Você está na página 1de 31

Remove

Wondershare
Watermark PDFelement

O estilo que nunca existiu

Carlos A.C.Lemos
As diversas posições nacionalistas

Página 147

É evidente que este livro trata das reações


nacionalistas que, no início deste século, na América
Latina, buscavam uma definição de estilos
arquitetônicos modelados na tradição dos primeiros
tempos e, se possível, na cultura vernacular dos
povos autóctone, tentando assim substituir todo o
vocabulário eclético importado da Europa durante o
século XIX. Em tese, houve aqui uma resistência
que impôs a tradição arquitetônica como forma de
alcançar uma “identidade” cultural recomendável.
Tratava-se do resgate de uma arquitetura esquecida,
não praticada há várias gerações.

No entanto, essa atitude xenófoba deu origem a


diferentes posições em diferentes países
americanos, principalmente no que se refere à
formulação do que é verdadeiramente "tradicional",
conceito vinculado a soluções ditas vernaculares e,
portanto, apropriado
para satisfazer o nacionalismo latente. De fato, a
história dos países hispano- americanos, no que se
refere à arquitetura, mostra que não houve uma
difusão homogênea de soluções
estilísticas ou técnicas construtivas, devido às
diferenças que existiam entre os povos daquelas
regiões no que toca a disponibilidade de recursos
e,principalmente, a nível cultural, sem ter em conta
as diferenças evidentes na quantidade de ouro e
prata extraídos, metais preciosos indispensáveis
para o crescimento da arquitetura.

Esse nacionalismo que aspirava a uma arquitetura


própria, caracterizada por uma “identidade nacional”,
teria que buscar soluções plásticas ou estilísticas
fora do repertório dos antigos colonizadores, pois
para ser coerente no campo político era ilógico que
Remove
Wondershare
Watermark PDFelement

no chamado patriota se desse espaço para lembrar


dos conquistadores.

Página 148

A independência política, embora fosse um fato


bastante antigo,não adaptaria facilmente um retorno
servil à estética dos tempos submissos. Dessa
maneira, o nacionalismo arquitetônico tinha diante
de si duas hipóteses para revisar: ou adotava a
influência decisiva
da arquitetura e das artes dos povos encontrados
pelos navegantes, ou aceitava a produção criada na
Colônia a partir da reinterpretação de modelos
europeus realizada por produção local, que conhecia
tanto o "saber fazer" da região como os recursos do
meio ambiente. Ou a arquitetura indígena, ou a
arquitetura sincrética praticada pelo povo,
alheia às regras ortodoxas da metrópole. Delas,
sobrepostas ou não, emergiria a vertente
nacionalista.

Sem dúvida, nas zonas de influência das antigas


civilizações Maia, Asteca e Inca, os discursos
nacionalistas que preconizavam o retorno às raízes
pátrias eram facilmente postos em prática,pois aí se
podiam consolidar soluções arquitectónicas que
fundiam a tradição ibérica com a herança local. No
México e no Peru, além da herança pré colombiana,
a arquitetura erudita dos conquistadores teve
presença sólida graças à abundância de metais
preciosos, o que também possibilitou, também,
reflexos na produção popular, principalmente devido
ao bom nível de escolaridade que a Espanha
permitia aos colonos.

O caso brasileiro é diferente. Não tínhamos uma


arquitetura indígena que respondesse
satisfatoriamente às necessidades do colonizador
português.Por outro lado, devido à pobreza da
colônia, a arquitetura de grande porte não era
possível, com exceção de uma ou outra obra
barroca no litoral. Somente nos últimos anos do
período colonial o ouro de Minas Gerais permitiu o
Remove
Wondershare
Watermark PDFelement

surgimento de uma arquitetura genuinamente


brasileira, de inspiração rococó, que contou não só
com igrejas, mas também magníficas prefeituras e
muito poucas casas senhoriais. No entanto, os
testemunhos daqueles tempos indicam que o
barroco mineiro não se popularizou através de
reflexos na arquitetura alheia à religião e à ordem do
reino. Naquela época, a cidade ainda era construída
em estilo "gótico". De fato, a austera arquitetura
pombalina avançou durante o século XIX por todo o
Brasil, homogeneizando as paisagens urbanas do
Oiapoque ao Chuí. Claro que o neoclássico histórico
trazido pela missão francesa, porém, foi um estilo
cortesão que caracterizava o império nascente.
Estilo de Napoleão, o inimigo do rei português e, por
isso, adotado sem muito pesar pelo jovem
imperador. Esse neoclássico teve pouca trajetória
popular fora do Rio de Janeiro.

O comportamento psicológico brasileiro diante do


ecletismo deve ser melhor estudado, pois a
revolução industrial, cedo ou tarde, impôs em nosso
país, graças aos pólos de riqueza que surgiram em
algumas regiões a partir da segunda metade do
século XIX. Riqueza gerada pelo café em São Paulo,
pela borracha no Norte amazônico, pelo cacau na
Bahia, pelo comércio pesqueiro na Laguna, etc As
cidades importantes, principalmente as capitais
estaduais sob o comando da capital da República,
começaram a conhecer o novo estilo. Não se tratava
somente de outra variedade estilística, mas sim de
um outro conceito de construção, totalmente
diferente daquele originário da época colonial. Essa
arquitetura antiga era agora, com razão,
anatematizada porque veio de épocas sombrias sem
escolas nem imprensa para abrir os olhos do povo
marginalizado deste lado do mar. Era uma época
triste em que a pobreza também se refletia em obras
sem imaginação. O ecletismo era a modernidade
que chegou tarde, muito depois do "grito do
Ipiranga", mas que melhorou as condições de
moradia de todos. Habitar casas ventiladas,
iluminadas e ensolaradas. Adeus aos quartos
escuros que em plena dia exigiam velas e
Remove
Wondershare
Watermark PDFelement

lamparinas mal cheirosas projetando longas


sombras nas paredes fechadas que retinham o ar
pesado. Casas não só confortáveis, mas também
belas- o estilo favorecia as decorações caprichosas,
e o dinamismo da nova estrutura permitia dar um
toque pessoal às construções.

Pág 149

Antes as variações eram quantitativas; os ricos


viviam em casas muito grandes com terraços e os
pobres, em casas pequenas com portas e janelas.
No entanto, a técnica construtiva era sempre a
mesma em todos os edifícios, os mesmos azulejos,
as mesmas "escuras" portas e janelas. Tudo de
acordo com o que se aprendeu nos tempos do
domínio português. Nessa ocasião, todos
procuravam avidamente a nova linguagem
arquitectónica onde as variações eram qualitativas e
os problemas de afirmação social facilmente
resolvidos. Era uma outra arquitetura que exigia um
novo “saber fazer” e materiais de fora, totalmente
alheios ao ambiente. Construções imediatamente
excluídas do património estabelecido dos bens
culturais tradicionais. Era como se tivessem caído do
céu. O passado foi execrado. Com o fluxo de
dinheiro proveniente do café, São Paulo foi
totalmente reconstruída com tijolos, banindo
totalmente a taipa colonial. O sonho de todos era
uma nova vida no estilo francês em novos
ambientes. O passado nunca mais.

