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BRASÍLIA:

NATUREZA REINVENTADA*
Guilherme Wisnik

Resumo
A verdadeira “tradição” arquitetônica no Brasil, se voltarmos ao período colonial, não é
a de um hedonismo tropical, e sim a de refúgio e proteção. Amedrontados da imensa
vastidão do território, e dos perigos da floresta, os portugueses desenvolveram aqui um
sentimento de “hostilidade atávica” em relação à natureza, como argumenta o roman-
cista José Lins do Rego. Com a chegada de Le Corbusier, e da arquitetura moderna,
ocorre uma grande transformação. A arquitetura deixa de ser uma fortaleza contra o * Ensaio publicado originalmente
meio para se tornar uma redução poética da natureza. No plano piloto de Brasília, Lu- em Michael Wesely e Lina Kim,
Arquivo Brasília. São Paulo: Cosac
cio Costa reinterpreta a tradição colonial em chave moderna, superando aquele pas- Naify, 2010, pp. 493-497.
sado pela alternância abrupta entre duas escalas: a residencial e a monumental (urbs
e civitas). Inspirado no cartesianismo de André Le Nôtre em Versalhes, pensou uma
cidade relacionada à linha do horizonte. Uma urbanidade que inventa a paisagem.

Abstract
The true architectural “tradition” in Brazil, if we go back to the colonial period, is not
that of tropical hedonism, but of refuge and protection. Frightened by the immen-
se vastness of the territory, and the dangers of the forest, the Portuguese developed
here a feeling of “atavistic hostility” towards nature, as the novelist José Lins do Rego
argues. With the arrival of Le Corbusier, and modern architecture, a major transfor-
mation occurs. Architecture ceases to be a fortress against the environment to become
a poetic reduction of nature. In the pilot plan of Brasília, Lucio Costa reinterprets
the colonial tradition in modern key, overcoming that past by the abrupt alternation
between two scales: the residential and the monumental (urbs and civitas). Inspired
by André Le Nôtre’s Cartesianism in Versailles, he thought of a city related to the
horizon line. An urbanity that invents the landscape.

ISSN 2447-8679 Thesis | Volume 5 | 2018


Guilherme Wisnik Brasília: natureza reinventada

A cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental, não chega
a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha da paisagem.
Nenhum rigor, nenhum método, nenhuma previdência, sempre esse significativo
abandono que exprime a palavra ‘desleixo’ – palavra que o escritor Aubrey Bell
considerou tão tipicamente portuguesa como ‘saudade’ e que, no seu entender, implica
menos falta de energia do que uma íntima convicção de que ‘não vale a pena...’.1

