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TEXTOS DE ARQUITETURA

1 - BRASÍLIA, A ESCULTURA MODERNISTA


 A história brasileira, num sentido pós-colonial, é relativamente curta e
extraordinariamente complexa. Neste cenário de efervescente desordem, os problemas
socioculturais são indissociáveis da tão marcante instabilidade política que origina
relações de repulsa entre sociedade e poder. Manifestando-se de maneiras tanto
negativas como positivas, em diversas atividades e setores, estas relações permitem-nos
pensar Brasília.

Brasília surge de uma nebulosa ambição de fomentar o desenvolvimento na região


central do Brasil. Polémica, contraditória, superficial, é o resultado da idealização de um
sonho modernista sobre um alicerce tipicamente Brasileiro. Nada desqualifica o seu
poder arquitetónico, a sua monumentalidade e sua identidade própria. Se há um
sentimento comum a todos os que debruçam sobre ela, é que Brasília é única. Mas de
que maneira se comporta esta tão assumida identidade?

Numa primeira visão, note-se que o arquiteto não tem poder sobre a eternidade do seu
projeto. Isto é, a utopia de Lúcio Costa e Niemeyer foi deixada ao arbítrio do governo
federal, a Brasília contemporânea já pouco diz respeito à ambição que projetava os anos
60. É inegável e notório o contraste de um crescimento periférico, caótico e
desordenado da região da cidade com o plano piloto de Brasília, que assegurava
organização e método. Conseguimos, no entanto, retirar algumas questões socioculturais
que justificam este acontecimento. Foi a era da indústria e o poder do automóvel que
fizeram Brasília. Lúcio Costa projetou uma cidade-máquina num país
incondicionalmente humano. A necessidade inata da interação social não se revia no
modelo e, a par com a despreocupação política, surgiram novas comunidades sob
diferentes registos, fora do plano piloto.

Expressivamente, a capital grita pela modernidade e pelo futuro, reflete a sua


contemporaneidade nacional através do movimento, velocidade, a presença monumental
da estação rodoviária no cruzamento dos eixos organizadores da cidade, as formas
platónicas, brancas e escultóricas...; os edifícios de Niemeyer abraçam Lúcio Costa
numa vontade de identidade e caracterizam Brasília como o expoente do Modernismo
brasileiro.

Niemeyer, como alguém que trabalhou com Le Corbusier, trouxe muito conhecimento
vanguardista europeu para aquilo que se pratica no seu Brasil Contemporâneo. Foi
desenvolvendo a sua arquitetura com um senso muito escultórico e exuberante, uma
versão extremamente pessoal do modernismo, que não corresponde de todo com o
movimento europeu. Pelo contrário, faz parte da panóplia cultural que surge da América
Latina, sendo caracterizado por ela mesma. Niemeyer procura algo novo, leva a sua
realidade material a novos patamares, assumindo um novo período de reflexão sobre os
métodos construtivos, ao retirar o ferro como matriz. Acaba por esculpir o betão armado
utilizando com maestria o melhor das suas qualidades plásticas e sensoriais, sempre de
modo experimental. Contudo, mediante as suas formas impossíveis produziu uma
arquitetura quase surrealista, talvez refletindo o seu contacto com os seus
contemporâneos do outro lado do Atlântico.

Os edifícios de Brasília, expressam a maneira como um arquiteto altamente técnico e


conhecedor das tecnologias fez do seu desenho algo inimaginável à data. Niemeyer era
um escultor, uma pessoa que não se limitava à funcionalidade, por vezes nem sequer a
priorizava, algo totalmente impensável dentro do estereótipo modernista.

Retiramos de Brasília a procura pela sensação estética e escultórica que Niemeyer nos
habitua, a emergência modernista de Lúcio Costa impõe-se a si própria como uma
escultura de grande escala: deslumbrante, surreal, plenamente pensada sobre o
funcionalismo futurista de nova cidade, mas incondicionalmente disfuncional na sua
essência. O desenvolvimento de Brasília pode não ter correspondido com o sonho de
Lúcio Costa e Niemeyer, mas Brasília não falhou como capital deste tão central país,
antes pelo contrário, mostrou na rebeldia e na rejeição do isolamento, o mais humano,
empático e social, tão característico do Brasil.

2 - IDENTIDADE/AUTOCOMPREENSÃO

É a expressão pop da identidade festiva, intrínseca à cultura que cobre o lençol


castanho tectónico de Cabo-Verde, que nos faz pensar a arquitetura. As habitações são
frutos de vernáculos, também, de cariz pop e os edifícios públicos são a memória de
traços desenhados durante o Estado Novo. A grande afluência de emigrantes conduz a
uma arquitetura com uma ambição europeísta e americana em contraste com uma crença
regionalista dos próprios habitantes locais. Há, portanto, uma pluralidade de expressões
arquitetónicas que integra o arquipélago. 

De que forma, Cabo-Verde, como um ponto estratégico de ligação


intercontinental, poderá assumir uma identidade própria na arquitetura? 