No panorama esboçado anteriormente, deixando


para trás o final do século e com a chegada da
nossa belle époque, na ante vésperas da Grande
Guerra, seria possível a existência de um movimento
nacionalista em prol da arquitetura antiga? Tudo
indica que não; no entanto, este movimento surgiu
precisamente no campo da arquitetura residencial, e
a ideia de um regresso às antigas soluções
estilísticas surgiu e venceu – não por amor às velhas
soluções estilísticas, mas pela necessidade de um
gesto de afirmação nacionalista por parte do dono
da casa que se opunha ao imigrante cheio de
Remove
Wondershare
Watermark PDFelement

novidades, que, se não fosse vigiado, a qualquer


momento acabaria por controlar tudo.

Ricardo Severo e os formadores de opinião

É sintomático que a campanha por “ a arquitetura


tradicional" tenha nascido em São Paulo, cidade que
ao entrar no novo século, tinha uma população
composta por 50% de estrangeiros. Só os italianos
representavam mais de 40%. As famílias locais
observavam perplexas o crescimento excessivo da
cidade, em plena Rua Direita, hoje muito
movimentada e cheia de mulheres, algo inconcebível
alguns anos atrás. Todos falavam alto e se escutava
não o conhecido sotaque do dialeto camponês, mas
o vozerio ininteligível de italiano e alemão em frases
que atravessavam a rua, alardeando o surgimento
de uma nova sociedade, formada por pessoas
aleatórias que chegavam ao azar para adotar uma
nova pátria e reconstruir uma nova cidade, apesar
do desagrado do atônito paulistano. No início,
especialmente o italiano era segregado. Os
sociólogos já estudaram este tema, que
recentemente inspirou diversas obras literárias de
escritores movidos pelo drama do italiano
marginalizado, entre os quais se destaca Antônio de
Alcântara Machado, autor de contos cativantes. A
classe média hostilizou muito o forasteiro.

Até os primeiros dias da guerra de 1914, o


crescimento de São Paulo ocorreu em progressão
geométrica. No entanto, uma vez eclodido o conflito,
as comunicações com a Europa foram prejudicadas,
principalmente devido aos bloqueios navais. Todas
as importações de material de construção foram
interrompidas, e a crise econômica provocada pela
queda nas exportações de café acabou sendo o
motivo da paralisação quase total das obras na
cidade. Um gráfico elaborado na década de 1920
pelo engenheiro Arthur Saboya nos mostra a queda
vertical da curva que até então havia subido no
impulso construtivo da cidade. Essa queda reduziu a
atividade do setor a um nível quase igual a zero.
Tudo parou para esperar a paz e o dinheiro que o
Remove
Wondershare
Watermark PDFelement

&

café ainda traria. Só a partir do armistício de 1918


aquela curva voltou a se levantar e, ao contrário das
regras da natureza, aquela depressão no relevo
estatístico constituiu um verdadeiro divisor de águas.
Antes da Grande Guerra existiu a arquitetura
eclética classicista italiana e, depois dela, a

Pág 150

arquitectura "tradicional" misturada com soluções


sempre desarticuladas do fim do século, mais
relacionadas com os modelos que chegavam nas
revistas mundanas e com o cinema americano, o
qual nos ensinou uma nova terminologia. Foi assim
que conhecemos o bangalô, o hall em vez de
vestíbulo, a sala em vez de sala de estar, o W.C. em
vez da latrina, etc. A cidade estava cheia de
bangalôs, não os de inspiração hindu, mas sim as
casas térreas com paredes de tijolos aparentes,
cobertas e telhados recortados sem um estilo
definido. Essas casas eram principalmente no estilo
das missões mexicanas. Qualquer coisa valia, desde
que não fosse da linha italiana do pré-guerra. Nunca
mais casas com alinhamento e soltãos altos. No
entanto, a força de trabalho continuou a ser
ironicamente peninsular. O capomastri chegou ileso
até a década de 1930. S "
CONSTRUTORES
SITALIANOS

Foi durante os dias da guerra, no mês de julho de


1914, que o engenheiro português Ricardo Severo
proferiu uma palestra na Sociedade de Cultura
Artística defendendo uma nova arquitetura que
deveria ser praticada pensando no passado, visto o
ressurgimento dos elementos de composição das
construções da época da colônia. Daí a expressão
“arquitetura colonial” que se usava na época. Nessa
conferência publicada ainda durante a guerra, em
1916, Severo concluiu:
É necessário, portanto, que os jovens arquitetos
nacionais iniciem uma nova era do RENASCIMENTO
BRASILEIRO; Dedico esta primeira lição a eles.
Remove
Wondershare
Watermark PDFelement

Esse "renascimento" sugerido por Ricardo Severo


certamente não foi um simples movimento a favor da
volta aos tempos coloniais. Acreditamos que
desejava ir mais longe nessa questão da
nacionalidade, pois suas ideias, que alguma vez
tachadas de reacionárias, nos fazem pensar em uma
rejeição de tentativas de universalizar procedimentos
e homogeneizar soluções que pudessem abafar
algum sentimento pátrio e provocar o
desaparecimento de uma “identidade cultural”. Três
anos antes de sua conferência na Sociedade de
Cultura Artística, ao assumir sua cadeira no Instituto
Histórico e Geográfico de São Paulo, ele já nos
dizia:

A corrente antinacionalista de algumas teorias políticas


atuais, a doutrina divisiva de algumas seitas filosóficas
e religiosas, exigem a reação decisiva daqueles que, à ideia de
pátria, associam intimamente a ideia da sua própria
individualidade, integral e autônoma, livre e independente como
deve ser sempre a pátria que foi do seus pais e deve pertencer
aos seus filhos.

O vosso Instituto é responsável por este trabalho de


concentração nacionalista, de resistência defensiva contra o
cosmopolitismo destruidor das unidades cristalinas que as
nações representam no mundo humano as nações.

Como um voto dos mais humildes, depositado com todo o


respeito em um templo, diante de vocês declaro sinceramente-
ilustres e estimados confrades - meu compromisso de
iniciação, ao ingressar em vosso guilda, em favor de suas
tradições nacionais que são para mim como o sagrado
tradições da minha pátria.