44 CONSTRUÇÃO E TERRITORIALIDADE da arquitetu­ra moderna brasileira, ao


menos no período que se estende até
Convidado, certa vez, a estabelecer uma a construção de Brasília, esteve pre-
comparação entre os projetos do edifício dominantemente associada à ideia de
da Faculdade de Arquitetura e Urbanis- um regionalismo tropical, uma vez que
mo da Universidade de São Paulo (FAU- as particularidades climático-culturais
-USP, 1961), projetado por Vilanova do país propiciavam – e por isso pare-
1
Sérgio Buarque de Hollanda, Raí- Artigas, e da Faculdade de Arquitetura ciam autorizar – um saudável desvio da
zes do Brasil. São Paulo: Companhia da Universidade do Porto (1987), de sua norma funcionalista, que levou teóricos
das Letras, 1998, p. 110.
2
própria autoria, Álvaro Siza observou importantes a atribuir a essa arquite-
“Entrevista com Álvaro Siza”. Ca-
ramelo n. 9, São Paulo: GFAU, 1997. tratar-se de situações muito distintas. tura, diante dos primeiros impasses do
Segundo Siza, o que permite a iden- Segundo ele, a generosidade dos espaços chamado Estilo Internacional, um papel
tificação do edifício da fau com o do edifício paulistano corresponde à “es- de destaque na criação de uma “nova
território brasileiro, ou da cidade de
São Paulo, não é exatamente o seu
cala do território brasileiro”, ao passo que tradição” moderna, apoiada na ideia de
tamanho, mas uma qualidade espa- na Europa se trabalha com limitações monumentalidade.5 Contudo, a aborda-
cial que resulta dessa dimensão: o muito grandes.2 Essa observação, apesar gem aqui será diversa. Tendo em vista o
“caráter” que o edifício pode assumir,
interpretando-se adequadamente o
de pontual, indica uma série de questões significado de interiorização territorial
programa, quando pensado como instigantes acerca da relação recíproca contido na construção de Brasília, ocor-
uma sucessão contínua em torno de entre construção e territorialidade, tendo rida na passagem dos anos 1950 para os
uma “praça” comum de distribuição
e convívio. No caso da escola portu-
o Brasil como foco. Por isso tomo-a aqui 60, procuraremos compreender o modo
guesa, a edificação teve de fragmen- como a matriz indicativa de uma discus- como a arquitetura brasileira moderna,
tar-se em vários corpos. são que desejo propor e desenvolver. influenciada pelas ideias de Le Corbusier,
3
Ver Stuart Wrede e William Tal percepção de uma relação íntima logrou tratar a relação entre construção e
Howard Adams (orgs.). Denatured
Visions: Landscape and Culture in
entre o sentido de expansão ou de recolhi- natureza, desdobrando-se em um modo
the Twentieth Century. Nova York: mento espacial assumido pela arquitetura particular de se relacionar com o solo, ou
MoMA, 1991. produzida em uma determinada cultura e
4
o chão. E ainda, de modo complemen-
Ver por exemplo, Philip L. Goo- a escala do território em que ela se assen-
dwin, Brazil Builds: Architecture
tar, procuraremos situar essa relação no
New and Old, 1652-1942. Nova ta, desdobrando-se em uma determinada campo problemático de um permanente
York: MoMA, 1943; Henry-Rus- visão da natureza e da paisagem natural embate entre essas instâncias na história
sel Hitchcock, Latin American Ar- e construída, é um tema que atravessa o
chitecture since 1945. Nova York:
da ocupação do território brasileiro.
MoMA, 1955; e Stamo Papadaki, século xx.3 No que se refere à arquitetu- Num artigo publicado em 1993, Jorge
Oscar Niemeyer: Work in Progress. ra brasileira, porém, uma aproximação Czajkowski faz uma reflexão instigante
Nova York: Reinhold, 1956. mais espacial ou fenomenológica às suas
5
sobre o modo como, no Brasil, a arquite-
Cf. Siegfried Giedion, “Architecture questões esteve até hoje, não raro, obli-
in the 1960’s: hopes and fear”, Zodiac,
tura procurou lidar historicamente com
n. 11, 1963; e “Le Brésil et l’architec- terada pela postulação mais frequente de o espaço circundante.6 E o faz à luz da
ture contemporaine”. L’Architecture uma identidade mimética entre forma e seguinte pergunta: a adoção da corrente
d’Aujourd’Hui, n. 42-43, 1952. ambiente, ou, em outras palavras, entre
6
racionalista da arquitetura moderna teria
Jorge Czajkowski, “A arquitetura hedonismo formal e clima tropical.4
racionalista e a tradição brasileira”. significado uma ruptura ou um reen-
Gávea n. 10. Rio de Janeiro: PUC- Desse modo, no panorama da contro com essa “tradição” histórica? A
-RJ, 1993, pp. 28-30. crítica estrangeira, a especificidade questão é capciosa, pois procura elucidar

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ambiguidades constitutivas no quadro o “aparente edenismo da terra” não se 45


