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TÍTULO: Brasões da Praça do Império: como criar património colonial em


2022.

Por duas vezes, em 2016 e 2021, alguns milhares de pessoas assinaram duas
petições promovidas pela Nova Portugalidade, uma associação de extrema-direita
que se tem dedicado ao revisionismo histórico em relação ao Estado Novo. O
objetivo dos peticionários era garantir, na requalificação da Praça do Império, em
Lisboa, “a não remoção dos brasões florais ali existentes no passado” (que incluíam
os das antigas províncias ultramarinas, hoje Estados independentes), porque a
praça projetada “deve ser preservada fiel, autêntica e integralmente”. A não
remoção de uma coisa que existiu no passado desafia, à partida, a lógica, mas já lá
vou.

Para os peticionários, o projeto de reformulação da praça teria o “propósito claro,


indisfarçável e puramente ideológico de remover os brasões, em particular os que
aludem ao antigo Ultramar português, num ato de lastimável talibanismo cultural”
e numa “manipulação autoritária da História e o afunilamento de opiniões”. Um
afunilamento que resultaria da “importação de uma tradição que não é portuguesa,
mas anglo-saxónica”. A tradição genuinamente portuguesa seria, claro, a que
afirma que “Portugal foi uma nação africana”. A deles.

A Nova Portugalidade exigia, assim, que se suspendesse o atual projeto e


“promover um projeto de reabilitação que não preveja alterações formais e
conceptuais, valorizando toda a estrutura existente e preservando-a integralmente
para o futuro, incluindo todos os brasões florais, históricos e ultramarinos, lá
representados.”

A praça que originalmente não tinha brasões

Comecemos pelo mínimo de enquadramento (aconselho, para análise mais


pormenorizada deste caso, a leitura do exaustiva do relatório da Assembleia
Municipal de Lisboa sobre a petição, muitíssimo úteis para este artigo), que faltou a
muito colunista automático que, em 2016 e 2021, veio em defesa do património e
contra a reescrita da história, contribuindo para um atentado ao património e para
reescrever a história. O Jardim da Praça do Império, desenhado pelo arquiteto-
chefe da Exposição do Mundo Português de 1940, Cottinelli Telmo, ajardinado por
Vasco Lacerda Marques, tendo no centro uma fonte com as armas das famílias dos
principais descobridores, autoria de António Lino, ligou o Mosteiro dos Jerónimos
ao rio. Para isso, o edificado então ali existente foi demolido. E não havia brasões
alguns.

A escolha deste espaço para a exposição de propaganda do Estado Novo, em 1940,


tinha uma história. A centralidade daquela zona para a exaltação da identidade
nacional e imperial vinha de antes: da reabilitação do Mosteiro dos Jerónimos; da
trasladação das ossadas de Camões para os Jerónimos; da escolha de Belém para a
comemorações do nascimento do Infante D. Henrique, da Descoberta do Caminho
Marítimo para a Índia e do Achamento do Brasil, no final do século XIX; e da
escolha do Palácio de Belém como sede da Presidência, em 1912.
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Na década de 1960, na celebração 500 anos da morte do Infante D. Henrique, foi


usada de novo. O Padrão dos Descobrimentos, que pretendia ser efémero para a
exposição de 1940, foi só então construído em betão e pedra. E, nesse mesmo
momento, acontece a XI Exposição de Floricultura em que são exibidas as armas
das capitais de distrito, das províncias ultramarinas e das ordens de Aviz e de
Cristo. Tratava-se de uma exposição provisória, que não fazia parte do projeto
original de Cottinelli Telmo e Vasco Lacerda Marques. Fruto do seu anacronismo e
efemeridade, acabou, como geralmente acontece, abandonado e irreconhecível.

Em 2015, a Câmara Municipal de Lisboa aprovou um concurso de conceção para a


elaboração de projeto de renovação do Jardim da Praça do Império. O júri era
composto por Simonetta Luz Afonso, Adriano Moreira, Elsa Peralta, um
representante da Associação de Arquitetos Paisagistas, três representantes
serviços da Câmara. Simoneta Luz Afonso e Adriano Moreira estariam, tenho a
certeza, como representantes do “talibanismo cultural e indisfarçável pulsão
ideológica”. O projeto não contemplava a “conservação” dos arranjos florais com os
brasões.

Até que os ativistas da Nova Portugalidade apareceram. Não se tratava de manter


as coisas como estavam, mas, em 2021, tornar permanente o que não o fora,
reconstruindo o passado no presente. Mas o que tinham em mente era mais do que
isso, como veremos.

Sem valor patrimonial

Nunca esteve em causa qualquer atentado ao património. O projeto de restauro


respeitava a Carta de Florença, onde se lê que “se um jardim desapareceu
totalmente ou se os vestígios que restam servem apenas para traçar conjeturas
sobre as suas sucessivas fases, a reconstituição não deve ser considerada”. E até se
diz que, “em princípio, não se deve privilegiar uma época em prejuízo das demais”,
que foi o que os peticionários defenderam, privilegiando uma intervenção efémera,
no quadro de uma Exposição de Floricultura, entretanto perdida, em prejuízo do
projeto inicial. Não por razões patrimoniais, mas políticas.

Por outro lado, os brasões não eram património classificado. E não é por acaso.
Não preenchem nenhum requisito presente na Lei de Base de Proteção do
Património Cultural, como se explicava no relatório da Assembleia Municipal: não
são marcados por uma específica autoria, não apresentam desenhos originais, não
correspondem a elementos de antiguidade e memória coletiva da cidade e nem se
inserem no perfil arquitetónico do projeto da Praça do Império.