Este trecho explica muitas coisas. O autor é contra a


"corrente antinacionalista" que ameaça a "ideia de
pátria", que deve permanecer "íntegra e autônoma";
a pátria "que foi do seus pais e há de ser dos seus
filhos". E os imigrantes recém- chegados, que
formavam metade da população, qual seria a
postura adotada perante eles nesse contexto?
Severo defendia a "resistência defensiva contra o
cosmopolitismo destrutivo" das nações, no que se
refere ao "mundo humano", ou seja, às sociedades
ou "unidades cristalinas". Por outro lado, não se
considerava estrangeiro porque, como diz, "as
Remove
Wondershare
Watermark PDFelement

vossas tradições" são "as sagradas tradições da


minha pátria". Desta forma, desconsiderou
solenemente 400 anos de experiência vivida por
portugueses, índios e negros, trabalhando
duramentelado lado a lado sob o sol quente dos
trópicos. Falava, portanto, em nome dos
companheiros da classe rica paulistana, pois, desde
que chegou definitivamente de Portugal, em 1908,
circulava livremente na alta sociedade cafeeira. Foi
sócio de Ramos de Azevedo, dono do maior
escritório

Pág 151

de construções de São Paulo, homem de incrível


prestígio na cidade, politicamente poderoso por suas
relações e parentesco com os mais importantes
fundadores da República, como General Glicério,
Campos Sales, Bernardino de Campos, Paula Souza
e tantos outros que ajudaram refazer São Paulo
sobre as lentes do ecletismo suntuoso. Ricardo
Severo estava deslumbrado com o passado da velha
Lusitânia. No fundo, ele era nostálgico. Já tinha
publicado na sua terra a revista de arqueologia
Portugália, onde procurava valorizar os povos antes
dos romanos. Procurava nos originais pré latinos as
marcas indeléveis do povo
lusitano. Aqui deu muitas conferências e foi um
intelectual de renome, inclusive fora da colónia
portuguesa. Casado com a filha do "rei do café",
cunhado de Santos Dumont e dos irmãos Villares,
pessoas ricas originárias do Porto, Ricardo Severo
frequentava lugares onde era ouvido com atenção.
Sabia do que falava e acabou convencendo os
demais de que o paulista autêntico deveria construir
sua casa dentro da tradição brasileira para se
contrapor aos imigrantes ricos que construíam
palacetes na avenida Paulista de acordo com as
exigências de sua nacionalidade, escolhendo estilos
típicos de suas terras de origem. Na famosa
avenida, estilos florentinos, de influência árabe,
neo-renascentista francês, barroco Baviera ou
estilos inspirados na estética dos Luíses,
especialmente Luís XVI, junto a uma infinidade de
Remove
Wondershare
Watermark PDFelement

construções concebidas dentro de todas licenças

.
poéticas possíveis, de acordo com o sonho ou a
saudade de cada um. Só faltou o estilo brasileiro que
nunca havia ocorrido a Ramos de Azevedo, mas que
lhe foi apontado oportunamente pelo sócio de
escritório. A casa do banqueiro Numa de Oliveira,
I
construída entre 1916 e 1917, foi o início da reação
"nacionalista".

Mas que estilo era esse chamado "colonial"? Quais


foram as fontes de inspiração para essa nova
corrente inimiga das audaciosas extravagâncias dos
novos-ricos estrangeiros?

A princípio, Ricardo Severo agiu sozinho, sem que


ninguém lhe desse conselhos. Embora dizia que as
obras do mestre Valentim e do Aleijadinho deveriam
ser estudadas, apresentou
projetos estreitamente relacionados com as
construções ancestrais do século XVIII no Norte de
Portugal, principalmente no que diz respeito à
volumetria. Eram construções do tempo do ouro que
o Brasil saqueado jamais chegaria a conhecer.
Enquanto que essa tradicionalista renovação
estilística era adotada pela classe dominante
"nativa" para se contrapor às correntes européias, as
opiniões dos críticos e arquitetos alimentavam
polêmicas que ocupavam amplos espaços na
imprensa, principalmente na década de 20.

Acreditamos que o primeiro intelectual a escrever


sobre nosso tema na imprensa foi Monteiro Lobato.
Seus textos provocaram amplos aplausos
generalizados e, também, a reprovação de pessoas
definitivamente ligadas ao ecletismo europeu devido
a uma formação acadêmica inabalável, como foi o
caso do arquiteto Christiano Stockler das Neves.
Monteiro Lobato apareceu repentinamente na
imprensa, encantando a todos com sua forma ágil de
escrever, contrariando o generalizado costume dos
pomposos e extensos textos jornalísticos cheios de
adjetivos. Seu estilo era verdadeiramente coloquial e
ia direto ao ponto, sempre apimentado de humor,
sarcasmo e às vezes não apimentado, mas
Remove
Wondershare
Watermark PDFelement

carregado de pesadas advertências. Ele era lido


com avidez pela classe média, da qual era, na
verdade, o porta-voz. Achava que sabia de tudo e
muitas vezes demonstrava intolerâncias inoportunas
e verdadeiramente desprovidas de uma reflexão
mais atenta e de leituras mais aprofundadas. Era um
ser impulsivo que escrevia com insuperável
entusiasmo na imprensa. Cometeu injustiças
incríveis com Anita Malfatti, por exemplo, execrando
sua exposição de pintura moderna. Se considerava
moderno, à sua maneira. Era um dos que viam como
modernidade o retorno à tradição

Pág 152

às raízes, enfrentando o ecletismo italiano paulista.

No jornal O Estado de S. Paulo de 6 de janeiro de


1917, escreveu um artigo sobre a necessidade de
criar um estilo nacional. Note-se que a conferência
de Ricardo Severo já havia sido publicada. Nesse
texto, Lobato começa dizendo que a "forma estética"
de uma cidade está intimamente ligada à produção
dos humildes operários, artesãos, carpinteiros,
ferreiros, ceramistas e tantos outros que se
encarregam de construir o universo urbano e não
necessariamente às obras dos grandes mestres.
Tudo isso para falar da grande responsabilidade do
Liceu de Artes e Ofícios, que formava jovens
destinados ao trabalho na construção civil. Sua
obrigação seria seguir um estilo e disse:

Estilo é a forma peculiar das coisas. É um modo de ser


inconfundível. É a fisionomia. É o rosto. Não ter rosto é um mal
tão grande que as cidades têm receio de criar suas próprias
máscaras importadas de outras pessoas para fingir que têm
uma.

Como se vê nessas palavras, Lobato sofria com a


falta de identidade de sua cidade. São Paulo,
segundo ele, havia adotado todas as

as máscaras à venda no mercado confundem beleza


natural com "maquiagem" maori. Quando Anatole
Remove
Wondershare
Watermark PDFelement

France esteve aqui, mostraram-lhe os nossos


monumentos com a certeza de que o homem pelo
menos ficaria de boca aberta. No entanto, o refinado
artista apenas torceu o nariz. - "Já vi isso mil vezes."
- "Onde?" - "Em toda parte, Europa, Tonkin, Port
Said..." Por consideração, ele não terminou a frase:
em todos os lugares onde o homem refutou Darwin
permanecendo um macaco.