do nosso desenvolvimento arquitetônico. traduziu imediatamente em hedonismo
Por que a modernidade, aqui, se investe formal, mas, ao contrário, em um barroco
de um sentido prospectivo de resgate austero e arcaizante,8 como vimos, mais
histórico, e não de rompimento radical volumétrico do que espacial, caracteriza-
com o passado? Ou, ainda, por que o do por uma cisão radical entre o despoja-
“racionalismo” pareceu mais adequa- mento e a nudez externa de suas fachadas
7
do que o “organicismo” a uma cultura e a riqueza interior de sua decoração. “Os portugueses, que vinham das
quintas patriarcais da ‘boa terrinha’,
tropical de herança predominantemente Esta, como notou Czajkowski, esteve nas quais floresciam as amendo-
barroca? São problemas importantes, que brilhantemente sintetizada na talha, que, eiras e a sombra das árvores era
nos remetem aos momentos iniciais da como um “souvenir selvagem”, alude a doce, se transformaram, nos trópi-
cos, em demolidores impertinen-
ocupação portuguesa da América, marca- “uma floração interna que sublima a tes, de machado em punho, tochas
dos por uma ostensiva negação do meio selva reduzindo seu espaço misterioso à na mão, prontos para promover as
ambiente e dos espaços circundantes, ou, textura bidimensional de uma tapeçaria queimadas das matas.” José Lins
do Rego, “L’Homme et le paysage”,
nas palavras do romancista José Lins do em madeira dourada”.9 L’Architecture d’Aujourd’Hui, n. 42-
Rego, por uma arraigada “hostilidade Essa presença rarefeita no território, 43, 1952; republicado em Alberto
atávica” em relação à natureza.7 aparente no caráter prosaico e dicotômi- Xavier (org.). Arquitetura moderna
brasileira: depoimento de uma geração.
Quer dizer, tratando tanto a natureza co da arquitetura barroca luso-brasileira, São Paulo: Cosac Naify, 2003, p. 294.
quanto as culturas locais a ferro e fogo, é, com efeito, não apenas reforçada, mas 8
Ver Mário de Andrade, “O Alei-
a colonização predatória praticada pelos determinada pela cultura urbanística jadinho” (1928), in Aspectos das artes
portugueses no Brasil fundou, aqui, uma posta em prática nessas terras durante o plásticas no Brasil. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1984; e Lucio Costa, “A
sensibilidade espacial e uma disposição período colonial. Em que pese a querela arquitetura dos jesuítas no Brasil”
construtiva baseadas na proteção e no sobre o papel da engenharia militar por- (1941), in Lucio Costa: registro de
refúgio, no medo do selvagem, e não no tuguesa no “planejamento” das princi- uma vivência. São Paulo: Empresa
das Artes, 1995.
contato próximo, na comunhão com a pais vilas e cidades no Brasil,10 pode-se 9
“Em momento algum vai exis-
terra e com a paisagem – eis, portanto, a admitir a existência de certas constantes tir uma fusão entre a construção
nossa “tradição”. Diante de um território na organização morfológica das mesmas. luso-brasileira e a paisagem – sua
antiorganicidade é sempre firme-
hostil, europeus amedrontados circuns- Refiro-me sobretudo ao papel estrutu-
mente expressada. É apenas na
creveram seus domínios em construções rante que alguns edifícios tiveram na mirabolante talha interna que o
isoladas umas das outras, pesadas e configuração urbana desses núcleos, pre- paraíso almejado – dourado como o
céu dos pré-renascentistas – pôde se
compactas, e rigorosamente separadas dominante em relação à definição prévia
fazer presente e se espraiar ao abri-
do exterior por paredes grossas – redutos de um traçado regulador do conjunto. go das grossas paredes.” Jorge Cza-
esparsos da solidão lusitana em meio à Isto é: largos e praças frequentemente jkowski, 1993, op. cit., pp. 28-29.
10
“vastidão despovoada” do Novo Mundo. surgiram como evoluções de adros, pátios Ver Nestor Goulart Reis Filho,
Evolução urbana do Brasil: 1500-
E as ergueram explorando o trabalho e terreiros de igrejas, estes sim, pontos 1720. São Paulo: Pini, 2001; Joa-
escravo, e não com o esmero paciente fulcrais na organização da malha urbana. quim Romero Magalhães (org.),
e laborioso de quem se apropria com Deriva daí o estilo de vida não ostensivo Oceanos 40: a formação territorial do
Brasil. Lisboa: Comissão Nacional
afeto da matéria bruta, transformando-a dessas vilas, associado à permanência de para as Comemorações dos Desco-
lentamente em artefato humano. Assim, determinados hábitos lusitanos de vida brimentos Portugueses, 1999.

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46 urbana (nomeadamente de influência notadamente a brasileira – e, de outro, o


