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NATUREZA REINVENTADA*
Guilherme Wisnik
Resumo
A verdadeira “tradição” arquitetônica no Brasil, se voltarmos ao período colonial, não é
a de um hedonismo tropical, e sim a de refúgio e proteção. Amedrontados da imensa
vastidão do território, e dos perigos da floresta, os portugueses desenvolveram aqui um
sentimento de “hostilidade atávica” em relação à natureza, como argumenta o roman-
cista José Lins do Rego. Com a chegada de Le Corbusier, e da arquitetura moderna,
ocorre uma grande transformação. A arquitetura deixa de ser uma fortaleza contra o * Ensaio publicado originalmente
meio para se tornar uma redução poética da natureza. No plano piloto de Brasília, Lu- em Michael Wesely e Lina Kim,
Arquivo Brasília. São Paulo: Cosac
cio Costa reinterpreta a tradição colonial em chave moderna, superando aquele pas- Naify, 2010, pp. 493-497.
sado pela alternância abrupta entre duas escalas: a residencial e a monumental (urbs
e civitas). Inspirado no cartesianismo de André Le Nôtre em Versalhes, pensou uma
cidade relacionada à linha do horizonte. Uma urbanidade que inventa a paisagem.
Abstract
The true architectural “tradition” in Brazil, if we go back to the colonial period, is not
that of tropical hedonism, but of refuge and protection. Frightened by the immen-
se vastness of the territory, and the dangers of the forest, the Portuguese developed
here a feeling of “atavistic hostility” towards nature, as the novelist José Lins do Rego
argues. With the arrival of Le Corbusier, and modern architecture, a major transfor-
mation occurs. Architecture ceases to be a fortress against the environment to become
a poetic reduction of nature. In the pilot plan of Brasília, Lucio Costa reinterprets
the colonial tradition in modern key, overcoming that past by the abrupt alternation
between two scales: the residential and the monumental (urbs and civitas). Inspired
by André Le Nôtre’s Cartesianism in Versailles, he thought of a city related to the
horizon line. An urbanity that invents the landscape.
A cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental, não chega
a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha da paisagem.
Nenhum rigor, nenhum método, nenhuma previdência, sempre esse significativo
abandono que exprime a palavra ‘desleixo’ – palavra que o escritor Aubrey Bell
considerou tão tipicamente portuguesa como ‘saudade’ e que, no seu entender, implica
menos falta de energia do que uma íntima convicção de que ‘não vale a pena...’.1
48 operação. Em seu breve excurso sobre a para o plano piloto de Brasília parte da
conflituosa relação entre homem e paisa- constatação, como vimos, de que um pro-
gem na história do Brasil, o romancista jeto daquele porte, e naquelas circunstân-
observa que aquela etapa histórica marca- cias, só poderia se realizar como “um ato
da pelo divórcio inconciliável entre cultura deliberado de posse”, um “gesto de sentido
e natureza seria superada pelo advento ainda desbravador, nos moldes da tradição
repentino da arquitetura moderna, a partir colonial”.22 Em outras palavras, ao mesmo
20
Como notou Meyer Schapiro da renovação trazida por Le Corbusier. tempo que retoma o “gesto primário de
em relação a Brasília. Ver “A síntese
das artes na cidade nova” (1959). In: Pois para o arquiteto franco-suíço a casa quem assinala um lugar ou dele toma
Novos Estudos n. 70. São Paulo: Ce- não deveria representar “um isolamento posse: dois eixos cruzando-se em ângu-
brap, 2004, p. 159. do mundo, um lazareto”: ao contrário, lo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz”,
21
José Lins do Rego, “O homem deve estar “ligada ao universo”. Como Lucio Costa insiste em não reproduzir
e a paisagem”, in Alberto Xavier
(org.), 2003, op. cit., p. 296. vimos, porém, essa “libertação” trazida por repertórios formais tradicionais, chegando
22
Lucio Costa, “Memória descriti- Le Corbusier não significou uma reden- mesmo a negá-los em grande medida. Em