Comecemos por perceber que influências construíram Cabo-Verde


contemporâneo. Desde logo, a sua localização estratégica que, no século XV, abrigava
um ponto crucial da expansão do Império Português e, desse modo, permitia a atividade
comercial intercontinental. Consequentemente, a mesma, trouxera Ingleses e Franceses
que acabariam por intervir no arquipélago mantendo-se como ponto de referência
internacional ao longo da História. Entendemos, desta forma, que é intrínseco à história
de Cabo-Verde a ocupação por diversas identidades.

Acompanhando as intensas diferenças identitárias, a arquitetura local divide-se.


Numa primeira procura, observando as montanhas vulcânicas, percebemos que é
inerente aos habitantes locais a procura de subsistência em solos férteis, o que
corresponde a um tipo de construção de herança vernacular, abrigada agora, como
património da Humanidade [Cidade Velha, Santiago, Cabo-Verde]. Em seguida, a
proximidade com o mar revela-nos uma outra expressão arquitetónica também de
grande impacto. De pequena escala, com cores exuberantes e em contraste com as
montanhas é pintada uma paisagem costal tipicamente festiva. [Mindelo, S. Vicente].
Por fim, há uma indissociável presença do Estado Novo por todo o arquipélago. Desde
o marcante Tarrafal, dos traços modernistas do Comando Naval de S. Vicente até aos
inúmeros vestígios e motivos de colonização por Cabo-verde.

Em suma, a pluralidade arquitetónica presente em Cabo verde, traduz o rico


passado cultural que construiu a sua contemporaneidade, isto é, entendemos que a
identidade nacional é fruto de suas diferentes ocupações e expressões. Num processo
continuo, face à dependência histórica, estará em busca da sua autocompreensão?

3 - FERNANDO
TÁVORA: INCONDICIONAL
ESSÊNCIA PORTUGUESA
Curioso, mas conservador; viajante, mas comodista; polímata, mas cético. Terá sido
na viagem, que Fernando Tá vora fez pelo mundo, onde todas estas características
peculiares do arquiteto se avultaram. “Cada vez me convenço mais de que só
fazendo a mesma coisa vá rias vezes, numa vida ou ao longo de geraçõ es, é possível
refinar e chegar a soluçõ es com eternidade “. Debruçando-nos perante a sua
delicada reflexã o sobre o que viu, sentiu e devaneou ao passear pelas ruas e
montanhas do outro lado do oceano, inferimos que o seu conservadorismo quase
bucó lico português interveio no seu olhar sobre a arquitetura e a vida que
experienciara.

A sua experiência norte-americana, fez com que através do exercício de percorrer


a cultura estado-unidense, inquietante e díspar do seu contexto português,
Fernando Tá vora fosse de encontro consigo mesmo, por meio da sua relutâ ncia ao
mais sofisticado, encontrando seu autorreconhecimento.

Entre a sua matriz conservadora e o interesse modernista, Tá vora expressa sua


repulsa ao diverso quando em contacto com os Estados Unidos. “O magnífico
laborató rio” fá -lo questionar-se a si mesmo, sem deixar de lado o entrelaçamento
modernista com tudo aquilo que acredita. O contraste evidenciou ainda mais o ser
português dentro de Fernando Tá vora compaginando o modernismo ao seu
contexto, rural, antigo, melancó lico.

Fernando Tá vora nã o aceita a América, sem se deixar seduzir domina-a,


conquistando entã o a cultura modernista através da verificaçã o do seu sucesso e
constataçã o de suas imperfeiçõ es, critica a ausência de sentimento nas coisas,
busca de alguma forma o reencontro com a latinidade.

Ao longo da viagem é confrontado e reitera as suas confrontaçõ es verbalizando as


suas convicçõ es. Bairrista porem com um olhar extremamente crítico e
universalista abraça ao fim da viagem o sentimento, nã o se deixa comover pelo
cosmopolitismo americano, nã o se sente menos digno ou capaz como pessoa ou
arquiteto, pelo contrá rio, Fernando Tá vora como “a arquitetura portuguesa”
sintetiza num olhar muito critico e pessoal o mundo anglo-saxó nico comparando e
entendendo, assim, o seu contexto português.

Compreendemos esta reflexã o de Fernando Tá vora como uma prova da identidade


regional na sua arquitetura. Enquanto arquiteto da província, de um país pequeno,
cresce sob uma razã o de arquitetura muito mais profunda que a arquitetura aliada
à ideia de mega-produçã o de Henry Ford ou da General Motors que tanto
caracterizava o país. Tá vora sentiu os Estados Unidos nesta artificialidade
alicerçada na produçã o, na economia, no consumo; isto é, até a pró pria
monumentalidade da novidade nã o suscitava o espanto da riqueza histó rica e
emotiva que havia vivido sempre na condiçã o de português. O ato de produzir
arquitetura na ambiçã o exclusivamente capitalista nã o era compatível com a ideia
de projeto do arquiteto. Como consequência, supú nhamos, abraçou a noçã o
emotiva, profunda e, se quiserem, melancó lica inerente à pró pria cultura
portuguesa. Esta que, apó s a viagem, veio a perceber que era também parte dele e,
como consequente, parte da sua arquitetura.

Em suma, a realidade emotiva e o só lido respeito pelo caracter histó rico que
solidificam a arquitetura e o pensamento de Fernando Tá vora surge como um
manifesto intrínseco ao sentimento português que seria, nesta fase, díspar,
contrastante e incompatível com este admirá vel mundo novo.

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