Monteiro Lobato dedica vários parágrafos para falar


da internacionalização do nosso gosto, mostrando
que nosso cotidiano não tinha nada de brasileiro.
Tudo por falta de cultura.

Como não nos educam o gosto, não nos ensinam a ver, não
temos o admirável valor do gosto pessoal. Falta de cultura dos
incultos, média cultural dos cultos, esnobismo desenfreado dos
“entendidos" e quadratura paranóica nos mentores supremos:
esse é o quadro dentro do qual a forma estética da cidade
evoluiu. O estilo não se cria, nasce. Nascido pela demanda do
meio. Pois bem, num meio incapaz desta exigência, cabe aos
artistas provocá-la criando o estado de espírito propício. E que
artista é capaz de fazer isso? O anônimo, o artista das
multidões, apenas.

Por isso, Lobato pensava que cabia ao Liceu essa


responsabilidade, o dever de formar o trabalhador
esclarecido nestas questões do "estilo" local. Foi aí
que entraram como responsáveis Ramos de
Azevedo e Ricardo Severo, diretores da escola.

Ramos e Severo têm a autoridade moral e o valor necessários


para tal tarefa. São homens de bandeira. Ricardo Severo já
implantou. Em conferência realizada na Sociedade de Cultura
Artística, uma das mais belas em forma e a mais fértil em
sugestões, ele preparou o terreno para um renascimento. E foi
mais longe. Ele cruzou a difícil lacuna da teoria à realização.
Vários palacetes surgiram por aí, filhos desse ideal.

E continua o extenso artigo falando de temas


nacionais nas diversas artes até chegar à conclusão
de que o Liceu tinha “as condições ideais para
começar a organizar o ansiado 7 de setembro
estético”.
Remove
Wondershare
Watermark PDFelement

Esse primeiro elogio da imprensa à campanha de


Ricardo Severo provocou a reação de Christiano das
Neves, que não concordava em nada com a adoção
de modelos originários dos tempos coloniais. Não
concordava por dois motivos básicos: em primeiro
lugar, nossa produção colonial era pobre, de mau
gosto, inspirada no barroco abjeto, o estilo de
degeneração do classicismo renascentista, e, em
segundo, não tínhamos a possibilidade real de criar
um novo estilo próprio porque nossa a sociedade
ainda estava em formação e não tinha uma
personalidade definida para imaginar soluções
artísticas específicas. A partir desse momento,
Christiano e Lobato brigaram amargamente nos
jornais e

Pág 153

todos pensaram que o jornalista tinha sido o


vencedor. Todos concordaram com sua posição
nacionalista.
Christiano das Neves nunca se deu por vencido e
sempre que podia, atacava o estilo neocolonial. Dez
anos depois, insistiu em defender sua posição com
os mesmos argumentos, agora em polêmica com
José Mariano, o pai do tradicionalismo carioca, como
veremos. Christiano chegou inclusive a publicar uma
coletânea de artigos sobre o assunto, chamada
Considerações sobre a arquitetura tradicional do
Brasil. Essa publicação entrava em debate com José
Mariano e também respondia aos arquitetos
paulistas adeptos ao neocolonial que ultimamente
haviam feito declarações recentemente ao jornal O
Estado de S. Paulo.

Aquele órgão da imprensa paulista havia publicado


um ano antes, em abril de 1926, uma interessante
série de entrevistas realizadas com profissionais
simpatizantes do novo estilo.

Um dos primeiros a se dirigir ao jornal foi


naturalmente Ricardo Severo. A essa altura, o
engenheiro português já havia se firmado como
Remove
Wondershare
Watermark PDFelement

introdutor da ideia tradicionalista e seu pensamento


continuava o mesmo, insistindo na questão da
identidade pátria, a “pátria integral em sua essência
étnica”. Afirmava que

tradicionalismo não significa anacronismo, apego ao passado


ou mera necrofilia. Significa simplesmente o renascimento da
"tradição" que é, no fundo de cada família humana, o espírito
da sua génese, a sua essência ritual e a alma das
nacionalidades…

Sempre as mesmas palavras, embora desta vez ele


se lembrasse de um argumento que não havia
ocorrido antes. Mostra ao repórter que todos tiveram
seu impulso nacionalista em busca de uma
linguagem tradicionalista após o período
neoclássico. Aí se entendeu seu raciocínio; se
referia às variações do ecletismo historicista que
surgiram nos diferentes países europeus após a
linguagem neoclássica histórica. Sim, naqueles
países houve um movimento revolucionário nesse
tradicionalismo: uma reação à cosmopolitização.
Conclui dizendo que não existe um "estilo colonial",
mas sim uma "arte colonial" inspirada nos
ensinamentos da metrópole. Por isso, sempre terá
que ser levada em conta toda a experiência tropical.

Outro que tratou muito do assunto foi o pintor José


Wasth Rodrigues, profissional financiado por Ricardo
Severo e encarregado justamente de compilar
documentos sobre nossa arquitetura antiga em todo
o Brasil, com o intuito de reunir o máximo de
informações sobre o repertório de elementos de
composição arquitetônica que poderiam ser
utilizados por arquitetos modernos pouco viajados e
carentes de informações a respeito. Antes de
praticar o estilo, era obrigação conhecê-lo. Wasth
Rodrigues foi produtivo e dedicado. Reuniu milhares
de desenhos e aquarelas que constituíram
documentos de nossa arquitetura colonial. Dessa
compilação exaustiva surgiram os volumes de seu
Documentário projetado. Na entrevista, defendeu a
mesma tese de Severo. Sonhava em recuperar o
Remove
Wondershare
Watermark PDFelement

"espírito" nacional das belas casas coloniais,


opondo-se assim ao cosmopolitismo.

Depois de Wasth Rodrigues, foi a vez de Alexandre


Albuquerque, que certamente nunca foi
um radical, pois aceitou a arquitetura sugerida pelos
tempos coloniais, mas sem exigir que sua prática
fosse exclusiva. Na entrevista, ele reconheceu que
São Paulo, acima de tudo, era um caldeirão cultural
e que o ecletismo era totalmente válido entre nós.
Ainda assim, destacou que é preciso atentar para as
diferenças entre as condições da época colonial e as
que existem hoje. Chega a afirmar que

são diferentes as bases científicas sobre as quais repousa a


arquitetura são diferentes, assim como o momento histórico é
diferente em todos os sentidos. Por isso, a arte colonial não pode, a
meu ver, ser transformada pela simples vontade de uma certa “elite”
em uma arte nacional que produz inúmeras tendências estéticas e
simboliza a civilização atual.

