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Por duas vezes, em 2016 e 2021, alguns milhares de pessoas assinaram duas
petições promovidas pela Nova Portugalidade, uma associação de extrema-direita
que se tem dedicado ao revisionismo histórico em relação ao Estado Novo. O
objetivo dos peticionários era garantir, na requalificação da Praça do Império, em
Lisboa, “a não remoção dos brasões florais ali existentes no passado” (que incluíam
os das antigas províncias ultramarinas, hoje Estados independentes), porque a
praça projetada “deve ser preservada fiel, autêntica e integralmente”. A não
remoção de uma coisa que existiu no passado desafia, à partida, a lógica, mas já lá
vou.
Por outro lado, os brasões não eram património classificado. E não é por acaso.
Não preenchem nenhum requisito presente na Lei de Base de Proteção do
Património Cultural, como se explicava no relatório da Assembleia Municipal: não
são marcados por uma específica autoria, não apresentam desenhos originais, não
correspondem a elementos de antiguidade e memória coletiva da cidade e nem se
inserem no perfil arquitetónico do projeto da Praça do Império.
Por fim, estamos perante as ruínas do que foi arte efémera, nunca pensada para ali
permanecer como património. Claro que pode haver uma passagem do efémero
para o perene. Foi o que se fez, por razões políticas e não patrimoniais, com o
Padrão dos Descobrimentos, em 1960. Mas quando se quer preservar na memória
a arte efémera ela é fotografada, por exemplo. A própria Assembleia Municipal
recomendou que fosse criado um circuito interpretativo, no túnel de acesso ao
Padrão dos Descobrimentos, mostrando a evolução da Praça. Só que a Nova
Portugalidade procurava uma afirmação política, não uma preservação
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Numa coisa estava toda a gente de acordo: a recuperação dos brasões era, pelo
nível de degradação e a inexistência de profissionais especializados para o fazer,
inviável. Os próprios peticionários reconheciam que o património que o projeto de
recuperação supostamente iria destruir era irrecuperável. Ou seja, a conversa da
destruição patrimonial serviu para agitar fantasmas que uns idiotas inúteis
transformaram em crónicas indignadas. Não havia nada de recuperável.
O que eles criam não era conservar património que já era irrecuperável, mas criar
património novo. Às expensas da autarquia, exigiam ter um monumento às suas
próprias convicções políticas. Este grupo político de extrema-direita, que se faz
passar por defensor da memória histórica, apossou-se duma praça de Lisboa, como
se tivesse qualquer direito de pernada sobre a história do país, apesar da ditadura
de que se sentem herdeiros ter sido derrotado há quase meio século.
Dirão que nada disto tem importância, são apenas pedras de calçada. Equívoco
displicente. A extrema-direita sempre teve, em Portugal, um problema para se
impor: a memória. O que ali estava em causa não eram os símbolos do Império,
mas os símbolos do Estado Novo, para quem o Império era instrumental.
Desmemoriar, passando a contar a nossa história através da imagética do Estado
Novo, é essencial para se naturalizar. E fazem-no à boleia de quem não quer
chatices com coisas simbólicas.