyo e Francisco Franco. Na
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pintura, Fred Kradolfer, Carlos Botelho, Bernardo
Marques, Emmérico Nunes, Tomás de Mello
(TOM), Martins Barata, Almada Negreiros, embora
com uma participação menor, Sarah Afonso,
Estrela Faria, Mily Possoz, Jorge Barradas, Luís
Dourdil, Hein Semke, o alemão proscrito pelo
regime nazi, e Arlindo Vicente. Este, advogado de
profissão, seria desde o início dos anos 30 um
opositor ao regime, sendo dos poucos a defender
presos políticos em tribunal. Em 1958, candidatar-
se-ia à Presidência da República, tendo depois
desistido a favor de Humberto Delgado.

Com o início da construção surgiriam, devido à


guerra, problemas complexos, nomeadamente
por falta de ferro e outros materiais de
construção. Outro desafio foi abrir fundações em
terrenos roubados ao rio. As do Padrão dos
Descobrimentos, por exemplo, foram das mais
difíceis de fazer, estando este, no início de 1940
ainda por construir. Além disso, o clima também
não ajudou, tendo a obra decorrido quase sempre
à chuva.

Se o começo da guerra, em setembro de 1939,


tinha feito equacionar o cancelamento da
exposição, a verdade é que a neutralidade de
Portugal e o investimento já feito levaram o

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governo a desistir dessa ideia, tanto mais que nos
primeiros meses do conflito pouco aconteceu,
ficando esse período conhecido por drôle de
guerre ou phoney war.

Na primavera de 1940, porém, o panorama


alterava-se dramaticamente. Numa ofensiva
extremamente rápida, a Alemanha nazi subjugava
em pouco mais de dois meses a Dinamarca e a
Noruega (9 de abril), os Países Baixos, Bélgica e
Luxemburgo (10 de maio) e, finalmente, a França.
Num gesto de pura vingança, Hitler faria questão
que a capitulação francesa fosse assinada na
mesma carruagem onde, a 11 de novembro de
1918, a Alemanha assinara o Armistício.

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Exótico Aldeia indígena na Secção Colonial.


Africanos vindos para integrarem a secção colonial
fotografias Casimiro Vinagre/Biblioteca de Arte —
Fundação Calouste Gulbenkian

A derrota da França, que ninguém acreditara ser


possível, não deixou de ser uma sombra no dia da
inauguração da EMP. E numa alegoria à paz que
se vivia em Portugal, foram lançadas no momento
da abertura, centenas de pombas brancas. Como
nem todos os pavilhões estavam ainda prontos,
apenas os principais abriram nesse dia ao público.
O de Honra e de Lisboa (Cristino da Silva), que
limitava a poente a Praça do Império e, no lado
oposto, o dos Portugueses no Mundo. Os outros
iriam, nos dias que se seguiram, abrindo à medida
que ficavam concluídos. À cerimónia protocolar
realizada no Palácio da Ajuda compareceriam
todos os países, beligerantes ou não. Afinal,
Portugal era um país neutro e isso convinha tanto
às potências do Eixo como aos Aliados.

Sem poder contar com a afluência inicialmente


prevista de estrangeiros, as visitas de nacionais
iriam ser facilitadas e incentivadas. Se a exposição
não podia ser levada a todo o país, este, no
entanto, podia e devia vir à exposição. Durante os
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quase cinco meses em que esteve aberta,
chegavam, diariamente a Belém dezenas de
camionetas vindas de todo o país, incluindo das
localidades mais recônditas. Também o Porto
ficaria ligado ao recinto através de um comboio
especial, o Expresso de Prata. Entre Lisboa e
Belém, e além do comboio e dos elétricos havia
agora uma novidade: autocarros. Seriam os
primeiros a ser adquiridos pela Carris. Com tanta
facilidade de transporte, não é pois de estranhar
que a exposição tivesse tido três milhões de
visitantes, mais de um terço da população do país.

Muitos estrangeiros, contudo, também acabariam


por visitar a exposição. Seriam náufragos da
guerra em trânsito por terras lusas. Um deles, o
escritor aviador Antoine de Saint-Exupéry,
escreveria no seu livro “Carta a um Refém”:
“Melancólico, deambulava, noite após noite,
percorrendo a exposição. Que soluções notáveis e
que gosto tão requintado! Tudo tendia para a
perfeição. Até a música. Discreta e bem escolhida,
fluía suavemente pelos jardins, sem ostentação, à
maneira do cantar de uma fonte. Como poderia
esta noção maravilhosa das proporções
desaparecer deste mundo?” Outro que por aqui
passou foi o ministro luxemburguês da Justiça no
exílio, Victor Bodson, que com a sua mulher e uns
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amigos se fariam fotografar, como tantos outros
refugiados, vestidos de chineses, numa recriação
da macaense Rua da Felicidade. Seria uma das
grandes atrações da Secção Colonial instalada no
atual Jardim Botânico Tropical. Esta secção
pretendia mostrar como Portugal não era um país
pequeno e como o seu Império se estendia por
territórios tão diversos e longínquos. A sua
organização coube ao capitão Henrique Galvão, o
mesmo que, anos depois, viria a ser um opositor
acérrimo do regime e o operacional, em janeiro de
1961, do assalto ao paquete “Santa Maria”.