Pág 154

Na melhor das hipóteses, a arte colonial poderia


"inspirar" os artistas modernos. Ele diz,com razão,
que soluções importadas não devem ir contra o
caráter nacional nem os programas de necessidades
sintonizadas com a tradição. Lembra a tentativa de
substituir a antiga sala, a varanda, que se adapta
melhor à nossa alma, pela pedante sala importada.
Propõe a realização de um inventário exaustivo da
nossa arquitetura antiga porque somente ela, e não
a portuguesa, seria válida na reabilitação.

Por fim, temos o discurso nacionalista do médico


José Mariano Filho, homem nascido de bom
nascimento no clã Carneiro da Cunha, de
Pernambuca. Mariano Filho também desdenhou o
avassalador fluxo imigratório e, olhando para sua
região de origem, onde ainda não se sabia da forte
presença de estrangeiros, afirmava que "arquitetura
é raça". E acrescentava:

Porque não se trata de escolher, numa espécie de concurso


público de arte, qual é o estilo arquitetônico mais belo da
Remove
Wondershare
Watermark PDFelement

humanidade. Isso não importa para nós. Pergunta-se


insistentemente qual é a arquitetura que nos convém.
Responderemos conscientemente:
a nossa.
A primeira coisa que deve ser apreciada no estilo nacional de
um povo, independentemente do interesse artístico com que
está revestido, é sua própria e absoluta adaptação às
condições sociais da raça e às exigências do ambiente físico
em cujo ambiente foi formado.

O chamado estilo "colonial" desapareceu com o tempo. O


movimento atual, que chamamos de “neocolonial”, tem outro
programa a realizar, nem inferior nem superior ao realizado
pelo estilo anterior em seu respectivo século.

O programa de ação desse movimento consiste, sobretudo, na


identificação e seleção do vocabulário característico do estilo
tradicional brasileiro.

Dos seus sábios ensinamentos saberemos obter os corolários


de que nos fazem falta para enfrentar as múltiplas exigências
que nos são impostas neste século.

Através destas declarações dos interessados na


implantação do neocolonial percebemos que seu
maior desejo era a recuperação da antiga linguagem
arquitetônica, própria da “raça” aqui aclimatada. Eles
falaram de raça talvez porque não se usava
naqueles dias a expressão "cultura" no sentido
antropológico moderno. Quase todos desejavam
encontrar o meio de expressão das velhas gerações
dos avós esquecidos ou, em seu lugar, o exemplo
deixado pela “raça” ameaçada. Talvez Alexandre
Albuquerque tenha sido a figura conciliadora porque
constatou que não havia nenhuma raça a
reverenciar. A cidade era "um caldeirão" de
diferentes povos e o ecletismo, a expressão legítima
de uma sociedade heterogênea. Porém, nada o
-

impedia e até resultava simpática essa busca pelo


vocabulário colonial que enriquecia o contexto da
atual arquitetura eclética vigente. A gama de opções
oferecidas pelo ecletismo historicista ganhava um
elemento a mais sem que se impedisse continuar
calmamente as neogóticas da catedral projetada por
Max Hehl.
Remove
Wondershare
Watermark PDFelement

A teoria posta em prática

Até hoje não se sabe quando os conselhos de


Ricardo Severo, expostos em 1914, começaram a
ser ouvidos. Aparentemente, ele só conseguiu
construir sua primeira "casa colonial" entre 1916 e
1917, que foi a residência do banqueiro Numa de
Oliveira na avenida Paulista. Porém, segundo
informações do Prof. Flávio Mota, entre 1914 e 1916
o arquiteto Victor Dubugras já havia construído
residências em Santos utilizando na composição das
fachadas da arquitetura tradicional.

Pág 155

O grande Victor Dubugras foi um personagem chave


na difusão do novo estilo nacionalista em São Paulo.
Estilo cujas intenções, porém, se manifestavam na
prática de forma equivocada, já que seu vigor não
era pautado pela teoria para a escolha de modelos,
elementos de composição e critérios de definição de
padrões que resultassem em uma volumetria
próxima à antiga “caracterologia” das edificações.
Faltavam os instrumentos adequados, é dizer, a
verdadeira arquitetura colonial brasileira em sua
totalidade era muito pouco conhecida. Apenas
edifícios importantes nas grandes cidades foram
cuidadosamente apreciados e fotografados. Não
havia visão global. Era evidente a necessidade de
aumentar o repertório relativo à arquitetura
primitiva,a qual foi muito mal vista e até mal
compreendida nos tempos da euforia eclética do
último quartel do século XIX. Como veremos
adiante, desenhistas competentes foram enviados
ao interior de Minas Gerais, ao Norte e Noroeste do
país para registrar todos os elementos da
composição arquitetônica, a fim de organizar uma
gramática norteadora que estabelecesse as regras
do novo estilo ."brasileira". Tratava-se de coordenar
uma semântica, a partir das relações sintáticas, que
estivesse necessariamente sintonizada com a vida
moderna, cujas necessidades, em permanente
mutação evolutiva, exigiam inevitáveis adaptações.
Tinha que haver uma coerência obrigatória entre o
Remove
Wondershare
Watermark PDFelement

passado e o presente, o que exigia que os


significados dos componentes primitivos
caracterizadores ou condicionantes dos resultados
estivessem presentes com o mesmo sentido
indicativo.

No entanto, isso não aconteceu, apesar dos


esforços iniciais de Ricardo Severo. Por isso é
possível a expressão “ o estilo que nunca existiu” um
estilo foi substituído por outro que surgiu
inesperadamente, pois os arquitetos anarquizaram
as regras de composição, não somente pela falta de
vigilância ou de censura prévia, mas também pela
falta de convivência disciplinada com a antiga
arquitetura erudita e pela óbvia necessidade de
trabalhar com uma nova tecnologia construtiva.
Assim, surgiram inúmeras iniciativas incongruentes
que tentaram transferir de um projeto para outro o
"ambiente" colonial, a "brasilidade", que talvez
passasse despercebido se não fossem os
empréstimos de última hora. Foi o caso da utilização
de frontões sinuosos de igrejas barrocas
sobrepostos a bangalôs e casas com amplos
pórticos com fileiras de arcos. Havia também arcos
de robusta alvenaria que sustentavam delicados
telhados de construídos telhas reviradas.
Sofisticados tetos cheios de sótãos que nada tinham
a ver com os serenos diedros de cavaletes antigos.
Volumes recortados, totalmente dissonantes com os
pesados paralelepípedos dos partidos coloniais.
Obras de a alvenaria trabalha com tijolos aparentes
intercalados com blocos irregulares de granito
dispostos como se estivessem flutuando na
superfície da parede. Tudo era puramente
decorativo. A licença poética era inevitável. Milhares
de invenções apareceram e Victor Dubugras era o
rei delas. Como já foi dito inúmeras vezes, este
arquiteto franco-argentino tinha uma imaginação
inesgotável. A partir de uma temática retirada do
repertório original da arquitetura colonial, criou
situações, relações e espaços inesperados e
surpreendentes.
Remove
Wondershare
Watermark PDFelement

Victor Dubugras, pelo que sabemos, nunca viajou


para estudar arquitetura antiga, exceto para
pequenas excursões aos arredores de São Paulo.
Como naqueles tempos não havia documentação
organizada sobre a nossa arquitetura tradicional na
época, presume-se que seus projetos tenham sido
baseados em um punhado de fotografias ou
gravuras ou cartões
postais díspares. No entanto, isso foi o suficiente
para desencadear uma série infinita de combinações
onde tudo foi recriado, inventado e reinventado.
Sempre se tratou de composições harmoniosas, de
beleza reconhecível por todo mundo, profissionais e
leigos. Parece que a parede de argila paulista não o
comoveu - talvez pela simplicidade, justiça seja feita:
ele conheceu o bandeirante, a estudou e desenhou,
mas não passou disso.