moura), tais como uma certa “incapaci- fermento para uma transformação capital
dade de entender e de usufruir plena- na obra do próprio Corbusier.
mente os espaços abertos da cidade”.11 Já do avião ele viu, “em toda a sua
Assim, é possível dizer que a noção de largura e extensão”, esse gigantesco “país
“informalidade” normalmente associada da América” onde “de tempos em tempos
ao arruamento “espontâneo” das cida- surge um povoado, uma cidadezinha”, e
11
Manuel C. Teixeira e Margarida des coloniais brasileiras é inseparável do onde a Cordilheira dos Andes nada mais
Valla, O urbanismo português: séculos
xiii-xviii. Lisboa: Livros Horizonte,
caráter contido e intimista assumido pelos é do uma ruga. E foi a partir desse ponto
1999, p. 19. seus edifícios. Pensando um desdobra- de vista aéreo – absolutamente moderno
12
Ver Rodrigo Naves, A forma di- mento dessas questões nos campos da arte – que o arquiteto franco-suíço, comovido
fícil: ensaios sobre arte brasileira. São e da arquitetura, pode-se dizer que talvez com a dimensão épica dessa “paisagem
Paulo: Ática, 1997.
13 haja, aí, a semente de um processo de violenta e sublime”, imaginou conferir à
“Só existo na vida com a condi-
ção de ver”. Le Corbusier, Precisões formalização moroso que atravessa os di- arquitetura e ao urbanismo produzidos ali
sobre um estado presente da arquitetu- versos campos das artes visuais no Brasil. uma monumentalidade equivalente àquela
ra e do urbanismo. São Paulo: Cosac Aquilo que o crítico de arte Rodrigo Na- natureza local. Aqui uma nova arquitetu-
Naify, 2004, p. 21.
14 ves chamou de “dificuldade de forma”.12 ra nascerá, profetiza, “unitária e imensa,
Sua proposta de “unidade” refe-
re-se à tradição mediterrânea, por através dos mares e continentes”, e “sob
oposição direta ao modelo norte- um único signo”.14 Tal profecia, eviden-
-americano, de herança anglo-saxã: temente, chocava-se com o “estado atual”
“Os senhores, na América do Sul, REDUÇÃO POÉTICA DA NATUREZA
estão numa região velha e jovem; da arquitetura brasileira naquele momento
são povos jovens e suas raças são No amplo espectro da cultura moder- (eclética e neocolonial), contrapondo-se
velhas. É seu destino agir agora. veementemente a ela. Nesse sentido, são
na, a concepção mais impactante de uma
Agirão sob o signo despoticamente
sombrio do hard labour? Faço votos necessária identidade entre o “caráter” sintomáticas as palavras que Le Corbusier
de que isto não aconteça, os senho- espacial de uma determinada arquitetu- dirigiu aos arquitetos e autoridades locais:
res agirão como latinos que sabem ra e a escala do território em que esta é “... disse-lhes muitas vezes: vocês são
ordenar, organizar, apreciar, medir,
julgar e sorrir”. Idem, p. 238. produzida, desdobrando-se em um modo tímidos, timoratos, têm medo. Nós somos
15
Ibidem, p. 29. particular de enxergar a natureza, foi aqueles que, em Paris, formam equipes,
formulada por Le Corbusier por ocasião mais intrépidos que vocês e vou explicar;
de sua primeira viagem à América Latina. entre vocês os problemas são tão numero-
A força lírica de sua “visão” do território sos, tão imensos, o interior a ser coloni-
americano,13 belamente registrada no zado é tão grande que suas energias são
livro Precisões sobre um estado presente da diluídas imediatamente pelas dimensões,
arquitetura e do urbanismo, passou para a pelas quantidades e pelas distâncias.”15
história como o resultado de um encontro Neste ponto, considerado o impacto
duplamente profícuo, já que representou, dessa sua primeira visão totalizante da
de um lado, o impulso inicial e decisivo América, faz-se necessário explicitar algu-
para os rumos seguidos pela arquitetura mas premissas contidas na sua leitura da
dos países visitados naquele momento – natureza, que lhe permitem, num ímpeto,

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lançar-se vigorosamente ao encontro o encontro fatal entre meio ambiente e 47