Galvão iria repetir, em Belém, o modelo que


utilizara, em 1934, na Exposição Colonial do
Porto. Pavilhões específicos sobre as diversas
colónias e recriações de aldeias indígenas
africanas, timorenses e a já citada rua de Macau.

A completar o cenário, indígenas vindos


expressamente para este fim das colónias
habitavam estas aldeias de fantasia,
abrilhantadas também com leões, jacarés,
hipopótamos e mesmo um elefante trazidos do
Jardim Zoológico.

E porque tudo tinha de estar representado do


Minho a Timor, na ponta oposta à secção colonial
foram também recriadas, a rigor, as aldeias
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portuguesas, não faltando mulheres a fiar,
homens a malhar, o arranjo das redes, oleiros,
músicos, etc.

Se os que ‘habitavam’ as Aldeias Portuguesas


(Jorge Segurado) estavam em casa, conheciam a
língua e estavam protegidos do frio com os
vistosos trajes de cada região, o mesmo não
acontecia com os que foram trazidos das colónias.
Poucos entendiam o português de Lisboa e
tiveram de enfrentar seminus o frio que se fez
sentir sobretudo nos meses de outono, e a
curiosidade, por vezes alvar, dos visitantes.

Sem poder contar com a afluência inicialmente


prevista de estrangeiros, as visitas de nacionais
iriam ser facilitadas e incentivadas

Apesar de só a 2 de setembro ter chegado ao Tejo,


a “Nau Portugal” foi a verdadeira coqueluche da
exposição. Construída em Aveiro por mestre
Mónica sob a direção de Quirino da Fonseca e do
mentor da ideia, Leitão de Barros, a nau adornaria
no momento do bota-abaixo, por falta de lastro,
lançando à água todos os que se encontravam
dentro dela. Seriam precisos meses de muito
trabalho para a pôr a flutuar de novo e limpar. Os
planos utilizados para a sua construção tiveram de
ser os de um galeão inglês, por não existirem nos
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arquivos os de uma nau portuguesa. Na sua
decoração seriam utilizadas talhas douradas
originais provenientes, pasme-se, de Mosteiros
como o de Alcobaça e da Batalha e de Igrejas
como a de Jesus, de Setúbal, São Francisco, de
Évora, São Domingos, de Elvas, e da Lourinhã. A
razão é simples. Os restauros da DGEMN, sem
respeito pelas marcas do tempo, retiraram, nos
monumentos mais antigos, toda a decoração
barroca, de forma a apresentar o românico e/ou
gótico naquilo que os técnicos entenderam ser a
sua pureza original...

A Exposição do Mundo Português foi um


verdadeiro sucesso e fecharia as suas portas a 2
de dezembro de 1940. Semanas depois, um
ciclone varria Lisboa e destruía grande parte dos
pavilhões muitos dos quais foram, pouco depois,
demolidos. O da Formação e Conquista (Rodrigues
Lima) ainda seria utilizado até 1947 para
armazenar material hospitalar. Os dois pavilhões
principais do recinto, o dos Portugueses no Mundo
e o de Lisboa e de Honra seriam alugados à
Administração Geral do Porto de Lisboa e
demolidos em 1950.

Da Exposição do Mundo Português pouco chegou


aos nossos dias. Ficou a Praça do Império

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(Cottinelli Telmo/Lacerda Marques), o Pavilhão de
Desportos Náuticos (António Lino), hoje Espaço
Espelho de Água, parte do Pavilhão dos
Descobrimentos (Pardal Monteiro) onde funciona
o Clube Naval e o Pavilhão de Etnografia
Metropolitana (Veloso Reis/João Simões),
posteriormente adaptado, por Jorge Segurado, a
Museu de Arte Popular. Quanto ao Padrão dos
Descobrimentos tal como hoje o conhecemos, só
foi inaugurado em 1960. O original, em gesso,
seria, por vontade do seu autor, Cottinelli Telmo,
destruído.

Hoje, passados 80 anos ainda não se consegue


olhar para a Exposição do Mundo Português com
distanciamento e muitos ainda a execram por ter
sido uma das grandes obras de propaganda do
regime. Não há muitos anos, uma exposição sobre
este tema prevista para o esquecido Museu de
Arte Popular acabaria, por isso, por cair. E foi
pena. Muito haveria para dizer sobre ela, sobre os
homens e mulheres que a fizeram e que hoje são
referências incontornáveis da nossa História da
Arte, sobre a ditadura e sobre o período histórico
em que se inscreveu. Mas amores e ódios são
mesmo assim. Provavelmente, terão, talvez, de
passar ainda muitos anos até se conseguir separar
as águas e olhar para a Exposição do Mundo
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Português sem saudosismo, mas pela importância
efetiva que esta teve em sucessivas gerações de
arquitetos, pintores, escultores e designers.

O que não deixa de ter graça é que, na época, os


ultras do regime não se reviram na exposição. Em
contrapartida, o escritor e opositor ao Estado
Novo Jaime Cortesão — preso em junho de 1940,
na fronteira de Vilar Formoso —, que se
encontrava detido no forte de Peniche, pediria, em
agosto desse ano, autorização a Salazar e à polícia
política — que lhe foi concedida — para sair da
cadeia e visitar a exposição...

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