Pág 156

É verdade que Victor Dubugras visitou os casarões


coloniais aos arredores de São Paulo, pelo menos
os de Cotia, Santo Amaro e Embu, sempre na
companhia do prefeito Washington Luís. Uma
dessas visitas, realizada em 1915, à casa do
-
bandeirante "do padre Inácio", em Cotia, foi
registrada pela mundana revista A Cigarra, que
publicou um artigo de Ricardo Severo quem
comenta a relevância da excursão, sem perdendo a
oportunidade de se proclamar o introdutor da
renovação arquitetônica. As fotografias desse
passeio que obtivemos do arquivo daquele
ex-presidente mostram Dubugras desenhando
cuidadosamente a fachada e os detalhes dos
interiores a partir da varanda central. Em 19 de abril
de 1916, na "Chronica", uma espécie de editorial de
revista, o jornalista anónimo escreveu elogios
Washington Luís e proclamava-o defensor do "tipo
colonial", de novas obras que se oporiam "aos
diferentes estilos de construção de São Paulo".
Aliás, aquele político uma grande curiosidade pela
história de paulista e estava sempre estudando e
promovendo a publicação de documentos de nossos
arquivos. Se interessou pela arquitetura dos
Remove
Wondershare
Watermark PDFelement

bandeirantes, como vimos anteriormente. Ele

is"T
executou as primeiras encomendas oficiais de obras

Minimisinin
no novo "estilo" e, naturalmente, foi Dubugras quem
as executou. A primeira obra pública deste arquiteto
no estilo "tradicional" foi a requalificação do Largo da
Memória em 1919. Este local tinha uma topografia
I
complicada porque unia uma rua plana, e a atual
Xavier de Toledo, a outra inclinada, que saia dos
Piques e chegava na diagonal da rua Pinheiros, hoje
chamada Consolação. De qualquer forma, tratava-se
de um triângulo com declínio pronunciado em cujo
centro existia um obelisco de granito colocado pela
Câmara Municipal no início do século XIX.

A solução espacial de Dubugras foi magistral. Fez


terraços no terreno inclinado unindo-os com escadas
curvas de grande impacto cenográfico. Na
plataforma mais alta, local do antigo obelisco,
apelidado pelo povo de "Pirâmide do Piques", o
arquiteto criou uma imitação de bebedouro para
cavalos, em vez de recordar o desaparecido chafariz
público que existia naquele local poucos metros
abaixo. Desta forma, o obelisco de Daniel Pedro
Müller recebeu uma construção inesperada atrás de
si. Dubugras concebeu também, sobre um espelho
d'água, uma colunata que sustenta um painel curvo
em forma de frontão de igreja, decorado com
azulejos, onde Wasth Rodrigues pintou almocreves e
mulas preparando-se para viajar. Tal malabarismo
técnico construtivo nunca havia acontecido e, pela
primeira vez, a cidade foi apresentada a uma
decoração de azulejos ao ar livre que contava uma
história. Dubugras inverteu as expectativas ao juntar
elementos tradicionais dispersos a fim de mostrar,
com esta colagem, que estava nascendo um novo
estilo "inspirado" no repertório barroco, mas que não
era uma cópia servil de modelos anteriores.
Esse era o seu pensamento e ele pensava assim
porque tinha um talento inesgotável. Nunca se
repetiu. A pedido do então governador Washington
Luís, Dubugras projetou os monumentos do
Caminho do Mar, a ultramoderna autopista de
concreto inaugurada durante as comemorações do
centenário da independência. Essas obras de 1922
Remove
Wondershare
Watermark PDFelement

constituem, na nossa opinião, o apogeu da


arquitetura neocolonial no Brasil. O Pouso
Paranapiacaba, o Rancho da Maioridade, o Padrão
do Lorena, o Beldevere e a Cruz Quinhentista são
construções magnificamente implantadas e
implantadas nas encostas íngremes das montanhas
que, ao longo da sinuosa trilha, registraram a
capacidade criativa de um único arquiteto, autor de
surpresas arquitetônicas que surgem de repente na
paisagem de onde se avista o mar. Nunca antes um
arquiteto se esforçou tanto para mostrar suas
habilidades através de um itinerário programado
como este, no que diferentes edifícios tinham usos
diferentes. Vinte anos depois, Oscar Niemeyer teria
a mesma oportunidade

Pág 157

na estrada que contorna o perímetro da Lagoa da


Pampulha. Neste exemplar de arquitetura da Serra
do Mar, Dubugras quase esgotou todo o seu
repertório de achados. Dessas obras emanaram
todas as receitas que os neocolonialistas usaram
para inundar nossas ruas nos anos 20 com casas
supostamente tradicionais, como veremos mais
adiante.
É evidente que os arquitetos menos talentosos, se
não criaram, pelo menos copiaram os modelos de
sucesso, ajudando a disseminar fórmulas
estereotipadas relacionadas mais a aspectos
decorativos do que a sistemas estruturais. Ricardo
Severo, por exemplo, em um primeiro momento
tentou adotar uma postura em que a ortodoxia
arquitetônica não fosse maculada, mas que
permitisse uma aproximação de elementos
compositivos emanados de diferentes lugares e
épocas, principalmente de origem luso-portuguesa
do século XVIII. Composições disfarçadas que
poderiam sugerir autenticidade de origem e
seriedade de propósitos no que respeita quanto à
materialização da renovação nacionalista nas
condições impostas pela vida moderna. Com toda a
sinceridade de propósito procurou dar mais ênfase
às soluções brasileiras do que às portuguesas. Por
Remove
Wondershare
Watermark PDFelement