dela, sem, no entanto, confundir-se com ação humana na obra de Le Corbusier só
ela. Não se trata, evidentemente, nem de encontra equilíbrio definindo-se como
uma visão idílica romântica, que o seu um pacto precário entre antagonistas. Tal
rousseaunismo de base poderia supor, consciência, por sua vez, se torna para-
nem de uma vontade de entrega fusional digmática no modo penetrante como o
a um mundo anímico e luxuriante. Para arquiteto reage ao cenário natural carioca.
16
Le Corbusier, os índios são seres hostis Em suas palavras: “... então, no Rio de Ja- Ibidem, p. 236.
17
que “evocam os hunos que acossaram a neiro, cidade que parece desafiar radiosa- Ver Vincent Scully Jr., Arquite-
tura moderna: a arquitetura da de-
Europa”, e a mata, como para os colo- mente toda colaboração humana com sua
mocracia. São Paulo: Cosac Naify,
nos portugueses, é uma realidade alheia, beleza universalmente proclamada, somos 2002, p. 87. Mais à frente o autor
“silenciosa, imóvel, fechada, impenetrá- acometidos por um desejo violento, quem anota outra observação de Le Cor-
vel” e “ameaçadora”. A natureza tropical, sabe louco, de tentar também aqui uma busier: “O Partenon cria um fato
tão razoável à nossa compreensão
portanto, não é dócil e benevolente, mas aventura humana – o desejo de jogar uma quanto o fato ‘mar’ ou o fato ‘mon-
ferozmente resistente à ação urbanizadora: partida a dois, uma partida ‘afirmação-ho- tanha’”. Idem, p. 89.
“aqui, urbanizar é o mesmo que pretender mem’ contra ou com ‘presença-natureza’.”18 18
Le Corbusier, 2004, op. cit., p.
encher o tonel das Danaides!”, afirma.16 Contudo, há um momento na teoria 229 (grifo meu).
19
Há algo de Sísifo no impulso heroico do de Le Corbusier, como demonstrou Car- Ver Carlos A. F. Martins, Razón,
ciudad y naturaleza: la génesis de los
construtor posto em ato nesse território. los A. F. Martins, em que essa oposição conceptos en el urbanismo de Le Cor-
Com efeito, é exatamente essa resis- irremediável é equacionada. Operando busier. Madri: Tese de doutorado,
tência inicial que o impele à ação, pois uma atualização da noção cartesiana de Departamento de Estética y Com-
posición de la Escuela Superior de
em seu esquema conceitual a construção natureza – entendida como um sistema
Arquitectura de Madrid, 1992, p. 14.
humana e o mundo natural são entidades fechado, manifestação inteligível da
que se medem e se confrontam numa ordem geométrica do universo –, a lógica
“ação recíproca entre opostos”.17 É por purista de Le Corbusier termina por
isso que em Buenos Aires, em face de um incorporar esse antípoda em um único
horizonte plano e monótono, ele propõe continuum espacial, em que natureza e
a elevação de um renque de torres ali- cidade se tornam elementos de uma coisa
nhadas junto ao rio da Prata (uma opera- só, numa “síntese plasmada pelo gesto
ção similar àquela que fará mais tarde em construtivo”, que ao realizar-se “instaura
Chandigarh, individuando fortemente a paisagem”.19 Isto é, a partir da media­ção
os edifícios em contraste com a massa do gesto construtivo a natureza deixa de
espessa do Himalaia ao fundo). De modo existir in natura para mostrar-se apenas
semelhante, embora em situação inversa, como um elemento da paisagem, orga-
no Rio de Janeiro, diante de perfis mon- nizado à medida do homem: parques
tanhosos dramáticos e movimentados, ele ao rés-do-chão e terraços-jardim na
imagina a intervenção humana na forma cobertura de inúmeros immeubles-villa e
de uma linha horizontal contínua. extensas unités d’habitation.
Em vista dessa oposição dual, segundo A seu modo, o escritor José Lins do
o teórico norte-americano Vincent Scully, Rego também identificou essa complexa