va do plano piloto” [1957], in 1995, ção, no sentido de um encontro último suas palavras: “... o plano piloto de Brasília
op. cit., p. 283. com uma natureza “local”. Tampouco se não se propôs visões prospectivas de espe-
23
Lucio Costa, “Brasília revisitada; desdobrou na efetiva constituição de uma ranto tecnológico, tampouco resultou de
1985/1987”, Projeto 100. São Paulo,
1987, p. 122. arquitetura unitária e “monumental”,20 promiscuidade urbanística, ou de elabora-
24
Na verdade, Lucio Costa sabe concebida à escala de seu território e de da e falsa ‘espontaneidade’”.23
que a transformação decisiva opera- sua paisagem. No âmbito da arquitetura Ora, sabemos que é exatamente a
da pela modernidade no campo da
brasileira moderna, de inspiração cor- busca – ou a miragem – de uma articu-
arquitetura está no urbanismo. Ou
melhor, sabe que o objeto de ação busiana, a construção deixa de ser “uma lação entre modernidade e tradição que
e atenção dos arquitetos naquele fortaleza contra o meio” para tornar-se move toda a obra de Lucio Costa, tanto
momento é a cidade, e não mais o “uma redução poética da natureza.”21 como arquiteto de prancheta quanto
edifício isolado, e que esse novo “ar-
quiteto-urbanista” é essencialmente como pensador da arquitetura e fun-
um intelectual, e não mais um cons- cionário do patrimônio histórico. No
trutor ou um artista formado na entanto, essa tentativa de articulação,
tradição das belas-artes. Ver Giulio CONSTRUÇÃO DA PAISAGEM
Carlo Argan, “A época do funcio- sempre reiterada em sua trajetória, parece
nalismo”, in Arte moderna. São Pau- Concebida a partir do zero, a Brasília dissolver-se na escala e no programa do
lo: Companhia das Letras, 1995. projeto urbano, onde as referências mais
de Lucio Costa mantém, no entanto, uma
relação ambígua com a tradição colonial. diretas e literais ao passado, ligadas a
Se em seus desenhos não parecem sobre- um afeto íntimo e material pela colônia,
viver quaisquer traços formais que aludam parecem dar lugar a uma atitude afirma-
à configuração histórica dos sítios urbanos tivamente moderna e desenraizada. Seria
luso-brasileiros, pode-se identificar no o caso de perguntar, portanto, até que
partido de implantação do projeto uma ponto o projeto de uma cidade inteira-
proposital sobrevivência da experiência mente nova, após o advento da moderni-
colonial, retomada então como procedi- dade, ainda poderia ser pensado de forma
mento. Sintomaticamente, seu memorial retrospectiva?24
cunscrevendo o convívio íntimo e em boa enquanto a vida pública, lugar das mani-
medida autossuficiente das superquadras. festações políticas e coletivas, está exposta
E também, de maneira equivalente, tanto aos espaços imensos, cuja expressão é dada
a delimitação de uma densa arborização por edifícios-monumento que se recortam
no perímetro destas, configurando-as nitidamente na infinita linha do hori-
com o caráter mais segregado de “pátios zonte. Em um debate com Arthur Korn,
internos urbanos”, quanto a determinação Denys Lasdun e Peter Smithson, ainda
de um gabarito uniforme e baixo para os durante a construção de Brasília, Lucio
edifícios ali situados, com o intuito de Costa deixa clara a imagem de cidade que
restabelecer em ambiente moderno, como ele deseja criar: “Eu quero ver o mínimo
enfatiza Lucio Costa, uma “escala humana de edifícios. [...] eles têm seis andares –
mais próxima da nossa vida doméstica e não são muito altos. Há edifícios, mas
familiar tradicional”.25 eles estão atrás, em um segundo plano. A
Essa noção de familiaridade associada vista principal é simplesmente a estrada
à delimitação de um conjunto repetido de com árvores em toda a volta [...]. Mesmo
edificações – aquilo que Costa chamou que a extensão da área residencial tenha 6
de “padrão comum da receita única” – km, é quase como se você estivesse fora da
estava ancorada na memória da “pureza cidade quando deixa o centro.”26
distante de Diamantina”, com suas casas Nesse sentido, a comparação direta
geminadas e uniformes, como vimos. com dois outros projetos de destaque