isso, subsidiou Wasth Rodrigues em suas andanças


pelo Brasil em busca de documentação útil. Também
subsidiou Felisberto Ranzini, talentoso aquarelista e
desenhista do escritório Ramos de Azevedo. Ele
obteve fotografias detalhadas de monumentos
históricos. Queria beber a água das fontes
autênticas e como respeitável arqueólogo não se
podia entregar a pseudo-invenções subversivas e
mesmo de gosto duvidoso. Porém, acontece que
Ricardo Severo foi um engenheiro sem muita
habilidade em projeto arquitetônico e sempre
dependeu de projetistas funcionários públicos do
escritório de seu sócio, que facilmente se tornaram
seus colaboradores. Adolfo Borione era um desses
valiosos assistentes que adivinhavam seus
pensamentos. De fato, em meados da década de
1930 e início da década de 1940, o escritório Severo
& Villares, com a benevolência de seus titulares,
produziu obras neoclássicas verdadeiramente
cenográficas e até delirantes, como o projeto original
da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco.
Teria sido possível preservar facilmente as antigas
paredes do século XVII do convento franciscano,
erguendo um novo edifício ao fundo do sítio
histórico. No entanto, o que houve foi um total
desrespeito pela degradação da igreja
remanescente, que ali permaneceu como que
esmagada por uma gigantesca montanha de curvas,
contracurvas e pináculos barrocos.

Se em São Paulo a onda nacionalista na arquitetura


nasceu da necessidade da classe média de se
reafirmar diante dos imigrantes que ascenderam
socialmente, no Rio de Janeiro a euforia patriótica foi
gerada nas comemorações do centenário da
independência , quando os pavilhões da exposição
realizada naquela cidade foram erguidos no novo
estilo para mostrar que o Brasil, como país livre,
inclusive na arquitetura, poderia se reafirmar no
concerto das nações como dono de personalidade
própria. A partir de então, na capital da República, o
estilo "oficial" para os novos prédios públicos foi o
tradicionalista.
Remove
Wondershare
Watermark PDFelement

Como as ideias de Ricardo Severo chegaram ao Rio


de Janeiro, não sabemos ao certo; talvez pela
imprensa. O fato é que todos os historiadores
aceitam passivamente a hipótese da influência do
engenheiro português na penetração do
nacionalismo arquitetônico no Rio de Janeiro.
Parece que o primeiro arquiteto, ou um dos
primeiros, a construir nesta cidade seguindo o novo
estilo, segundo o Prof. Paulo F. Santos, foi Heitor de
Mello, renomado arquiteto carioca. Pelo menos sete
projetos ligados à temática tradicionalista foram
elaborados por ele antes de sua morte, em 1920.
Porém, a partir desse mesmo ano, a liderança de
José Mariano Filho se consolidou na propagação da
ideia lançada desde São Paulo por Ricardo Severo.

José Mariano Filho foi um homem com carisma,


deslumbrado com o pensamento restaurador da arte
luso-brasileira de nossos avós. Ele fez inúmera

Pág 158

quantidade de prosélitos e realmente dirigiu a


renovação arquitetônica, demonstrando um dom
inusitado de liderança já que era médico de
formação. Participou de sociedades de arquitetos, foi
eleito "arquiteto honorário", tornou-se diretor da
Escola Nacional de Belas Artes em 1926 e manteve
"uma espécie" de consultoria em uma revista
chamada Arquitetura no Brasil, segundo nos foi
citado pelo Prof.Paulo Santos. Como presidente da
Sociedade Brasileira de Belas Artes, patrocinou
viagens de novos arquitetos a Minas Gerais a fim de
coletar maquetes e detalhes da arquitetura colonial,
à semelhança do procedimento de Ricardo Severo.
José Mariano Filho mandou Lúcio Costa para
Diamantina, Nestor de Figueiredo para Ouro Preto e
Nereu Sampaio para São João del Rey e
Congonhas do Campo. Assim, por meio de sua
atuação no centro de formação de arquitetos do Rio
de Janeiro e inspirando jovens talentosos, o médico
pernambucano foi um agente decisivo na
propagação do estilo nacionalista, ainda mais pelo
Remove
Wondershare
Watermark PDFelement

fato de ter promovido concursos em quais vários


projetos tiveram que ser atendidos dentro da nova
ótica.

Um desses concursos, que reuniu um grande


número de jovens formados e também alunos
entusiasmados com a novidade, foi o da Solar
Brasileiro, uma grande residência que realmente
tivesse características nacionais e servisse de
modelo a partir desse momento. Foi construído em
1923, quando em São Paulo já funcionavam alguns
lotes que exalavam brasilidade, pelo menos na
opinião de Ricardo Severo e companhia. Na
verdade, José Mariano queria um solar
brasileiro-carioca, ou melhor, uma inspiração para
sua própria casa. Orgulhoso, o patrono rejeitou os
projetos vencedores de Ângelo Brunhs e Lúcio
Costa. Ele mesmo elaborou um projeto com a ajuda
de um desenhista. Num belo e amplo terreno
próximo ao Jardim Botânico, entre frondosas
árvores, ergueu seu Solar Monjope, nome do
engenho de açúcar de seus antepassados
pernambucanos. Essa construção foi a síntese de
seu pensamento e condensava em incríveis
colagens todo o nascente livro de receitas de como
fazer uma casa verdadeiramente nossa. O partido
recortado teve de tudo, inclusive peças originais
trazidas de demolições de monumentos ilustres.
Essa casa, que deveria ter sido preservada pelo
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(SPHAN) como construção representativa de um
momento plenamente justificado de nosso processo
cultural inserido na complexa ideologia da América
Latina, foi demolida para dar lugar a uma arranha
céu de luxo. Tudo se perdeu, inclusive os vestígios
históricos. A influência de José Mariano no governo
tornou o neocolonial quase uma obrigação nos
concursos de seleção de projetos para os pavilhões
brasileiros nas exposições de Filadélfia (1925) e
Sevilha (1929). O estilo neocolonial também foi
obrigatório na seleção do projeto para a Escola
Normal em 1928. O vencedor deste concurso foi
Ângelo Brunhs, um arquiteto que demonstrou
fecunda intimidade com o estilo. Mas, repetimos,
Remove
Wondershare
Watermark PDFelement

merece atenção especial o ano de 1922, quando o


ufanismo foi tomado pelas comemorações do
centenário do grito de independência de D. Pedro.
Foi nessa ocasião que vieram "neocolonizar" uma
das mais respeitáveis construções coloniais, a Casa
do Trem, existente desde os primórdios da cidade.
Esta maquiagem foi perpetrada pelo arquiteto
Arquimedes Memória, apelido muito apropriado para
o projeto.