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48 operação. Em seu breve excurso sobre a para o plano piloto de Brasília parte da
conflituosa relação entre homem e paisa- constatação, como vimos, de que um pro-
gem na história do Brasil, o romancista jeto daquele porte, e naquelas circunstân-
observa que aquela etapa histórica marca- cias, só poderia se realizar como “um ato
da pelo divórcio inconciliável entre cultura deliberado de posse”, um “gesto de sentido
e natureza seria superada pelo advento ainda desbravador, nos moldes da tradição
repentino da arquitetura moderna, a partir colonial”.22 Em outras palavras, ao mesmo
20
Como notou Meyer Schapiro da renovação trazida por Le Corbusier. tempo que retoma o “gesto primário de
em relação a Brasília. Ver “A síntese
das artes na cidade nova” (1959). In: Pois para o arquiteto franco-suíço a casa quem assinala um lugar ou dele toma
Novos Estudos n. 70. São Paulo: Ce- não deveria representar “um isolamento posse: dois eixos cruzando-se em ângu-
brap, 2004, p. 159. do mundo, um lazareto”: ao contrário, lo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz”,
21
José Lins do Rego, “O homem deve estar “ligada ao universo”. Como Lucio Costa insiste em não reproduzir
e a paisagem”, in Alberto Xavier
(org.), 2003, op. cit., p. 296. vimos, porém, essa “libertação” trazida por repertórios formais tradicionais, chegando
22
Lucio Costa, “Memória descriti- Le Corbusier não significou uma reden- mesmo a negá-los em grande medida. Em
va do plano piloto” [1957], in 1995, ção, no sentido de um encontro último suas palavras: “... o plano piloto de Brasília
op. cit., p. 283. com uma natureza “local”. Tampouco se não se propôs visões prospectivas de espe-
23
Lucio Costa, “Brasília revisitada; desdobrou na efetiva constituição de uma ranto tecnológico, tampouco resultou de
1985/1987”, Projeto 100. São Paulo,
1987, p. 122. arquitetura unitária e “monumental”,20 promiscuidade urbanística, ou de elabora-
24
Na verdade, Lucio Costa sabe concebida à escala de seu território e de da e falsa ‘espontaneidade’”.23
que a transformação decisiva opera- sua paisagem. No âmbito da arquitetura Ora, sabemos que é exatamente a
da pela modernidade no campo da
brasileira moderna, de inspiração cor- busca – ou a miragem – de uma articu-
arquitetura está no urbanismo. Ou
melhor, sabe que o objeto de ação busiana, a construção deixa de ser “uma lação entre modernidade e tradição que
e atenção dos arquitetos naquele fortaleza contra o meio” para tornar-se move toda a obra de Lucio Costa, tanto
momento é a cidade, e não mais o “uma redução poética da natureza.”21 como arquiteto de prancheta quanto
edifício isolado, e que esse novo “ar-
quiteto-urbanista” é essencialmente como pensador da arquitetura e fun-
um intelectual, e não mais um cons- cionário do patrimônio histórico. No
trutor ou um artista formado na entanto, essa tentativa de articulação,
tradição das belas-artes. Ver Giulio CONSTRUÇÃO DA PAISAGEM
Carlo Argan, “A época do funcio- sempre reiterada em sua trajetória, parece
nalismo”, in Arte moderna. São Pau- Concebida a partir do zero, a Brasília dissolver-se na escala e no programa do
lo: Companhia das Letras, 1995. projeto urbano, onde as referências mais
de Lucio Costa mantém, no entanto, uma
relação ambígua com a tradição colonial. diretas e literais ao passado, ligadas a
Se em seus desenhos não parecem sobre- um afeto íntimo e material pela colônia,
viver quaisquer traços formais que aludam parecem dar lugar a uma atitude afirma-
à configuração histórica dos sítios urbanos tivamente moderna e desenraizada. Seria
luso-brasileiros, pode-se identificar no o caso de perguntar, portanto, até que
partido de implantação do projeto uma ponto o projeto de uma cidade inteira-
proposital sobrevivência da experiência mente nova, após o advento da moderni-
colonial, retomada então como procedi- dade, ainda poderia ser pensado de forma
mento. Sintomaticamente, seu memorial retrospectiva?24

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É forçoso reconhecer, contudo, que seu desenho com a desejada articulação 49


dentre os projetos premiados no con- entre as noções de urbs e civitas. Isto é,
curso para o plano piloto de Brasília a definir Brasília tanto como um agrupa-
proposta de Lucio Costa certamente é a mento urbano comum, lugar de moradia,
mais tradicional. E ser tradicional, aqui, trabalho e lazer cotidianos, quanto como
não significa ser conservadora, mas, ao o núcleo da coletividade civil republicana,
contrário, conter uma leitura mais ampla capital política do país. Assim, a cidade se
25
e aprofundada de um determinado modo define mediante uma dicotomia simbó- Lucio Costa, 1987, op. cit., p. 118.
26
de vida inerente à cultura urbana brasilei- lico-espacial constitutiva: a vida privada, Lucio Costa, “Capital Cities:
discuss with Lucio Costa, Arthur
ra – que, no caso, interessava ao arquiteto espaço do convívio familiar e da existência Korn, Denys Lasdun and Peter
preservar. Vem daí, portanto, a definição individual, está resguardada na intimidade Smithson”. Architectural Design 28,
precisa de uma “escala residencial” cir- de claustros urbanos no plano de Costa, 1958, p. 439-40 (tradução minha).