Assim, pode-se dizer que a operação mais apresentados ao concurso – os das
importante realizada pelo urbanista em equipes dos irmãos Roberto e de Rino
Brasília consistiu em conferir qualida- Levi, que dividiram o terceiro e o quarto
des morfológicas próprias e singulares a lugares – revela claramente o sentido de
cada uma das diferentes “escalas” de uso algumas opções feitas por Costa. To-
do espaço na cidade. E, nesse sentido, mando esses dois casos emblemáticos,
elaborar a configuração estrutural do temos situações que, apesar de opostas, se
50 aproximam pelo fato de terem eleito ape- papel fundamental desempenhado pelo
nas uma das “escalas” de uso para definir espesso “cinturão verde” que emoldura as
o desenho do conjunto. Inspirados no superquadras, isolando-as do principal
modelo das cidades-jardim de Ebenezer eixo de circulação da cidade, uma vegeta-
Howard, os irmãos Roberto renegaram ção densa aparece também sugerida para
veementemente qualquer sentido de as áreas situadas abaixo do terrapleno
monumentalidade associado à ideia de que define a Praça dos Três Poderes. Nas
27
Lucio Costa, 1987, op. cit., p. 118. capital, propondo a descentralização da palavras de Costa, “massas compactas
28
Lucio Costa, “Monlevade, 1934 cidade em uma federação de sete unida- de araucária” deveriam ser plantadas ali
– projeto rejeitado”, in 1995, op. cit.,
des urbanas circulares organizadas em “para que seu verde-escuro sirva de fundo
p. 99.
29 torno de um core central, rigorosamente e valorize o branco dos palácios”.27
O lago Paranoá, embora seja efe-
tivamente artificial, funciona pai- equivalentes em tamanho e importância. Nesse particular “uso” que o arquiteto
sagisticamente como um autêntico Já na proposta da equipe de Rino Levi, faz da ideia de natureza, sempre esta-
elemento natural. que prenuncia as especulações megaestru- belecendo um contraste bem marcado
turalistas da década seguinte, não parece entre “a nitidez, a simetria, a disciplina da
haver qualquer intenção de resguardar arquitetura” e “a imprecisão, a assimetria,
uma sociabilidade privada e familiar em o imprevisto da vegetação”,28 imediata-
espaços íntimos e segregados. Ao contrá- mente saltam aos olhos os traços de sua
rio, seus edifícios habitacionais são lâmi- formação inglesa, que aliás são direta-
nas em estrutura metálica com 300 metros mente referidos por Costa como uma das
de altura, dispostos de modo defasado e reminiscências mais importantes resga-
em grupos de três, sempre com a mesma tadas no projeto de Brasília: os imensos
orientação em relação ao sol. Nesse caso, gramados ingleses da infância, o mall
predomina a ideia de que a vida na cidade reinterpretado no Eixo Monumental. Por
está concentrada verticalmente, e, portan- isso é que surge em Brasília uma “escala”
to, são os próprios edifícios residenciais, que ele chama de “bucólica”. Sintoma-
e não os públicos, que definem o caráter ticamente, enquanto os outros dois pro-
eminentemente monumental da cidade. jetos citados buscam uma proximidade
No primeiro caso, a cidade foi reduzida à com as margens do lago, procurando fa-
escala do convívio íntimo; no segundo, foi zer com que os espaços da cidade usufru-
inteiramente exposta à imagem exterior am – material e visualmente – do contato
de uma monumentalidade privada. com a água, Lucio Costa afasta delibe-
No projeto de Lucio Costa, com efei- radamente todo o núcleo urbano dela,
to, é a alternância abrupta entre as duas subtraindo à cidade o contato direto com
escalas que define a vivência cotidiana o único elemento remanescente de uma
do morador de Brasília. E a existência natureza local in natura.29 Sobre esse
simultânea e independente desses dois aspecto, declara o seguinte: “Evitou-se a
“mundos”, digamos assim, é assegurada localização dos bairros na orla da lagoa,
permanentemente pela presença cons- a fim de preservá-la intacta, tratada com
tante da natureza. Por exemplo, além do bosques e campos de feição naturalista e