Por fim, estamos perante as ruínas do que foi arte efémera, nunca pensada para ali
permanecer como património. Claro que pode haver uma passagem do efémero
para o perene. Foi o que se fez, por razões políticas e não patrimoniais, com o
Padrão dos Descobrimentos, em 1960. Mas quando se quer preservar na memória
a arte efémera ela é fotografada, por exemplo. A própria Assembleia Municipal
recomendou que fosse criado um circuito interpretativo, no túnel de acesso ao
Padrão dos Descobrimentos, mostrando a evolução da Praça. Só que a Nova
Portugalidade procurava uma afirmação política, não uma preservação
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patrimonial. Se as coisas fossem como defendem, andávamos a preservar os


murais do MRPP, que têm o valor histórico de retratar um determinado período da
nossa vida política. Não o fazemos.

Foi o próprio Cottinelli Telmo a escrever: “conservar bocados da Exposição (...)


parece-me erro! São restos, ruínas, farrapos.” Imagine-se em relação a uma
exposição temporária de floricultura, plantada duas décadas depois.

Sobrava então o “valor espiritual”, um eufemismo dos peticionários para falar do


“valor ideológico” do que não tem valor patrimonial. E aí, entramos no debate
estritamente político em que o país que construiu o seu regime democrático
constitucional com base no fim da sua vocação imperial quer celebrar, não as
“descobertas” ou a expansão, mas a possessão das colónias, que os brasões
representam, na sua marca datada dos anos 60. É bom recordar que estes brasões
foram criados em 1935, sem qualquer lastro histórico para além de alguns
elementos heráldicos anteriores. Ou seja, mesmo do ponto vista simbólico o seu
valor patrimonial é irrelevante.

Não era sequer o Império que os peticionários queriam celebrar, era a


representação política que o Estado Novo fazia do Império. Não por acaso,
repetiram, na petição, toda a retórica e a linguagem que a ditadura usava para o
caracterizar. Não havendo qualquer tentativa de preservação patrimonial que,
como veremos, os próprios peticionários abandonaram para abraçar uma solução
que desrespeita grosseiramente o que ali alguma existiu ou foi projetado, é um
património político e ideológico, eles sim, que defenderam.

Criar património para reabilitar o colonialismo

Numa coisa estava toda a gente de acordo: a recuperação dos brasões era, pelo
nível de degradação e a inexistência de profissionais especializados para o fazer,
inviável. Os próprios peticionários reconheciam que o património que o projeto de
recuperação supostamente iria destruir era irrecuperável. Ou seja, a conversa da
destruição patrimonial serviu para agitar fantasmas que uns idiotas inúteis
transformaram em crónicas indignadas. Não havia nada de recuperável.

Da defesa da manutenção do projeto construído pelo Estado Novo, porque nada


podia ser mudado, os peticionários passaram para a fase seguinte: aquilo poderia
ser reproduzido na calçada, dando-lhe o caracter permanente que nunca teve.
Subitamente, o argumento que tinha sido usado contra todas as alternativas
apresentadas (como a utilização a reprodução dos símbolos heráldicos dos atuais
Estados de Língua Oficial Portuguesa), que era o respeito absoluto pelo projeto de
Cottinelli Telmo, evaporou-se. Podíamos, afinal, recriar, mudar, inventar. Até
podíamos fixar no chão os brasões que o Estado Novo criou para as colónias, em
pleno século XXI. Já não estamos a falar de preservação de seja o que for, mas da
construção, em 2022, de um monumento ao colonialismo, com brasões de
províncias ultramarinas que não existem, projetadas e desenhadas agora, sem
relação com o que alguma vez existiu ou teve para existir.
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O que eles criam não era conservar património que já era irrecuperável, mas criar
património novo. Às expensas da autarquia, exigiam ter um monumento às suas
próprias convicções políticas. Este grupo político de extrema-direita, que se faz
passar por defensor da memória histórica, apossou-se duma praça de Lisboa, como
se tivesse qualquer direito de pernada sobre a história do país, apesar da ditadura
de que se sentem herdeiros ter sido derrotado há quase meio século.

Na petição, lamentava-se ser dada “mais atenção ao memorial à Escravatura no


Campo das Cebolas do que à comemoração da Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa”. Esclarecedor é que o indigno empedrado já tenha sido inaugurado
com a presença do Presidente da República, enquanto o memorial nem ainda não
saiu do papel. Talvez diga alguma coisa do poder que estas pessoas vão ganhando.

Dirão que nada disto tem importância, são apenas pedras de calçada. Equívoco
displicente. A extrema-direita sempre teve, em Portugal, um problema para se
impor: a memória. O que ali estava em causa não eram os símbolos do Império,
mas os símbolos do Estado Novo, para quem o Império era instrumental.
Desmemoriar, passando a contar a nossa história através da imagética do Estado
Novo, é essencial para se naturalizar. E fazem-no à boleia de quem não quer
chatices com coisas simbólicas.

E assim conseguiram impor a Lisboa, em pleno século XXI e em nome da proteção


do património que nunca existiu, um empedrado definitivo com brasões de
coloniais que nunca estiveram projetados ou existiram dessa forma, tornando
definitivo arranjos florais que se pretendiam efémeros. Nunca foi a preservação do
património, que os próprios não se importaram de adulterar grosseiramente, que
esteve em causa. Foi a afirmação, no presente, de um discurso derrotado pela
história. Foi, ao contrário do que acusam outros, uma afirmação estritamente
ideológica.

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