cunscrevendo o convívio íntimo e em boa enquanto a vida pública, lugar das mani-
medida autossuficiente das superquadras. festações políticas e coletivas, está exposta
E também, de maneira equivalente, tanto aos espaços imensos, cuja expressão é dada
a delimitação de uma densa arborização por edifícios-monumento que se recortam
no perímetro destas, configurando-as nitidamente na infinita linha do hori-
com o caráter mais segregado de “pátios zonte. Em um debate com Arthur Korn,
internos urbanos”, quanto a determinação Denys Lasdun e Peter Smithson, ainda
de um gabarito uniforme e baixo para os durante a construção de Brasília, Lucio
edifícios ali situados, com o intuito de Costa deixa clara a imagem de cidade que
restabelecer em ambiente moderno, como ele deseja criar: “Eu quero ver o mínimo
enfatiza Lucio Costa, uma “escala humana de edifícios. [...] eles têm seis andares –
mais próxima da nossa vida doméstica e não são muito altos. Há edifícios, mas
familiar tradicional”.25 eles estão atrás, em um segundo plano. A
Essa noção de familiaridade associada vista principal é simplesmente a estrada
à delimitação de um conjunto repetido de com árvores em toda a volta [...]. Mesmo
edificações – aquilo que Costa chamou que a extensão da área residencial tenha 6
de “padrão comum da receita única” – km, é quase como se você estivesse fora da
estava ancorada na memória da “pureza cidade quando deixa o centro.”26
distante de Diamantina”, com suas casas Nesse sentido, a comparação direta
geminadas e uniformes, como vimos. com dois outros projetos de destaque
Assim, pode-se dizer que a operação mais apresentados ao concurso – os das
importante realizada pelo urbanista em equipes dos irmãos Roberto e de Rino
Brasília consistiu em conferir qualida- Levi, que dividiram o terceiro e o quarto
des morfológicas próprias e singulares a lugares – revela claramente o sentido de
cada uma das diferentes “escalas” de uso algumas opções feitas por Costa. To-
do espaço na cidade. E, nesse sentido, mando esses dois casos emblemáticos,
elaborar a configuração estrutural do temos situações que, apesar de opostas, se

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50 aproximam pelo fato de terem eleito ape- papel fundamental desempenhado pelo
nas uma das “escalas” de uso para definir espesso “cinturão verde” que emoldura as
o desenho do conjunto. Inspirados no superquadras, isolando-as do principal
modelo das cidades-jardim de Ebenezer eixo de circulação da cidade, uma vegeta-
Howard, os irmãos Roberto renegaram ção densa aparece também sugerida para
veementemente qualquer sentido de as áreas situadas abaixo do terrapleno
monumentalidade associado à ideia de que define a Praça dos Três Poderes. Nas
27
Lucio Costa, 1987, op. cit., p. 118. capital, propondo a descentralização da palavras de Costa, “massas compactas
28
Lucio Costa, “Monlevade, 1934 cidade em uma federação de sete unida- de araucária” deveriam ser plantadas ali
– projeto rejeitado”, in 1995, op. cit.,
des urbanas circulares organizadas em “para que seu verde-escuro sirva de fundo
p. 99.
29 torno de um core central, rigorosamente e valorize o branco dos palácios”.27
O lago Paranoá, embora seja efe-
tivamente artificial, funciona pai- equivalentes em tamanho e importância. Nesse particular “uso” que o arquiteto
sagisticamente como um autêntico Já na proposta da equipe de Rino Levi, faz da ideia de natureza, sempre esta-
elemento natural. que prenuncia as especulações megaestru- belecendo um contraste bem marcado
turalistas da década seguinte, não parece entre “a nitidez, a simetria, a disciplina da
haver qualquer intenção de resguardar arquitetura” e “a imprecisão, a assimetria,
uma sociabilidade privada e familiar em o imprevisto da vegetação”,28 imediata-
espaços íntimos e segregados. Ao contrá- mente saltam aos olhos os traços de sua
rio, seus edifícios habitacionais são lâmi- formação inglesa, que aliás são direta-
nas em estrutura metálica com 300 metros mente referidos por Costa como uma das
de altura, dispostos de modo defasado e reminiscências mais importantes resga-
em grupos de três, sempre com a mesma tadas no projeto de Brasília: os imensos
orientação em relação ao sol. Nesse caso, gramados ingleses da infância, o mall
predomina a ideia de que a vida na cidade reinterpretado no Eixo Monumental. Por
está concentrada verticalmente, e, portan- isso é que surge em Brasília uma “escala”
to, são os próprios edifícios residenciais, que ele chama de “bucólica”. Sintoma-
e não os públicos, que definem o caráter ticamente, enquanto os outros dois pro-
eminentemente monumental da cidade. jetos citados buscam uma proximidade
No primeiro caso, a cidade foi reduzida à com as margens do lago, procurando fa-
escala do convívio íntimo; no segundo, foi zer com que os espaços da cidade usufru-
inteiramente exposta à imagem exterior am – material e visualmente – do contato
de uma monumentalidade privada. com a água, Lucio Costa afasta delibe-
No projeto de Lucio Costa, com efei- radamente todo o núcleo urbano dela,
to, é a alternância abrupta entre as duas subtraindo à cidade o contato direto com
escalas que define a vivência cotidiana o único elemento remanescente de uma
do morador de Brasília. E a existência natureza local in natura.29 Sobre esse
simultânea e independente desses dois aspecto, declara o seguinte: “Evitou-se a
“mundos”, digamos assim, é assegurada localização dos bairros na orla da lagoa,
permanentemente pela presença cons- a fim de preservá-la intacta, tratada com
tante da natureza. Por exemplo, além do bosques e campos de feição naturalista e