O Rio de Janeiro foi a capital da República, de onde


emanaram as ordens, modelos, usos e
costumes. A influência carioca era evidente em tudo,
devido, inclusive, à penetração de sua
imprensa em todo o Brasil. Suas revistas realmente
mostravam as novidades da corte nas províncias.
Por isso, os demais estados, diante de uma
arquitetura apática oriunda de um ecletismo
emaciado, começaram a erguer, aqui e ali, algumas
edificações neocoloniais. No entanto, não houve nas
regiões desvinculadas do Rio de Janeiro ou de São
Paulo nenhum movimento organizado para o retorno
da arquitetura

Pág 159

antiga. Nesse processo de divulgação do


neocolonial, o influxo paulista certamente se limitou
ao próprio estado de São Paulo, ao Triângulo
Mineiro e, talvez, ao Paraná ou a Goiás.

O panorama final

O ano de 1922 foi também o ano da famosa Semana


de Arte Moderna, cujos protagonistas tentaram
mostrar à classe média no café as últimas novidades
europeias nos vários campos da expressão artística,
como a literatura, a música, a pintura e a escultura.
A arquitetura, por sua vez, revelou-se um campo de
difícil participação, pois nossos arquitetos ainda não
haviam recebido nenhum sopro de modernidade,
justamente porque nas duas escolas de engenharia
locais os cursos de especialização em arquitetura
eram dirigidos por dois ferrenhos defensores do
Remove
Wondershare
Watermark PDFelement

academicismo do Beaux -Arts em Paris: Ramos de


Azevedo, formado na Bélgica, e Christiano das
Neves, formado nos Estados Unidos. Os
modernistas da Semana de Arte Moderna foram
desenterrar pessoas formadas no exterior e que
projetavam de forma "diferente" dos demais
arquitetos da cidade. Apressadamente pensou-se
que o "diferente" era o moderno. Não houve
ninguém que desse uma conferência sobre o que
seria o conceito de modernidade arquitetônica entre
nós. Tudo indica, por exemplo, que os textos de Le
Corbusier publicados em números consecutivos do
L'Esprit Nouveau, entre 1919 e 1920, eram
desconhecidos ou ignorados pelos literatos, pois
entre eles não havia arquitetos familiarizados com o
assunto.

Talvez por sugestão de Menotti del Picchia, o artista


plástico Antônio Garcia Moya, quem mostrou
desenhos de vários projetos imaginários que nunca
foram executados - projetos de
programas diversos, todos apresentando inspirações
de fontes díspares que faziam lembrar a da
Mesopotâmia assíria até exemplos da arquitetura
pré-colombiana no México, como apontou o crítico
de arte e historiador Aracy Amaral. Dessa mistura
para o estilo das missões, por aproximação formal,
se deu um salto. Moya, que só se formou somente
arquiteto em 1933, como disse Menotti, queria
"harmonizar a escultura com a arquitetura". Outro
participante da Semana de Arte Moderna foi o
arquiteto Georg Przyrembel, polonês que teve algum
contato com nossa arquitetura colonial, graças a
alguns trabalhos de reformas em antigas igrejas.
Inclusive reformou a antiquíssima igreja matriz de
São Vicente, de onde, dizem, levou consigo
importantes obras de talha. No saguão do Teatro
Municipal, o arquiteto apresentou o projeto de sua
casa de veraneio na Praia Grande, no porto de
Santos,- um projeto de estilo indefinido que incluía
paredes de pedra e cobertura com beirais largos.
Seja como for, passou por neocolonial.
Remove
Wondershare
Watermark PDFelement

Por que Victor Dubugras não participou da semana


modernista? Justamente ele que já em 1907 tinha
construído a estação ferroviária de Mairinque com a
moderníssima técnica construtiva do concreto
armado num estilo ligado aos "modernos" austríacos
e alemães originários da Sezessão. Justamente ele,
que tinha uma imaginação criativa que desafiava
diariamente o maneirismo conservador dos
acadêmicos. Isso, por acaso, não era moderno?
De fato, baixada a poeira levantada pela Semana de
Arte Moderna, o estilo neocolonial precisamente
popularizado por Dubugras passou a ser visto com
bons olhos pelos modernistas, inclusive Mário de
Andrade, que já quase no final da década dizia que
a arquitetura moderna tinha uma tendência natural
universalista, mas que com o tempo poderia
manifestasse em sua forma nacional. A busca pelas
raízes era uma preocupação de todos eles, desde
Villa-Lobos até o próprio Mário de Macunaíma,
passando por todos os "antropofagia" e por Tarsila
do Abaporu.

Pág 160

Arquitetura Neocolonial

Porém, o mais interessante de tudo é que a variante


historicista eclética lançada por Severo ao sugerir o
"estilo colonial" agradou a todos os gostos e se
popularizou, inclusive no campo da arquitetura sem
arquitetos, pois adotou posições inesperadas cuja
filiação à gramática erudita era, às vezes difícil de
identificar. Eram soluções emanadas da
incorporação espontânea por parte das pessoas.
Não se tratava de uma ideia elitista, mas uma
tipologia "moderna" que fazia esquecer as tristes
casas de antes da guerra. Em São Paulo, pelo
menos, a década de 1920 foi generosa em
construções que um dia chegaríamos a chamar de
"neocolonial simplificado".

Como o povo é volúvel e não tem problemas de


afirmação, o neocolonial não deixou de ser
Remove
Wondershare
Watermark PDFelement

uma moda que durou quase 20 anos. Pois, já em


meados dos anos 30, o estilo art déco dominava
arrasadoramente toda a cidade.
É claro que o aspecto erudito nostálgico não
desapareceu completamente, pois ainda hoje há
quem queira uma "casa tradicional" bem feita.
Porém, essa inspiração evoluiu para as casas da
época do café, casas neoclássicas de Vassouras,
Bananal. Hoje em dia teríamos um estilo
neo-imperial, que ainda hoje é testemunho da
mesma nostalgia despertada por Ricardo Severo.

1. Antônio Garcia Moya, Mausoléu, c.


1922. Projeto não realizado
Remove
Wondershare
Watermark PDFelement

2. Taperinha da Praia Grande, estado de


São Paulo, 1922. Arquiteto Przyrembel

3. Pouso da Maioridade, Serra do Mar,


estado de São Paulo, 1922-1926.
Arquiteto Victor Dubugras

4. Desenho original do Escritório Técnico


F. Ramos de Azevedo Ltda. São Paulo,
anos 20.
Remove
Wondershare
Watermark PDFelement

5. Sede de Olinda, depois das obras de


restauração (1974-1983)

6. Sede de Olinda, Pernambuco, depois


da remodelação que deu uma
Remove
Wondershare
Watermark PDFelement

fisionomia neobarroca. (Fonte:


FUNDARPE)

7. Residência J. Franco de Camargo,


Escritório Ramos de Azevedo, São
Paulo, anos 30.
Remove
Wondershare
Watermark PDFelement

8. Residência Rui Nogueira, rua


Groenlândia, São Paulo,c, anos 30.
Escritório Ramos de Azevedo

Você também pode gostar