Thesis | Volume 5 | 2018 ISSN 2447-8679


Brasília: natureza reinventada Guilherme Wisnik

rústica para os passeios e amenidades de sofridas pela relação entre edificação 51


toda a população urbana”.30 humana e paisagem na cultura ocidental,
Uma outra referência “histórica” no observa que os jardins de Le Nôtre em
projeto de Brasília diz respeito à filiação Versalhes e em Vaux-le-Vicomte encer-
intelectual francesa de Costa, “a lem- ram um longo período histórico em que
brança de Paris”, como diz ele, com seus a construção procurava ou mimetizar
eixos “clássico-barrocos”. É nesse sentido a natureza (a “montanha sagrada” das
30
que a Praça dos Três Poderes, de acordo pirâmides pré-colombianas e mesopotâ- Lucio Costa, “Memória descriti-
com a sua intenção, está vocacionada a micas), ou tensioná-la por contraste (os va do plano piloto” (1957), in 1995,
op. cit., p. 294.
ser “a Versalhes do Povo”.31 Portanto, há templos gregos). Depois de Versalhes, 31
Lucio Costa, “Ingredientes da
em seu projeto um evidente diálogo com com seus “planos jardins floridos”, res- concepção urbanística de Brasília”,
essa tradição, o qual inclui as reformas de salta Scully, Luís xiv construiu o retrato in 1995, op. cit., p. 282.
Paris feitas por Haussmann em meados de uma nova nação: “centralizada, com 32
Vincent Scully Jr., “Architecture:
do século xix, mas centra-se sobretudo suas novas vias diretas e canais longos, the Natural and the Manmade”, in
Stuart Wrede e William Howard
no projeto de Versalhes, de André Le e acima de tudo em escala continental, Adams (orgs.), 1991, op. cit., p. 16
Nôtre, Louis Le Vau e Charles Le Brun estendendo-se, nos termos de Descartes, (tradução minha).
(século xvii), com seu eixo que se abre indefinidamente além do horizonte”.32 33
Lucio Costa, “O urbanista de-
em triângulo, tendo o edifício principal No planalto central latino-america- fende sua cidade” (1967), in 1995,
op. cit., p. 303.
do conjunto como ponto focal. no, em meados do século xx, o governo
Com isso, no fundo, Lucio Costa desenvolvimentista de Juscelino Kubits-
preparava o terreno para o protagonismo chek edificou, a seu modo, a sua própria
da arquitetura de formas livres de Oscar imagem. Coube a Lucio Costa, o arqui-
Niemeyer, que precisa sempre do plano teto brasileiro mais erudito do século,
infinito da linha do horizonte – um chão e a Oscar Niemeyer, o mais habilidoso,
que se torna abstrato – como suporte dar-lhe forma. Apartada da natureza,
para a sua individualização. O que com- Brasília ao mesmo tempo que prolongou
bina também com sua empenhada defesa um modo tradicional de lidar com o
do caráter “monumental” da cidade, território no Brasil, inventou também os
quase que teatralizado por Niemeyer nos meios de se pensar uma nova natureza
palácios cívicos, em oposição a outros ur- construída, abstrata e destacada do chão.
banistas – como os irmãos Roberto – que Nas palavras de Costa: “Ao contrário das
condenavam a sua feição monumental cidades que se conformam e se ajustam à
em nome de um modelo comunitário. paisagem, no cerrado deserto e de encon-
Vincent Scully, num belo ensaio em tro a um céu imenso, como em pleno mar
que trata das transformações históricas a cidade criou a paisagem”.33

Guilherme Wisnik (1972) – Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Uni-


versidade de São Paulo. Curador-geral da 10ª Bienal de Arquitetura de São Paulo, é autor de
Lucio Costa (Cosac Naify, 2001) e Dentro do nevoeiro (Ubu Editora, 2018), dentre outros livros.

ISSN 2447-8679 Thesis | Volume 5 | 2018

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